Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3106/22.1T8FAR-A.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: RENÚNCIA AO MANDATO
EFEITOS
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. Nas acções em que é obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato por parte do mandatário do réu apenas produz efeitos a partir da notificação ao mandante e, se este não constituir novo mandatário no prazo de 20 dias após essa notificação, o processo segue os seus termos.
2. A lei preocupa-se em estabelecer a conciliação entre os interesses do mandatário, do mandante e os relacionados com a boa administração da justiça.
3. Não aceita que a simples renúncia ao mandato implique a imediata suspensão do prazo que esteja em curso, pois tal abriria caminho ao uso de expedientes dilatórios.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Faro, AA demandou a Associação …, IPSS, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 8.280,00, acrescida dos juros vencidos no montante de € 1.134,82, bem como os vincendos.
A audiência de partes foi designada para o dia 25.10.2022 e a Ré foi citada para comparecer nesse acto, sendo advertida que em caso de justificada impossibilidade de comparência, se devia fazer representar por mandatário judicial com poderes de representação e os especiais para confessar, desistir ou transigir, ficando sujeita às sanções previstas no CPC para a litigância de má fé.
Foram-lhe entregues nesse acto os duplicados legais da petição inicial e documentos que a acompanhavam.
Em 18.10.2022 a Ré juntou procuração forense a favor de Ilustre Mandatária, a quem conferiu os poderes forenses gerais e ainda os especiais para transaccionar, confessar e desistir, bem como para a representar quando por força de lei ou de despacho judicial for obrigatória a sua comparência pessoal, deliberando e decidindo, em seu nome, conforme melhor entender na defesa dos seus interesses.
A audiência de partes decorreu no dia 25.10.2022 e nela estavam presentes a Ilustre Mandatária da A., que apresentou procuração com poderes especiais, o legal representante da Ré e a sua Ilustre Mandatária.
Tentada a conciliação e não sendo esta possível, foi a Ré de imediato notificada que tinha “o prazo de dez dias para, querendo, contestar a acção, sob pena de se considerarem confessados os factos articulados pela Autora e, em idêntico prazo, juntar os respectivos meios de prova.”
No dia 27.10.2022, a Ilustre Mandatária da Ré comunicou ao processo que tinha renunciado ao mandato. Juntou também requerimento no qual constava comunicação por si realizada à Ré informando-a que o prazo que estava em curso não se iria suspender e que deveria juntar de imediato procuração forense a favor de outro advogado.
Foi determinada a notificação à Ré da renúncia do mandato, notificação essa que ocorreu a 03.11.2022.
No dia 17.11.2022 a Ré apresentou contestação e juntou procuração com essa data, pela qual constituía outra Ilustre Mandatária.
Após requerimento da A. e contraditório da Ré, foi proferido despacho declarando extemporânea a contestação e não a admitindo.

Deste despacho foi interposto recurso pela Ré, o qual subiu em separado.
Nas suas conclusões – que não são propriamente um modelo de capacidade de síntese, como exigido pelo art. 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil – a Ré coloca as seguintes questões:
1.ª Se a decisão recorrida viola os princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito, do direito à defesa e à defesa condigna?
2.ª Sendo a contestação a peça processual mais importante da Ré, em que esta apresenta a sua defesa e junta a sua prova, se poderia apresentar tal peça sem estar acompanhada de Mandatário?
3.ª Se a renúncia ao mandato impõe ao advogado o dever de não prosseguimento do mandato nem de assegurar qualquer defesa, por quebra intransponível dos laços de confiança recíproca?
4.ª Tendo a renúncia ao mandato ocorrido no prazo de contestação, se a Ré podia, em tempo, constituir outro mandatário e elaborar a sua defesa?
5.ª Se do art. 47.º do Código de Processo Civil resulta que o prazo processual em curso se suspende durante 20 dias e enquanto a parte não constitua mandatário, para esta organizar a sua defesa?
6.ª Se a Ré ficou em situação de desigualdade de circunstâncias, em relação a quem tivesse pedido apoio judiciário com nomeação de patrono, caso em que o prazo de contestação se suspenderia?

Na sua resposta, a A. pugnou pelo desatendimento do recurso.
Produziu a Digna Magistrada do Ministério Público junto desta Relação o respectivo parecer, propondo a negação de provimento ao recurso, o qual foi notificado às partes.
Cumpre-nos decidir.
Os factos a ponderar neste Acórdão são os constantes do relatório.

APLICANDO O DIREITO
Da renúncia ao mandato e suas consequências nos prazos em recurso
De acordo com o art. 47.º n.ºs 2 e 3 al. b) do Código de Processo Civil, a renúncia ao mandato por parte do advogado do réu apenas produz efeitos a partir da notificação ao mandante e, nos casos de constituição obrigatória de advogado – como é o caso, dado ser admissível recurso ordinário – se o réu não constituir novo mandatário no prazo de 20 dias, após a notificação da renúncia, o processo segue os seus termos, aproveitando-se os actos anteriormente praticados pelo mandatário que renunciou.
Comentando esta norma, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1] afirmam o seguinte: “Estabelece-se um prazo de vinte dias para o mandante constituir novo mandatário, durante o qual se mantém o patrocínio inicial, visto que o processo entretanto prossegue. Logo que, dentro do prazo, a parte constitua novo advogado, a renúncia produz os seus efeitos, o mesmo acontecendo no termo do prazo, se não o constituir. Neste caso, deixando a parte de ter mandatário, dá-se a suspensão da instância no caso de faltar advogado ao autor ou exequente, ou extingue-se o incidente (ou o procedimento não incidental, como é o caso dos embargos e do procedimento cautelar prévio) se faltar advogado ao requerente (incluído o opoente) ou embargante; mas prossegue o processo, por não poder ser penalizado o autor, exequente ou requerente, se faltar advogado ao réu, executado ou requerido.”
Pode-se, pois, concluir que, sendo obrigatória a constituição de advogado, o advogado renunciante apenas se desonera do mandato depois do mandante ter constituído novo mandatário ou decorrido aquele prazo de 20 dias após a notificação sem que tal suceda. Enquanto esse prazo não decorrer, a instância não se suspende e o advogado renunciante mantém o dever deontológico de garantir a representação da parte.[2]
Note-se que está em causa uma relação tutelada por normas deontológicas, em que a continuidade de funções durante o referido prazo de 20 dias se integra no dever previsto no art. 100.º n.º 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei 145/2015, de 9 de Setembro): “Ainda que exista motivo justificado para a cessação do patrocínio, o advogado não deve fazê-lo por forma a impossibilitar o cliente de obter, em tempo útil, a assistência de outro advogado.”
Logo, a notificação da renúncia ao mandato por parte da primeira mandatária da Ré não implicou a imediata cessação do seu patrocínio, dado se tratar de causa em que o patrocínio era obrigatório.
Esta é a interpretação actualmente dominante da jurisprudência, de que são paradigmáticos os seguintes Acórdãos, todos publicados em www.dgsi.pt:
- da Relação de Lisboa de 22.02.2018 (Proc. 1016/14.5YYLSB-A.L1-8);
- da Relação do Porto de 23.03.2020 (Proc. 25561/15.6T8PRT-C.P1);
- da Relação de Coimbra de 23.02.2021 (Proc. 5403/18.1T8VIS.C1);
- da Relação de Guimarães de 25.02.2021 (Proc. 944/16.8T8BGC.G1);
- da Relação de Guimarães de 18.03.2021 (Proc. 2128/15.3T8VNF-A.G1);
- da Relação de Évora de 30.03.2023 (Proc. 979/21.9T8SLV-A.E1); e,
- outro da Relação de Évora da mesma data de 30.03.2023 (Proc. 755/22.1T8PTM.E1).
Note-se que a lei preocupa-se em estabelecer a conciliação entre os interesses do mandatário, do mandante e os relacionados com a boa administração da justiça. Na verdade, a lei não aceita que a simples renúncia ao mandato implique a imediata suspensão do prazo que esteja em curso, pois tal abriria caminho ao uso de expedientes dilatórios.
E é assim que a norma em causa não afronta os princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito, pois o advogado renunciante continua no pleno exercício do seu mandato, durante 20 dias, prazo razoável para o mandante constituir novo mandatário.
Citemos, a propósito, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 671/2017, de 13.10.2017, publicado na respectiva página electrónica:
«A norma em causa procede a uma conciliação entre os interesses do mandatário, os do mandante e ainda aos interesses da boa administração da justiça. Assim se compreende que a revogação e a renúncia do mandato judicial tenham lugar no próprio processo e que a renúncia seja pessoalmente notificada ao mandante, com a advertência dos efeitos previstos no n.º 3 (artigo 47.º, n.º 2, do CPC). O regime do artigo 47.º do CPC visa justamente acautelar a produção de efeitos negativos para a parte, quando o patrocínio é obrigatório e a parte não consegue imediatamente constituir novo mandatário. Daí que o advogado renunciante continue ligado ao mandato, durante 20 dias, até, dentro deste prazo – de dimensão perfeitamente razoável – o mandante constituir novo mandatário, extinguindo-se, então, o primeiro mandato.
Estando, por força da lei, o mandatário judicial constituído ligado ao mandato, no momento em que ocorreu a audiência de julgamento, não pode afirmar-se que se tenha verificado qualquer perturbação relativamente ao exercício do direito à tutela efectiva que afectasse a posição processual da recorrente. O facto de a audiência de julgamento ter prosseguido, sem que a embargante estivesse representada, resultou da ausência do advogado, que, segundo o Tribunal recorrido, incumpriu os seus deveres deontológicos. Por outro lado, independentemente de uma eventual quebra na relação de confiança entre a mandante e o mandatário, o certo é este não poderia deixar de cumprir as obrigações a que se encontrava adstrito enquanto o mandato não pudesse considerar-se extinto.
Não há, por isso, qualquer risco, em situação de normalidade e desde que se use a diligência devida, de a parte deixar de exercer os direitos processuais por virtude da renúncia do mandato, visto que a lei contempla mecanismos que permitem assegurar a representação processual sem prejuízo para a defesa dos interesses que se pretende fazer valer na acção.
A especialidade do regime tem, pois, a fundamentá-la uma razão material bastante – a celeridade da administração da justiça – razão essa congruente com a prossecução, por parte do legislador ordinário, de interesses e valores constitucionais dotados de particular relevância. Tanto basta para que se conclua que, face ao parâmetro contido no artigo 20.º da CRP, não merece a norma sob juízo qualquer censura.
Não se mostram, pois, violados quaisquer dos direitos e princípios constitucionais invocados.»
Assim, temos a responder à Recorrente que não ocorreu qualquer violação dos princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito, pois o mandato não se extinguiu automaticamente pela mera renúncia da sua primeira mandatária.
Finalmente, diremos que a alegada desigualdade de circunstâncias com quem beneficia de apoio judiciário com nomeação de patrono, para além de meramente hipotética, esquece que a suspensão concedida nesses casos se justifica por um motivo atendível: o beneficiário não dispõe de meios económicos para contratar um advogado, e isso justifica a suspensão do prazo em curso enquanto o pedido de apoio judiciário é analisado e lhe é nomeado um advogado.
Situação absolutamente diferente de quem teve meios económicos para contratar um advogado, e é confrontado com uma renúncia do mandato: a lei garante-lhe a manutenção dos deveres deontológicos do seu advogado durante 20 dias, tempo mais que suficiente para procurar e constituir outro mandatário.
Enfim, o recurso não merece provimento.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o despacho que declarou extemporânea a contestação.
As custas pela Ré.

Évora, 25 de Janeiro de 2024

Mário Branco Coelho (relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
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[1] In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., págs. 101/102.
[2] Neste sentido, cfr. os Acórdãos da Relação de Coimbra de 29.11.2011 (Proc. 2191/03.0TBACB-A.C1), da Relação de Guimarães de 11.09.2012 (Proc. 2824/10.1TBVCT-A.G1), da Relação do Porto de 23.06.2015 (Proc. 5046/13.6TBVFR.P1) e ainda da Relação de Coimbra de 24.01.2017 (Proc. 412/09.4TBMMV-A.C1), todos publicados em www.dgsi.pt.