Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1674/18.1T8TMR.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: MEDIDA TUTELAR
PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- Perante os problemas de assiduidade dos alunos de etnia cigana, o que se deve promover, para os mitigar, é o reforço das relações entre a escola e a família o que se consegue sobretudo com a existência de mediadores nas escolas tendo em vista a sensibilização e envolvimento desta comunidade na aprendizagem dos seus educandos.
II- A compreensão das raízes e das culturas familiares revela-se determinante antes de qualquer intervenção junto das crianças e jovens tendente a promover a sua educação, sendo de relevar, na senda da imposição constitucional (art.º67º, nº2 c) ) a cooperação do Estado com os pais na educação dos filhos.
IV- É iníqua e desproporcionada uma medida de acolhimento residencial aplicada aos menores de etnia cigana, de 11 e 14 anos de idade, pela única razão de revelarem problemas de assiduidade escolar. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO
I. RELATÓRIO
1. O Ministério Público instaurou, em 31 de outubro de 2018, processo de promoção e proteção em relação às crianças R…, nascido em 11 de outubro de 2007, natural da freguesia de …, concelho do Entroncamento, filho de Ru… e de V… e M…, nascida em 7 de setembro de 2010, natural da freguesia de …, concelho de Almada, filha de F… e de V….
Foram aplicadas, mediante homologação de acordo de promoção e proteção, a ambos os menores medidas de promoção e proteção de apoio junto da mãe e, depois, dos pais quanto ao menor, após o que se frustrou a obtenção de acordo de promoção e proteção em sede de revisão da medida e foi determinado o prosseguimento dos autos para a fase de debate judicial, na sequência do que a defesa dos menores apresentou alegações e meios de prova em 16 de abril de 2021 e o Ministério Público apresentou meios de prova em 19 desse mês, não tendo os progenitores apresentado alegações ou meios de prova.
Após instrução, realizou-se o debate judicial no qual, em sede de alegações, o Ministério Público advogou a aplicação da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, a Ilustre Defensora das crianças opôs-se à aplicação da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial e advogou que a ambas as crianças seja aplicada medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais com acompanhamento psicopedagógico.
Subsequentemente foi proferida decisão pelo Tribunal Colegial que culminou com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, este Tribunal Colegial decide:
a) Aplicar aos menores R… e M… a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, em casa de acolhimento única para ambos a indicar pelo Centro Distrital de Santarém do Instituto da Segurança Social, I. P. que mereça juízo de adequação do Tribunal, com adequado acompanhamento psicológico e psicopedagógico;
b) Fixar a duração dessa medida no prazo de um ano e fixar o dia 3 de setembro de 2021 como data do início da sua execução;
c) Rever a medida de promoção e proteção no termo do primeiro semestre;
d) Ordenar que o Centro Distrital de Santarém do Instituto da Segurança Social, I.P. indique vagas, com proximidade à área de residência parental, para acolhimento residencial adequado para as crianças com vista à execução da medida de promoção e proteção;
e) Autorizar que os progenitores e outros familiares visitem ambas as crianças na casa de acolhimento, com respeito pelas regras vigentes na casa de acolhimento em matéria de visitas e com cumprimento de todos os deveres de cuidado para defesa da saúde pública;
f) Ordenar que depois de iniciadas as visitas previstas em e), o Centro Distrital de Santarém do Instituto da Segurança Social, I.P. apresente informação social, a elaborar em articulação com a casa de acolhimento, sobre a viabilidade de os filhos realizarem visitas aos progenitores em meio natural de vida;
g) Ordenar que, decorridos quinze dias do início do acolhimento, o Centro Distrital de Santarém do Instituto da Segurança Social, I.P. apresente informação social, a elaborar em articulação com a casa de acolhimento, sobre o modo como decorreu a integração na casa de acolhimento;
h) Ordenar que o Centro Distrital de Santarém do Instituto da Segurança Social, I.P. apresente relatório social sobre a execução da medida para efeitos de revisão vinte dias antes do termo do primeiro semestre;
(…)”.

2. É desta decisão que recorrem os menores, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
A) O presente recurso vem interposto da sentença que aplicou aos menores R… e M… a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial em casa de acolhimento única para ambos a indicar pelo Centro Distrital de Santarém do Instituto de Segurança Social, I.P. que mereça juízo de adequação do Tribunal, com adequado acompanhamento psicológico e psicopedagógico durante o período de um ano com data de início de execução em 3 de setembro de 2021.
B) O tribunal recorrido considerou existir uma situação de perigo para estes menores devido ao seu absentismo escolar reiterado, à sua completa ausência de aproveitamento repetido, à sua não apetência pela formação e educação e desconsideração destas, à ausência de regras adequadas parentais para cumprirem os deveres escolares e à incapacidade parental em alterar positivamente o rumo de vida dos filhos e em proporcionar-lhes um conjunto de regras que lhes permitam interiorizar a necessidade de modificarem as suas condutas atinentes ao percurso escolar em ordem a cumprirem a sua necessidade de educação e formação.
C) Segundo o art. 3.º, n.º 1 da LPCJP deve haver intervenção para a promoção dos direitos das crianças quando os respetivos pais ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, nomeadamente, quando se verifique uma das situações previstas nas alíneas a) a f) do n.º 2 do art. 3.º da LPCJP.
D) Este diploma legal não se basta com uma situação de risco, exige um elevado nível de gravidade para legitimar a intervenção do Estado na vida das crianças e das suas famílias.
E) Intervenção do Estado que, fundada no artigo 69.º da CRP, deve ter caráter excecional e está subordinada aos princípios da necessidade e proporcionalidade consagrados no artigo 18.º, n.º 2 da CRP e, por isso, à luz do art. 4.º, e) da LPCJP, deve ser necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou jovem se encontrem no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade.
F) Da exposição de motivos da LPCJP decorre o objetivo do regime de evitar situações de perigo que possam conduzir a situações de delinquência e a comportamentos desconformes aos valores fundamentais da vida em comunidade e proteger e promover os interesses das crianças e jovens com vista ao desenvolvimento da sua personalidade.
G) Ora, os menores aqui em causa são crianças que estão bem integradas na escola, na comunidade e na sua família; residem com os seus pais que são figuras cuidadoras e protetoras; são crianças que se apresentam bem cuidados, nutridos, educados e cumpridores das regras da vida em comunidade, sendo bem vistos pela comunidade em geral e em relação às quais não existe qualquer sinalização por delinquência ou comportamentos desviantes.
H) Porém, estas crianças têm uma particularidade que é o facto de serem de etnia cigana, facto que não podemos ignorar e que é determinante na vida e no modo de pensar destas crianças e da comunidade em que estão inseridos.
I) A comunidade cigana tem valores e convicções próprias que diferem da comunidade em geral, mas que devem ser especialmente consideradas neste caso concreto.
J) Estas crianças integram um agregado familiar de etnia cigana que segue as regras, tradições e princípios culturais próprios desta comunidade, a qual desvaloriza a frequência da escola e, por isso, não é um hábito enraizado nesta comunidade, o que se deve em grande parte à história de perseguição e exclusão da comunidade cigana.
K) Utilizando as palavras de MA…, Minorias – que escolaridade?
A escolarização de crianças e jovens ciganos: entre a inclusão-excludente e a integração subordinada, in Intervenção em sede de promoção e proteção de crianças e jovens, CEJ, janeiro 2015, pp. 65 ss, citando BOURDIEU & CHAMPAGNE (1999), “Estas crianças e jovens constituem-se no que Bourdieu & Champagne (1999) designaram de “excluídos do interior” (aqueles que, encontrando-se dentro da escola, estão efectivamente excluídos do acesso ao conhecimento que confere poder e prestígio na sociedade, sendo que, dentro desta exclusão, é possível construir-se uma gradação onde os ciganos aparecem no nível mais baixo e profundo dessa exclusão, transformando-se a escola num lugar de inclusões-excludentes e de integrações subordinadas onde a preocupação reside na tentativa de normalização destas crianças e jovens com vista a uma integração harmoniosa na sociedade maioritária”. Mas, esta tentativa de “normalização” destas crianças e jovens, ao impor-lhes um comportamento padrão e uma cultura diferente da sua desrespeita o seu direito à diferença previsto no art. 3.º, alínea d) da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86, de 14 de outubro) e o seu direito à sua identidade cultural.
L) Ainda assim, contrariando a tendência, o desincentivo e as tradições da comunidade cigana, estas crianças têm sido matriculadas na escola em todos os anos letivos e, embora sem grande aproveitamento, vão frequentando a escola e adquirindo alguns conhecimentos, verificando-se um esforço por parte dos menores e dos progenitores por manterem a frequência da escola.
M) Verifica-se, assim, neste caso concreto, um confronto de diversos direitos:
- o direito à educação previsto nos arts. 73.º e 74.º da CRP e no art. 2.º da Lei n.º 46/86, de 14 de outubro que no seu art. 7.º impõe a escolaridade mínima obrigatória com o objetivo de assegurar o exercício do direito à educação na base da igualdade de oportunidades; o direito dos pais à educação e à manutenção dos filhos (art. 36.º, n.º 5 da CRP); o direito à identidade da criança previsto no art. 8.º da Convenção sobre os direitos da criança); o direito a não ser separado dos seus pais contra a vontade destes previsto no art. 9.º da Convenção sobre os direitos da criança; o direito da criança à liberdade de pensamento, consciência e de religião previsto no art. 14.º da Convenção sobre os direitos da criança e o direito a não ser privada do direito de, conjuntamente com os membros do seu grupo, ter a sua própria vida cultural.
N) Pelo que, atendendo ao caso concreto destas crianças, podemos concluir que a sua situação não está relacionada com quaisquer fatores de risco, mas antes com a diversidade de valores que é própria da origem do seu agregado familiar e da comunidade onde estão integrados e cujas tradições seguem. Estão antes em causa, essencialmente, razões culturais que não configuram uma situação de risco.
O) Não obstante, e admitindo-se, por mera hipótese, a existência de uma situação de perigo destas crianças, questiona-se a opção do tribunal recorrido pela aplicação da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, considerando-a a única medida adequada neste momento à remoção do perigo concreto existente para o desenvolvimento de ambas as crianças.
P) O art. 4.º da LPCJP estipula os princípios orientadores a ter em consideração na escolha da medida de promoção e proteção a aplicar, dos quais destacamos o interesse superior da criança e do jovem (alínea a)), o princípio da proporcionalidade e atualidade (alínea e) e o princípio da prevalência da família (alínea h)).
Q) O interesse superior da criança determina a necessidade de promoção e proteção da sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, mas, não se basta apenas com a educação e formação. É também necessário promover a sua segurança, saúde e bem-estar para assegurar o seu desenvolvimento integral. É necessário proporcionar-lhes e permitir-lhes a vivência no seio da sua família, pois, a família é uma referência essencial para as crianças para lhes permitir o seu são desenvolvimento e a sua estabilidade física e psicológica.
R) Não respeita o interesse superior da criança a decisão do tribunal que se foca apenas na proteção da sua educação e formação das crianças e jovens e esquece todos os outros vetores necessários ao seu são desenvolvimento.
S) O próprio legislador privilegia e dá preferência às medidas que integrem as crianças em família, de acordo com o princípio da prevalência da família consagrado na alínea h) do art. 4.º da LPCJP, Princípio que também se retira do art. 36.º, n.º 6 da C.R.P e do art. 9.º da Convenção sobre os direitos das crianças.
T) Portanto, o interesse da criança ou jovem, deve ser realizado na medida do possível no seio da sua família e a aplicação das medidas que provoquem o afastamento da criança ou do jovem da família deve ser o último recurso.
U) Porém, neste caso concreto, mesmo perante a possibilidade de aplicação de uma medida alternativa em meio natural de vida, nomeadamente, a medida de apoio junto de outro familiar (avós maternos ou avós paternos), o tribunal negou essa possibilidade, preterindo o princípio da prevalência da família, negando a estas crianças a possibilidade de viverem com a sua família.
V) Assim, atendendo às finalidades das medidas de proteção das crianças e jovens e sublinhando-se que as medidas são elencadas pela ordem de prevalência e preferência, preferindo-se as medidas a executar no meio natural de vida, entendemos não ser de aplicar, neste caso, a medida de acolhimento residencial, por se considerar excessiva e contrária às finalidades que se pretendem alcançar, tendo em conta o princípio da proporcionalidade.
X) Com a aplicação desta medida de promoção e proteção a estas crianças estar-se-á antes a promover a sua revolta, tristeza e angústia que em nada contribuirão para a sua educação, formação e desenvolvimento integral e influenciarão negativamente o desenvolvimento da sua personalidade, potenciando comportamentos desviantes.
Z) Pois, ao serem arrancadas do seu seio familiar estar-se-á a provocar o desenraizamento destas crianças das suas referências e a sua estabilidade emocional ficará gravemente afetada, ainda para mais tratando-se de crianças inseridas numa comunidade cigana muito afeta às suas tradições e que tanto valoriza as relações familiares.
AA) Estas crianças estão bem integradas no seu agregado familiar no qual se sentem protegidos, com pais presentes que lhe dão todo o amor, carinho, compreensão e atenção desejados, por isso a aplicação da medida de acolhimento residencial e toda a instabilidade emocional que tal lhe medida lhes causará agravará ainda mais a desmotivação e o desinteresse destas crianças na aprendizagem e na dedicação à escola.
BB) Consideramos, assim, que a medida de acolhimento residencial aplicada é desproporcionada e inevitavelmente propiciadora de forte perturbação emocional destas crianças, suscetível de graves consequências e, eventualmente desencadeadora de reatividade contrária ao objetivo prosseguido com os presentes autos de promoção e proteção.
CC) A aplicação de uma medida alternativa em meio natural de vida, nomeadamente, a medida de apoio junto de outro familiar será mais adequada e apta a afastar a situação de perigo a que estas crianças possam estar expostas.
Decidindo-se de acordo com o alegado, suprindo, doutamente, o que há a suprir, VV. Exas. farão como é hábito, a CORRECTA E SÃ JUSTIÇA !


3. Contra-alegou o Ministério Público defendendo a manutenção do decidido.

4. OBJECTO DO RECURSO
Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil, a única questão cuja apreciação aquelas convocam conexiona-se com a (in) justeza da medida de acolhimento residencial aplicada aos menores.

II- FUNDAMENTAÇÃO

4. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida que não foi objecto de impugnação:
“O Tribunal julga provados os seguintes factos:
1. R… nasceu em 11 de outubro de 2007.
2. É filho de Ru… e de V….
3. M… nasceu em 7 de setembro de 2010.
4. É filha de F… e de V….
5. Ambos residem atualmente com V… e Ru…, no Entroncamento.
6. Em 19 de fevereiro de 2019 foi celebrado e homologado acordo de promoção e proteção com o seguinte teor:
“1ª Aplicar à menor M…, nascida a 07-09-2010, filha de V… e F…, e ao menor R…, nascido a 11-10-2007 e V…, nascida a 18-12-2003, filhos de V… e Ru… a medida de apoio junto da mãe, com duração até 22 de Abril de 2019.

A menor V… compromete-se a:
a) Frequentar a escola com assiduidade, pontualidade e a desenvolver as ações necessárias com vista a obtenção de aproveitamento escolar, nomeadamente estudando e realizando os trabalhos de execução no domicílio;
b) Respeitar todas as regras vigentes na escola;
c) Cumprir as orientações que lhe sejam transmitidas pela sua mãe;
d) Acatar e cumprir todas orientações que lhe sejam transmitidas pelos serviços técnicos que acompanharão a execução desta medida de promoção e proteção, desde que estas se insiram exclusivamente na satisfação dos objetivos visados com a aplicação e execução desta medida.

A mãe dos menores compromete-se a:
a) Satisfazer todas as necessidades básicas dos filhos, nomeadamente de alimentação, saúde, segurança, higiene, educação, formação e global bem-estar;
b) Garantir que os seus filhos, M…, V… e R… frequentem assídua e pontualmente a escola e realizem as ações necessárias tendentes à obtenção de aproveitamento escolar;
c) Garantir que os seus filhos cumprem as regras vigentes no respetivo estabelecimento de ensino;
d) Acatar todas as orientações que lhe sejam transmitidas pela senhora técnica social que acompanha a execução da medida que se insiram no âmbito de execução da mesma.

Incumbe-se a senhora Dr.ª C…, técnica social ao serviço do Centro Distrital de Santarém do Instituto da Segurança Social, de acompanhar a execução da medida, com os especiais deveres de prestar as informações e apresentar relatórios ao Tribunal que se justifiquem, por sua iniciativa e a solicitação do Tribunal, devendo apresentar em 15 dias o plano de intervenção para execução da medida e o relatório social para efeitos de revisão da medida a enviar até uma semana antes do termo da medida.”.
7. Em 14 de outubro de 2020 foi celebrado e homologado acordo de promoção e proteção com o seguinte teor:
“1ª Aplicar ao menor R…, nascido a 11-10-2007, filho de V… e Ru…, a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, com duração de quatro meses.
2ª O menor R… compromete-se a:
a) Frequentar a escola com assiduidade, pontualidade e a desenvolver as ações necessárias com vista a obtenção de aproveitamento escolar, nomeadamente estudando e realizando os trabalhos de execução no domicílio;
b) Respeitar todas as regras vigentes na escola;
c) Cumprir as orientações que lhe sejam transmitidas pelos seus pais;
d) Acatar e cumprir todas orientações que lhe sejam transmitidas pelos serviços técnicos que acompanharão a execução desta medida de promoção e proteção, desde que estas se insiram exclusivamente na satisfação dos objetivos visados com a aplicação e execução desta medida.
3ª Os pais do menor comprometem-se a:
a) Satisfazer todas as necessidades básicas do filho, nomeadamente de alimentação, saúde, segurança, higiene, educação, formação e global bem-estar;
b) Garantir que o seu filho, R… frequenta assídua e pontualmente a escola e realiza as ações necessárias tendentes à obtenção de aproveitamento escolar, devendo a mãe ou o pai, ou até ambos, levá-lo à escola no horário de início das aulas;
c) Garantir que os seu filho cumpre as regras vigentes no respetivo estabelecimento de ensino;
d) Acatar todas as orientações que lhe sejam transmitidas pela senhora técnica social que acompanha a execução da medida que se insiram no âmbito de execução da mesma.
4ªIncumbe-se a senhora Dr.ª C…, técnica social ao serviço do Centro Distrital de Santarém do Instituto da Segurança Social, de acompanhar a execução da medida, com os especiais deveres de prestar as informações e apresentar relatórios ao Tribunal que se justifiquem, por sua iniciativa e a solicitação do Tribunal, devendo apresentar em 15 dias o plano de intervenção para execução da medida e o relatório social para efeitos de revisão da medida a enviar até uma semana antes do termo da medida.”.
8. Em 14 de outubro de 2020 foi celebrado acordo de promoção e proteção entre a progenitora, a defensora da criança e a senhora técnica social, o qual, dada a ausência do progenitor, foi homologado por decisão proferida em 10 de dezembro de 2020, com o seguinte teor:
“1ª Aplicar à menor M…, nascida a 07-09-2010, filha de V… e F…, a medida de promoção e proteção de apoio junto da mãe, com duração de quatro meses.
3ª A mãe da menor compromete-se a:
a) Satisfazer todas as necessidades básicas da filha, nomeadamente de alimentação, saúde, segurança, higiene, educação, formação e global bem-estar;
b) Garantir que a sua filha, M… frequenta assídua e pontualmente a escola e realiza as ações necessárias tendentes à obtenção de aproveitamento escolar;
c) Garantir que a sua filha cumpre as regras vigentes no respetivo estabelecimento de ensino, devendo a mãe levá-la à escola no horário de início das aulas;
d) Acatar todas as orientações que lhe sejam transmitidas pela senhora técnica social que acompanha a execução da medida que se insiram no âmbito de execução da mesma.
4ª Incumbe-se a senhora Dr.ª C…, técnica social ao serviço do Centro Distrital de Santarém do Instituto da Segurança Social, de acompanhar a execução da medida, com os especiais deveres de prestar as informações e apresentar relatórios ao Tribunal que se justifiquem, por sua iniciativa e a solicitação do Tribunal, devendo apresentar em 15 dias o plano de intervenção para execução da medida e o relatório social para efeitos de revisão da medida a enviar até uma semana antes do termo da medida.”
9. No ano letivo de 2020/2021 a M… esteve matriculada no 1º ano de escolaridade na Escola Básica do …, no Entroncamento, tendo registado 62 faltas justificadas e 10 faltas injustificadas.
10. No ano letivo de 2020/2021 o R… esteve matriculado no 1º ano de escolaridade na Escola Básica do …, no Entroncamento, tendo registado 102 faltas justificadas e 152 faltas injustificadas.
11. V… e R… consideram justificadas as faltas escolares da M… e do R…, nomeadamente por a progenitora padecer de doença e ter estado internada, o país viver uma situação de pandemia e haver riscos para a saúde na frequência escolar e o agregado familiar ter estado durante cerca de quatro meses, em data não apurada, a residir em Santarém, por razões de conflito familiar, considerando que cada filho não terá mais de uma dezena de faltas injustificadas.
12. R… apresenta-se sempre em estado de cansaço e sonolência quando frequenta as aulas.
13. R… tem falta de interesse em cumprir os seus deveres escolares e nunca se revela empenhado em cumpri-los.
14. M… tem falta de interesse e de empenho nas atividades escolares.
15. Ambos têm apoio diferenciado em contexto educativo, que não é contínuo nem profícuo por apresentarem assiduidade e pontualidade irregulares.
16. R… e M… apresentam boa interação com os pares, professores e pessoal não docente.
17. V… tem sido sempre a encarregada de educação do R… e da M… e, no período da pandemia de Covid-19, foi regular a sua deslocação à escola para levantar fichas escolares para os filhos.
18. R… e M… ficaram retidos nos anos letivos anteriores por número excessivo de faltas às aulas.
19. No ano letivo de 2020/2021 o R… fica retido, apesar de lhe ter sido proposto plano de recuperação a realizar em dois dias, tendo comparecido apenas no primeiro desses dias.
20. No ano letivo de 2020/2021 a M… transita de ano de escolaridade, por, não obstante o número de faltas às aulas, ter realizado com êxito plano de recuperação proposto pela escola realizado em dois dias.
21. O Rui tem mais dificuldades de aprendizagem do que a M….
22. Os pais do R… e da M… não valorizam a frequência escolar por parte destes.
23. A M… apresenta uma grande pediculose, do que a escola deu conhecimento à mãe por escrito, solicitando maior vigilância e resolução do problema, mas, por isto não ter sido realizado, a escola efetuou contacto presencial com a mãe com vista à resolução do problema, problema que persiste.
24. O R… não apresenta pediculose.
25. Os contactos telefónicos com a encarregada de educação não são viáveis devido à frequente alteração de número telefónico sem aviso prévio à escola, pese embora a mesma tenha fornecido um contacto telefónico à escola.
26. Pelo R… é entregue aos pais abono de família no valor mensal de € 50,57.
27. Pela M… é entregue aos pais abono de família no valor mensal de € 50,57.
28. A sua progenitora aufere mensalmente a quantia de € 286,72 a título de pensão de invalidez.
29. A progenitora não trabalha.
30. O progenitor não tem trabalho certo e atualmente dedica-se à tentativa de venda de automóveis usados, auferindo, quando os consegue vender, valor pecuniário de montante não apurado.
31. A mãe do R… e da M… foi sujeita a internamento hospitalar nos períodos de 5 a 6 de setembro de 2018, 24 de outubro a 7 de novembro de 2018 e de 3 a 11 de dezembro de 2019.
32. Todos os membros do agregado familiar da M… e do R… sentem-se integrados na etnia cigana e mantêm rotinas quotidianas inalteradas.
33. Nenhum dos pais de ambas as crianças tem conhecimento mínimo do conteúdo dos deveres escolares de cada uma, nem sabia do número de faltas de cada uma das crianças.
34. V… não sabe escrever, lê com dificuldade e frequentou o 1º ano de escolaridade.
35. Ru… tem o 9º ano de escolaridade.
36. Ru… não acompanha os deveres escolares do R… e da M… e não teve iniciativa de solicitar informações escolares às respetivas professoras.
37. Ru… e V… não consideram o absentismo escolar do R… e da M… como sendo um problema para estes.
38. V… muda de número de telemóvel e não atualiza o seu contacto telefónico junto da escola frequentada pelos referidos filhos, o que impediu o estabelecimento de comunicação mais rápida entre a escola e a progenitora.
39. Nem V…, nem os pais do R… e da M… compreendem a importância de lhes imporem regras de conduta adequadas ao cumprimento integral dos deveres escolares e atuam legitimando junto dessas crianças o respetivo absentismo escolar, nem compreendem o prejuízo que dessa não imposição decorre para estas, nomeadamente ao nível da aquisição de competências educacionais, formativas e sociais.
40. Nenhum dos progenitores das referidas crianças é capaz de definir e impor regras para esse efeito, nomeadamente não cria rotina para que, em casa, os filhos realizem os trabalhos escolares de realização no domicílio ou estudem e compareçam na escola com assiduidade e pontualidade.
41. Nenhum dos pais do R… e da M… é capaz de modificar a conduta destes em relação aos deveres escolares.
42. Nenhum familiar da M… e do R… é capaz de modificar a conduta destes em relação aos deveres escolares.
43. R… quer continuar a residir com os seus pais e opõe-se a ser acolhido em casa de acolhimento residencial, ficando o mesmo e a M… tristes com essa possibilidade.
44. Existe relação afetiva mútua entre os pais e os indicados filhos, bem como entre a M… e o R…, bem como entre os dois irmãos.
45. A M… e o pai mantém, várias vezes, visitas entre si, mas aquela é somente educada pela mãe e por Ru…, o qual a considera como se fosse sua filha.
46. Ru… tem antecedentes criminais, tendo sido condenado por praticar crimes de violação de domicílio, furto simples e qualificado, tentado e consumado, injúria agravada, resistência e coação sobre funcionário, roubo e sequestro, e já cumpriu prisão, que cessou em 2020.
47. V… tem antecedentes criminais, tendo sido condenado por praticar vários crimes de furto simples.
48. F… tem antecedentes criminais, tendo sido condenado por praticar crimes de furto simples, detenção de arma proibida e ameaça agravada.
(…)
Nenhuns outros factos se provaram com relevo para a boa decisão da causa que se não compaginam com a factualidade apurada, designadamente e no essencial que:
(i) R… e M… sempre realizaram as fichas escolares que lhes eram entregues;
(ii) O R… nunca teve apoio escolar adicional, apesar de a sua mãe isso ter solicitado na respetiva escola;
(iii) Quando o R… e a M… falta a aulas é sempre apresentada pela sua encarregada de educação uma justificação;
(iv) O R…, a M… e os seus pais esforçaram-se para cumprirem os deveres previstos nos apurados acordos de promoção e proteção.”

5. Do mérito do recurso

Antecipamos desde já a nossa convicção de que a medida aplicada se revela de uma extrema violência para estes dois jovens que, a concretizar-se, se verão apartados da sua comunidade e, especialmente, da sua família e se sentirão, sobretudo, sancionados por uma conduta – o absentismo escolar – que na sua cultura não é perniciosa.

Outrossim ficou por demonstrar na sentença recorrida em que medida é que o determinado acolhimento residencial terá o condão de os cativar para a escolaridade…

São muitos os estudos publicados sobre os problemas de assiduidade dos alunos de etnia cigana e, de modo geral, o que se advoga para os mitigar é o reforço das relações entre a escola e a família o que se consegue sobretudo com a existência de mediadores nas escolas tendo em vista a sensibilização e envolvimento desta comunidade na aprendizagem dos seus educandos.

A compreensão das raízes e das culturas familiares revela-se determinante antes de qualquer intervenção junto das crianças e jovens tendente a promover a sua educação, sendo de relevar, na senda da imposição constitucional ( art.º67º, nº2 c) ) a cooperação do Estado com os pais na educação dos filhos.

Por conseguinte, a inquestionável necessidade de promover a educação destes menores tem inevitavelmente de passar pela interação familiar, sob pena de se promover, como bem se salienta nas suas alegações de recurso, a sua revolta, tristeza e angústia que em nada contribuirão para a sua educação, formação e desenvolvimento integral e influenciarão negativamente o desenvolvimento da sua personalidade, potenciando comportamentos desviantes.

É que não nos podemos olvidar que se está a lidar com adolescentes que carecem de compreender as decisões para a elas aderirem.

A acrescer a tudo isto revelam os autos a desculpabilidade da conduta da sua progenitora em razão de enfermidade ( cfr. 11 e 31).

A intervenção para promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo obedece a determinados princípios orientadores elencados no art.º 4.º da Lei nº 147/99, de 1.9..

Destacam-se, dentre eles e no que ao caso interessa, os da proporcionalidade e actualidade ( alínea e) da prevalência da família (alínea h))..

Por imperativo legal, “a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;” e “na promoção de direitos e na protecção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem na sua família ou que promovam a sua adopção.”

Nesta senda, dispõe o art.º 9.º, n.º 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança que : “ Os Estados partes garantem que a criança não é separada de seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial e de harmonia com a legislação e o processo aplicáveis, que essa separação é necessária no interesse superior da criança. Tal decisão pode mostrar-se necessária no caso de, por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança ou no caso de os pais viverem separados e uma decisão sobre o lugar da residência da criança tiver de ser tomada.”.

Como vimos, deparamo-nos com um problema de assiduidade e sucesso escolar de dois menores que mantêm uma relação afetiva mútua com os pais e entre si ( cfr. 44).
Tal relação afectiva existe também entre a menor M… e o Ru…, o qual a considera como se fosse sua filha ( cfr. ponto 44 e 45).

Aliás, no ano letivo de 2020/2021 só o R… é que ficou retido, tendo a M… transitado de ano de escolaridade, por, não obstante o número de faltas às aulas, ter realizado com êxito plano de recuperação proposto pela escola realizado em dois dias.

Tudo aponta, portanto, para que se continue a investir numa medida de promoção que envolva o agregado familiar dos menores e a escola.

Aliás, recentemente foi publicado um guião para as escolas tendente a promover a inclusão e o sucesso educativo das comunidades ciganas (consultável em https://afc.dge.mec.pt/sites/default/files/2020-02/guiao_comunidades_ciganas.pdf).

Em suma: a decisão recorrida, por iníqua e desproporcionada, não se pode manter, devendo ser represtinada a anteriormente vigente (apoio junto dos pais) redefinindo-a com o incremento do envolvimento da escola dos menores em moldes a definir após auscultação da respectiva Direcção.

III- DECISÃO

Por todo o exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogando a decisão recorrida, repristina-se a medida de apoio junto dos pais anteriormente vigente que deverá ser redefinida em função do desejável incremento do envolvimento da escola dos menores R…, nascido em 11 de outubro de 2007, natural da freguesia de …, concelho do Entroncamento, filho de Ru… e de V… e M…, nascida em 7 de setembro de 2010, natural da freguesia de …, concelho de Almada, filha de F… e de V….

Sem custas.

Évora, 9 de Setembro de 2021
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente