Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA JOSÉ CORTES | ||
Descritores: | DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE IRRECORRIBILIDADE TAXA DE JUSTIÇA | ||
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Data do Acordão: | 09/30/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | N | ||
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Sumário: | I - A exigência legal de pagamento do envio das gravações dos atos processuais realizados no debate instrutório não ofende direitos, liberdades e garantias do arguido, nem obstaculiza o exercício da sua defesa (poderá, quando muito, tornar menos “cómodo” o acesso aos elementos pretendidos), uma vez que sempre o interessado sem meios económicos pode requerer o benefício de apoio judiciário específico e, desse modo, obter gratuitamente os elementos que necessita. II - Assim, o arguido, quando solicitou nos autos que lhe fossem enviadas as gravações das declarações e depoimentos, tinha obrigação de pagar a respetiva taxa de justiça. III - A Constituição da República Portuguesa não estabelece a gratuitidade dos serviços de administração da justiça em nenhum dos seus preceitos, nem tal gratuitidade decorre de qualquer princípio imanente a tais preceitos. Por conseguinte, não é inconstitucional a norma legal que estabelece a exigência de uma contrapartida decorrente da prestação dos referidos serviços (artigo 9º, nº 5, do Regulamento das Custas Processuais). IV - O despacho judicial que determina que o arguido atue em conformidade com o estabelecido no artigo 9º, nº 5, do Regulamento das Custas Processuais, pagando a taxa de justiça devida pelo serviço a prestar, é um “despacho de mero expediente”, porquanto se limita a prover ao andamento regular do processo, e, por isso, tal despacho é irrecorrível, por força do disposto nos artigos 400º, nº 1, al. a), e 414º, nº 2, ambos do C. P. Penal, devendo ser rejeitado, nos termos do preceituado no artigo 420º, nº 1, al. b), do mesmo diploma legal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I – RELATÓRIO 1.1. No âmbito da Instrução n.º 43/22.3GCSTB, a correr termos no Juízo de Instrução Criminal de Évora, o senhor Juiz de instrução proferiu, em 10 de dezembro de 2024, e na sequência de requerimento impetrado nos autos pelo arguido requerendo o envio, por email, das gravações relativas aos debates instrutórios, no que diz respeito às partes e testemunhas ali inquiridas, despacho a autorizar tal envio mediante a cobrança da respetiva taxa, nos termos do art.º 9.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais. Igualmente o senhor Juiz de instrução proferiu, em 6 de outubro de 2023 despacho que admitiu a constituição como assistente de C, sendo que o recurso contra tal decisão deu entrada nos presentes autos em 9 de janeiro de 2025. * 1.2. Inconformado com tais despachos, o arguido veio deles interpor recurso. Este tribunal da Relação, no exame preliminar, determinou a rejeição dos recursos, respetivamente por irrecorribilidade (por se tratar de uma decisão de mero expediente) e por extemporaneidade, por decisão datada de 9 de junho de 2025. * 1.3. No dia 3 de dezembro de 2024, no âmbito da realização das últimas diligências da fase de instrução, e previamente ao debate instrutório e à prolação da decisão instrutória, o senhor juiz de instrução proferiu o seguinte despacho: “O arguido invoca a irregularidade decorrente da falta de concretização da alteração a que se reporta o despacho de 21/06/2024, com a suposta inclusão de factos que não constam do requerimento de abertura de instrução e importariam crime diverso, e a inclusão de factos constituintes do elemento subjetivo que extravasam o requerimento de abertura de instrução do assistente. Insurge-se contra os pontos 7 a 11, 16, dizendo que se trata de um ilícito totalmente diverso daquele que foi imputado no requerimento de abertura de instrução e quanto aos pontos 17 a 21 respeitam ao elemento subjetivo daquele ou daqueloutro tipo legal. No primeiro caso está adstrito ao art. 303.º, n.º3 e 4, do Cód. Processo Penal, e no segundo caso verifica-se a ineptidão do requerimento de abertura de instrução, termos em que só podem acarretar a não pronúncia. Nos termos do artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. A instrução pode ser requerida pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação, e pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, quanto a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (artigo 287.º, n.º1, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal). O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas. Basta compulsar as fls. 75, para perceber que o requerimento de abertura de instrução não é desprovido da narração, e contém de forma sintética, todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, conforme exigido pelo art.º 283.º, n.º3, al. b), do Cód. Processo Penal. A indiciação ora comunicada serve o propósito de garantia expresso no art. 303.º do Cód. Processo Penal, e não corresponde a crime diverso, mas ao resultado dos indícios que foram carreados para o processo e de que se deu sempre o devido contraditório. Com o requerimento de abertura de instrução pretende o assistente a pronúncia pela prática dos crimes previstos nos artigos 382.º e 256.º, n.º1, al. d), 3 e 4, do Cód. Penal, ilícitos que se mantiveram inalterados com o despacho de 21/06/2024. Inexiste qualquer alteração substancial, na acepção dada pelo art. 1º, al. f), do Cód. Processo Penal. Nos termos expostos e ao abrigo das disposições legais citadas, decide-se indeferir a irregularidade invocada.” * 1.4. No mesmo dia 3 de dezembro de 2024, após a realização do debate instrutório, o senhor juiz de instrução proferiu a seguinte DECISÃO INSTRUTÓRIA (…………………………….). * 1.5. Inconformado com a decisão de pronúncia (que foi proferida na sequência do requerimento de abertura da instrução por arquivamento do inquérito por parte do Ministério Público), veio o arguido S da mesma interpor recurso (requerimento de 09.01.2025), apresentando as seguintes CONCLUSÕES extraídas da sua motivação (transcrição): a) A obtenção de uma gravação das inquirições das partes e testemunhas, no âmbito de uma instrução, não constitui emissão de certidões, cópias, traslados ou extratos e não constitui acto avulso nenhum, constituindo antes o mero cumprimento de um dever do Tribunal, de não denegar justiça e em facultar às partes os elementos processuais necessários ao exercício dos seus direitos constitucionais, designadamente, o direito ao recurso. b)Vai arguida a inconstitucionalidade da dimensão normativa conferida ao art.º 9º, nº5, do RCP, quando interpretado (vá lá saber-se com que “argumento”) no sentido de exigir ou permitir ao tribunal exigir o pagamento de custas, aplicáveis a “actos avulsos”, por violação do princípio da defesa, e em especial, do direito ao Recurso, previstos no art.º 30º, nº 1 da CRP, triturando, ainda e também, o direito a um processo justo, plasmado no art.º 6º, nº1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, c) Devendo, com estrondo, ser declarada a nulidade de todos os actos posteriores à inusitada prolação do despacho que impediu o arguido de obter as gravações, sendo ordenado ao Tribunal Recorrido que determine expressamente que a contagem do prazo de recurso é reiniciado no terceiro dia útil ao envio, via email, das gravações requeridas. d) Sendo certo que os Tribunais de Instrução não estão ainda associados à Plataforma CITIUS, daí – e da consequente impossibilidade de obter, via CITIUS, as gravações em causa – não pode “nascer” um novo ónus para as partes, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade, ínsito à Noção de Estado de Direito, plasmada no art.º 2º da CRP. e) A decisão em causa, é nula, por excesso de pronúncia, para a qual o juiz não ter norma habilitante, já que do art.º 155º do CPC, ex vi, resulta com clareza que a entrega de cópia da prova gravada é uma obrigação da secretaria, a cumprir em dois dias contados da data de apresentação do respectivo requerimento; E só no caso de requerida e não cumprida, no prazo da lei (48 horas), a entrega de cópia dos suportes de gravação, há intervenção do juiz, a requerimento do interessado. f) E acaba por em crise, acarreta a nulidade de todo o processo, nos termos do art.º 86º, nº1, do CPP, por violação do princípio da publicidade do processo, assegurada no plano jurídico internacional, parte final do n.º 1 do art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos no n.º 2 do art. 47.º da Carta dos direitos fundamentais, no art. 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no n.º 1 do art. 14.º do Pacto internacional sobre os direitos Civis. g) Se o crime de falsificação de documento é um crime contra a vida em sociedade, em que o bem jurídico segurança e confiança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal é prevalente ou predominantemente protegido, o crime de abuso de poder tem como bem jurídico protegido a autoridade e credibilidade da administração do Estado, o que vale por dizer que, quer se veja a questão da legitimidade na análise do bem jurídico protegido, entendido como valor ideal ínsito na ratio da norma, quer considerado como o substracto do valor, como valor corporizado num suporte fáctico-real, jamais um particular terá legitimidade para se constituir assistente e afrontar a posição do Ministério Público, requerendo a abertura de instrução, relativamente a bens jurídicos de natureza supra-individual. h) O Despacho proferido em 21.06.2024, refere que «Assim, comunica-se aos sujeitos processuais e eventual alteração nos termos e para os efeitos do art.º 303 do Código de Processo Penal», seguindo-se-lhe um acervo factual que «face à prova recolhida», se consideram serem «os seguintes indícios»: (……………………………). i) Um tal despacho, assim proferido, não esclarece sequer se a “alteração dos factos” constituiu(ia)(rá) uma alteração substancial, ou não substancial, omitindo a indicação, sendo caso disso, qual a diferente qualificação dos factos, relativamente à imputação plasmada no R.A.I. do Assistente, impedindo o arguido de se pronunciar, o que redunda, nesta fase, numa violação das suas garantias de defesa, sendo flagrantemente nulo e contaminando todos os actos subsequentes, inclusive, o despacho de pronúncia recorrido. E eis que, pasme-se… j) O teor do RAI, é o Seguinte: (………………………..). k) O teor da decisão instrutória está, portanto, “a milhas” (muitas!) do que vem alegado no R.A.I., o que por sua vez ocorre porque obviamente, um RAI desta jaez, tinha de ser liminarmente rejeitado, e não aperfeiçoado pela decisão instrutória a seu bel-prazer e ao ritmo da ab-rogação da estrutura acusatória do processo penal, em que o Juiz, de mão própria e ligeira, se substitui ao M.º P.º e ao Assistente, contornando e contorcendo o princípio da proibição do aperfeiçoamento do R.A.I. como a jurisprudência e a doutrina alertam ser um perigo para o Estado de Direito. l) Atenta a estrita vinculação temática do Tribunal aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução, enquanto limitação da atividade instrutória, que se relaciona, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, o art.º 303 permite, tão-só, a alteração não substancial dos factos, o que bem se compreende: o regime da alteração substancial dos factos pressupõe que a matéria narrada na acusação do Ministério Público, do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, contenha factos suficientes à afirmação do crime (ainda que redundando aquela na imputação de um crime diverso). m) Se o requerimento para abertura da instrução não cumpre as exigências da alínea b) do n.º 3 do artigo 283º do CPP, concretamente a descrição dos elementos típicos – objetivos e/ou subjetivos – do crime, pelo qual se pretende a pronúncia do arguido, não pode o problema reconduzir-se ao instituto da alteração substancial, previsto no artigo 359.º do CPP, devendo, antes, situar-se na atipicidade da conduta descrita. n) A tal questão, o despacho ora recorrido veio responder que «Basta compulsar as fls. 75, para perceber que o requerimento de abertura de instrução não é desprovido da narração, e contém de forma sintética, todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança», o que constitui atentado às regras da lógica, já que, se assim fosse, o próprio despacho proferido em 21.06.2024, seria então acto vazio e inútil, pois que só faz sentido a sua prolação, existindo, como efectivamente existe, uma alteração dos factos reportados no R.A.I.». Ou seja: ZERO! o) Na realidade, são omissos no R.A.I., pelo menos, os factos narrados nos pontos 7, 8, 9, 10, 11 e 16, supra, ao passo que os factos 17 a 21, elencados no referido despacho, respeitam ao elemento volitivo daquele ou dacoloutro tipo legal, relativamente aos quais o RAI é simplesmente omisso, pelo que, neste caso, o que se verifica, é a ineptidão do próprio R.A.I., por omisso quanto a tais elementos subjectivos, em termos só podem acarretar a não-pronúncia. p) O Despacho recorrido segue mal-tratando a lógica, ao considerar que «A partir de Julho de 2021, mudou de residência para o Pinhal Novo, segundo o arguido.», do que extrai conclusivamente que «Tudo visto e ponderado, a mudança de casa ocorre quando o arguido já sabia quem era C e logicamente os comportamentos que o mesmo adoptava para com CS.», como se ter mudado de casa em julho, permitisse afirmar o conhecimento pelo arguido da “existência” do assistente, no mês anterior (junho)! q) Depois, a decisão recorrida olvida que a suposta presença do Assistente em Setúbal no dia em que foram lavrados os autos, nada revela, nem demonstra que o veículo em causa também estivesse em setúbal “naquele dia e hora”, já que os autos são lavrados por referência à matrícula da viatura e não ao seu condutor, olvidando a possibilidade – olvidando que não é sequer impossível, para que se recorra a partir daí à lógica e regras de experiência comum para chegar seja a que conclusão for - que o Arguido tenha estado em Setúbal às 18:00 horas em Vendas Novas pelas 18:30, já que a distância entre os dois pontos é de apenas 50 km, passíveis de serem percorridos, portanto, em menos de meia hora! r) Refere-se no despacho de pronúncia que foram inquiridas as seguintes testemunhas: «Prova testemunhal - C, id. a fls. 16; - A, id. a fls. 43 e 303;- M, id. a fls. 302v; - AS, id. a fls. 302v; - CS, id. a fls. 302v; - M, id. a fls. 302v; - P, id. a fls. 303v;». s) Porém, inexiste qualquer tipo – mais ou menos esforçado – de análise crítica da prova testemunhal assim elencada, fazendo-se, no despacho de pronúncia, apenas referência ao teor das declarações do Arguido, da sua esposa CS, e A. (……………………….). .” * 1.6. Notificado o Ministério Público, veio apresentar resposta ao recurso e, sem deduzir conclusões, terminou pugnando pela improcedência do mesmo. * 1.7. Nesta Relação, o Exo. Procurador-Geral Adjunto apos o seu visto. * 1.8. Em 9 de junho de 2025, em sede de exame preliminar, nos termos do art.º 417.º, n.º 6, alínea b), do Código de Processo Penal, a ora relatora rejeitou dois dos recursos interlocutórios interpostos pelo recorrente (um por extemporaneidade e o segundo por se tratar de decisão irrecorrível). * 1.9. O recorrente veio, em 12 de junho de 2025, reclamar para a Conferência da decisão que julgou irrecorrível o despacho datado de 10 de dezembro de 2024, que este tribunal entendeu ser de mero expediente, apresentando as seguintes CONCLUSÕES (transcrição): “a) A norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, em conjugação com o art.º 152.º, do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que um despacho que fixa a obrigação de pagamento de uma taxa para aceder às gravações da prova produzida em sede de debate instrutório, considerando-a como despacho de mero expediente, é inconstitucional por violação do princípio da defesa, previsto no art.º 30.º e do acesso aos Tribunais e da tutela jurisdicional efectiva consagrado no art.º 20.º n.º 1, da igualdade consagrado no art. 13.º e da proporcionalidade, todos da Constituição da República Portuguesa; Violando, além do mais, o direito a um processo justo e equitativo previsto no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. b) Despachos de mero expediente são aqueles que se destinam a regular, de harmonia com a lei, os termos do processo, e que assim não são suscetíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros, o que claramente não é o caso do despacho que impede o acesso às gravações, necessárias à elaboração de um recurso, ser um despacho que não “toca” nos direitos e deveres das partes, porque “toca”, por uma lado, num dever de pagamento, e por outro, num direito de acesso às gravações. c) Uma tal decisão, ao condicionar o direito de acesso às gravações, condiciona o direito de recurso, e desse modo, é absolutamente evidente que é suscetível de interferir com a posição subjetiva de cada uma das partes e influenciar o resultado material do litígio. d) Objectivamente, o Arguido ficou prejudicado porque o seu mandatário tem escritório a 200 km de distância do Tribunal a quo, razão pela qual não se deslocou, e antes solicitou a entrega das gravações por email. e) Objectivamente, o labor necessário ao cumprimento da obrigação do Tribunal de disponibilizar tal gravação, é o mesmo, seja na situação em que o mandatário se desloca para a obter, quer na situação em que tal gravação é remetida por email. f) O Arguido foi, pois, tratado de forma desigual, relativamente a qualquer outro arguido que fosse defendido por advogado com domicílio na comarca, sendo-lhe imposta uma taxa quer não tem justificação aceitável, porquanto não impõe ao Tribunal a quo qualquer sinalagma ou acréscimo de trabalho. g) Além do mais, o despacho proferido, ao incidir sobre uma questão que é da competência primária da Secretaria, é um despacho para o qual o Tribunal é absolutamente incompetente, consubstanciando, ainda e também, uma violação da lei processual. h) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-01-2025, Processo 591/23.8T8PTL- A.G1: « I – Não admitem recurso os despachos de mero expediente, ou seja, os despachos que se destinam “a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes” (arts. 630.º, n.º 1, 1ª parte, e 152º, n.º 4, ambos do CPC). II – A invocação da ilegalidade do despacho de mero expediente torna, porém, o despacho recorrível nos termos gerais.»; Assim, também, Miguel Teixeira de Sousa, anotação ao art. 152º, CPC Online, p. 29, https://drive.google.com/file/d/1k_1Je_T1W0XmaMkLPoafCeT0OdvSA7Rk/view; E, ainda, Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 3ª ed. Revista e actualizada, 2001, p. 217. (…).” * 1.8. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o art.º 419.º, do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir. ** II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir Conforme entendimento pacífico, o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente. São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal de 2.ª instância tem de apreciar (art.ºs 403.º, 412.º e 417.º, do Código de Processo Penal) Como ensina Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, p. 335, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”. Neste conspecto, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso da decisão de pronúncia e das conclusões do requerimento de reclamação para a conferência, extraímos, sequencialmente, as seguintes questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso: 2.1.1. Da reclamação para a Conferência Cumpre, neste âmbito, decidir se o despacho que fixou a obrigação de pagamento de uma taxa para aceder às gravações da prova produzida em sede de debate instrutório é ou não de mero expediente e se a interpretação da norma do art.º 400.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, em conjugação com o art.º 152.º, do Código de Processo Civil, interpretada naquele sentido, é inconstitucional por violação do princípio da defesa, previsto no art.º 30.º e do acesso aos Tribunais e da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art.º 20.º n.º 1, da igualdade consagrado no art.º 13.º e da proporcionalidade, todos da Constituição da República Portuguesa, violando o direito a um processo justo e equitativo previsto no art.º 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 2.1.2. Do recurso propriamente dito 1.ª Determinar se a decisão que conheceu da irregularidade do despacho que comunicou a alteração dos factos do RAI é nulo (proferido em ata de Debate Instrutório, em 3 de dezembro de 2024); 2.ª Determinar se houve omissão de fundamentação do despacho de pronúncia; 3.ª Determinar se inexistem indícios para ser proferida decisão de pronúncia do arguido S; 4.ª Oficiosamente, decidir se a decisão de pronúncia do arguido é nula, por violar no art.º 309.º, do Código de Processo Penal, por alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura da instrução. Conheceremos das questões elencadas pela sua ordem lógica e preclusiva. * 2.2. Apreciação do recurso 2.2.1. Da reclamação para a Conferência É do seguinte teor o despacho objeto de reclamação para a Conferência: “O arguido veio, em 10 de dezembro de 2024, requerer ao senhor Juiz de Instrução Criminal de Évora o envio por email, para o seu ilustre Advogado, das gravações relativas aos debates instrutórios, no que diz respeito às partes e testemunhas ali inquiridas. Na mesma data foi proferido o seguinte despacho: “Autorizo o requerido mediante a cobrança da respectiva taxa (cfr. Artigo 9.º/5 RCP) Notifique e D.N.” Inconformado, o arguido veio dele interpor recurso formulando as seguintes conclusões: “a) A obtenção de uma gravação das inquirições das partes e testemunhas, no âmbito de uma instrução, não constitui emissão de certidões, cópias, traslados ou extratos e não constitui acto avulso nenhum, constituindo antes um mero cumprimento de um dever do tribunal, de não denegar justiça e em facultar às partes os elementos processuais necessários ao exercício dos seus direitos constitucionais, designadamente, o direito ao recurso. b) Vai arguida a inconstitucionalidade da dimensão normativa conferida ao art.º 9.º, n.º 5, do RCP quando interpretado (…) no sentido de exigir ou permitir ao tribunal exigir o pagamento de custas aplicáveis a “actos avulsos” por violação do princípio da defesa e , em especial do direito ao recurso, previstos no art.º 30.º, n.º da CRP, triturando, ainda e também, um direito a um processo justo plasmado no art.º 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. c) Devendo, com estrondo, ser revogado este bizarro despacho e, consequentemente, sendo anulados todos os actos posteriores à sua inusitada prolação, sendo ordenado ao Tribunal Recorrido que determine expressamente que a contagem do prazo de recurso é reiniciado no terceiro dia útil ao envio, via email, das gravações requeridas. d) Sendo certo que os Tribunais de Instrução não estão ainda associados à Plataforma CITIUS, mas daí – e da consequente impossibilidade de obter, via CITIUS, as gravações em cuasa – não pode “nascer” um novo ónus para as partes, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade, ínsito à Noção de Estado de Direito, plasmada no art.º 2.º da CRP. e) A decisão em causa é nula, por excesso de pronúncia, para a qual o juiz não ter norma habilitante, já que do art.º 155.º do CPC, ex vi, resulta com clareza que a entrega de cópia da prova gravada é uma obrigação da secretaria, a cumprir em dois dias contados da data da apresentação do respectivo requerimento; E só no caso de requerida e não cumprida, no prazo da lei (48 horas), a entrega de cópia dos suportes de gravação, há intervenção do juiz, a requerimento do interessado. f) E acaba por em crise, acarreta a nulidade de todo o processo, nos termos do art.º 86.º, n.º 1, do CPP, por violação do principio da publicidade do processo, assegurada no plano jurídico internacional, parte final do n.º 1 do art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no n.º 2, do art.º 47.º da Carta dos direitos fundamentais, no art.º 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no n.º 1 do art.º 14.º do Pacto internacional sobre os direitos Civis.” Tal recurso foi admitido, por despacho datado de 17 de dezembro de 2024, mas com efeito meramente devolutivo, com subida com o recurso que viesse a ser interposto da decisão que colocar termo à causa e nos próprios autos. Face a este despacho, em 9 de janeiro de 2025, aquando da interposição do recurso da decisão instrutória de pronúncia, o arguido demonstrou interesse na sua apreciação. Cumpre apreciar da admissibilidade do recurso interposto pelo arguido em 11 de dezembro de 2024. Dispõe o art.º 400.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal: “1. Não é admissível recurso: a) De despachos de mero expediente; (…)”. Postula o art.º 414.º, n.º 2, do Código de Processo Penal que “O recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível, quando for interposto fora de tempo, quando o recorrente não reunir as condições necessárias para recorrer, quando faltar a motivação ou, faltando as conclusões, quando o recorrente não as apresente em 10 dias após ser convidado a fazê-lo.” Por fim, estatui a norma prevista no art.º 420.º, n.º 1, al. b), do mesmo código que: “O recurso é rejeitado sempre que: (…) b) Se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º; (…)”. O cerne da questão reside, por isso, em saber se o despacho de 10 de dezembro de 2024, é de mero expediente. Sobre o conceito de despacho de mero expediente, dispõe o art.º 152.º, do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por via da norma prevista no art.º 4.º, do Código de Processo Penal: “Os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes, considerando-se proferidos no uso de um poder discricionário, os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador.” Para Rodrigues Bastos [Notas ao Código de Processo Civil, vol. V, p. 272-274] constituem despachos de mero expediente aqueles que apenas têm por finalidade regular ou disciplinar o andamento ou a tramitação processual e que não importam decisão ou julgamento, denegação, reconhecimento ou aceitação de qualquer direito. Ou, noutra formulação, com o mesmo alcance, aquele que, proferido pelo juiz e não decidindo qualquer questão de forma ou de fundo, se destina principalmente a regular o andamento do processo. Como ensina, ainda, Castro Mendes [in Recursos, 1980, p. 40], os despachos de mero expediente “são despachos de caráter meramente interno, que dizem respeito às relações hierárquicas entre o juiz e a secretaria (p. ex., o despacho que ordena a conclusão do processo ao juiz); ou em qualquer caso são despachos que dizem respeito apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos dou deveres das partes (ex: o despacho que marca dia para julgamento). Estes despachos são, em princípio irrecorríveis, só o sendo no caso de desarmonia com a lei”. Mas o despacho em causa, podendo ser, “a priori” de mero expediente porquanto se limita a prover ao andamento regular do processo determinando que o arguido atue em conformidade com o legalmente estabelecido (art.º 9.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais) pagando a taxa de justiça devida, a questão não é assim tão líquida. Questiona-se, então: terá o arguido de proceder ao pagamento de tal taxa de justiça, prevista no art.º 9.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais? Estabelece este normativo que: “As certidões, traslados, cópias ou extractos que sejam entregues por via electrónica dão origem ao pagamento de taxa de justiça no valor de um décimo de 1 UC.” – itálico, negrito e sublinhado nossos. Invoca o recorrente a inconstitucionalidade da dimensão normativa conferida ao art.º 9.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais, quando interpretado no sentido de exigir ou permitir ao tribunal exigir o pagamento de custas aplicáveis a “atos avulsos” por violação do princípio da defesa e, em especial do direito ao recurso, previstos no art.º 30.º, n.º da Constituição da República Portuguesa. Os atos levados a cabo em instrução foram gravados, conforme se alcança das atas, datadas de 10.04.2024, 06.06.2024 e 03.12.2024. O recorrente poderia proceder à audição das declarações e depoimentos. Ao requerer o envio dessas declarações e depoimentos via email (portanto, via eletrónica) tem que proceder ao pagamento da taxa de justiça devida, conforme imposto pelo citado art.º 9.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais. Como se lê no acórdão deste TRE, de 21.04.2015, citado na douta resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância, «Conforme decidiu o TC por acórdão n.º 422/2000, de 11/10, em decisão transponível para o caso, “não está posto em causa o direito de acesso aos autos para consulta, na sua dimensão processual, mas apenas uma sua específica vertente, relacionada com a não-gratuitidade de um acto processual praticado pelo arguido e por este tido como útil ou necessário à organização eficiente da sua defesa. Assim, o parâmetro relevante da questão de constitucionalidade em apreço é, desde logo, constituído pela articulação do n.º 1 do artigo 20.º da CR – ao consagrar o acesso ao direito e aos tribunais sem discriminações derivadas de situação económica dos interessados – com a eficácia das garantias de defesa do arguido em processo penal, tal como asseguradas estão no nº 1 do artigo 32º do mesmo texto – merecendo o convocado enfoque da igualdade uma subsidiária apreciação. O texto constitucional não estabelece a gratuitidade dos serviços de administração da justiça em nenhum dos seus preceitos ou dos princípios dele imanentes. Assim, não lhe é desconforme a exigência de uma contrapartida decorrente da prestação desses serviços, e assim, de resto, o tem entendido a jurisprudência deste Tribunal.» Com efeito, a exigência legal de pagamento do envio das gravações dos atos processuais realizados no debate instrutório não ofende direitos, liberdades e garantias do arguido nem obstaculiza o exercício da sua defesa (poderá, quando muito, tornar menos “cómodo” o acesso aos elementos pretendidos), uma vez que sempre o interessado sem meios económicos pode requerer o benefício de apoio judiciário específico e, desse modo, obter gratuitamente os elementos que necessita. Resulta, assim, claro que o arguido quando solicitou nos presentes autos que lhe fossem enviadas as gravações das declarações e depoimentos tinha obrigação de pagar a respetiva taxa de justiça, conforme se depreende do douto despacho judicial de 10 de dezembro de 2024. Conforme decidiu o Tribunal Constitucional, pelo acórdão n.º 422/2000, de 11.10, “(…) não está posto em causa o direito de acesso aos autos para consulta, na sua dimensão processual, mas apenas uma sua específica vertente, relacionada com a não gratuitidade de um acto processual praticado pelo arguido e por este tido como útil ou necessário à organização eficiente da sua defesa. Assim, o parâmetro relevante da questão da constitucionalidade em apreço é, desde logo, constituído pela articulação do n.º 1 do artigo 20.º da CR – ao consagrar o acesso ao direito e aos tribunais sem discriminações derivadas de situação económica dos interessados – com a eficácia das garantias de defesa do arguido em processo penal, tal como asseguradas estão no nº 1 do artigo 32º do mesmo texto – merecendo o convocado enfoque da igualdade uma subsidiária apreciação. O texto constitucional não estabelece a gratuitidade dos serviços de administração da justiça em nenhum dos seus preceitos ou dos princípios dele imanentes. Assim, não lhe é desconforme a exigência de uma contrapartida decorrente da prestação desses serviços e, assim, de resto, o tem entendido a jurisprudência deste Tribunal (…)” Neste conspecto, o despacho sob recurso é de mero expediente porquanto se limita a prover ao andamento regular do processo determinando que o arguido atue em conformidade com o legalmente estabelecido. O facto de ter sido admitido o recurso pelo tribunal de 1.ª instância não vincula este tribunal superior. Assim sendo, tal despacho é irrecorrível, por força do disposto nos art.ºs 400.º, n.º 1, al. a), e 414.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, devendo ser rejeitado, nos termos do art.º 420.º, n.º 1, alínea b), Código de Processo Penal, o que se determina.” Reitera-se o que já acima se expos. Porém, alega, ainda, o reclamante que a norma do art.º 400.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, em conjugação com o art.º 152.º, do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que um despacho que fixa a obrigação de pagamento de uma taxa para aceder às gravações da prova produzida em sede de debate instrutório, considerando-a como despacho de mero expediente, é inconstitucional por violação do princípio da defesa, previsto no art.º 30.º e do acesso aos Tribunais e da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art.º 20.º, n.º 1, da igualdade, consagrado no art.º 13.º, e da proporcionalidade, todos da Constituição da República Portuguesa, violando, além do mais, o direito a um processo justo e equitativo previsto no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Sem razão ao que cremos. Se é intenção do reclamante apontar alguma inconstitucionalidade à decisão da qual reclama, necessário é que se vá além da mera citação de uma norma ou conjunto de normas, sendo necessário que indique o critério normativo cuja sindicância se pretenderia, reportando-o ao específico segmento legal ou conjugação de segmentos legais de que seria extraível, e enunciando-o de tal forma que, caso o Tribunal Constitucional concluísse por um juízo de inconstitucionalidade, pudesse limitar-se a reproduzir tal enunciação, assim permitindo que os destinatários da decisão e os operadores do direito em geral ficassem esclarecidos sobre o específico sentido normativo considerado desconforme à Constituição [acórdão do Tribunal Constitucional n.º 471/24, de 19.06.2024, proferido no processo n.º 1112/2023, disponível em www.dgsi.pt.]. Ou seja, não basta a singela a afirmação de que a decisão violou certos dispositivos da Constituição, exige-se o identificar claramente o preceito legal e que indique o sentido normativo que considera que choca com determinadas normas constitucionais, mormente as citadas, o que claramente o recorrente não faz. Pelo exposto, indefere-se a reclamação deduzida. * 2.3.2. Do recurso propriamente dito 1.ª Questão Decidir se a decisão de pronúncia do arguido é nula, por violar no art.º 309.º, do Código de Processo Penal, por alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura da instrução O Ministério Público, a 01.06.2023, proferiu despacho de arquivamento por entender não existirem indícios da prática pelo arguido S de um crime de falsificação de documento agravada, p. e p. pelo art.º 256.º, n.ºs 1, alínea d), 3 e 4, do Código Penal. Nessa sequência, veio o assistente C requerer a abertura da instrução, considerando existirem indícios da prática pelo arguido de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382.º, do Código Penal, em concurso real com a prática de crime de falsificação de documento agravada, p. e p. pelo art.º 256.º, n.ºs 1, alínea d), 3 e 4, do Código Penal, elencando os seguintes factos: (…………………………..). Em 3 de dezembro de 2024 foi proferido despacho de pronúncia com o teor supra descrito em 1.4.. De antemão diremos que, cotejados o requerimento de abertura da instrução (RAI) e a decisão de pronúncia, entendemos que o primeiro deveria ter sido rejeitado, não o tendo sido, e a segunda é nula por violação do disposto no art.º 309.º, do Código de Processo Penal, por alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura da instrução. Concretizemos. Em processo penal, o regime das nulidades obedece ao princípio da legalidade enunciado no n.º 1, do art.º 118.º, do Código de Processo Penal, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade quando esta for expressamente cominada na lei. Obedecendo ao princípio enunciado, a lei processual penal comina expressamente no art.º 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a nulidade da decisão instrutória “na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”. Dispõe o art.º 303.º, n.º 1, do mesmo código que, “se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução” o juiz comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido, se possível e concede-lhe prazo para a preparação da defesa, se pedido. Este texto permite, objetivamente, retirar duas ilações, a saber, por um lado, que a alteração substancial não pode ser atendida no processo em curso e, por outro lado, que só os factos novos autonomizáveis implicam a sobredita comunicação. Daqui se infere, logicamente, que os factos novos não autonomizáveis não poderão ser, nem valorados, nem comunicados ao Ministério Público. A norma do art.º 1.º, alínea f), do Código de Processo Penal, fornece-nos a definição legal do que seja essa alteração substancial dos factos: “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. Ou seja, a tónica é posta em ambas aquelas normas na imputação ao arguido de crime diverso do acusado ou do que o assistente entende estar indiciado, no RAI, ou na agravação dos limites máximos das penas aplicáveis. Tal noção não é ideologicamente neutra, antes exprimindo o pensamento legislativo que visa assegurar no processo penal a efetividade das garantias de defesa do arguido. Como refere o Exmo. Juiz Conselheiro Henriques Gaspar [in Código de Processo Penal Comentado, de António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires Henriques da Graça, 3.ª Edição Revista, 2021, Almedina, comentário 10 ao artigo 1.º, p. 16], “A vinculação temática ao objeto da acusação constitui uma garantia de defesa, para impedir alterações do objeto do processo que possam inviabilizar ou prejudicar de modo desrazoável a defesa do arguido; o objeto da acusação deve, por isso, manter-se essencialmente idêntico até à decisão final por forma a assegurar as garantias de defesa do arguido, que não deve ser surpreendido por factos ou circunstâncias novos, diferentes dos que constam da acusação, e que não tenha podido considerar na preparação e organização da sua defesa.” Da estrutura acusatória do processo, com assento constitucional, decorre que impende sobre o acusador a exposição total do facto que imputou ao arguido. É ao acusador (seja em inquérito, seja em instrução), e só a ele, que cabe a iniciativa da definição do objeto da acusação e do processo. Ou seja, no requerimento de abertura de instrução o assistente está obrigado, sob pena de rejeição, a fazer uma descrição contendo os factos concretos (se possível, localizados no tempo e no espaço) suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal que considere mostrar-se preenchido. Sendo, porém, o sistema do Código de Processo Penal de acusatório impuro ou de acusatório mitigado por um princípio da investigação (oficiosa, pelo juiz, art.º 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) de modo a viabilizar nos limites do possível (com a salvaguarda das garantias de defesa) a averiguação da verdade material e a boa decisão da causa, o juiz pode intervir excecionalmente na narrativa dos factos da acusação ou do requerimento para a abertura da instrução, reformatando-os ou mesmo acrescentando-os. Essa reconformação da acusação ou do RAI, quando de uma real alteração de factos se trate, opera-se por via dos mecanismos previstos nos art.ºs 358.º e 359.º, do Código de Processo Penal. Os dois normativos servem simultaneamente as finalidades do processo penal e os direitos de defesa do arguido. Como se refere no acórdão do TRC, de 16.11.2016, relatado por Maria Pilar de Oliveira [acessível em www.dgsi.pt] que, por esclarecedor, se transcreve que “a exigência legal de que o requerimento de instrução contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se aos elementos objectivos e também subjectivos do crime imputado, posto que não existe crime/responsabilidade penal sem que todos eles se encontrem preenchidos. A exigência da descrição dos factos no requerimento de instrução do assistente radica na circunstância de este, partindo de um despacho de arquivamento do inquérito, dever fixar o objecto do processo, dentro do qual se moverá a actividade do juiz de instrução a quem é vedado alterar os factos alegados, fora das excepções previstas no artigo 303.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Mas, por outro lado e de capital importância, o requerimento de instrução é a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, o exercício do direito de defesa (cfr. Prof. Germano Marques, Curso de Processo Penal III, pag. 141). Em última análise o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo (cfr. artigo 32º, nº 1 e nº 5 da CRP). O disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal é, portanto, uma decorrência necessária da própria constituição. Porque assim é, tem sido entendido que o requerimento de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, deve ser objecto de rejeição por inadmissibilidade legal desta, nos termos conjugados dos artigos 287º, nº 2 e nº 3 e 283º, nº 3, b) do Código de Processo Penal, não podendo o juiz de instrução intrometer-se de qualquer modo na delimitação do objecto do processo no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da instrução”. O senhor juiz de instrução comunicou aos sujeitos processuais, como acima se deixou expresso, uma alteração/aditamento de factos sem fazer referência à distinção entre alteração não substancial dos factos descritos no RAI e alteração substancial dos factos descritos no RAI apresentado pelo assistente. Lendo atentamente a decisão instrutória de pronúncia do arguido, salta à vista que estamos perante alteração substancial dos factos descritos no RAI, quer relativamente aos factos integrativos do elemento objetivo do tipo, quer aos subjetivos, dos crimes de falsificação ou contrafação de documento, p. e p. no art.º 256.º, n.º 1, alínea d), n.º 3 e 4, e de abuso de poder, p. e p. no art.º 382.º, ambos do Código Penal. O RAI é omisso em relação aos elementos objetivos dos crimes em causa, limitando-se a considerações genéricas sobre a consciência da ilicitude, e não contém factos concretos que permitam preencher o elemento subjetivo dos crimes de falsificação e abuso de poder. Os factos indicados sob 7. a 10. da decisão de pronúncia não constam do RAI, os quais são factos estruturantes do crime de abuso de poder. O mesmo se diga relativamente à matéria constante dos pontos 16. a 21. do RAI que correspondem ao elemento subjetivo dos crimes e que, igualmente, não se mostram vertidos naquela peça processual. Estamos, assim, perante uma nulidade da decisão de pronúncia, nos termos do art.º 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura da instrução, o que se determina. Em face do decidido, fica prejudicada a apreciação das restantes questões que foram suscitadas no recurso. ** III – DECISÃONestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 2.ª Subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em declarar nula a decisão de PRONÚNCIA do arguido S, nos termos do art.º 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura da instrução, pela prática de crimes de falsificação ou contrafação de documento, p. e p. no art.º 256.º, n.º 1, alínea d), n.º 3 e 4, e de abuso de poder, p. e p. no art.º 382.º, ambos do Código Penal. Sem custas. Notifique. ** O presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos seus signatários – art.º 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Évora, 30 de setembro 2025 Maria José Cortes Renato Barroso Beatriz Marques Borges |