Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | MARTINHO CARDOSO | ||
Descritores: | BURLA INFORMÁTICA TENTATIVA MEIO IDÓNEO | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 06/26/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | 1. A burla informática, consiste sempre em um comportamento que constitui um artifício, engano ou erro consciente, não por modo de afectação directa em relação a uma pessoa (como na burla p. e p. pelo art.º 217.º), mas por intermediação da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados. Mas, prescindindo do erro ou engano em relação a uma pessoa, prevê, no entanto, actos com conteúdo material e final idênticos: manipulação dos sistemas informáticos, ou utilização sem autorização ou abusiva determinando a produção dolosa de prejuízo patrimonial. O tipo pretendeu abranger a utilização indevida de máquinas automáticas de pagamento (ATM), incluindo os casos de manipulação ou utilização indevida no sentido de utilização sem a vontade do titular. 2. Não se pode concluir que o digitar aleatório de três códigos seja manifestamente inidóneo para a produção do resultado almejado de proceder ao levantamento de dinheiro com um cartão multibanco a que se acedeu ilicitamente e contra a vontade do legítimo titular e do qual não se tem o código. 2. Digitar à sorte três códigos não é, por natureza, um meio inapto, de uma inidoneidade absoluta, para acertar no código do cartão multibanco. Digitar à sorte três códigos, sendo um meio em si mesmo idóneo ou apto, tornou-se inapto para produzir o resultado, por o agente não ter acertado na combinação correcta. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | I Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, do Tribunal Judicial de Ponte de Sôr, o arguido A foi, na parte que agora interessa ao recurso, condenado pela prática, em autoria material, de um crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada, p. e p. pelo art.º 209.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à razão diária de 4,00 €, num total de 360,00 €, e absolvido da prática de um crime de burla informática e nas comunicações, na forma tentada, p. e p. pelos art.º 221.º, n.º 1, 22.º, n.º 1 e 2 al.ª c) e 23.º, do Código Penal. # Inconformado com o assim decidido, o M.º P.º interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões: 1. O arguido foi absolvido da prática de um crime de burla informática e nas comunicações, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 221.º, n.º1, 22.º, n.º1 e 2, al. c) e 23.º, todos do Código Penal, com fundamento no facto de a mera posse e uso do cartão (sem o respectivo código) não se tratar de «acto idóneo, por inadequado e inepto, a produzir o resultado de obtenção de enriquecimento ilícito, sendo, por isso, a sua conduta reconduzível à noção de inidoneidade absoluta, porquanto um cartão multibanco desprovido dos dados de acesso é objecto sem aptidão à prática do crime». 2. Ao decidir dessa forma, a sentença recorrida violou os artigos 221.º e 22.º do CP, ao não integrar a conduta descrita nas alíneas e), f), h) e i) da matéria de facto provada nessas normas penais. 3. Os actos do arguido A foram idóneos a produzir o resultado típico previsto na norma do art.º 221.º do Código Penal. 4. Ainda que o arguido não tivesse sido informado do código, era possível ter acertado nos dígitos, nas três vezes que tentou. 5. A utilização do cartão numa caixa multibanco é um meio apto a concretizar a lesão do bem jurídico em questão. 6. Os actos do arguido foram idóneos a produzir o resultado típico. 7. Ainda que tal não se entenda, os actos de execução do arguido, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, foram de natureza a fazer esperar que se lhes seguissem actos das espécies indicadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 22.º do CP. 8. Tendo sido dado como provada a factualidade indicada nas alíneas e), f), h) e i) da matéria de facto provada, a Mm.ª Juíza a quo deveria ter aplicado os artigos 221.º e 22.º do CP. 9. A sentença recorrida fez uma errada interpretação, conjugação e aplicação do disposto nos artigos 221.º e 22.º do CP. Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso, devendo a sentença recorrida ser substituída por outra em que se condene o arguido A pela prática do crime de burla informática e nas comunicações, na forma tentada, por que foi absolvido, mantendo-se, quanto ao restante, o decidido na douta sentença (…) # O arguido respondeu, concluindo da seguinte forma: 1.° - Entende o Ministério Público que a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 221.° e 22.° do Código Penal, porquanto os factos dados como provados e constantes das alíneas e), f), g), e h) da douta sentença consubstanciam, em si, a prática de um crime de burla informática, na forma tentada. 2.°- Que o facto de o arguido estar munido de um cartão multibanco que encontrou na rua, ter tentado utilizá-lo numa caixa multibanco, digitando códigos distintos, por três vezes, tentando deste modo acertar no código correcto que lhe permitisse o acesso à conta do ofendido, são actos idóneos a produzir o resultado típico do crime. 3.° - Sendo, assim, a actuação do arguido idónea a produzir o resultado típico do crime e bem assim adequada e apta, estando preenchidos os requisitos essenciais para aplicação do disposto no n.° 221.° e 22.° do C. Penal, pelo que peticiona o provimento do recurso e que em consequência seja o arguido A condenado pela prática do crime de burla informática e nas comunicações, na forma tentada, mantendo-se, quanto ao restante o decidido na douta sentença. 4.° - Salvo melhor opinião, a sentença recorrida não merece qualquer censura, apresentando-se como correcta e criteriosa a interpretação e aplicação que fez dos factos e das normas, devendo manter-se nos precisos termos. 5.° - O presente recurso interposto pelo Ministério Público descuida a realidade inerente à utilização dos cartões multibanco, pois os mesmos só têm utilidade em conjugação com o conhecimento de um código de acesso. 6.° - É do senso comum que um cartão multibanco desprovido do respectivo código de acesso não tem qualquer utilidade. 7.° - O Tribunal a quo ao decidir que, pese embora o arguido se tenha dirigido a uma caixa Multibanco, e, aí chegado, tenha introduzido o cartão multibanco na referida caixa, digitado por três vezes códigos distintos com o intuito de aceder à conta do ofendido, tal acto não é idóneo, por inadequado e inepto, a produzir o resultado de obtenção de enriquecimento ilegítimo, sendo, por isso, a sua conduta reconduzível à noção de inidoneidade absoluta, porquanto o cartão multibanco desprovido dos dados de acesso é objecto sem aptidão à prática do crime, aplicou justamente o Direito e as normas do Direito Penal, tendo-se naturalmente socorrido de regras de experiência comum. # Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso. Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. II Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte, na parte que agora interessa ao caso: -- Factos provados: a) No dia 12 de Agosto de 2006, em lugar não concretamente apurado da cidade de Ponte de Sôr, R perdeu a sua carteira que continha um cartão multibanco, um bilhete de identidade, um cartão de contribuinte, a carta de condução e cinco cheques com os números 348---, 438---, 708---, 528--- e 618---. b) Nesse mesmo dia, R solicitou o cancelamento dos cheques à Caixa Geral de Depósitos de Ponte de Sôr. c) No mês de Agosto, em dia não concretamente determinado, na zona industrial de Ponte de Sôr, perto do edifício da empresa “B”, o arguido A encontrou os referidos cheques e cartão multibanco no chão. d) Acto contínuo, colocou o cartão de multibanco no bolso e atirou os cheques para o chão, junto à zona ribeirinha de Ponte de Sôr. e) Na posse desse cartão, dirigiu-se a uma caixa Multibanco pertencente ao Banco Popular, situada em Ponte de Sôr, e, aí chegado, introduziu o dito cartão na ranhura de tal caixa para o mesmo destinada. f) Em seguida, por três vezes, o arguido A digitou códigos distintos, a fim de conseguir aceder à conta do ofendido, com o intento de proceder ao levantamento de quantias monetárias aí existentes, o que não conseguiu, porque após a terceira tentativa, o cartão ficou retido na máquina de multibanco. g) O arguido A ao apoderar-se do cartão multibanco, sabia que não lhe pertencia, no entanto, apropriou-se ilegitimamente do mesmo, contra a vontade do seu proprietário. h) O arguido A bem sabia que ao introduzir o referido cartão do ofendido na caixa Multibanco e ao digitar três códigos distintos agia com o objectivo de aceder à conta do ofendido, de modo a poder levantar qualquer quantia que aí existisse, sem estar autorizado para o efeito pelo titular; # -- Factos não provados, na parte que agora interessa ao caso: i) Ao agir dessa forma, o arguido A pretendeu obter para si um aumento patrimonial a que sabia não ter direito, sabendo também que dessa forma poderia causar, necessária e correspondentemente, um empobrecimento do ofendido. j) O arguido A agiu de forma livre, voluntária e consciente, e contra a vontade do ofendido, que nisso não consentiu, bem sabendo que tais condutas lhe estavam vedadas e que eram criminalmente punidas por lei. # Fundamentação da convicção, na parte que agora interessa ao caso: Nos termos do disposto no artigo 374º n.º 2 do Código de Processo Penal, deve o Tribunal indicar as provas que serviram para formar a sua convicção e bem ainda proceder ao exame crítico das mesmas. No caso sub judice a convicção do Tribunal sobre a factualidade considerada provada radicou na análise crítica e ponderada da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, globalmente considerada e de acordo com as regras da experiência comum. O arguido A confessou os factos pelos quais vinha causado, de forma livre, integral e sem reservas, referindo que, em data que não recorda, encontrou junto à empresa B, na Zona Industrial, uma carteira no chão, tendo verificado que a mesma continha documentos, um livro de cheques e o cartão multibanco, tendo ficado com este último – deixando o demais abandonado junto à Zona Ribeirinha - e decidido “experimentar”, numa caixa multibanco do Banco Popular, se conseguia levantar dinheiro, o que não conseguiu. Mais referiu que a data dos factos era consumidor de heroína e que se encontrava em “ressaca”, que se encontra em tratamento da dependência há 4 anos, no CRI de Abrantes, realizando terapia de substituição. Depôs sobre as suas condições pessoais, familiares e profissionais, de forma isenta, não tendo sido tais declarações infirmadas por qualquer outro meio de prova produzido, pelo que mereceram as mesmas credibilidade. (…) R depôs de forma serena sobre os factos, referindo que no Verão de 2006, perdeu a sua carteira, que continha os seus documentos, um livro de cheques e o seu cartão multibanco; tendo sido informado horas depois que a carteira havia sido encontrada, sem os cheques e o cartão. (…) Enunciados os meios de prova produzida, explicitada a razão de ciência dos depoimentos bem como os factos sobre que incidiram, importa cotejar os mesmos com os demais meios de prova apresentados e produzidos, mormente de natureza documental e pericial. No que concerne aos factos imputados ao arguido A verificamos que o mesmo produziu uma confissão integral e sem reservas relativamente aos mesmos, sendo relevante a análise da questão referente à imputação do crime de burla informática, na forma tentada, do ponto de vista da análise da dogmática jurídica - verificando-se não se encontrar alegado ou provado que o arguido teve acesso aos dados do cartão, mormente ao código pessoal de A – factos que será alvo de análise em sede própria. (…) Os factos dados como não provados decorrem da ausência de prova bastante no sentido da sua afirmação, nos termos já supra expostos. III De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado. Mas o tribunal ad quem deve oficiosamente certificar-se de que não existem os vícios mencionados no art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. "É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art.º 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das secções do STJ de 19.10.95, in D.R., I-A‚ de 28.12.95). O disposto neste art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, refere-se aos vícios da matéria de facto fixada na sentença, o que não se deve confundir com os vícios do processo de formação da convicção do tribunal no apuramento e fixação da matéria de facto fixada na sentença. É por isso que esses vícios têm de resultar da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos à sentença, ainda que constem do processo. E um deles é o do erro notório na apreciação da prova, a que se refere a al.ª c) do n.º 2 do aludido art.º 410.º. Há erro notório na apreciação da prova sempre que, para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-10-01, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.001, III-182. Ou, na palavra de Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, 3.º vol.-341, erro notório na apreciação da prova é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta (ao ler a sentença ou acórdão). Vem isto a propósito de o tribunal "a quo", depois de ter dado como provado que: k) No dia 12 de Agosto de 2006, em lugar não concretamente apurado da cidade de Ponte de Sôr, R perdeu a sua carteira que continha um cartão multibanco, um bilhete de identidade, um cartão de contribuinte, a carta de condução e cinco cheques com os números 348---, 438--, 708---, 528--- e 618---. l) Nesse mesmo dia, R solicitou o cancelamento dos cheques à Caixa Geral de Depósitos de Ponte de Sôr. m) No mês de Agosto, em dia não concretamente determinado, na zona industrial de Ponte de Sôr, perto do edifício da empresa “B”, o arguido A encontrou os referidos cheques e cartão multibanco no chão. n) Acto contínuo, colocou o cartão de multibanco no bolso e atirou os cheques para o chão, junto à zona ribeirinha de Ponte de Sôr. o) Na posse desse cartão, dirigiu-se a uma caixa Multibanco pertencente ao Banco Popular, situada em Ponte de Sôr, e, aí chegado, introduziu o dito cartão na ranhura de tal caixa para o mesmo destinada. p) Em seguida, por três vezes, o arguido A digitou códigos distintos, a fim de conseguir aceder à conta do ofendido, com o intento de proceder ao levantamento de quantias monetárias aí existentes, o que não conseguiu, porque após a terceira tentativa, o cartão ficou retido na máquina de multibanco. q) O arguido A ao apoderar-se do cartão multibanco, sabia que não lhe pertencia, no entanto, apropriou-se ilegitimamente do mesmo, contra a vontade do seu proprietário. r) O arguido A bem sabia que ao introduzir o referido cartão do ofendido na caixa Multibanco e ao digitar três códigos distintos agia com o objectivo de aceder à conta do ofendido, de modo a poder levantar qualquer quantia que aí existisse, sem estar autorizado para o efeito pelo titular; Ter dado como não provado que: s) Ao agir dessa forma, o arguido A pretendeu obter para si um aumento patrimonial a que sabia não ter direito, sabendo também que dessa forma poderia causar, necessária e correspondentemente, um empobrecimento do ofendido. t) O arguido A agiu de forma livre, voluntária e consciente, e contra a vontade do ofendido, que nisso não consentiu, bem sabendo que tais condutas lhe estavam vedadas e que eram criminalmente punidas por lei. É fácil constatar que, como se costuma dizer, não bate a bota com a perdigota. Tanto mais que a absolvição do arguido A no tocante ao crime tentado de burla informática e nas comunicações se deveu exclusivamente a uma determinada interpretação jurídico da conduta desenvolvida pelo agente a esse respeito e não do que em relação a ele se deu como não provado. É por demais evidente, face aos factos dados como provados e à experiência da vida, que, quando foi à ATM, com o cartão multibanco que achara, tentar levantar dinheiro digitando ao calhas três códigos, o arguido Armando pretendeu obter para si um aumento patrimonial a que sabia não ter direito, sabendo também que dessa forma poderia causar, necessária e correspondentemente, um empobrecimento do ofendido. E também é evidente que agiu de forma livre, voluntária e consciente, e contra a vontade do ofendido, que nisso não consentiu, bem sabendo que tais condutas lhe estavam vedadas. Quanto ao pormenor de se sabia ou não que eram criminalmente punidas por lei, o cerne da questão nem passa por aí, uma vez que, como se sabe, o desconhecimento da lei não desobriga. Mas mais uma vez a experiência de vida inculca que sim, que sabia que eram criminalmente punidas por lei – porque senão telefonava primeiro ao dono do cartão a perguntar-lhe o código… Aqui chegados, e de acordo com o decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-1-04, publicado na Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.004, I-176, o Tribunal da Relação pode e deve proceder a modificação da matéria de facto sempre que tal seja necessário e constem do processo todos os elementos de prova que lhe serviram de base ou se tiver havido documentação da prova, só devendo determinar o reenvio do processo para novo julgamento quando tal se mostre estritamente inevitável. A renovação da prova só será de decretar quando não seja possível aferir-se da sua correcção a partir da prova já produzida. É, aliás, o que resulta do disposto no art.º 431.º al.ª a), do Código de Processo Penal. Ora no caso concreto dos autos, por a prova ter sido documentada, até constam do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão recorrida. Pelo que procederá esta Relação à modificação da matéria de facto constante da sentença recorrida, por forma a que os factos descritos em s) e t) passem para o rol dos provados. Posto isto, a única questão posta ao desembargo desta Relação é a de saber se a conduta do agente que, contra a vontade do verdadeiro titular e sem conhecer o código respectivo, introduz um cartão de débito ou de crédito numa máquina ATM e tenta levantar dinheiro digitando por três vezes uma combinação de números que afinal não acerta no código do cartão e por isso acaba por não concretizar aqueles seus intentos, comete o crime de burla informática e nas comunicações, na forma tentada, p. e p. pelos art.º 221.º, n.º 1, 22.º, n.º 1 e 2 al.ª c) e 23.º, n.º 1 e 2 e 73.º, do Código Penal. O tribunal "a quo" fundamentou assim a sua decisão de inexistência deste ilícito (citando apenas as partes mais pertinentes a esta solução que optou): (…) Ao arguido vem imputada a prática de um crime de burla informática, na forma tentada, pelo facto de, após se ter apropriado de cartão multibanco que encontrou, o ter introduzido na caixa multibanco, digitando três códigos diferentes por forma a tentar obter dinheiro, factos estes que foram dados como provados. Importa atender ao instituto da tentativa. Nos termos do artigo 22.º do Código Penal: “Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se” sendo actos de execução “os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou c) os que, segundo as regras da experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.” Quanto à punibilidade da tentativa, estatui o artigo 23.º do citado código: “1. Salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão. 2. A tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada. (...)”. A consideração de um acto como de execução assume a mais das vezes dificuldade, atendendo a que apenas estes configuram o instituto da tentativa, para efeitos de punibilidade, e já não os actos preparatórios (artigo 21.º do Código Penal). Assim, para que se verifique a prática de um crime de burla informática, na forma tentada, previsto e punido pelos supra citados preceitos torna-se necessária a convergência dos seguintes pressupostos: 1. Que o arguido resolva ou decida, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo ou causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, utilizar dados sem autorização ou intervir de modo não autorizado no processamento, ou seja, no uso do cartão de multibanco usufruindo das suas modalidades; 2. Que tal crime que o agente decidiu perpetrar não chegue a consumar-se, por circunstâncias independentes da sua vontade; 3. Que o agente pratique actos de execução do crime. Daqui flui que importa analisar os actos de execução relativamente a cada tipo legal de crime. Para a existência de uma tentativa punível é necessário um desvalor de acção e um desvalor de resultado, sendo que este é dado pela exteriorização de actos que objectivamente se possam verificar orientados com idoneidade para violar o bem jurídico protegido. A este propósito esclarece o n.º 3 do artigo 23.º do Código Penal: “A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência de objecto essencial à consumação do crime.” Ensina o Professor Cavaleiro Ferreira (in Lições de Direito Penal, Volume I, edição 1895, página 272) que “o Código Penal distingue entre inidoneidade absoluta e inidoneidade relativa. Há inidoneidade absoluta do meio quando este é pela sua natureza inapto para produzir o resultado; há inidoneidade relativa se o meio em si mesmo idóneo ou apto se torna inapto pela maneira ou circunstâncias em que foi empregado. O Código Penal, nesta via, indica a inidoneidade absoluta qualificando-a como manifesta, enquanto a inidoneidade relativa - não manifesta já não afecta a inidoneidade dos actos de execução essenciais ao facto ilícito na tentativa..." Também Maia Gonçalves (in Código Penal Português Anotado, 16.ª edição, página 125 e 126) refere que "a inidoneidade do meio ou a carência do objecto, salvo nos casos em que são manifestas, não constituem obstáculo à existência da tentativa.” O verdadeiro cerne da punibilidade da tentativa impossível reside na avaliação da perigosidade referida ao bem jurídico. É que, entende-se, dado o circunstancialismo que o agente actuou, o desvalor da acção merece ser punido. E merece-o porque denotou perigosidade em relação a um bem jurídico ainda que este assuma a forma de mera aparência". Importa verificar se o acto praticado pelo arguido se traduz num acto de execução do crime de burla informática, adiantando-se que entendemos em sentido negativo, apenas e só pela circunstância de o arguido dispor de um objecto (cartão e caixa multibanco) mas não dispor dos dados que permitiriam fazer uso desse objecto e prosseguir o seu intento de obtenção de enriquecimento ilegítimo à conta de outrem. O mesmo será dizer que entendemos que a conduta do arguido não preenche um dos elementos constitutivos do tipo legal de crime e determinantes, que é o do uso de dados sem autorização; bem como, concomitantemente, não se trata de acto idóneo, por inadequado e inepto, a produzir o resultado de obtenção de enriquecimento ilegítimo, sendo, por isso, a sua conduta reconduzível à noção de inidoneidade absoluta, porquanto um cartão multibanco desprovido dos dados de acesso é objecto sem aptidão à prática do crime. Pelo exposto, entendemos que o arguido não praticou o crime pelo qual vinha acusado, impondo-se a sua absolvição. Vejamos, pois. Antes de mais, cumpre dizer que tanto o tribunal "a quo" como esta Relação bebem das mesmas fontes de inspiração jurisprudencial e doutrinal para a abordagem do presente caso; o resultado é que vai ser diferente. O crime de “burla informática” está previsto no art.º 221º, n.º 1 do Código Penal (diploma do qual serão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de origem), com os seguintes elementos de tipicidade, intenção específica e resultado: «Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento». No plano da tipicidade, como se vê da descrição especificada e concretizada, é um crime de execução vinculada, no sentido de que a lesão do património se produz através da intromissão nos sistemas e da utilização em certos termos de meios informáticos. E é um crime de resultado – embora de resultado parcial ou cortado – exigindo que seja produzido um prejuízo patrimonial de alguém. A tipicidade do meio de obtenção de enriquecimento ilegítimo (com o prejuízo patrimonial de alguém) consiste, como resulta da descrição do tipo, na interferência «no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático», na «utilização incorrecta ou incompleta de dados», em «utilização de dados sem autorização» ou na «intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento». Dos vários modos vinculados de execução típica, importa, no caso, considerar a «utilização de dados sem autorização» e a «intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento», uma vez que os restantes modos de execução descritos na norma não têm qualquer projecção aproximada perante os elementos factuais provados e a situação específica sub judice. A dimensão típica remete, pois, para a realização de actos e operações específicas de intromissão e interferência em programas ou utilização de dados nos quais está presente e aos quais está subjacente algum modo de engano, de fraude ou de artifício que tenha a finalidade, e através da qual se realiza a específica intenção, de obter enriquecimento ilegítimo, causando a outra pessoa prejuízo patrimonial. Há-de estar sempre presente um erro directo com finalidade determinada, um engano ou um artifício sobre dados ou aplicações informáticas – interferência no resultado ou estruturação incorrecta de programa, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou qualquer intervenção não autorizada de processamento. A burla informática, consiste sempre em um comportamento que constitui um artifício, engano ou erro consciente, não por modo de afectação directa em relação a uma pessoa (como na burla p. e p. pelo art.º 217º), mas por intermediação da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados. Mas, prescindindo do erro ou engano em relação a uma pessoa, prevê, no entanto, actos com conteúdo material e final idênticos: manipulação dos sistemas informáticos, ou utilização sem autorização ou abusiva determinando a produção dolosa de prejuízo patrimonial. O tipo pretendeu abranger a utilização indevida de máquinas automáticas de pagamento (ATM), incluindo os casos de manipulação ou utilização indevida no sentido de utilização sem a vontade do titular. O bem jurídico protegido é essencialmente o património; o crime de burla informática configura um crime contra o património, por comparação e delimitação com os bens jurídicos protegidos em outras incriminações, referidas à tutela de valores de natureza patrimonial ou de protecção da própria funcionalidade dos sistemas informáticos (cf. Faria Costa e Helena Moniz, “Algumas Reflexões Sobre a Criminalidade Informática em Portugal”, in “Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra”, Vol. LXXIII, 1997, p. 323-324; Almeida Costa, “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo II, p. 328 e segs.). Nos termos do art.º 22.°, n.º 1, "há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.", acrescentando o seu n.º 2 al.ª b) que "são actos de execução ... os que forem idóneos a produzir o resultado típico", ou seja, os que, segundo um juízo de normalidade, do ponto de vista do agente, são adequados a produzir o resultado. O que, a um tempo, cria um perigo concreto para o bem jurídico protegido, in casu o património, e espelha uma vontade contrária ao dever ser jurídico penalmente relevante que, exteriorizando-se, não obstante a falta de resultado, provoca um sentimento de insegurança, perturbando a pax jurídica. Nos termos do art.º 23.°, n.º 3, “a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente", ou seja, a tentativa não é punível quando o meio utilizado for de forma evidente e objectiva inadequado à produção do resultado, pois que, em tais casos nem em termos abstractos o bem jurídico protegido pela incriminação é posto em causa. De acordo com o acórdão do STJ de 7-1-1998: "I- A inidoneidade do meio pode ser absoluta ou relativa. A primeira existe quando o meio for, por natureza, inapto para produzir o resultado. A segunda verifica-se quando, sendo o meio em si mesmo, idóneo ou apto, se torna inapto para produzir o resultado. II- Ao exigir-se, no n.º 3 do art. 23° do CP, que a inaptidão do meio seja manifesta, para que a tentativa não seja punível tem-se em vista a inidoneidade absoluta". No mesmo sentido, vide Ac. STJ de 12-4-2000, SASTJ, n.º 40, pág. 47, e Ac. STJ de 1-6-2000, SASTJ, n.° 42, pág. 61. Assim sendo, a punibilidade da tentativa impossível depende da evidência ou não da impossibilidade do meio para produzir o resultado, sendo que a tal determinação preside um critério objectivo – saber se do ponto de vista de um homem médio, colocado na posição dos intervenientes na acção em apreço (agente e vítima), a inadequação do meio era visível, ou seja, se segundo as regras da experiência, observando a conduta do agente e considerando as demais circunstâncias concretas, inclusive tendo em conta os especiais conhecimentos do agente, se poderia concluir, de forma evidente, pela impossibilidade do meio para produzir o resultado – juízo de prognose póstuma ex ante. Como sublinha Maia Gonçalves, in Código Penal anotado, 16.ª ed., pág. 125/126, "... a inidoneidade do meio ou carência do objecto, salvo nos casos em que são manifestas, não constituem obstáculo à existência de tentativa". Mais acrescenta, acerca do disposto no art.º 23.º, n.º 3 (a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime) que "a substituição de aparentes por manifesta, efectuada após discussão na comissão revisora, visou significar que a inidoneidade do meio ou a carência do objecto não devem ser aferidas através daquilo que o agente representa, mas sim através das regras da experiência comum ou da causalidade adequada, portanto objectivamente, segundo o critério da generalidade das pessoas". Sendo verdade que não se considera suficiente para fundamentar uma tentativa a mera intenção, mas é necessário que esta se exteriorize em actos que contenham já, eles próprios, um momento de ilicitude[1]. Actos executivos esses, subsumíveis às alíneas do n.º 2 do art.º 22.°, que preenchem os elementos constitutivos de uma infracção penal. No crime tentado, o agente desencadeia o processo objectivo causal, processo de execução, conducente ao resultado desviante, simplesmente este não se verifica por motivos alheios à sua vontade[2]. Na denominada tentativa impossível, através dos actos de execução praticados, o agente cria um perigo objectivo, embora aparente, que desencadeia ou pode desencadear alarme ou intranquilidade na comunidade e é isso que lhe confere dignidade punitiva. O resultado não sobrevém, seja porque o meio utilizado não é idóneo, seja porque há carência do objecto. A punição da tentativa impossível depende da inexistência do objecto essencial à consumação do crime ou da inaptidão do meio utilizado pelo agente serem manifestas, à data da prática do facto ilícito – art.º 23°, n.º 3. O sistema penal prevê a punição da tentativa impossível quando, segundo um juízo ex ante, de prognose póstuma, existir um bem jurídico em perigo e o meio usado pelo agente for apto para o atingir, fazendo relevar o desvalor da acção em virtude do abalo causado na confiança da comunidade (Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, em anotação ao art.º 22.°, pág. 113). Este conceito de "manifesto" é, então, sinónimo de claro, ostensivo, público ou evidente, não para o agente, mas para a generalidade das pessoas, posto que o primeiro tem que estar convencido da idoneidade do meio, sem o que não é possível imputar-lhe a intenção de cometer o crime; sendo assim, este juízo sobre a aptidão ou inaptidão do meio é um juízo objectivo. A inidoneidade do meio pode ser absoluta (aquele que por essência ou natureza nunca é capaz de produzir o resultado), ou relativa (se o meio normalmente eficaz deixou de operar pelas circunstâncias em que foi empregado), sendo certo que só o meio absolutamente inidóneo exclui a tentativa, configurando a tentativa inidónea ou impossível[3]. Retomando o caso dos autos e tendo bem presente que o Direito é a vida, uma compreensão que a tenha em conta obriga a que se perceba que não se pode concluir que o digitar aleatório de três códigos seja manifestamente inidóneo para a produção do resultado almejado de proceder ao levantamento de dinheiro com um cartão multibanco a que se acedeu ilicitamente e contra a vontade do legítimo titular e do qual não se tem o código. Na verdade, não se pode por exemplo dizer da pessoa que no “Euromilhões” aposta três chaves que essa tentativa de acertar no jackpot – e passamos a parafrasear raciocínios da sentença recorrida acima transcritos – não se trata de acto idóneo, por inadequado e inepto, a produzir o resultado de obtenção de enriquecimento (…), sendo, por isso, a sua conduta reconduzível à noção de inidoneidade absoluta… E porquê? Porque a experiência de vida ensina isso mesmo no exemplo apontado: embora remota ou muito difícil, o que se segue é quase todas as semanas acontece alguém com duas ou três tentativas ao calhas/leia-se apostas, e desprovido do conhecimento da chave de acesso ao dinheiro do prémio, aceder ao mesmo por afinal ter acertado na combinação correcta/leia-se vencedora. Assim e segundo um juízo de normalidade, do ponto de vista do arguido recorrido, A, digitar aleatoriamente um código de acesso ao cartão multibanco, operação que repetiu por três vezes, tantas quantas a ATM permite até reter o cartão, era o meio adequado de ele, que estava na posse do cartão ilicitamente e contra a vontade do legítimo dono e não conhecia o código, tentar produzir o resultado de proceder a um levantamento com aquele cartão, mas que, por não ter acertado, não logrou fazer. Ou seja, verificou-se o circunstancialismo descrito no art.º 22.°, n.º 1, de que "há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.", pois que, de acordo com o seu n.º 2 al.ª b), "são actos de execução ... os que forem idóneos a produzir o resultado típico". Portanto, o meio utilizado não era de forma evidente e objectiva inadequado à produção do resultado, nem em termos abstractos o bem jurídico protegido pela incriminação não foi posto em causa, situação que, a verificar-se, afastaria efectivamente a punibilidade da tentativa, uma vez que, nos termos do art.º 23.°, n.º 3, “a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente”. Digitar à sorte três códigos não é, por natureza, um meio inapto, de uma inidoneidade absoluta, para acertar no código do cartão multibanco. Digitar à sorte três códigos, sendo um meio em si mesmo idóneo ou apto, tornou-se inapto para produzir o resultado, por o agente não ter acertado na combinação correcta. Ora ao exigir-se, no n.º 3 do art. 23.°, como condição de não punibilidade da tentativa, que a inaptidão do meio seja manifesta, para que a tentativa não seja punível tem-se em vista a inidoneidade absoluta. O que não foi o caso em apreço. Não se está, pois, perante um caso de tentativa não punível, a que alude o n.º 3 do art.º 23.°. O arguido A cometeu mesmo o crime de burla informática e nas comunicações, na forma tentada, p. e p. pelos art.º 221.º, n.º 1, 22.º, n.º 1 e 2 al.ª c) e 23.º, n.º 1 e 2 e 73.º. Mostrando-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos da prática pelo arguido A do crime de burla informática e nas comunicações, na forma tentada, p. e p. pelos art.º 221.º, n.º 1, 22.º, n.º 1 e 2 al.ª c) e 23.º, n.º 1 e 2 e 73.º, pelo qual vinha acusada, e assente a sua culpabilidade (art.º 368.°, do Código de Processo Penal), impõe-se proceder à determinação da espécie e da medida da pena concreta a aplicar, de harmonia com o disposto nos art.º 369.° e segs. do Código de Processo Penal e 70.° e segs do Código Penal – uma vez que a matéria de facto assente como provada contém todos os elementos para tanto necessários. O aludido crime é punível com prisão até 2 anos ou multa até 240 dias. Na escolha e graduação, quer desta pena parcelar, quer da que resultar do seu cúmulo jurídico com a de 90 dias de multa, à razão diária de 4,00 €, num total de 360,00 €, por que foi condenado na sentença recorrida pela prática, em autoria material, de um crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada, p. e p. pelo art.º 209.º, n.º 2, do Código Penal, continuam a ter-se em conta os considerandos desenvolvidos pela 1.ª Instância acerca deste outro crime, cuja bondade não foi impugnada e temos por adequados e razoáveis. E que foram os seguintes (citados apenas na parte que agora interessa ao caso): Estamos, assim e desde logo, perante crimes puníveis alternativamente com pena de multa e com pena de prisão. Dentro da moldura penal correspondente determina-se a pena e o quantum de pena que, no respeito pelo princípio unilateral da culpa, satisfaça as exigências político-criminais de prevenção de futuros crimes, sem prejuízo de considerações de prevenção especial que não prejudiquem aqueles fins. Porque a lei prevê a aplicação em alternativa de uma pena de prisão ou de uma pena de multa, importa antes de mais, e nos termos do artigo 71º do Código Penal, escolher entre a aplicação de uma pena detentiva ou de uma pena não detentiva da liberdade, partindo desde logo da preferência que a lei consagra relativamente a esta última, sempre que se mostre suficiente para a realização do fins das penas. No que concerne ao arguido A, atento o teor do seu certificado de registo criminal, verificamos que o arguido foi condenado pela prática de dois crimes de natureza patrimonial, em pena de multa, mas cuja prática é posterior aos factos conhecidos nos presentes autos, razão pela qual não assume a relevância de antecedente criminal, em sentido estrito, sendo relevante na avaliação da conduta posterior ao crime. Assim, entendemos ainda ser a aplicação de pena de multa suficiente para promover a salvaguarda das existências de prevenção que a situação concreta convoca, a censura pela prática do tipo legal de crime, aceitando-se ao mesmo tempo que o juízo de censura intrínseco à sua aplicação irá prevenir a prática de actos de semelhante natureza. Pelo que, tudo visto e ponderado, valendo a tentativa do caso concreto o que vale, tem-se por justa e adequada a fixação da pena concreta ao arguido pela prática do aludido crime de burla informática e nas comunicações, na forma tentada, em 90 (noventa) dias de multa à razão diária de 4,00 €, num total de 360,00 €. As duas penas aplicadas ao arguido A, a aplicada na 1.ª Instância pela apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada e a ora aplicada por esta Relação pela burla informática e nas comunicações, encontram-se numa relação de concurso entre si, impondo-se pois efectuar o necessário cúmulo, nos termos do disposto no art.º 77.º, n.º 1 e 2. Para a fixação da pena única, começa-se por encontrar a medida da pena do concurso, que tem como limite máximo a soma das penas de prisão e / ou de multa concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e 900 dias, tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (art.º 77.º, n.º 2, do Código Penal) e sendo as penas parcelares umas de prisão e outras de multa, esta diferente natureza mantém-se na pena única (art.º 77.º, n.º 3, do Código Penal) – acórdão do STJ de 24-3-99, CJ dos acórdãos do STJ, 1999, I-255. No caso dos autos, a pena única a aplicar ao arguido A tem como limite máximo 180 dias de multa à taxa diária de 4 €, isto é, a multa de 720 € e como limite mínimo 90 dias de multa à taxa diária de 4 €, isto é, a multa de 360 €. Assim, na escolha e graduação da pena única ter-se-á em conta ter o arguido A confessado os factos pelos quais vinha acusado, ser delinquente primário à data do seu cometimento, ter uma periclitante inserção social por só esporadicamente trabalhar e depender de terapia de substituição da heroína que consumia à data dos ilícitos, o lapso de tempo entretanto decorrido sobre os mesmos e tê-los cometido com dolo directo, pelo que, tudo visto e ponderado, se tem por justa e adequada a pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de 4 (quatro) €, isto é, a multa de 480 (quatrocentos e oitenta) €. IV Termos em que, concedendo provimento ao recurso, se decide: 1.º Ao abrigo do art.º 431.º al.ª a), do Código de Processo Penal, alterar a matéria de facto assente como provada e não provada por forma a que os factos descritos em s) e t) da sentença recorrida passem para o rol dos factos provados. 2.º Considerar o arguido A autor material e na forma tentada de um crime de burla informática e nas comunicações, p. e p. pelos art.º 221.º, n.º 1, 22.º, n.º 1 e 2 al.ª c) e 23.º, do Código Penal, pelo qual vai condenado na pena de 90 (noventa) dias de multa à razão diária de 4,00 €, num total de 360,00 €. 3.º Efectuar o cúmulo jurídico desta pena com a de 90 (noventa) dias de multa à razão diária de 4,00 €, num total de 360,00 €, aplicada na 1.ª Instância pelo crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada e condenar o arguido A na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de 4 (quatro) €, isto é, a multa de 480 (quatrocentos e oitenta) €. 4.º Manter no mais a decisão recorrida. 5.º Não é devida tributação (art.º 522.º, do Código de Processo Penal). # Évora,2012-06-26 (elaborado e revisto pelo relator, que escreve com a ortografia antiga) João Martinho de Sousa Cardoso (relator) Ana Barata Brito __________________________________________________ [1] Eduardo Correia aquando da discussão do art. 22° do Projecto – Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, 1° Volume, Lisboa, 1965, págs. 170/171. [2] Marques da Silva, "Direito Penal Português", II, Editorial Verbo, 1998, págs. 237 e ss. [3] Cavaleiro de Ferreira, "Lições de Direito Penal", Parte Geral, 1, 4° edição, págs. 436 a 438; Simas Santos e Leal-Henriques, Código Penal Anotado, I Volume, 3ª ed., pág. 306. E acórdãos do Supremo Tribunal de 07-01-1998, Proc. n°1030/97 - 3°; de 12-04-2000, Proc. n.º 841199 - 3°, e de 01-06-2000, Proc. n.º 126100 - 5°. |