Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | ANA MARGARIDA LEITE | ||
| Descritores: | SIGILO PROFISSIONAL DISPENSA IMPRESCINDIBILIDADE | ||
| Data do Acordão: | 10/30/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | I – Em incidente de levantamento do sigilo profissional de advogado, a apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da factualidade controvertida que se pretende demonstrar com recurso ao depoimento em causa, cujo conhecimento pela testemunha se encontra abrangido pelo sigilo profissional invocado, bem como a relevância de tal depoimento, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios de prova de tal factualidade; II – Não tendo sido indicada a matéria que se pretende provar com o depoimento em causa, nem a eventual inexistência de outros meios probatórios ou qualquer elemento relativo à relevância do depoimento abrangido pelo sigilo profissional, não poderá a Relação considerar verificados os critérios dos quais faz a lei depender o levantamento do sigilo profissional. (Sumário da Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 268/15.8T8GDL-E.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal Juízo Local Cível de Grândola Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: 1. Relatório O presente incidente de levantamento do sigilo profissional foi suscitado no âmbito da ação declarativa, com processo comum, que corre termos sob o apenso A, movida por (…) – entretanto falecida, tendo sido habilitados (…) e (…) – contra (…), em que é peticionada a condenação da ré a restituir a quantia de € 49.000,00 que, em 19 de abril de 2012, abusivamente e sem autorização prévia da autora, retirou da Caixa Geral de Depósitos, da conta com o PT (…) e respetivos juros que se terão vencido desde aquela data até à data da restituição. A ré contestou, tendo indicado, entre outros meios de prova, como testemunha o Dr. (…), advogado com domicílio profissional em Setúbal, que se escusou a depor na audiência final, mediante a invocação de segredo profissional, esclarecendo que conheceu ambas as partes no âmbito da sua atividade profissional e que tomou conhecimento, no exercício da sua profissão de advogado, de factos relevantes para os presentes autos, acrescentando que solicitou à Ordem dos Advogados dispensa do sigilo profissional. Por despacho constante da ata de 12-03-2025, concluiu-se pela legitimidade da escusa e ordenou-se a subida do incidente a esta Relação, nos termos seguintes: Veio a testemunha (…) invocar, em síntese, que tomou conhecimento, no exercício da sua profissão de advogado, de factos relevantes para o presente processo, o que resultou, não apenas, mas também, do contacto que estabeleceu diretamente com a sua constituinte (aqui Ré) e também com a autora (…), já falecida. Ouvidos os Ilustres Mandatários ao Tribunal afigura-se que se deverá considerar legítima a escusa apresentada, pelo que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 497.º, n.º 3 e 417.º, n.º 4, do Código de Processo Civil e do artigo 135.º do Código de Processo Penal, determino que se gere um apenso, se possível com a espécie de quebra de sigilo instruído com cópia dos articulados e da presente ata (incluindo a sua gravação áudio) e se remeta ao Tribunal da Relação de Évora a fim de se decidir da prestação de testemunho com a quebra de segredo profissional à luz do artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. Por decisão singular proferida por esta Relação em 26-04-2025 no apenso D, foi indeferido liminarmente o incidente de levantamento de sigilo profissional, pelos motivos seguintes: (…) pese embora formulado pela testemunha, advogado de profissão, o pedido de dispensa do sigilo junto do Sr. Presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados, este ainda não se tinha pronunciado, emitindo o seu parecer sobre tal pedido de dispensa, até ao momento em que o presente apenso foi tramitado e recebido por este Tribunal da Relação para ser apreciado. Embora o sentido do parecer em apreço não seja vinculativo do sentido da decisão judicial, trata-se, nos termos da remissão contida no n.º 4 para o n.º 2, ambos do artigo 135.º do CPP, de um elemento sem o qual, uma vez solicitado pela própria testemunha, o tribunal não pode tomar posição sobre a suscitada quebra do sigilo profissional. O que bem se compreende porque, tendo sido dirigido pela testemunha ao órgão da ordem profissional com competência para o dispensar desse mesmo sigilo (cfr. n.º 4 do artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados e n.º 2 do artigo 2.º e n.ºs 2 e 3 do artigo 5.º, ambos do Regulamento n.º 94/2006, de 12 de Junho, Reg. de Dispensa de Segredo Profissional) este, sopesados os motivos invocados, pode autorizar o Dr. (…) a testemunhar sobre os factos controvertidos. Se, dispensado que seja do sigilo profissional pelo Presidente do Conselho Distrital da O.A., o Dr. (…) testemunhar sobre os factos em discussão nos autos, não haverá sequer fundamento para o tribunal de 1ª instância tomar posição sobre a legitimidade de uma recusa inexistente nem, consequentemente, para suscitar o incidente de levantamento do sigilo junto do tribunal superior. Tendo sido omitida a realização de um elemento procedimental que é pressuposto da tramitação do presente incidente (cfr. n.ºs 2 e 4 do artigo 135.º do CPP e n.º 4 do artigo 417.º do CPC), impõe-se o seu indeferimento liminar por verificação de excepção dilatória inominada, insusceptível de suprimento pelo Tribunal da Relação (cfr. artigos 590.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º e 578.º, todos os CPC). Por ofício de 19-08-2025, a Ordem dos Advogados informou que indeferiu o pedido de dispensa do sigilo profissional formulado pelo Sr. Advogado, Dr. (…), para depor como testemunha nos presentes autos. Por despacho proferido pela 1ª instância em 06-10-2025, concluiu-se pela legitimidade da escusa e ordenou-se a subida do incidente a esta Relação, com invocação do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. 2. Pressupostos processuais Este Tribunal da Relação é o competente para a apreciação e decisão do incidente de levantamento do sigilo profissional. Não existem nulidades ou quaisquer exceções de que cumpra conhecer, nada obstando à apreciação do mérito da causa. 3. Fundamentos 3.1. Tramitação processual Os elementos com relevo para a apreciação da questão suscitada constam do relatório supra. 3.2. Fundamentos de direito Está em causa, no presente incidente, apreciar se deve ser determinado o levantamento do sigilo profissional invocado por advogado, arrolado como testemunha pela ré, como fundamento da respetiva escusa a prestar depoimento na audiência final. Com a epígrafe Dever de cooperação para a descoberta da verdade, dispõe o n.º 1 do artigo 417.º do Código de Processo Civil o seguinte: Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. Prevê o n.º 2 do indicado preceito, além do mais, a condenação em multa daqueles que recusem a colaboração devida. Acrescenta o n.º 3, por seu turno, que a recusa é, porém, legítima se a obediência importar, entre outras situações, a prevista na alínea c): a violação do sigilo profissional. Esclarece o n.º 4 que, deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado. Como tal, deduzida a escusa com fundamento na violação do sigilo profissional, cumpre atender, por força do estatuído no n.º 4 do citado artigo 417.º, ao disposto no artigo 135.º do Código de Processo Penal, designadamente às normas constantes dos seus n.ºs 2 e 3, com a redação seguinte: 2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. Acrescenta o n.º 4 deste preceito o seguinte: 4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável. O Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2008, datado de 13-02-2008 – publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 63 (31-03-2008) –, fixou a seguinte jurisprudência: 1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário; 2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal; 3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo. Extrai-se da análise deste regime, e conforme decorre do citado AUJ, que compete ao tribunal perante o qual a escusa, com fundamento na violação do sigilo profissional, for invocada, apreciar a legitimidade da recusa, averiguando da existência de sigilo. De seguida, caso conclua pela inexistência de sigilo e, assim, pela ilegitimidade da escusa, compete-lhe ordenar a prestação do depoimento; se, pelo contrário, considerar legítima a escusa, por se encontrar matéria em causa abrangida pelo dever de sigilo, haverá lugar ao incidente de quebra de segredo profissional. Cabe, assim, ao tribunal de 1.ª instância decidir da legitimidade da escusa, procedendo, para o efeito, às averiguações tidas por necessárias e ouvindo previamente, conforme impõe o n.º 4 do artigo 135.º do CPP, o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável. Estando em causa o sigilo profissional de advogado, há que atender ao estatuído no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09-09), com a epígrafe Segredo profissional, o qual dispõe, no n.º 1, que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente, entre outras situações previstas nas várias alíneas do preceito, a factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste – alínea a) – e a factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio – alínea e). Esclarece o n.º 2 do mencionado artigo que a obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço. Permite o n.º 4 do citado artigo, ao advogado, revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento. O n.º 5 do preceito, por seu turno, dispõe que os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo. O presente incidente de levantamento do sigilo profissional foi suscitado quanto ao Sr. Advogado Dr. (…), arrolado como testemunha pela ré e que se recusou a depor na audiência final, invocando o sigilo profissional, sendo certo que a Ordem dos Advogados não autorizou a revelação de factos abrangidos pelo segredo profissional, tendo indeferido o pedido de dispensa do sigilo profissional formulado. Por despacho proferido pela 1.ª instância em 06-10-2025, após comunicação da decisão da Ordem dos Advogados, concluiu-se pela legitimidade da escusa e ordenou-se a subida do incidente a esta Relação, com invocação do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP. Analisando a tramitação do incidente, verifica-se que a 1.ª instância não indicou a matéria de facto previsivelmente do conhecimento da testemunha e abrangida pelo sigilo profissional, nem algum elemento que permita apreciar a relevância da prestação de tal depoimento, o que não é suprido por qualquer alegação das partes, sendo certo que o incidente foi oficiosamente suscitado. Ora, decorre do disposto no citado artigo 135.º do CPP, ao qual cumpre atender por força do n.º 4 no artigo 417.º do CPC, que é de admitir o levantamento do segredo profissional sempre que tal se mostre justificado, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do meio de prova em causa para a descoberta da verdade. Afirmam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 492) o seguinte: “cabe ao tribunal superior decidir se poderá justificar-se a quebra de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, parametrizado pela imprescindibilidade do depoimento / informação para a descoberta da verdade e pela necessidade de proteção de bens jurídicos”. Explica Luís Filipe Pires de Sousa (Prova Testemunhal, 2016 – reimpressão, Coimbra, Almedina, pág. 246) o seguinte: “A decisão final sobre a justificação da escusa invocada pela testemunha pautar-se-á sempre pelo princípio da proibição do excesso. O segmento da norma do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, que apela à “imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade”, constitui, de per si, uma concretização do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo”. A apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da factualidade controvertida que se pretende demonstrar com recurso ao depoimento em causa, cujo conhecimento pela testemunha se encontra abrangido pelo sigilo profissional invocado, bem como a relevância de tal depoimento, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios de prova de tal factualidade. Neste sentido, cfr. o acórdão desta Relação de 09-11-2017 (relatora: Isabel Imaginário) proferido no processo n.º 842/11.1TBVNO-B.E1 (publicado em www.dgsi.pt), no qual se entendeu o seguinte: “o dever de segredo deve ceder, por prevalência do interesse do acesso ao direito e da descoberta da verdade material, com vista à realização da justiça, desde que se apure que a pretendida informação é instrumentalmente determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade controvertida”. No caso presente, desconhece-se a matéria que se pretende provar com o depoimento em causa ou a eventual inexistência de outros meios probatórios, considerando que não foi indicada a factualidade previsivelmente do conhecimento da testemunha e abrangida pelo sigilo profissional, nem qualquer elemento relativo à relevância do depoimento em causa. Assim sendo, não poderá esta Relação considerar verificados os critérios dos quais faz a lei depender o levantamento do sigilo profissional, o qual se não poderá decretar. Neste sentido, cfr. o acórdão da Relação de Coimbra de 04-03-2015 (relator: Vasques Osório), proferido no processo n.º 60/10.6TAMGR-A.C1 (publicado em www.dgsi.pt), no qual se concluiu o seguinte: “- A imprescindibilidade do depoimento de testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial à densificação do princípio da prevalência do interesse preponderante a actuar pelo tribunal com vista à decisão sobre a quebra do segredo; - No requerimento que deu origem ao presente incidente não foram indicados os factos, eventualmente conhecidos pela testemunha e cobertos pelo segredo profissional de Advogado, susceptíveis de demonstrarem a absoluta necessidade ou imprescindibilidade do seu depoimento; - Por isso, não existe razão objectiva para que, feita a ponderação dos interesses conflituantes com os elementos disponíveis, deva ser quebrado aquele segredo”. No caso presente, mostrando-se inviável, pelos motivos expostos, o preenchimento dos requisitos de que depende o levantamento do sigilo profissional, cumpre indeferir o incidente, o que não impede a eventual dedução de novo incidente devidamente fundamentado, se assim vier a ser entendido. Em conclusão: (…) 4. Decisão Nestes termos, acorda-se em indeferir o incidente de levantamento do sigilo profissional. Sem custas. Notifique. Évora, 30-10-2025 (Acórdão assinado digitalmente) Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora) Maria Emília Melo e Castro (1ª Adjunta) Maria Domingas Simões (2ª Adjunta) |