Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
| Processo: |
| ||
| Relator: | ANA MARGARIDA LEITE | ||
| Descritores: | REAPRECIAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA FACTOS NOVOS | ||
| Data do Acordão: | 10/30/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | I – Face ao incumprimento pelo recorrente dos ónus previstos em qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, é de rejeitar a apreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, na parte respetiva; II – Se determinada questão não foi suscitada perante a 1ª instância, que sobre a mesma não se pronunciou, e não se tratando de questão de conhecimento oficioso, não pode ser arguida no recurso de apelação, que visa reapreciar a decisão impugnada e não criar decisões sobre matéria nova; III – Incumbe ao recorrente indicar o efeito pretendido com a apelação, isto é, a alteração que pretende obter na decisão recorrida. (Sumário da Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 1989/19.1T8STR.E1 Juízo Central Cível de Santarém Tribunal Judicial da Comarca de Santarém Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: 1. Relatório (…) intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra (…), pedindo, com base na factualidade que alega, se declare que a quantia de € 33.770,34, que o Autor depositou na Caixa Agrícola, e o prédio descrito no artigo 31º desta p.i. são bens próprios do Autor. A ré contestou, defendendo-se por exceção – invocando o caso julgado – e por impugnação. Após vicissitudes várias, foi realizada audiência prévia, em que se fixou o valor à causa e se proferiu despacho saneador – no qual se julgou verificada a exceção de caso julgado suscitada na contestação, em consequência do que se absolveu a ré da instância quanto à peticionada declaração de que a quantia de € 33 770,34 é um bem próprio do autor –, após o que se identificou o objeto do litígio e se procedeu à enunciação dos temas da prova. Realizada a audiência final, foi proferida sentença, na qual se julgou a ação improcedente, absolvendo-se a ré do pedido e condenando-se o autor nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. Inconformado, o autor interpôs recurso da sentença, terminando as alegações com a formulação das conclusões que se transcrevem: «I – Deve ser suspenso o presente recurso até julgamento do referido recurso pendente. II – Para a boa decisão da causa, deve ser produzida prova sobre todos os factos alegados no p. i. pois que é aí, que, na medida do possível se indica o percurso do dinheiro em causa. III – Uma vez que ao tribunal se suscitam dúvidas sobre a origem da propriedade dos dinheiros em causa, de que depende a boa decisão, incumbe ao juiz o “poder-dever” estabelecido no artigo 411.º do CPC de ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, tais possam ser: ordenar provas bancárias – até aos próprios. bancos indicados pelas partes, da existência e movimentos dos dinheiros das partes IV – Como corolário de toda a situação existente, desde a outorga dum testamento a favor da R. até à celebração dos negócios jurídicos dos autos, resulta claramente que o Autor quis fazer todo o seu património à Ré em troca do amparo e assistência que a perpetuidade do casamento proporciona. V – O que a Ré frustrou com a apropriação secreta de bens destinados a essa finalidade. VI – Ao negar a existência de um testamento que existe, a Ré quis ocultar a proveniência do dinheiro da parte do Autor. VII – Em obediência ao disposto no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, devem os Factos não provados: a e b, ser dados como provados. VIII – Foram violados os artigos 411.º e 436.º do CPC e 342.º, n.º 2, do Código Civil. Termos que, a bem da lei e da justiça, deve ser dado provimento ao recurso.» A ré apresentou contra-alegações, pronunciando-se no sentido da manutenção do decidido. Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes: i) questão prévia; ii) impugnação da decisão relativa à matéria de facto; iii) realização pelo Tribunal de outras diligências probatórias; iv) efeito pretendido com a apelação. Corridos os vistos, cumpre decidir. 2. Fundamentos 2.1. Decisão de facto 2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância: 1 - Em vinte seis de Abril de mil novecentos e noventa e seis o Autor fez testamento no qual declarou que “deixa a (…) … a quota disponível dos seus bens para lhe assegurar a subsistência e sobrevivência. Que por este revoga qualquer testamento anterior”. 2 - No dia vinte e um de Junho de mil novecentos e noventa e seis, o Autor por si e como procurador da sua mulher, outorgou escritura pública de compra e venda a favor da Ré pela qual tal Autor declarou vender àquela pelo preço de quatro milhões de escudos que já recebeu, o prédio misto sito em (…), freguesia de (…), concelho de Salvaterra de Magos, com a área total de quatro mil trezentos e vinte metros quadrados, com uma casa de habitação de rés-do-chão, com duas divisões, com área coberta de vinte e nove metros quadrados, inscrita na matriz sob o artigo n.º (…), secção P, e parte urbana sob o artigo n.º (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos sob o n.º (…). 3 - O Autor iniciou com a Ré uma relação amorosa, passando ambos a viver um com o outro em momento concretamente não apurado mas por volta do ano de mil novecentos e noventa e oito. 4 - Autor e Ré casaram um com o outro sem convenção antenupcial em dois de Abril de 2003. 5 - No dia trinta de Maio de dois mil e três a Ré declarou comprar a (…), (…) e seu marido (…), (…) e seu marido (…), (…) casado com (…) a qual deu o seu consentimento, pelo preço de cinquenta e cinco mil euros que já receberam, o prédio urbano sito na EN 114, freguesia de (…), composto por casa de rés-do-chão para habitação, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de Salvaterra de Magos sob o artigo (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos sob o n.º (…). 6 - No dia quinze de Abril de dois mil e cinco, a Ré casada em comunhão de adquiridos com o Autor declarou vender o que foi consentido pelo Autor, à sociedade (…), Construções Unipessoal, Lda., pelo preço de trinta mil euros já recebidos, o prédio urbano sito em (…), freguesia de (…), composto por lote de terreno para construção com a área de dois mil quatrocentos e setenta metros quadrados, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de (…), sob o artigo (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos sob o n.º (…). 7 – Autor e Ré divorciaram-se por sentença de vinte e cinco de Junho de dois mil e dezoito, transitada em julgado a catorze de Setembro de 2018. 2.1.2. Factos considerados não provados em 1ª instância: a) O bem imóvel indicado supra em 5 foi adquirido com dinheiro que pertencia em exclusivo ao Autor, o qual lhe adveio da sua atividade profissional. b) A Ré não possuía dinheiro seu para adquirir o bem imóvel referido supra em 5. 2.1.3. Tramitação processual Extraem-se do presente processo e dos respetivos apensos, entre outros, os elementos seguintes: i) o autor interpôs recurso de decisão interlocutória constante da ata de 15-02-2024, proferida no decurso da audiência final realizada nos presentes autos, o qual foi tramitado como apelação autónoma em apenso organizado para o efeito; ii) por acórdão proferido por esta Relação em 05-12-2024, transitado em julgado, foi rejeitado o recurso a que alude o ponto i). 2.2. Questão prévia A título de questão prévia, defende o apelante, nas alegações, dever o conhecimento do presente recurso aguardar, pelos motivos que expõe, o trânsito em julgado da decisão do recurso que interpôs do despacho interlocutório constante da ata de 15-02-2024, proferido do decurso da audiência final. Conforme decorre da tramitação processual exposta em 2.1.3., o recurso que o autor interpôs da mencionada decisão interlocutória veio a ser rejeitado por esta Relação, por acórdão proferido em 05-12-2024 no apenso respetivo, transitado em julgado. Face ao trânsito em julgado da decisão de rejeição do mencionado recurso, mostra-se prejudicada a apreciação da questão prévia suscitada pelo apelante. 2.3. Apreciação do objeto do recurso 2.3.1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto O recorrente põe em causa a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, defendendo o aditamento à matéria assente dos factos julgados não provados sob as alíneas a) e b) de 2.1.2., conforme exarado na conclusão VII das alegações de recurso; no corpo das alegações preconiza, ainda, a modificação da redação de determinados factos julgados provados, matéria que não foi levada às conclusões das alegações. A impugnação da decisão relativa à matéria de facto encontra-se sujeita a determinados requisitos, impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que cumpre apreciar se os mesmos foram cumpridos pelo apelante. Sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o citado preceito o seguinte: 1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º. Explicando o sistema vigente quando o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, afirma António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, págs. 165-166), o seguinte: “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente (…)”. É sabido que as conclusões das alegações delimitam o âmbito do objeto do recurso, conforme resulta do disposto no artigo 635.º, n.º 4, do CPC. Como tal, as questões a decidir serão, além das de conhecimento oficioso, apenas as que constarem das conclusões, cabendo ao recorrente o ónus de as formular e de nelas incluir as questões que pretende ver reapreciadas. Não tendo o apelante incluído nas conclusões das alegações a modificação da redação de quaisquer factos julgados provados, não especificando nas conclusões outros pontos de facto impugnados, além dos considerados não provados sob as alíneas a) e b) de 2.1.2., verifica-se que restringiu o objeto do recurso, no que respeita à impugnação da decisão de facto, aos aludidos pontos tidos por não provados, não tendo a Relação de conhecer da questão da impugnação do qualquer outro ponto de facto, dado não se tratar de matéria de conhecimento oficioso. A não especificação pelo apelante, nas conclusões, de determinados factos que afirma incorretamente julgados, configura incumprimento, quanto à impugnação de tal factualidade, do ónus imposto pela alínea a) do n.º 1 do citado artigo 640.º. Tal incumprimento é cominado com a rejeição do recurso, na parte respeitante a este segmento da impugnação da decisão da matéria de facto, conforme decorre do estatuído no corpo do n.º 1 do citado artigo 640.º, o que não impede a apreciação da impugnação da decisão relativa aos pontos tidos por não provados sob as alíneas a) e b) de 2.1.2.. Porém, quanto a estes pontos de facto julgados não provados, o apelante não especifica os meios probatórios que entende imporem decisão diversa, não requerendo a reapreciação de qualquer elemento de prova, nem indicando o fundamento da alteração que pretende seja operada à decisão proferida, como tal incumprindo o ónus estabelecido na alínea b) do n.º 1 do citado preceito. O incumprimento, pelo recorrente, deste ónus de especificação dos concretos meios probatórios que entende imporem decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, é igualmente cominado com a rejeição do recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão de facto, conforme decorre do estatuído no corpo do n.º 1 do citado artigo 640.º. Nesta conformidade, verificado o incumprimento, pelo recorrente, dos ónus estabelecidos na alínea a), quanto à factualidade julgada provada, e na alínea b), quanto à factualidade considerada não provada, cumpre rejeitar totalmente o recurso quanto à impugnação da decisão de facto, ao abrigo do disposto no corpo do n.º 1 do artigo 640.º. Em conclusão, decide-se rejeitar o recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão de facto. 2.3.2. Realização pelo Tribunal de outras diligências probatórias No recurso que interpôs, o apelante afirma que o princípio do inquisitório estabelecido no artigo 411.º do CPC impunha ao Tribunal o dever de apuramento da origem das verbas utilizadas para a aquisição do imóvel identificado supra no ponto 5 de 2.1.1., sustentando que deveria ter sido ordenada a realização das diligências probatórias necessárias para o efeito. Trata-se de questão que não foi suscitada na 1ª instância, mas apenas em sede de recurso, nas alegações da apelação. Se a questão da necessidade da produção de outros meios de prova não foi suscitada na 1ª instância, que sobre a mesma não se pronunciou, e não se tratando de questão de conhecimento oficioso, não pode ser arguida no recurso de apelação, que visa reapreciar a decisão impugnada e não criar decisões sobre matéria nova. Como tal, atenta a novidade da indicada questão, a qual não é de conhecimento oficioso, não será a mesma apreciada. 2.3.3. Efeito pretendido com a apelação Nas alegações de recurso, o apelante impugnou a decisão relativa à matéria de facto – o que foi apreciado em 2.3.1., tendo sido rejeitado o recurso quanto à impugnação da decisão de facto – e invocou a omissão de realização pelo Tribunal de outras diligências probatórias – o que foi apreciado em 2.3.2., tendo sido rejeitado o conhecimento da questão em sede de recurso, atenta a respetiva novidade –, não tendo peticionado qualquer concreta alteração da decisão recorrida no que respeita à matéria de direito, não retirando qualquer consequência jurídica da eventual procedência da impugnação da decisão de facto. Analisando o pedido formulado nas alegações da apelação – Termos que, a bem da lei e da justiça, deve ser dado provimento ao recurso –, verifica-se que não é peticionada qualquer modificação da decisão recorrida, no que respeita à matéria de direito e ao segmento decisório final. Dispõe o artigo 639.º, n.º 1, do CPC, que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, esclarecendo o n.º 2 do preceito as indicações que deverão constar das conclusões, nos casos em que o recurso versa sobre matéria de direito. Explicam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (ob. cit., págs. 767-768) que “conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que o recorrente pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo”, acrescentando que deve ser incluído, na parte final, o resultado procurado. No caso presente, o recorrente não peticiona qualquer concreta alteração da decisão final. Nesta conformidade, nada mais há a apreciar, cumprindo julgar improcedente a apelação. Em conclusão: (…) 3. Decisão Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário. Notifique. Évora, 30-10-2025 (Acórdão assinado digitalmente) Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora) Isabel de Matos Peixoto Imaginário (1ª Adjunta) Maria Isabel Calheiros (2ª Adjunta) |