Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
235/24.0T8LGA.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: In casu a insolvente é uma pessoa singular, donde não resultando da factualidade alegada e provada que aquela seja titular de empresa, não impendia sobre ela o dever se apresentação à insolvência nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 2, do CIRE.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 235/24.0T8LGA.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
1.º Adjunto: Mário João Canelas Brás
2.ª Adjunta: Isabel de Matos Peixoto Imaginário



Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
(…), credor reclamante no processo de insolvência de (…), interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo de Comércio de Lagoa, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

A decisão recorrida, na parte que para o presente recurso releva, tem o seguinte teor:
«Da exoneração do passivo restante:
I – A insolvente (…) veio requerer, na sua petição inicial, ao abrigo das disposições legais contidas nos artigos 235.º e 236.º do CIRE, a exoneração do passivo restante, dando cumprimento à estipulação contida no n.º 3 da última norma legal.

II – O Exmo. Administrador de Insolvência pronunciou-se favoravelmente embora tenha feito reparos à atuação do ilustre advogado da insolvente que, na sua ótica, podia ter sido mais diligente na sua colaboração, em particular mais transparente na justificação da dissipação das viaturas, o que teria evitado o recurso às “ferramentas” atrás referidas na sua identificação e avaliação;

III – O Exmo. credor (…) veio pugnar pelo indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, baseando-se na: a. alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE – porquanto a insolvente sabendo da sua situação de insolvência não a apresentou nos seis meses seguintes a tal verificação, o que provocou prejuízos para os credores. Com efeito, a insolvência foi intentada em 11/10/2024, mas já conhecia a sua situação de insolvência desde pelo menos 29/8/2023, altura em que transitou a sentença proferida no processo n.º 122/19.4T8LAG, na qual a insolvente foi condenada em € 29.396,04. Sucede que em 16/7/2024, no âmbito do mesmo processo judicial foi proferida nova sentença judicial, nos termos da qual a insolvente foi condenada a pagar ao credor reclamante os juros de mora vencidos desde a citação, ocorrida a 28/3/2019, até ao efetivo pagamento do valor a que foi judicialmente condenada de € 29.396,04. Segmento que transitou em julgado no dia 7/10/2024. Estas obrigações não foram cumpridas até ao decretamento da insolvência. Sucede que a insolvente em 21/5/2022 contraiu um crédito pessoal junto do Banco (…) de € 30.000,00. b. A insolvente através do seu mandatário não colaborou com o Exmo. AI no sentido de fornecerem as fotografias dos veículos alienados, não indicaram a sua localização ou prestaram informações sobre o motivo dos referidos negócios e o terceiro que detém atualmente os veículos; c. Os veículos automóveis com a matrícula (…), marca Kia, e com matrícula (…), marca Volkswagen, foram vendidos a terceiro, no dia 9/10/2024, ou seja, dois dias antes da sua apresentação à insolvência; Tais negócios foram realizados através de contrato verbal de compra e venda entre (…), na qualidade de compradora, e (…), mãe da insolvente, na qualidade de vendedora; Ambos os intervenientes na compra e venda foram representados pelo mesmo mandatário que apresentou (…) à insolvência;

IV – (…) refere que nunca houve da parte do mandatário ou da insolvente intenção de inviabilizar o conhecimento sobre a existência de bens, nomeadamente os veículos. No próprio requerimento de apresentação à insolvência é esclarecido que os mesmos foram vendidos, e o fim que foi dado ao valor subjacente à entrega, ou seja, houve transparência. O mandatário e a insolvente não tinham fotos dos veículos, porque não é natural as pessoas terem arquivos fotográficos dos seus carros, pelo que foi de todo impossível fornecer as fotos. Não porque se recusaram ou não quisessem, mas porque não tinham fotos dos mesmos. Para não estar a ser acusada de estar a prejudicar a massa insolvente, procedeu-se à restituição dos bens que se encontram em endereço conhecido, agindo-se com total lealdade. Nenhum credor ficará prejudicado pela atuação, quer da insolvente quer do seu mandatário, que soubera de boa-fé resolver a venda dos bens e entregá-los à massa insolvente;

Cumpre apreciar e decidir:

IV – Da sentença declaratória de insolvência, dos articulados, documentos juntos e do relatório apresentado pelo Exmo AI, com interesse para a decisão do presente incidente, resulta provado que:

1. A insolvente apresentou-se à insolvência no dia 11/10/2024;

2. Na petição inicial, no seu artigo 25.º, a insolvente consignou “a requerente atravessa no momento grandes dificuldades e, para ter dinheiro para pagar a renda da habitação de setembro e outubro do presente ano, teve de pedir € 1.000,00 à sua mãe, mas em contrapartida teve de transferir a propriedade de dois carros velhos que tinha na sua posse e usava para as manutenções de imóveis aos fins-de-semana”;

3. O AI constatou que em nome da insolvente estiveram 3 veículos, designadamente: a. Ciclomotor de marca casal com a matrícula (…), cuja transferência da propriedade ocorreu em setembro de 2022; b. Veículo marca KIA, com a matrícula (…), transferido de propriedade em 7/10/2024; c. Veículo de marca Volkswagen com a matrícula (…), com transferência de propriedade em 7/10/2024;

4. Questionado o ilustre mandatário da insolvente pelo AI sobre os veículos, esclareceu que os veículos respetivamente da marca Volkswagen com a matrícula (…) e da marca KIA com a matrícula (…) foram entregues à mãe da insolvente, (…) em 07/10/2024 ou seja, 9 dias antes da declaração de insolvência (16/10/2024);
5. O AI, ao inquirir o ilustre mandatário da insolvente nos termos seguintes:
“Antes de proceder à sua resolução incondicional nos termos do artigo 121.º do CIRE, agradecia que me informasse, com base no dever de colaboração nos termos do artigo 83.º do CIRE, o que a levou a tais atos.”
6. Veio este responder, como segue:
“Contactei a Insolvente que me informou relativamente ao primeiro veículo tratar-se de uma moto muito antiga e em muito mau estado que transferiu a propriedade por não ter interesse na sua propriedade. Não recebeu dinheiro algum dado o seu estado. Foi mesmo para “destralhar"”.
7. No que concerne aos veículos automóveis foram entregues por a sua mãe lhe ter entregue € 1.000,00 para pagar as rendas da habitação onde reside o seu agregado familiar.

8. O AI solicitou que lhe fossem enviadas fotos das viaturas e a sua localização, tendo o ilustre mandatário da insolvente respondido, várias vezes, do seguinte modo:
“Caro Dr. (…)
Distinto AI
O Insolvente não tem fotos das viaturas.... era todas muito usadas, velhas....”
Voltou a insistir, tendo respondido, como segue:
“Caro (…)
Distinto AI
Como deve compreender não é uma questão de recusa em dar as fotos.... o problema é que a mãe da Insolvente entretanto vendeu os dois carros e não há qualquer possibilidade de tirar fotos.
Pensamos, com o devido respeito, que esta circunstância de dois carros velhos seja fundamental para a qualificar como culposa.”
Vindo complementar o email, dizendo:
“Queria referir: não seja fundamental para qualificar como culposa a insolvência....”
9. Em 2/1/2025, a insolvente através do seu mandatário veio informar o Tribunal da localização dos dois veículos automóveis e que estava a diligenciar para os recuperar e entregar à massa insolvente;

10. Em 17/1/2025, através do seu mandatário, a insolvente informa que diligenciou para recuperar os automóveis, estando os mesmos disponíveis para ser entregues à Massa Insolvente;

11. Por sugestão do Tribunal, os veículos foram avaliados com recurso a plataforma “(…)” tendo-se apurado os seguintes valores mínimos estimados de mercado: a. Veículo matrícula (…), de marca Kia: € 1.500,00; b. Veículo matrícula (…), de marca Volkswagen: – € 2 000,00; c. Ciclomotor com Matrícula (…): – € 500,00;
12. O AI ante os valores da avaliação dos veículos entendeu que o processo devia ser encerrado por insuficiência da massa insolvente;
13. No processo de venda dos veículos automóveis por parte da mãe da insolvente a terceiro, quem procedeu ao registo na competente Conservatória Automóvel foi o ilustre Advogado (…), no dia 16/10/2024;

14. Por sentença datada de 16 de julho de 2024, no âmbito do proc. n.º 122/19.4T8LAG, a insolvente foi condenada a pagar ao seu ex-cônjuge (…) a quantia de € 29.396,04, acrescida de juros de mora nos termos peticionados;

15. Em 21/5/2022, a insolvente contraiu um empréstimo junto do Banco (…);
16. Ocorreu a penhora no seu salário em 29/9/2024, para cobrança coerciva de uma divida de € 39.156,16 para com o seu ex-cônjuge, cuja sentença foi proferida em 16 de Julho de 2024;
O tribunal fundou a sua convicção nos diferentes elementos juntos aos autos, em particular, petição inicial, requerimentos e documentos juntos, lista de credores, relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, sentença datada de 16 de julho de 2024 (na qual se anula uma anterior proferida, valendo esta última / ao anular-se a sentença anterior esta deixa de ter existência jurídica, passando esta a ser a juridicamente relevante).
V – Face aos elementos apurados, haverá que apreciar se a Requerente reúne as condições para que se profira despacho inicial positivo à sua pretensão de exoneração do passivo restante.
Conforme se dispõe no artigo 235.º do CIRE “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (...)”.
Estabelece-se ainda no artigo 236.º, n.º 1, do mesmo Código, que este pedido é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência, se for este o caso, devendo de tal requerimento constar expressamente, nos termos do n.º 3, a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes.
As condições para a concessão efetiva da exoneração do passivo encontram-se descritas no artigo 237.º do CIRE.
Os motivos para indeferimento liminar deste pedido estão plasmados no n.º 1 do artigo 238.º do mesmo diploma legal. Desta norma, desde logo, se aprende estar a mesma enumerada de forma taxativa, ou seja, o tribunal só pode indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo se se verificarem quaisquer das circunstâncias aqui expressamente previstas.
A figura da exoneração do pedido restante surgiu prevista nos artigos 235.º e seguintes do CIRE, na redação do Decreto Lei n.º 53/2004, de 18/3, onde logo no preâmbulo se pode ler que “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». Nesta matéria, referem Carvalho Fernandes e João Labareda, (in CIRE, Anotado (Reimpressão), Quid Juris, Lisboa, 2006, a pág. 184) a referida exoneração “… traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante.” Citando Carvalho Fernandes e João Labareda: «A concessão da exoneração do passivo restante …, depende, como facilmente se compreende, da verificação de certos requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém - in Colectânea De Estudos sobre a Insolvência, Quid Juris, Lisboa, 2009, a págs. 276 e 277.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste. Conforme refere Maria A. O. Cristas (“Novo Direito da Insolvência” – Temis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ed. esp., pág. 170) para que se profira despacho inicial torna-se necessário, desde logo, que «o devedor tenha tido um comportamento anterior ou atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência (…) a conduta do devedor é devidamente analisada através da ponderação de dados objetivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe é imposta». O objetivo final é a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que aprendida a lição este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua atividade económica (cfr. Catarina Serra “O Novo Regime Jurídico da Insolvência – Uma Introdução”, 2ª ed., pág. 73). É sobre o Administrador da Insolvência e sobre os credores que impende o ónus de alegar e demonstrar a verificação de alguma das causas impeditivas do deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. Daqui decorre que o devedor não terá que alegar e provar que não se encontra em alguma das situações previstas artigo 238.º, n.º 1, alíneas a) a g), do CIRE – neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2010, acessível in www.dgsi.pt – Processo n.º 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1.
De acordo com o preceituado no artigo 238.º, n.º 1, do CIRE, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido, se:
«a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
2 - O despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório, exceto se este for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior.»
Apreciando os concretos requisitos e procedimentos fixados nos artigos 236.º, 237.º e 238.º, retira-se que, a concessão efetiva da exoneração pressupõe a não verificação das condições do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., a pág. 190, encontram-se ali definidas, pela negativa, os requisitos de cuja verificação depende a exoneração.
O Exmo. Administrador de Insolvência apesar de entender que houve uma dificuldade inicial de comunicação e colaboração franca, que atribui essencialmente ao Ilustre Mandatário da Insolvente, pugna pela concessão da exoneração do passivo restante, por inexistir culpa grave por parte da insolvente em algumas entropias verificadas.
O Exmo. Credor (…) defende o indeferimento da exoneração do passivo restante, com base nas alienas d), e) e g) do artigo 238.º, nº1 do CIRE.
Comecemos pela alínea d) – não cumprimento do dever de apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da sua insolvência, o que causou prejuízo aos credores.
São requisitos cumulativos do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante:
1. O incumprimento do dever de apresentação à insolvência ou, não existindo tal dever, a ultrapassagem do prazo de seis meses após a verificação da situação de insolvência dos requerentes;

2. Prejuízo para os credores;

3. O conhecimento ou a obrigação de não ignorar, com culpa grave, a inexistência de perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
Como se salienta no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 1058/11.2TBCNT-C.C1, datado de 11/7/2012, in www.dgsi.pt “O prejuízo para os credores tem de ser concretamente comprovado por factos que o consubstanciem, e que não devem ser confundidos com o mero incremento do passivo em função da contagem dos juros. Por isso mesmo, não é sobre os ombros do devedor que impende qualquer prova de matéria negativa; é antes aos credores e ao administrador que incumbe a prova do facto positivo da ocorrência desse prejuízo. Só o nexo de causalidade entre a demora na apresentação à insolvência para além do prazo estipulado na lei, ou independentemente do prazo, quando seja obrigatória – e, por via disso, na produção dos efeitos decorrentes do processo – e o agravamento da garantia patrimonial poderá ser eleito como impeditivo do benefício, à luz das exigências incitas na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.
Vejamos.
A autora aufere cerca de € 1.365,16 e contraiu ao longo do tempo vários créditos pessoais para fazer face às suas despesas, os quais foi gerindo, com o surgimento da penhora no seu salário em 29/09/2024, para cobrança coerciva de uma divida de € 39.156,16 para com o seu ex-cônjuge, cuja sentença foi proferida em 16 de Julho de 2024, a sua situação piorou, tendo precipitado a sua já frágil situação económica. Em face do vencimento auferido pela insolvente por contraposição com os empréstimos contraídos (num total que não excediam os € 35.000,00), excluindo a divida para com o seu ex-cônjuge, com um ou outro constrangimento, dificuldades estavam e podiam perfeitamente ser geridos, tal como sucede em várias famílias Portuguesas. Não se afigura flagrante a situação de insolvência em momento anterior à exigibilidade coerciva da divida por parte do seu ex-cônjuge, compreendendo-se, por isso, que não se tenha apresentado logo à insolvência, pois é comum para o cidadão que viva exclusivamente do seu salário médio, o recurso a empréstimos para fazer face a despesas sejam elas de habitação ou outras, como parece ter sido o caso, por ter enfrentado um divórcio, com uma filha menor a cargo, necessitando de redesenhar a sua vida. Nesta medida, entendemos que o ponto marcante para início do seu dever de apresentação surgiu com a exigibilidade (cobrança coerciva) da dívida ao ex-cônjuge, pelo que no momento em que se apresentou à insolvência ainda estava em tempo. Mesmo que assim não fosse, não vislumbramos comportamento voluntário da requerente que tenha precipitado criado ou agudizado prejuízo dos seus credores. Com efeito, não foram contraídas dividas novas, com oneração do seu património, suscetíveis de terem provocado ou agravado o prejuízo dos mesmos. O empréstimo que o credor Paulo aponta surgiu já em 2022, muito antes da sua divida litigiosa se ter tornado exigível. De igual modo, não está demonstrado que a autora sabia do seu dever de apresentação à insolvência e que não o fez com culpa grave. Nesta medida, entendemos não se verificar o consagrado na referida alínea, não constituindo motivo para o seu indeferimento.
Quanto à aliena e) – Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º. Aponta-se à insolvente a dissipação de património dias antes de se apresentar à insolvência, com especial relevância a transferência de dois veículos automóveis para o nome da sua mãe. Justifica a insolvente o referido comportamento com o facto de se ter financiado junto da sua mãe em cerca de € 1.000,00 para pagar os dois meses de renda da casa por si ocupada com o agregado familiar. Embora seja discutível esse comportamento, o certo é que o valor dos automóveis como resulta da avaliação efetuada, têm um valor de cerca de € 3.500,00 os dois, pelo que não é a transferência de propriedade que causou ou precipitou a insolvência, muito menos compromete de forma irremediável o ressarcimento aos credores (note-se que atento o seu valor não foram os mesmos ainda apreendidos para a MI). Por outro lado, a insolvente diligenciou pela recuperação de tais automóveis para os entregar à Massa Insolvente para que não fosse colocada em causa a sua boa-fé, pelo que nenhum prejuízo advém para os credores do seu comportamento, o qual foi voluntariamente revertido para não lhe ser apontado qualquer ato menos próprio de prejuízo aos credores. É certo que em 2022 foi transferido um ciclomotor no valor de € 500, que menos impacto tem na insolvência, sendo certo que são entradas e saídas de património sem qualquer expressão e comuns na vida de um cidadão. Ante a pouca expressão do valor dos veículos automóveis, o facto da insolvente ter diligenciado pela sua entrega à massa insolvente, leva-nos a arredar qualquer comportamento suscetível de integrar, neste segmento, a insolvência culposa.
Quanto à alínea f), o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente código, no decurso do processo de insolvência.
Para a verificação deste motivo de indeferimento é necessário que impenda sobre o insolvente o dever de informação, apresentação ou colaboração, a violação do dever ocorra no decurso do processo de insolvência e que esse incumprimento ocorra num quadro de dolo ou culpa grave.
Nos termos do disposto no artigo 83.º do CIRE, o devedor insolvente fica obrigado a:
A) Fornecer todas as informações, relevantes para o processo que lhe sejam solicitados pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal;

B) Apresentar-se pessoalmente no tribunal sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador da insolvência, salva a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazer representar por mandatário;

C) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções;
No caso concreto, apenas o que está em causa é a eventual violação do dever de colaboração e de informação, por falta de entrega das fotografias dos veículos vendidos e de informação relativo ao paradeiro dos veículos.
Com efeito, não está em causa a violação do dever de informação por sonegação de bens, pois a insolvente na petição inicial foi transparente, ao contrário do que normalmente sucede, relativamente ao ato de transmissão dos dois veículos automóveis (tendo logo referido na petição inicial). De igual modo, quando questionada, respondeu o motivo da transferência dos veículos (pagamento à mãe de dois veículos por esta lhe ter dado a quantia de € 1.000,00 anteriormente para esta pagar as rendas da sua habitação / veículo ciclomotor doado anteriormente apenas para “destralhar”). Quanto à falta de entrega de fotografias dos automóveis, compreendemos o adiantado pelo ilustre mandatário da insolvente não as ter no momento, por não ter ficado com fotos dos veículos alienados ( não é incomum que as pessoas não tenham fotos dos veículos, mas também é certo que existem outras pessoas que os têm), mas podia ter referido e efetuado diligências para as obter, até porque o ilustre advogado da mesma, por ter efetuado o registo das transferência dos veículos para o terceiro adquirente, sabia ou tinha obrigação de saber o seu paradeiro (por ter passado por ele a morada do adquirente). O mesmo raciocínio é feito para a informação sobre o paradeiro do veículo. Sucede que quem tinha a informação era o Ilustre Mandatário, não resulta inequívoco que a insolvente soubesse do paradeiro dos veículos. Sobre o ilustre mandatário não impende o dever de informação, mas que podia ter evitado esta turbulência inicial. O dever impendia sobre a insolvente, mas não é seguro que esta tivesse esse conhecimento ou mesmo obrigação de saber, atenta a sua venda por parte da sua mãe a terceiros. Nesta medida, s.m.o., não existe dolo ou culpa grave na não entrega das fotografias e falta de indicação do paradeiro dos automóveis por parte da insolvente. Mesmo que assim não fosse, o comportamento posterior da insolvente, no sentido das diligências voluntárias efetuadas no sentido de recuperar os veículos automóveis para os entregar à Massa Insolvente, demonstra a sua preocupação, motivação, para colaborar ativamente com o sucesso do processo de insolvência.
Não se verifica, por isso, também este comportamento índice para o indeferimento da exoneração do passivo.
Neste enquadramento, considerando o que resulta do presente processo, não pode concluir-se pela existência de qualquer motivo para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Termos em que se admite o pedido liminar da exoneração do passivo restante.
Como fiduciário nomeia-se, por razões de economia processual, o Sr. Administrador da insolvência, a quem se confere a tarefa de fiscalizar o cumprimento das obrigações por parte do insolvente.
Nos termos do artigo 239.º do CIRE, o Tribunal determina que, durante os 3 anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível do insolvente fica cedido ao Sr. fiduciário.
Durante o período de cessão – os referidos 3 anos após o encerramento do processo – o insolvente fica obrigado a observar as imposições previstas no n.º 4 do artigo 239.º do CIRE.
(…)».


I.2.
No recurso que interpôs o recorrente formulou alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«A. Em 11.10.2024, a Recorrida (aí, Insolvente), apresentou requerimento de apresentação à Insolvência, nos termos do qual peticionou, a final, a exoneração do passivo restante – cfr. o Requerimento (Ref.ª Citius 50129442, de 11.10.2024).
B. Em 05.11.2024, o Recorrente apresentou requerimento nos termos do qual consignou verificar-se nos presentes autos a situação prevista no artigo 238.º, n.º 1, alínea d), do CIRE, motivo pelo qual deveria ser indeferido o pedido de exoneração do passivo restante – cfr. o Requerimento (Ref.ª Citius 50369135, de 05.11.2024).
91. No dia 13.12.2024, o Administrador da Insolvência juntou aos autos um relatório nos termos do qual consignou que a Recorrida (aí, Insolvente) alienou duas viaturas à sua mãe no dia 07.10.2024, isto é, nove dias antes da declaração de insolvência, concluindo não ter ficado devidamente elucidado sobre a subtração da massa insolvente dos veículos na salvaguarda dos interesses da massa insolvente e dos credores e que, nessa sequência – cfr. o Relatório do Administrador (Ref.ª Citius 50772921, de 13.12.2024).
C. No mencionado relatório, o Administrador da Insolvência consignou ainda inexistirem quaisquer documentos comprovativos das despesas da Insolvente, nomeadamente no que respeita ao alojamento da filha e respetiva alimentação – cfr. o Relatório do Administrador (Ref.ª Citius 50772921, de 13.12.2024),
D. Concluindo a final que “é por ora, de parecer desfavorável enquanto não esclarecer os autos de forma fundamentada dos contornos da venda dos veículos atrás identificados” – cfr. o Relatório do Administrador (Ref.ª CITIUS 50772921, de 13.12.2024).
E. No dia 04.02.2025, o Administrador da Insolvência apresentou novo relatório nos termos do qual consignou que a viatura com a matrícula (…) da Marca KIA teria um valor mínimo de mercado de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), bem como que a viatura com matrícula (…), da marca Volkswagen teria um valor mínimo de mercado de € 2.000,00 (dois mil euros) – cfr. o Requerimento (Ref.ª Citius 51240332, de 04.02.2025),
F. Concluindo a final que “no que concerne à exoneração do passivo restante, tal como já reportou aos autos no relatório elaborado nos termos do artigo 155.º do CIRE, lamenta a conduta da insolvente e do seu ilustre mandatário, cuja colaboração deveria ter sido transparente, mormente na justificação da dissipação das viaturas, o que teria evitado o recurso às “ferramentas” atrás referidas na sua identificação e avaliação” – cfr. o Requerimento (Ref.ª Citius 51240332, de 04.02.2025).
G. Por Despacho Inicial de 14.04.2025, o Tribunal a quo decidiu pelo encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente e pela admissão do pedido liminar de exoneração do passivo restante – cfr. Despacho Judicial (Ref.ª Citius 136016959, de 14.04.2025).
H. O Recorrente não se pode conformar com a decisão do Tribunal a quo uma vez que existe matéria dada por provada que o não deveria ter sido, e ainda matéria não provada que o deveria ter sido, ao mesmo tempo que entende existir incorreta aplicação do Direito ao caso em apreço.
Com efeito,
I. O facto n.º 7 da Matéria de Facto deve ser eliminado porquanto não foi produzida qualquer prova nesse sentido, havendo sido o mesmo somente alegado pela Recorrida e devidamente impugnado pelo Recorrente.
J. A falta de elementos probatórios pertinentes ao mencionado facto foi, aliás, reiterada pelo Administrador da Insolvência nos seus relatórios de 13.12.2024 e de 04.02.2025.
K. Os factos a) e b) da Matéria de Facto deve ser eliminado porquanto não foi produzida qualquer prova em sentido convergente com os mesmos, não passando estes de meras alegações da Insolvente que foram devidamente impugnadas pelo Recorrente.
L. A falta de elementos probatórios pertinentes aos referidos factos foi, uma vez mais, consignada pelo Administrador da Insolvência, no seu relatório de 13.12.2024.
Por outra via,
M. Os factos constantes nos artigos 14º, 15º, 16º e 20º do Requerimento junto pelo Recorrente (aí, Credor Reclamante) em 12.01.2025, devem ser aditados à Matéria de Facto, ou seja:
a) “Os veículos automóveis com a matrícula (…), da marca Kia, e com a matrícula (…), da marca Volkswagen, foram vendidos a terceiro, no dia 09.10.2024, ou seja, dois dias antes da sua apresentação à insolvência”;
b) “Tais negócios foram realizados através de contrato verbal de compra e venda entre (…), na qualidade de compradora, e (…), mãe da Insolvente, na qualidade de vendedora”;
c) “Havendo ambas as partes, putativa vendedora e putativa compradora, sido representadas – pasme-se … ou talvez não – pelo mesmo exacto mandatário que apresentou Eunice Alexandra Ramos Palma à insolvência (!), que apresentou os factos a registo”;
d) “Os quais dissipou antes de se apresentar à insolvência em lamentável estratagema para fuga aos seus credores”.
N. Bem como que o veículo com a matrícula (…), da marca KIA, teria o valor mínimo de mercado de € 1.500,00, e que o veículo com a Matrícula (…), da marca Volkswagen possuiria o valor mínimo de mercado de € 2.000,00,
O. Os quais demonstram a natureza simulada dos negócios referentes aos mencionados automóveis – cfr. o artigo 240.º do Código Civil.
P. Contrariamente ao fantasiado pelo Tribunal a quo o Administrador de Insolvência pronunciou-se desfavoravelmente à admissão do pedido de exoneração do passivo restante.
Q. Não pode ser concedido à Recorrida o benefício da exoneração do passivo restante uma vez que a Recorrida não cumpriu o prazo de seis meses para se apresentar à insolvência, prejudicando os credores e conhecendo não existir hipótese de melhoria da sua situação económica – cfr. o artigo 238.º, n.º 1, alínea d), do CIRE; na jurisprudência, o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.07.2011 (Relatora: Conceição Saavedra).
R. Não pode ser concedido à Recorrida o benefício da exoneração do passivo restante por se verificarem presunções iuris et de iure de que a sua insolvência é culposa, uma vez que efetuou a venda de um motociclo dois anos antes da sua apresentação à insolvência, bem como de dois automóveis apenas nove dias antes da sua apresentação à insolvência, dissipando dolosamente o seu único património – cfr. o artigo 186.º, n.º 2, alíneas a) e b) e n.º 4, do CIRE e o artigo 238.º, n.º 1, alínea e); na doutrina Maria do Rosário Epifânio e Catarina Serra; na jurisprudência o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.03.2020 (Relatora: Rosália Cunha), o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 29.06.2010 (Relatora: Rosa Tching), o ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.07.2023 (Relatora: Renata Linhares de Castro), e o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.03.2025 (Relatora: Rosália Cunha).
S. Não pode ser concedido à Recorrida o benefício da exoneração do passivo restante porquanto esta violou cabalmente os deveres de informação, apresentação e colaboração que lhe eram devidos, factualidade que foi, aliás, reiterada pelo Administrador da Insolvência nos relatórios que juntou aos autos em 13.12.2024 e 04.02.2025 – cfr. o artigo 238.º, n.º 1, alínea g), do CIRE. Nestes termos, e nos demais de Direito julgados aplicáveis, deverá ser concedido provimento ao
presente recurso de Apelação interposto pela Recorrente, e, em consequência ser:
a) Revogado o Despacho Inicial proferido a 14.04.2025; e
b) Ser o mesmo substituído por outro que (i) considere o supra alegado quanto à Matéria de Facto e (ii) indefira liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante à Recorrida;
Subsidiariamente,
c) Ser Revogado o Despacho Inicial proferido até que seja proferida decisão no âmbito do incidente de qualificação da insolvência que segue termos no Juiz 2 do Juízo de Comércio de Lagoa do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, como é de JUSTIÇA!»

I.3.
O Ministério Público acompanhou as alegações de recurso apresentadas pelo recorrente.
I.4.
A insolvente apresentou resposta às alegações de recurso, que culminam com as seguintes conclusões:

«A) O trânsito em julgado do processo n.º 122/19.4T8LAG que correu termos no Juízo Central Cível de Portimão-J3, apenas ocorreu em 07.10.2024 porque o credor, aqui Recorrente, reclamou da Sentença inicial proferido por este Juízo Central.
B) A apresentação à insolvência aconteceu 4 dias após o trânsito em julgado do referido processo judicial. Não houve qualquer demora ou sequer incumprimento do prazo na apresentação à insolvência.
C) A Recorrida/Insolvente deu todos os esclarecimentos ao AI e ao Tribunal a quo bem como respondeu a todos os sucessivos e repetitivos requerimentos do credor (…) que desesperadamente pretende alterar a realidade dos factos descritos pela aqui Recorrida.
D) A Recorrida consubstanciou a sua colaboração com os requerimentos de 08.11.2024, Ref.ª Citius 13048386; 19.12.2024, Ref.ª Citius 13200784; 02.1.2025, Ref.ª Citius 13223007; 7.01.2025, Ref.ª Citius 13236493; 17.01.2025, Ref.ª Citius 13282637 e, em 22.2.2025, Ref.ª Citius 13417599.
E) O Tribunal a quo “andou bem” ao dar como provados os factos mencionados em 7. da sua Decisão porque se baseou não só no Requerimento Inicial de apresentação à insolvência, nos diversos requerimentos apresentados pela Recorrida, documentos juntos e no relatório do AI, ou seja, foi uma decisão fundamentada em várias vertentes.
F) Mesmo posteriormente ao relatório do AI a Recorrida continuou a dar todos os esclarecimentos, conforme mencionado em D).
G) O Tribunal a quo não poderia ter dado como provados os factos 15, 16 e 20 do Requerimento do Recorrente de 12.01.2025 porque conforme já mencionamos para tomar a sua decisão baseou-se em diversos documentos, e requerimentos juntos aos autos que fundamentaram a sua convicção.
H) O Recorrente, desesperado, apelida de forma deselegante, o Tribunal a quo de fantasioso por não acolher os seus argumentos infundados. Na verdade, não houve negócio algum simulado.
I) A insolvente apresentou-se em tempo à insolvência. No seu Requerimento Inicial de Apresentação à Insolvência mencionou a venda dos veículos automóveis. Resolveu essas vendas e entregou todos os seus bens à massa insolvente.
J) E mesmo mota antiga vendida em 2022 (nessa altura não pensava sequer apresentar-se à insolvência) em nada prejudicou os credores por ser de valor muito reduzido.
K) Não houve qualquer prejuízo para o Recorrente e demais credores.
L) O comportamento da Insolvente/Recorrida não foi culposo e mesmo que tivesse atuado com culpa a mesma não foi grave.
M) O Tribunal a quo demonstrou detalhadamente a não verificação de quaisquer circunstâncias que legalmente qualifiquem a insolvência de culposa.
N) Não se verificaram quaisquer presunções legais de qualificação culposa da insolvência, conforme pôde o Tribunal a quo claramente, referir detalhadamente na sua decisão/Despacho final de exoneração do passivo restante.
Nestes termos e nos mais de direito, deve o Recurso improceder por não provado e em consequência manter-se a decisão recorrida.»


I.5.
O recurso foi admitido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º/4 e 639.º/1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento se imponha (artigo 608.º/2 e artigo 663.º/2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º/2 e 663.º/2, ambos do CPC).

II.2.
No caso cumpre decidir:
1 – Impugnação da decisão de facto;
2 – Avaliar se o julgador a quo incorreu em erro de julgamento de direito ao admitir liminarmente a exoneração do passivo restante.

II.3.
FACTOS
A factualidade relevante é aquela que consta da decisão recorrida.
Resulta ainda dos autos que:
1 – Mediante requerimento datado de 2 de janeiro de 2025, o mandatário da insolvente, dr. (…), informou do paradeiro das viaturas de matrícula (…) e (…) e que relativamente ao veículo motorizado de matrícula (…) há muito tempo que havia sido transferida a sua propriedade, estando a diligenciar junto da Conservatória do Registo Automóvel pelo paradeiro do mesmo.
2 – Mediante requerimento apresentado em 07.01.2025, a insolvente juntou aos autos o registo de propriedade do veículo motorizado da marca casal, matrícula (…), em nome de (…), desde 12.09.2022.
3 - Mediante despacho datado de 16.01.2025, o tribunal a quo sugeriu ao sr. administrador da insolvência que recorresse à (…) ou a outro avaliador de mercado, para apurar o valor de mercado das duas viaturas com asa matrículas (…) e (…), respetivamente;
4 – Através de requerimento datado de 04.02.2025, o sr. Administrador da Insolvência informou os autos que «consultou a plataforma (…) e, depois com o recurso da Inteligência Artificial apurou os seguintes valores mínimos, estimados, de mercado: 1.1. Viatura com a matrícula (…), valor: € 1.500,00; 1.2. viatura com a matrícula (…), Valor: € 2.000,00.»
5 - A insolvente apresentou-se à insolvência na data de 11.10.2024.


II.4.
Apreciação do objeto do recurso
II.4.1.
Impugnação da decisão de facto
Neste segmento do recurso o apelante defende que os factos provados nºs 7 e as alíneas a) e b) do facto provado nº 11 devem ser eliminados do elenco dos factos provados «porquanto não foi produzida qualquer prova nesse sentido», e que os factos constantes dos artigos 14º, 15º, 16º e 20º do requerimento que juntou aos autos em 12.01.2025 devem ser aditados ao elenco dos factos provados.
Vejamos se lhe assiste razão.
A. Factos provados nºs 7 e alíneas a) e b) do facto provado nº 11
Estes enunciados têm o seguinte teor:
- Facto provado nº 7 - No que concerne aos veículos automóveis foram entregues por a sua mãe lhe ter entregue € 1.000,00 para pagar as rendas da habitação onde reside o seu agregado familiar.
- Facto provado nº 11: Por sugestão do Tribunal, os veículos foram avaliados com recurso a plataforma “(…)” tendo-se apurado os seguintes valores mínimos estimados de mercado: a. Veículo matrícula (…), de marca Kia – € 1.500,00; b. Veículo matrícula (…), de marca Volkswagen – € 2.000,00.

Defende o apelante que se trata de factualidade sobre os quais não foi produzida prova “convergente” com os mesmos, devendo, consequentemente, ser julgados não provados.
Relativamente ao facto provado nº 7 a insolvente confessou que os entregou à mãe, mas não foi produzida qualquer prova documental (ou oferecida qualquer outra) sobre a razão invocada para tal entrega, concretamente, a (alegada) existência de rendas em dívida e do empréstimo de € 1.000,00 por parte da mãe da insolvente para efeitos de satisfação daquela dívida.
Por conseguinte, a factualidade constante do ponto de facto provado nº 7 deverá transitar para o elenco dos factos não provados.
Relativamente ao facto provado nº 11 resulta dos autos que mediante despacho datado de 16.01.2025, o tribunal a quo sugeriu ao sr. administrador da insolvência que recorresse à (…) ou a outro avaliador de mercado, para apurar o valor de mercado das duas viaturas em causa, tendo em conta a marca, modelo e ano das referidas viaturas, tendo o sr. AI, mediante requerimento datado de 04.02.2025, informado os autos que «consultou a plataforma (…) e, depois com o recurso da Inteligência Artificial apurou os seguintes valores mínimos, estimados, de mercado: 1.1. Viatura com a matrícula (…), valor: € 1.500,00; 1.2. viatura com a matrícula (…), Valor: € 2.000,00». Pelo que, correspondendo, a factualidade enunciada sob o ponto n.º 11 ao que resulta dos autos, improcede este segmento da impugnação.

B. Ampliação do elenco de factos provados
O apelante pretende, ainda, que seja ampliado o elenco dos factos com a factualidade por si alegada nos artigos 14º, 15º, 16º e 20º do seu requerimento datado de 12.01.2025, concretamente, que:
«14 - Os veículos automóveis com a matrícula (…), da marca Kia, e com a matrícula (…), da marca Volkswagen, foram vendidos a terceiro, no dia 09.10.2024, ou seja, dois dias antes da sua apresentação à insolvência»;
15 - Tais negócios foram realizados através de contrato verbal de compra e venda entre (…), na qualidade de compradora, e (…), mãe da Insolvente, na qualidade de vendedora;
16. Havendo ambas as partes putativa vendedora e putativa compradora sido representadas pelo mesmo exato mandatário que apresentou (…) à insolvência, que apresentou os factos a registo;
20 - Os quais dissipou antes de se apresentar à insolvência em lamentável estratagema para fuga aos seus credores».
Vejamos.
Consta já do elenco de factos provados que houve um processo de venda dos veículos automóveis supra referidos «por parte da mãe da insolvente a terceiro» e que quem procedeu ao registo de propriedade dos mesmos em nome desse terceiro, na competente conservatória de Registo Automóvel foi o dr. (…), na data de 16.10.2024 (cfr. facto provado n.º 13).
Junto com o requerimento de 12.01.2025 acima referido foi junto um documento – que não foi impugnado – consistente num “requerimento para registo de propriedade” dos referidos veículos do qual consta que a causa de aquisição do direito de propriedade foi um contrato verbal de compra e venda celebrado entre (…), na qualidade de vendedora e (…), na qualidade de compradora, em 09.10.2024.
Por conseguinte, ao elenco dos factos provados deverá ser aditado um novo enunciado com a seguinte numeração e teor:
«13.A: Foi declarado, no requerimento para registo de propriedade dos dois veículos automóveis, que a causa de aquisição do direito de propriedade sobre os mesmos foi um contrato verbal de compra e venda celebrado em 09.10.2024, entre (…), na qualidade vendedora, e (…), na qualidade de compradora.»
No que respeita ao enunciado “Os quais dissipou antes de se apresentar à insolvência em lamentável estratagema para fuga aos seus credores”, o mesmo contém juízos de valor que não são extraíveis de factualidade nele contida, assumindo, portanto, uma natureza puramente conclusiva. Além de que integra o thema decidendum, ou seja, integra uma afirmação que se insere na análise da questão jurídica a decidir, comportando uma resposta a essa questão. Pelo que o enunciado em questão não pode ser aditado ao elenco dos factos provados.

*
DECISÃO:
Em face do exposto, julga-se parcialmente procedente a presente impugnação da decisão de facto e, em conformidade:
1 – Ordena-se que o facto provado n.º 7 transite para o elenco dos factos não provados;
2 – Ordena-se o aditamento ao elenco dos factos provados de um novo ponto de facto com a seguinte numeração e teor:
«13.A: Foi declarado no requerimento para registo de propriedade dos dois veículos automóveis que a causa de aquisição do direito de propriedade sobre os mesmos foi um contrato verbal de compra e venda celebrado em 09.10.2024, entre (…), na qualidade vendedora, e (…), na qualidade de compradora.»

II.4.2.
O Direito
Está em causa no presente recurso a decisão judicial do tribunal de primeira instância que admitiu liminarmente a exoneração do passivo restante pedida pela insolvente/apelada. Contra esta decisão se insurge o apelante – credor da insolvente –, defendendo que aquela deve ser substituída por outra que indefira liminarmente aquele pedido de exoneração do passivo restante ou que seja revogado tal despacho «até que seja proferida decisão no âmbito do incidente de qualificação da insolvência que segue termos no juiz 2 do Juízo de Comércio de Lagoa do Tribunal Judicial da Comarca de Faro». Para tal desiderato, o apelante sustenta que não pode ser concedido à Recorrida o benefício da exoneração do passivo restante uma vez que: i. a Recorrida não cumpriu o prazo de seis meses para se apresentar à insolvência, prejudicando os credores e conhecendo não existir hipótese de melhoria da sua situação económica; ii. verificam-se presunções iuris et de iure de que a sua insolvência é culposa, uma vez que efetuou a venda de um motociclo dois anos antes da sua apresentação à insolvência, bem como de dois automóveis apenas nove dias antes da sua apresentação à insolvência, dissipando dolosamente o seu único património (artigo 186.º, n.º 2, alíneas a) e b) e n.º 4, do CIRE, e o artigo 238.º, n.º 1, alínea e); iii. a insolvente violou cabalmente os deveres de informação, apresentação e colaboração que lhe eram devidos.
Apreciando.
A exoneração do passivo restante importa a afetação, durante certo período de tempo – atualmente três anos –, e após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final daquele período, a extinção dos créditos que não tenha sido possível satisfazer, por essa via, durante aquele período de tempo.
A exoneração do passivo restante é determinada pela necessidade de dar ao devedor, que seja pessoa singular, uma oportunidade de começar de novo sem as dívidas que sobre si impendiam, na medida em que aquela importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que aquela é concedida (e ainda que não tenham sido reclamados e verificados no processo de insolvência), com exceção dos créditos referidos no n.º 2 do artigo 245.º do CIRE.
A exoneração do passivo restante encontra-se regulada nos artigos 235.º e ss. do CIRE, dispondo o artigo 235.º que «se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo».
O pedido de exoneração pode ser admitido ou rejeitado de imediato, sendo que o artigo 238.º, n.º 1, do CIRE epigrafado Indeferimento liminar, enumera nas suas diversas alíneas os motivos de indeferimento denominado “liminar”.
Dispõe aquele normativo legal o seguinte:
«1 – O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência».
O ónus de prova dos fundamentos previstos nas diversas alíneas incumbe aos credores e ao administrador da insolvência na medida em que se trata de factos de natureza impeditiva da pretensão do devedor – artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.
No caso sub judice, o tribunal de primeira instância apreciou os fundamentos de indeferimento liminar previstos, respetivamente, nas alíneas d), e) e g), supra mencionadas, concluindo, a final, pela respetiva não verificação. E são esses os fundamentos que cumpre aqui avaliar se estão, ou não, verificados.
De acordo com o disposto na alínea d), do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE o indeferimento liminar com o fundamento ali previsto exige a verificação cumulativa de três requisitos negativos, a saber: i. a não apresentação atempada à insolvência; ii. o prejuízo para os credores; e iii. o conhecimento ou o desconhecimento do insolvente, com culpa grave, de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica. E a alegação e prova de todos ele incumbe, como já assinalámos, ao credor reclamante, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.
Para que se possa aplicar a norma do artigo 238.º, n.º 1, alínea d), é necessário que se verifique um nexo de causalidade entre o retardamento da apresentação à insolvência e o prejuízo para os credores. O atraso na apresentação à insolvência pode conduzir a uma redução do ativo fruto da instauração de execuções singulares dos credores ou da alienação de bens, ou até da desvalorização do ativo com o decurso do tempo e o passivo, em contraponto, pode aumentar, por exemplo, por força da contração de novas dívidas.
Quanto ao terceiro requisito – o conhecimento ou o desconhecimento do insolvente, com culpa grave, de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica - o mesmo é geralmente reconduzido para a inexistência ou insuficiência de bens, podendo a inexistência de perspetiva séria de melhoria da situação económica resultar da cessação da atividade económica do devedor, de uma situação de desemprego ou da inexistência de património por parte do devedor[1].
De acordo com o disposto no artigo 238.º, n.º 1, alínea e), do CIRE é requisito do indeferimento liminar a existência de elementos que indiciem, com toda a probabilidade, a existência de culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência nos termos do disposto no artigo 186.º do CIRE. Este normativo remete-nos assim para o artigo 186.º do CIRE, cujo n.º 1 contém uma cláusula geral: a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência de atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. De harmonia com o disposto no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE a insolvência culposa exige uma de duas formas de censurabilidade ali previstas: o dolo ou a culpa grave, reportando-se qualquer uma delas tanto à situação de criação da insolvência como ao seu agravamento. No “dolo” há sempre previsão e aceitação do resultado antijurídico; o dolo pressupõe um elemento intelectual e um elemento volitivo: o primeiro consiste em prever o resultado antijurídico e o segundo em querer esse resultado, ou porque se atua com o intuito de o provocar, ou porque pelo menos se aceita a sua ocorrência, tenha-se esta como segura ou apenas como eventual. Na negligência, o agente, violando um dever objetivo de cuidado, não previu o resultado ilícito da sua conduta e, se o previu, não aceitou tal resultado; mesmo assim, o ato ilícito é-lhe imputável porque ele deveria ter procedido por forma a evitá-lo, usando da diligência adequada[2]. Na negligência grave, há uma atuação que configura uma diligência inferior àquela que até os homens medianamente negligentes adotam[3]. Nos termos da norma em causa só as condutas ocorridas dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência é que são relevantes para a qualificação da insolvência como “culposa”.
No n.º 2 do artigo 186.º estão enumerados, de forma taxativa, comportamentos do devedor e dos seus administradores (de facto ou de direito) – quando aquele não for uma pessoa singular – que, a verificarem-se, conduzem inexoravelmente à qualificação da insolvência como culposa. Trata-se, portanto, de hipóteses de presunções iuris et iure, isto é, que não podem ser ilididas mediante prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, in fine, do Código Civil). Donde, a verificação de cada uma daquelas condutas impõe sempre a conclusão de que houve uma atuação ilícita e culposa dos administradores na insolvência do devedor, estando precludida a alegação e demonstração de alguma causa de exculpação. A verificação de qualquer uma das condutas previstas nas diversas alíneas do n.º 2 faz também presumir iuris et de iure a causalidade da violação ilícita e culposa de determinados deveres em relação à criação/agravamento da situação de insolvência[4]. Donde, tratando-se de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados no n.º 2 do artigo 186.º a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato – assim, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 8.ª Edição, Almedina, pág. 160.
Finalmente no que respeita à alínea g) do n.º 1, do artigo 238.º do CIRE – O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência – o mesmo relaciona-se com o disposto no artigo 83.º, n.º 1, do CIRE, epigrafado Dever de apresentação e de colaboração, cujas alíneas a) e c) dispõem que o devedor insolvente fica obrigado a fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal e a prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.
No seu recurso o apelante sustenta que a insolvente apresentou-se à insolvência em 11 de outubro de 2024, volvido mais de um ano sobre a data da sua condenação por sentenças transitadas em julgado no pagamento ao seu ex-cônjuge e ora apelante do valor de € 29.396,04 a título de capital, e de juros de mora vencidos desde a citação (para a ação n.º 122/19.4T8LAG) e até efetivo e integral pagamento, obrigação que a insolvente ainda não cumprira à data da sua apresentação à insolvência, sendo manifesto que a insolvente se deveria ter apresentado à insolvente em momento anterior e que, com esta atuação «fez frustrar a ação executiva para pagamento de quantia certa que ele apelante lhe moveu em 06.09.2024, bem sabendo ela que não existia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
In casu a insolvente é uma pessoa singular, donde não resultando da factualidade alegada e provada que aquela seja titular de empresa, não impendia sobre ela o dever se apresentação à insolvência nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 2, do CIRE. Por conseguinte, no caso em apreço importa verificar se a insolvente se absteve de apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência e, em caso afirmativo, se: i. em consequência dessa conduta (atraso) houve prejuízo para os credores; e ii. se ela sabia, ou não podia ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica. Assim sendo, cumpre, desde logo, determinar quando se verificou a insolvência da apelada para determinar se entre a verificação da situação de insolvência e a apresentação da apelada à insolvência decorreram, ou não, os seis meses previstos no normativo legal em apreço.
De harmonia com o disposto no artigo 3.º, n.º 1, do CIRE, «é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas», dispondo o n.º 4 que «equipara-se à situação de insolvência atual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência».
O elemento essencial da insolvência é a impossibilidade de pagar e não o incumprimento em si mesmo – assim, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.04.2017[5] – e a “impossibilidade de pagar” é a ausência de meios económico-financeiros que permitam ao devedor fazer face às suas obrigações vencidas[6]. O incumprimento é um facto e a insolvência é um estado ou situação patrimonial[7]. Pese embora a insolvência se manifeste através de uma multiplicidade de incumprimentos, pode haver insolvência quando há apenas um incumprimento e até quando não há incumprimento algum (incumprimento definitivo). O incumprimento de uma ou mais obrigações vencidas só tem importância na estrita medida em que resulte da situação de insuficiência do ativo para fazer face ao passivo (neste caso da parte do passivo vencido). O incumprimento aparece como uma manifestação externa da situação de ruína financeira – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-04-2017, processo n.º 2160/15.7T8STR.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt. Ensina Rosário Ramalho[8] que «a impossibilidade de cumprimento relevante para efeitos de insolvência não tem que dizer respeito a todas as obrigações do devedor, pode até tratar-se de uma só ou de poucas dívidas, exigindo-se apenas que as dívidas pelo seu montante e pelo seu significado no âmbito do passivo do devedor sejam reveladoras da impossibilidade de cumprimento da generalidade das suas obrigações» e que «(…) trata-se aqui de um conceito de solvabilidade. Portanto, pode até acontecer que o passivo seja superior ao ativo mas não exista situação de insolvência porque há facilidade de recurso ao crédito para satisfazer as dívidas excedentárias. E, por outro lado, pode acontecer que o ativo seja superior ao passivo vencido, mas o devedor se encontre e situação de insolvência por falta de liquidez do seu ativo (é dificilmente convertido em dinheiro). Em síntese e concluindo, a impossibilidade de cumprimento não se basta com a comprovação de um passivo, mais ou menos elevado, sendo necessário comprovar a inexistência ou insuficiência do ativo para satisfazer o passivo.
Parece resultar da argumentação do apelante que a insolvente se deveria ter apresentado à insolvência logo após a sua condenação no pagamento do crédito que ele reclamou nos presentes autos de insolvência. Sucede que os factos provados revelam a existência de passivo mas não a concreta situação económico-financeira da insolvente no período de seis meses que antecedeu a apresentação da insolvência e, concretamente, logo após a sua condenação, na data de 16 de julho de 2024, no pagamento ao aqui apelante da quantia de € 29.396,04 acrescida de juros de mora. Para além do mais, entre aquela condenação e a apresentação à insolvência não decorreram seis meses. Mas ainda que porventura se possa entender que a cobrança coerciva do crédito do ex-cônjuge da insolvente é reveladora de uma situação de insolvência, o facto é que entre a data em que ocorreu a penhora do salário da insolvente – 29.09.2024 – e a data em que esta última se apresentou à insolvência – 11.10.2024 – também não haviam decorrido os seis meses previstos no artigo 238.º, n.º 1, alínea d), do CIRE. O que basta para considerar não verificado o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo remanescente previsto na alínea d) do artigo 238.º, n.º 1, do CIRE. De todo o modo, sempre se acrescentará que não se mostra provada factualidade reveladora de um prejuízo dos credores, e em particular do ora apelante, causado por uma eventual demora na apresentação da apelada à insolvência, ou factualidade reveladora do conhecimento ou desconhecimento com culpa grave por parte da apelante da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económico-financeira.
Quanto ao fundamento previsto na alínea e) do artigo 238.º, n.º 1, do CIRE, o recorrente alega que para além de a insolvente ter alienado um motociclo de sua propriedade em setembro de 2022, alienou também dois automóveis nove dias antes da sua apresentação à insolvência, seu único património conhecido, o que constitui presunção iuris et de iure de que a insolvência é culposa. O apelante invoca factualidade que integra a alínea a), do artigo 186.º, n.º 2, do CIRE, de acordo com o qual considera-se sempre culposa a insolvência do devedor quando este tenha destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor. Esta previsão normativa prevê, assim, a prática de atos que afetam, no todo ou em parte considerável, o património do devedor.
Está provado que em nome da insolvente estiveram três veículos motorizados, a saber, um ciclomotor de marca casal com a matrícula (…), o veículo marca KIA, com a matrícula (…) e o veículo de marca Volkswagen com a matrícula (…), que os dois veículos automóveis foram entregues pela insolvente a sua mãe na data de 7 de outubro de 2024, que, por sua vez, os vendeu a (…) por contrato verbal celebrado em 09.10.2024, encontrando-se ambos registados em nome daquela (…) desde a data de 16 de outubro de 2024. E está também provado que o motociclo está registado em nome de terceiro desde setembro de 2022. Estando provado que a insolvente se apresentou à insolvência na data de 11.10.2024 os atos de transferência de propriedade dos veículos motorizados acima descritos ocorrerem dentro do período temporal previsto no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, ou seja, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Acresce que a insolvente não logrou provar as razões que invocou para a entrega dos dois veículos automóveis a sua mãe – a qual, por sua vez, os vendeu a terceiro – e que não se conhecem – porque a sua existência não foi alegada – quaisquer outros bens de que a insolvente fosse proprietária. Deste modo, julgamos verificada a previsão da alínea e) do artigo 238.º, n.º 1, do CIRE, sendo irrelevante para tal desiderato o argumento – que apela à qualificação da insolvência como culposa – que, posteriormente, e já no âmbito do presente processo de insolvência a insolvente haja diligenciado pelo apuramento do paradeiro das viaturas com vista à sua eventual apreensão para a massa insolvente. Concluindo, verifica-se o fundamento de indeferimento liminar previsto na alínea e) do artigo 238.º, n.º 1, do CIRE.
No que respeita à alínea g) do artigo 238.º do CIRE – O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência – o julgador a quo considerou que «Para a verificação deste motivo de indeferimento é necessário que impenda sobre o insolvente o dever de informação, apresentação ou colaboração, a violação do dever ocorra no decurso do processo de insolvência e que esse incumprimento ocorra num quadro de dolo ou culpa grave. (…) e que, in casu, o que está em causa é «apenas a eventual violação do dever de colaboração e de informação, por falta de entrega das fotografias dos veículos vendidos e de informação relativo ao paradeiro dos veículos», extraindo-se da decisão recorrida o seguinte trecho: «Quanto à falta de entrega de fotografias dos automóveis, compreendemos o adiantado pelo ilustre mandatário da insolvente não as ter no momento, por não ter ficado com fotos dos veículos alienados (não é incomum que as pessoas não tenham fotos dos veículos, mas também é certo que existem outras pessoas que os têm), mas podia ter referido e efetuado diligências para as obter, até porque o ilustre advogado da mesma, por ter efetuado o registo das transferência dos veículos para o terceiro adquirente, sabia ou tinha obrigação de saber o seu paradeiro (por ter passado por ele a morada do adquirente). O mesmo raciocínio é feito para a informação sobre o paradeiro do veículo. Sucede que quem tinha a informação era o Ilustre Mandatário, não resulta inequívoco que a insolvente soubesse do paradeiro dos veículos. Sobre o ilustre mandatário não impende o dever de informação, mas que podia ter evitado esta turbulência inicial. O dever impendia sobre a insolvente, mas não é seguro que esta tivesse esse conhecimento ou mesmo obrigação de saber, atenta a sua venda por parte da sua mãe a terceiros. Nesta medida, não existe dolo ou culpa grave na não entrega das fotografias e falta de indicação do paradeiro dos automóveis por parte da insolvente. Mesmo que assim não fosse, o comportamento posterior da insolvente, no sentido das diligências voluntárias efetuadas no sentido de recuperar os veículos automóveis para os entregar à Massa Insolvente, demonstra a sua preocupação, motivação, para colaborar ativamente com o sucesso do processo de insolvência.».
O apelante, por sua vez, defende ser «clarividente que a insolvente possuía toda a informação solicitada no âmbito dos presentes autos».
Julgamos que o apelante tem razão.
No caso em apreço está provado que a insolvente, através do seu mandatário, prestou as informações que lhe foram pedidas pelo sr. Administrador da Insolvência relacionadas com a motivação da venda do motociclo e da entrega dos dois veículos automóveis à sua mãe (factos provados n.ºs 5 e 6), mas que só em 2 de janeiro de 2025, e após várias solicitações, é que a insolvente, através do seu mandatário, informou o sr. Administrador da insolvência do paradeiro das viaturas, resultando da factualidade provada que foi o próprio advogado da insolvente, que a representa nos autos de insolvência, quem providenciou pelo registo de propriedade das duas viaturas em nome da pessoa a quem a mãe da insolvente as declarou vender. Donde decorre que o mandatário da insolvente tinha, desde o início do processo de insolvência, acesso a informação (os dados pessoais da compradora) que lhe permitiriam apurar, querendo, do paradeiro das referidas duas viaturas. Acresce que resulta do ponto de facto provado n.º 8 que houve uma recusa reiterada de fornecer informação sobre a localização das viaturas. Donde, refletindo-se os atos e missões do mandatário na esfera jurídica da sua representada (artigo 258.º do CPC), julgamos também verificada a previsão do artigo 238.º, n.º 1, alínea g), do CIRE.
*
Considerando que se verificam os fundamentos de indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo restante previstos, respetivamente, nas alíneas e) e g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, a decisão recorrida não se pode manter, devendo ser substituída por outra que indefira liminarmente o pedido em causa. O que se ordenará infra.


III. Decisão
Em face do exposto, acordam julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida que se substitui por outra que indefere liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no artigo 23.º, n.º 1, alíneas e) e g), do CIRE.
As custas na presente instância são da responsabilidade da apelada, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que porventura beneficie.
Notifique.
Évora, 10 de julho de 2025
Cristina Dá Mesquita
Mário João Canelas Brás
Isabel de Matos Peixoto Imaginário



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[1] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2018, Almedina, pág. 567.
[2] Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5.ª Edição, Coimbra Editora, Lda., pág. 315 e ss.
[3] Henrique Sousa Antunes, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, UCP Editora, 2.ª Reimpressão, 2024, pág. 303.
[4] Vide, neste sentido, entre outros, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-12-2010, processo n.º 46/07.8TBSVC-O.L1-7, no qual se escreveu «perante a verificação de cada uma das situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, a insolvência será sempre considerada como culposa, sem necessidade da demonstração do mencionado nexo de causalidade» e acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14-07-2020, processo n.º 505/15.9T8OLH-C.E1, no qual se escreveu que «verificados alguns destes factos, o juiz terá assim que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. A lei institui consequentemente no artigo 186.º, n.º 2, uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário».
[5] Processo n.º 2160/15.7T8STR.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[6] A conclusão de que se verifica uma impossibilidade de cumprimento enquanto incapacidade económico-financeira exige uma avaliação do património do devedor – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.12.2019, processo n.º 5418/19.2T8CBR.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[7] Assim, entre outros, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2018, Almedina, pág. 56.
[8] Manual de Direito da Insolvência, 8.ª Edição, Almedina, pág. 29.