Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | FRANCISCO XAVIER | ||
Descritores: | ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA CONTRATO DE ARRENDAMENTO INEFICÁCIA | ||
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Data do Acordão: | 10/25/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I- Na acção de reivindicação, em face das regras do ónus da prova, tem o autor o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou na detenção do demandado, mas é sobre o réu que recai, se for o caso, o ónus de provar que é titular de um direito que legitima a recusa da restituição. II- O contrato de arrendamento celebrado por quem não tem legitimidade para o celebrar, por a coisa lhe não pertencer, nem deter qualquer título para dispor ou administrar o bem, é ineficaz em relação ao verdadeiro titular do bem. III- Assim, e não resultando provado que o anterior titular do imóvel, ou o actual titular, tenham reconhecido o direito ao arrendamento invocado pelo réu, facto que a este competia provar, não tem o réu título que o legitime a manter-se na posse ou detenção da coisa, estando obrigado à entrega da mesma. (Sumário elaborado pelo relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Recurso de Apelação n.º 2973/21.0T8PTM.E1 Acórdão da ... Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora I – Relatório 1. EMP01..., Lda., intentou acção comum contra AA, pedindo, com fundamento na ocupação abusiva do imóvel de sua pertença pelo R., que seja julgada procedente a acção e, em consequência:i) Reconhecido à Autora o direito de propriedade sobre a fracção ..., do prédio urbano sito na Estrada ..., ..., ..., ... Local 1, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., Freguesia ..., sob o n.º ...26..., com o artigo matricial ...98; ii) O Réu condenado a restituir à Autora a posse da Fracção Autónoma, procedendo à sua desocupação imediata, integralmente livre de pessoas e de bens; iii) O Réu condenado a indemnizar a Autora pelos prejuízos decorrentes da privação do direito de propriedade sobre a Fracção Autónoma, desde 20 de Novembro de 2019 até 17 de Dezembro de 2021, no valor de EUR 20.858,06 (vinte mil, oitocentos e cinquenta e oito euros e sessenta e seis cêntimos); iv) O Réu condenado a indemnizar a Autora pelos prejuízos decorrentes da privação do direito de propriedade sobre a Fracção Autónoma, desde 18 de Dezembro de 2021 até à desocupação imediata, integralmente livre de pessoas e de bens, à razão do valor diário de EUR 27,60 (vinte e sete euros e sessenta cêntimos). 2. O R. contestou, alegando que se encontra a ocupar a referida fracção, em virtude de contrato de arrendamento celebrado, desde o início de 2014 e pagando renda. Considerou ainda que mesmo que se entendesse ter caducado o direito ao abrigo do qual tinha sido celebrado o contrato de locação consigo, a A. não tinha feito extinguir o contrato atempadamente por esse motivo, tendo-se o mesmo renovado. Concluiu pela improcedência da acção e por considerar que a A., ao pretender desalojá-lo ilicitamente, se comportou por forma a causar-lhe danos não patrimoniais, advenientes de pesadelos, insónias e ataques de pânico, pelo receio de perder a sua habitação. Como tal, formulou pedido reconvencional, com base em danos não patrimoniais, no montante de € 10.000,00. 3. A A. replicou, mantendo o por si alegado na p.i. e pugnando pela improcedência da reconvenção. 4. Teve lugar a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador e admitida a reconvenção, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova. Realizada a audiência final, veio a ser proferida sentença, na qual se decidiu: «… o tribunal julga a presente acção parcialmente procedente e: i) declara reconhecido à Autora o direito de propriedade sobre a fracção ..., do prédio urbano sito na Estrada ..., ..., ..., ... Local 1, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., Freguesia ..., sob o n.º ...26..., com o artigo matricial ...98; ii) condena o Réu a restituir à Autora a posse da Fracção Autónoma, procedendo à sua desocupação imediata, integralmente livre de pessoas e de bens; iii) condena o Réu a indemnizar a Autora pelos prejuízos decorrentes da privação do direito de propriedade sobre a Fracção Autónoma, desde 20 de Novembro de 2019 até a 7 de Dezembro de 2021, no valor de € 9.826,60 (nove mil, oitocentos e vinte e seis euros e sessenta cêntimos); iv) condena o Réu a indemnizar a Autora pelos prejuízos decorrentes da privação do direito de propriedade sobre a Fracção Autónoma, desde 8 de Dezembro de 2021 até ao trânsito da presente decisão, ou à desocupação da mesma se for anterior, à razão mensal de € 400. Absolve-se o R. do demais contra o mesmo peticionado Julga-se improcedente a reconvenção e absolve-se a A. do pedido reconvencional.» 5. Inconformado veio o R. interpor o presente recurso, que motivou, sustentando a sua pretensão de revogação da sentença nas seguintes conclusões: I) Mmos. Juízes Desembargadores, o requerente nestes autos, discorda totalmente da decisão neles tirada pela Senhora Juiz do [tribunal] a quo, e, por isso, vem dela apelar. II) Discorda-se da decisão sobre a matéria de direito, mais exactamente da decisão, restituir à Autora a posse da Fracção Autónoma, procedendo à sua desocupação imediata, integralmente livre de pessoas e de bens; condenar o Réu a indemnizar a Autora pelos prejuízos decorrentes da privação do direito de propriedade sobre a Fracção Autónoma, desde 20 de Novembro de 2019 até a 7 de Dezembro de 2021, no valor de € 9.826,60 (nove mil, oitocentos e vinte e seis euros e sessenta cêntimos); condenar o Réu a indemnizar a Autora pelos prejuízos decorrentes da privação do direito de propriedade sobre a Fracção Autónoma.” III) Esta decisão da Senhora Juiz, para além de infundamentada, contradisse o que, havia sido por si dado por provado em sede de “matéria de facto dada por provada nos pontos 22, 23 e 24, que se pede vénia para aqui serem dados por inteiramente reproduzidos, para todos os legais efeitos. IV) O facto de, sem fundamentos, ter sido tirada uma decisão de deferimento desta acção de restituir à Autora a posse da Fracção Autónoma, procedendo à sua desocupação imediata, integralmente livre de pessoas e de bens; condenar o Réu a indemnizar a Autora pelos prejuízos decorrentes da privação do direito de propriedade sobre a Fracção Autónoma, desde 20 de Novembro de 2019 até a 7 de Dezembro de 2021, no valor de € 9.826,60 (nove mil, oitocentos e vinte e seis euros e sessenta cêntimos); condenar o Réu a indemnizar a Autora pelos prejuízos decorrentes da privação do direito de propriedade sobre a Fracção Autónoma, em sede de julgamento da matéria de facto, tonou-a ininteligível, por ambígua, V) O que implica que agora se requeira, a V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, que determinem a anulação desta sentença, e a sua substituição por outra que, harmonizando-se com os factos provados e não provados, indefiram os pedidos da A. VI) O bem sublocado ao Réu, coisa alheia, não obstante já não pertencer ao locador ao tempo da locação, implica a existência da natureza meramente obrigacional do contrato de arrendamento, a circunstância do senhorio não deter legitimidade, segundo a lei substantiva, para dar de arrendamento o arrendado, o qual não determina a invalidade do contrato, pelo que o contrato de arrendamento de coisa alheia é válido. VII) Pelas mesmas razões, e caso V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, não entendam acolher quanto anteriormente foi requerido, devem então, frente à já enfatizada ininteligibilidade da sentença comentada, decorrente da matéria por si mesma dada por provada e não provada, à luz do disposto na al. c) do nº1 do art. 615º do NCPC, declarar, com todos os legais efeitos, a nulidade da mesma decisão. 6. Não houve contra-alegações. 7. O recurso foi admitido, tendo o Mmo. Juiz a quo emitido o despacho previsto no n.º 1 do artigo 617º do Código de Processo Civil, pronunciando-se no sentido da inexistência da nulidade imputada à sentença. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. * O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.II – Objecto do recurso Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões: (i) Da nulidade da sentença; e (ii) Se ocorre fundamento para revogação da decisão recorrida. * A) - Os FactosIII – Fundamentação Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos: 1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de bens imóveis e à revenda dos adquiridos para esse fim (resposta ao artº 1º da p.i.). 2. A Autora é dona da fracção ... (com a área total de 95,20 m2), do prédio urbano sito na Estrada ..., ..., ..., ... Local 1, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., Freguesia ..., sob o n.º ...26..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial ...98, da mesma freguesia (resposta aos artºs 2º e 33º da p.i.). 3. Em 1998, por escritura pública, BB adquiriu à empresa “HETE IMÓVEIS, S.A.” o lote de terreno onde seria edificado o referido Prédio (resposta ao artº 3º da p.i.). 4. No dia 26 de Março de 2007, e na sequência da conclusão da construção do edifício no Prédio, o mesmo foi constituído em propriedade horizontal, passando a ser composto por 13 fracções autónomas, entre as quais a Fracção Autónoma (“F”), que constitui objecto da presente acção (resposta ao artº 4º da p.i.). 5. No dia 15 de Janeiro de 2009, o “BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A.” adquiriu a Fracção Autónoma a BB, a título de compra (resposta aos artºs 5º e 41º da p.i.). 6. No dia 2 de Fevereiro de 2009, o “BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A.” celebrou com a “VARANDOTEIS – GESTÃO ESTABELECIMENTOS HOTELEIROS, LDA.” um contrato de locação financeira, com prazo de 15 anos, tendo por objecto a Fracção Autónoma aqui em discussão (resposta ao artº 6º da p.i.). 7. Após a celebração do referido contrato de locação financeira, a “VARANDOTEIS – GESTÃO ESTABELECIMENTOS HOTELEIROS, LDA.” celebrou um contrato de sublocação da Fracção Autónoma com a empresa “ALGARTEMÁTICO – GESTÃO E INOVAÇÃO TURÍSTICA, S.A.” (resposta ao artº 7º da p.i.). 8. Em 2013, o contrato de locação financeira celebrado entre ao “BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A.” e a “VARANDOTEIS – GESTÃO ESTABELECIMENTOS HOTELEIROS, LDA.” cessou, razão pela qual foi cancelado o respectivo registo daquele contrato de locação financeira em 5 de Setembro de 2013 (resposta ao artº 8º da p.i.). 9. Na sequência da transferência de património por medida de resolução deliberada pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal, em reuniões de 03 de Agosto e de 28 de Outubro de 2014, a Fracção Autónoma foi registada a favor do “NOVO BANCO, S.A.”, por aquisição, em 16 de Junho de 2015 (resposta ao artº 10º da p.i.). 10. Em 7 de Novembro de 2019, a aqui Autora adquiriu, por Escritura de Compra e Venda, a Fracção Autónoma ao “NOVO BANCO, S.A.”, encontrando-se a propriedade da Fracção Autónoma registada, desde então, a favor da Autora (resposta ao artº 11º da p.i.). 11. A Autora, por si e por ante possuidores, sempre exerceu a posse, antes sobre o terreno no qual foi construído o edifício onde a fracção se inclui e, entretanto, sobre aquela, desde há mais de 30 anos, procedendo a limpeza, manutenção e reparação, fazendo obras, pagando os respectivos impostos, taxas e contribuições e tudo isso de forma pública e pacífica, à vista de todos e na convicção de que não violavam direitos de terceiro (resposta aos artºs 13º a 22º e 44º da p.i.). 12. Em Agosto de 2019, atendendo à futura aquisição da propriedade da Fracção Autónoma, a Autora, através de prestadores de serviços contratados para o efeito, deslocou-se à Fracção Autónoma a fim de verificar o estado de ocupação (resposta ao artº 23º da p.i.). 13. Aquando da referida deslocação, a Autora constatou que a Fracção Autónoma se encontrava ocupada pelo aqui Réu, ainda que não tenha conseguido na altura obter a sua identificação (resposta ao artº 24º da p.i.). 14. Perante esta situação, foi apresentada no dia 30 de Julho de 2020, uma notificação judicial avulsa, cujo processo correu termos no Juízo Local Cível ..., sob o n.º 1855/20.0T8FAR, na qual a Autora interpelou a última ocupante conhecida – a “ALGARTEMÁTICO – GESTÃO E INOVAÇÃO TURÍSTICA, S.A.” – por forma a promover a desocupação da Fracção Autónoma (resposta ao artº 25º da p.i.). 15. Sendo que, naquela data, a Autora desconhecia, ainda, os dados de identificação do Réu (resposta ao artº 26º da p.i.). 16. A notificação judicial avulsa foi concretizada no dia 13 de Setembro de 2020, pela Senhora Agente de Execução CC, tendo então como requerida a anterior sublocatária da Fracção Autónoma, a “ALGARTEMÁTICO – GESTÃO E INOVAÇÃO TURÍSTICA, S.A.”, apurando que a Fracção Autónoma estaria ocupada (resposta ao artº 27º da p.i.). 17. Nessa sequência, e tendo a Autora logrado obter os elementos de identificação do Réu, foi apresentada uma nova notificação judicial avulsa, desta feita dirigida ao Réu, interpelando-o a desocupar a Fracção Autónoma em causa (resposta ao artº 28º da p.i.). 18. Apesar de notificado, o Réu não desocupou a Fracção Autónoma e, por isso, no dia 8 de Março de 2021, a Autora enviou-lhe uma carta, na qual reiterou a necessidade de desocupação da Fracção Autónoma, a qual se encontra junta como documento nº 12 da p.i. (resposta aos artºs 29º e 30º da p.i.). 19. Não obstante aquela última comunicação escrita, actualmente o Réu continua a ocupar a Fracção Autónoma (resposta ao artº 31º da p.i.). 20. A Autora efectuou pesquisa no site “Idealista” e, de acordo com os dados do motor de pesquisa do mesmo, disponível em https://www.idealista.pt/, a média do valor, por metro quadrado, de arrendamentos de imóveis no Município ..., Freguesia ..., nos meses de Setembro a Novembro de 2021, variou entre EUR 9,10/m2, EUR 8,70/m2 e EUR 8,70/m2, correspondente a uma média de EUR 8,83 (oito euros e oitenta e três cêntimos) por metro quadrado (resposta ao artº 32º da p.i.). 21. A fracção ocupada pelo réu foi-lhe dada de arrendamento por meio de contrato escrito celebrado com a sociedade Algartemático – Gestão e Inovação Turística, SA, pessoa colectiva ...18, com sede na Rua ..., ..., ..., ... Local 1, denominado “contrato de sublocação comercial” em 19 de Fevereiro de 2015, pela renda de € 400, contrato esse junto como documento nº 1 da contestação, sendo ainda que o R., ao longo do tempo, foi pagando a renda (resposta aos artºs 10º a 12º e 17º da contestação). 22. Nesse contrato é referido, nomeadamente, que: i) a Algartemático outorga na qualidade de sublocatária da Varandotéis; ii) a Varandotéis é a locatária financeira do contrato de locação financeira celebrado com o Banco espírito Santo; iii) o local sublocado se destina “à actividade constante do objecto social da segunda outorgante”; iv) a “segunda outorgante” é o réu (documento nº 1 da contestação e resposta aos artºs 10º a 12º e 17º da contestação). 23. O réu nunca recebeu qualquer comunicação de que o contrato de arrendamento celebrado tivesse cessado, razão pela qual se manteve no imóvel (resposta ao artº 16º da contestação). 24. O réu, com o comportamento da autora, tem andado nervoso, receando perder a sua habitação (resposta aos artºs 49º, 50º, 52º, 53º, 57º e 58º da contestação). * B) – O Direito1. O R. discorda da sentença, invocando que foi proferida decisão de condenação sem fundamentos, em contradição com os pontos 22, 23 e 24 dos factos provados, o que a torna ininteligível, por ambígua. Vejamos: 2. A necessidade de fundamentação de facto e de direito da generalidade das decisões judiciais constitui corolário do princípio do Estado de Direito e do papel criador e aplicador do direito desempenhado pelos tribunais. Em face do preceituado no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Esta disposição legal está em consonância com o disposto no n.º 1 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, que impõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei, e com a consagração na lei ordinária do mesmo dever de fundamentação, por via da expressa previsão do n.º 1 do artigo 154.º do Código de Processo Civil, de acordo com o qual “[a]s decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, e, bem assim, com o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, como uma componente essencial da garantia a um processo equitativo (cf. artigo 20º, nº 4, da Lei Fundamental). A fundamentação das decisões, quer de facto, quer de direito, proferidas pelos tribunais estará viciada caso seja descurado o dever de especificar os fundamentos decisivos para a determinação da sua convicção, já que a opacidade nessa determinação sempre colocaria em causa as funções que estão ínsitas na motivação da decisão, ou seja, permitir às partes o eventual recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação em causa e, simultaneamente, permitir o controlo dessa decisão, colocando o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos seguros, um juízo concordante ou divergente. Daí que, na elaboração da sentença e na parte respeitante à fundamentação, deve o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final (cf. artigo 607º, nº 3, do Código de Processo Civil). Porém, como é pacífico, o vício de falta de fundamentação, previsto na alínea b) do n.º 1 da alínea b) do artigo 615º do Código de Processo Civil, só ocorre quando houver falta absoluta dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, incompleta, não convincente, medíocre ou até errada, porquanto essa situação determinará a sua revogação ou alteração por via de recurso, quando o mesmo for admissível, mas não a respectiva nulidade. 3. No que se reporta à nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, a mesma ocorre quando na sentença “os fundamentos estejam em oposição com a decisão, ou ocorra ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”. A nulidade prevista na 1.ª parte da alínea c) do referido preceito legal remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os fundamentos. Porque assim é, as nulidades da decisão são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento, que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável. Nesta última situação, o tribunal fundamenta a decisão, mas decide mal; resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito. Quanto à nulidade prevista na 2ª parte da norma, por ambiguidade ou obscuridade da decisão, a mesma ocorre quando alguma passagem da decisão se preste a diferentes interpretações, ou quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível. 4. No caso em apreço, basta ler a sentença para se verificar que a decisão tomada, que se reporta à procedência do pedido de reivindicação e indemnização pela privação de uso do imóvel, e, bem assim, quanto à improcedência da reconvenção, está fundamentada de facto e de direito, com indicação das concretas razões de facto e de direito que presidiram à prolação da decisão recorrida. Efectivamente, constam da sentença os fundamentos de facto e de direito que fundamentam a procedência da pretensão de reivindicação do imóvel formulada pela A., com a consequente entrega da coisa, por verificação dos requisitos de que depende a procedência da acção de reivindicação, nos termos do artigo 1311º do Código Civil, posto que se concluiu que a A. era a proprietária do imóvel e, que o R., embora tivesse a posição de “sublocatário” do mesmo bem, este contrato, ainda que válido entre os contraentes, não era oponível à A., por ter sido celebrado por entidade, na qualidade de senhoria, que deu em sublocação o imóvel do qual já não era locatária, consubstanciando locação de coisa alheia. Também o pedido de indemnização pela privação de uso se encontra fundamentado, com referência aos factos provados e à conduta de ocupação ilícita por parte da A., subsumível à previsão do artigo 483º do Código Civil, invocando-se orientação maioritária na jurisprudência quanto à fixação de tal indemnização, sendo que a improcedência da reconvenção decorreu da inexistência de conduta ilícita da A. de que resultasse a prática de acto ilícito. Por conseguinte, temos por manifesto não ocorrer a apontada nulidade por falta de fundamentação. 5. Quanto à nulidade por contradição entre os factos provados e a decisão e por ambiguidade da decisão, não vemos em que consiste a alegada contrariedade entre a fundamentação de facto – em concreto a constante dos pontos 22, 23 e 24, que se reportam, os dois primeiros, ao contrato de sublocação celebrado entre o R. e a “Algartemático”, e, o terceiro, aos constrangimentos sofridos pelo R., por receio de perder a sua habitação –, e a decisão tomada. A este respeito, apenas se surpreende na alegação a seguinte transcrição do texto decisório, da página 10 da sentença: «Poderá dizer-se com alguma segurança que a tese prevalecente é a de que a natureza meramente obrigacional do contrato de locação pressupõe a validade da locação ou do arrendamento de coisa alheia. É o que vem referido, designadamente, no acórdão da Relação de Lisboa de 10 de Outubro de 2019 (relator: João Vaz Gomes), disponível, como os demais que sem outra menção se citarão, em www.dgsi.pt: Embora não exista unanimidade doutrinária e jurisprudencial a este propósito, na esteira dos ensinamentos de Henrique Mesquita (RLJ, 125, 100, nota 1), Almeida Costa e Aragão Seia (Arrendamento Urbano, Almedina, 6.ª edição, págs. 78 a 81 e 105), entendemos que dada a natureza meramente obrigacional do contrato de arrendamento, a circunstância do senhorio não deter legitimidade, segundo a lei substantiva, para dar de arrendamento o arrendado, não determina a invalidade do contrato, pelo que o contrato de arrendamento de coisa alheia é válido.» Se bem percebemos, pretenderá o recorrente invocar a existência de contradição entre a decisão de entrega da coisa reivindicada e a fundamentação acima invocada, onde se acolheu o entendimento de que o contrato de coisa alheia é válido. Porém, não existe qualquer nulidade por contradição, ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Efectivamente, como diz o Mmo. Juiz a quo, o recorrente apenas transcreveu parte da fundamentação da sentença, esquecendo-se da restante parte da fundamentação que se segue à transcrição efectuada, onde se concluiu que o contrato de arrendamento de coisa alheia não era oponível ao verdadeiro dono na coisa, pois, como se escreveu: «… sendo a locação de coisa alheia válida inter-partes, enquanto contrato de eficácia meramente obrigacional, com a consequência de que o locatário incumpridor não pode opor ao senhorio o eventual vício que resultasse da ausência da qualidade de proprietário deste (provavelmente, com o fito de tirar daí algum proveito, na perspectiva do seu próprio incumprimento…), não pode, todavia, seguir-se que o contrato de locação de coisa alheia é oponível ao verdadeiro dono da coisa. (…) sendo o bem locado ao Réu coisa alheia, já que não pertencia ao locador ao tempo da locação, nem tinha o locador qualquer título para dispor do bem (estava até já averbada no registo a caducidade do contrato de locação que em tempos existira a favor da antecessora da locadora), esse arrendamento é, no mínimo, inoponível à autora, que é a legítima proprietária do bem.» Por conseguinte também não ocorre a referida nulidade. 6. Questão diferente é a de saber se ocorreu erro de julgamento, ao concluir-se que o R. não detinha título legítimo para obstar à entrega do imóvel, propriedade da A., que, afinal, é a questão que o R. pretende invocar, ao referir na conclusão VI) que o contrato de arrendamento de coisa alheia é válido, e no texto das alegações, que o contrato de locação de coisa alheia é oponível ao verdadeiro dono da coisa. Porém não assiste razão ao recorrente. 7. Antes de mais, importa lembrar que a presente acção é de reivindicação, prevista no artigo 1311º do Código Civil, nos termos do qual o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence (n.º 1). Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, como decorre do n.º 2 do referido artigo. Atendendo às regras do ónus da prova, compete ao autor o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou na detenção do demandado, mas é sobre o réu que recai, se for o caso, o ónus de provar que é titular de um direito que legitima a recusa da restituição (artigo 342º do Código Civil). Não se questiona nos autos que a A. é proprietária do imóvel (cfr. ponto 2 dos factos provados), pelo que, provada a propriedade, a restituição só pode ser recusada se o possuidor ou detentor da coisa apresentar título que legitime essa posse ou detenção. No caso em apreço, o R. invocou ocupar a fracção por via do contrato intitulado de “sublocação comercial”, datado de 19 de Fevereiro de 2015, em que figura como senhorio “Algartemático – Gestão e Inovação, SA., – que outorgou como “sublocatária, em virtude de contrato celebrado com a Varandotéis – Gestão de Estabelecimentos Hoteleiros, SA., sendo esta última locatária Financeira, do contrato de locação financeira celebrado com o Banco Espírito Santo, SA.,”–, tendo como arrendatário o R.. Como resulta dos pontos 6 a 8 dos factos provados, em 19/02/2015, data da celebração do contrato de sublocação com a R., já havia cessado o contrato de locação celebrado entre o então proprietário do imóvel – o BES –, e a locatária financeira “Varandotéis”, o que ocorreu em 05/09/2013. Tendo em conta esta realidade factual, entendeu-se na sentença que o contrato de sublocação em causa constituía locação ou arrendamento de coisa alheia, sufragando-se o entendimento, em face da controvérsia doutrinal e jurisprudencial existente a respeito da validade do mesmo [citando-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/10/2019 (proc. nº 616/19.1YLPRT.L1-2), e do Tribunal da Relação do Porto, de 02/07/2020 (proc. n.º 1358/15.2T8VNG.P2), disponíveis, como os demais citados, em www.dgsi.pt], de que “a natureza meramente obrigacional do contrato de locação pressupõe a validade da locação ou arrendamento de coisa alheia”. Mas, concluiu-se que o dito contrato de locação de coisa alheia não era oponível ao verdadeiro dono da coisa, com a seguinte fundamentação: «A questão foi, designadamente, abordada no acórdão da Relação do Porto de 2 de Julho de 2020 (relator: Carlos Portela), onde se refere que: é por demais conhecida a divisão que quanto a tal questão continua a existir quer na Doutrina quer na Jurisprudência. Assim e no sentido da sua validade, com os argumentos de que “assumindo o contrato de arrendamento uma natureza de contrato consensual, para cuja formação se torna necessária a entrega do prédio, e assumindo também a natureza de um contrato obrigacional, a disposição de coisa alheia através da locação não é nula nem sequer anulável: é antes perfeitamente válida”, pronunciou-se Januário Gomes, Constituição da Relação de Arrendamento Urbano, pág.287. Também Henrique Mesquita (RLJ ano 125, pág.100, nota 1) ao defender a legitimidade do arrendamento de coisa alheia, com base em dois tópicos argumentativos: a natureza obrigacional do contrato e o regime inscrito no art.1034.º, nº1, al. a), do C. Civil. E acrescenta, “ (…) se o contrato de locação de coisa alheia pode originar a sujeição do locador aos efeitos do não cumprimento, isso significa inquestionavelmente que se considera válido o contrato. O locador não pode eximir-se ao cumprimento da obrigação de entrega da coisa locada com fundamento em que esta lhe não pertence e responderá pelos danos que causar ao locatário se culposamente a não cumprir”. No mesmo sentido se pronuncia Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, Almedina, 2017, 8.ª Edição, pág.67, referindo: “No caso de ser celebrado um arrendamento por quem não tem legitimidade para o celebrar, o mesmo não deve, porém, ser considerado inválido mas apenas ineficaz em relação ao proprietário ou aos restantes contitulares do imóvel. Efectivamente, e apesar do que refere o art.º 1024.º/2 do C. Civil, a questão da validade do contrato coloca-se apenas no plano das relações internas, sendo que em relação aos verdadeiros titulares do imóvel o contrato é ineficaz, podendo estes facilmente obter a restituição do imóvel com este fundamento, através de uma acção de reivindicação. Se tal acontecer, naturalmente que quem arrendou o imóvel responderá por incumprimento perante o arrendatário, como expressamente resulta dos artigos 1034.º, n.º1, al. a) e 1032.º. E, de forma ainda mais clara e peremptória, no acórdão do STJ de 6 de Fevereiro de 2003 (relator: Miranda Gusmão), onde se refere que: No que concerne ao regime da locação de coisa alheia, o contrato será válido nas relações entre o locador e o locatário, de sorte que só haverá incumprimento por parte do locador quando a coisa vier a ser reivindicada pelo "dominus". Em relação ao "dominus", o contrato nunca pode haver-se como válido, nem nulo, mas apenas como inexistente visto ser res inter alios acta. Ou seja, revertendo ao caso dos autos, sendo o bem locado ao Réu coisa alheia, já que não pertencia ao locador ao tempo da locação, nem tinha o locador qualquer título para dispor do bem (estava até já averbada no registo a caducidade do contrato de locação que em tempos existira a favor da antecessora da locadora), esse arrendamento é, no mínimo, inoponível à autora, que é a legítima proprietária do bem.» 8. Nas alegações, o recorrente diz que “o contrato de locação de coisa alheia é oponível ao verdadeiro dono da coisa”, o que constitui manifestação de discordância para com o decidido, mas não aduz um único argumento em prol da sua pretensão. Por conseguinte, aderindo-se à fundamentação invocada na sentença, no sentido de que o contrato de arrendamento celebrado por quem não tem legitimidade para o celebrar, por a coisa lhe não pertencer, nem deter qualquer título para dispor ou administrar o bem, é ineficaz em relação aos verdadeiros titulares do bem, e não resultando provado que o anterior titular do imóvel aqui em causa, ou o actual titular (o Autor), hajam reconhecido o direito ao arrendamento invocado pelo R., facto que a este competia provar (cfr. artigo 342º, n.º 2, do Código Civil), não tem o R. título que o legitime a manter-se na posse ou detenção da coisa, estando obrigado à entrega da mesma, como se decidiu. Quanto ao demais decidido – condenação em indemnização por privação de uso e pedido reconvencional –, nada há a acrescentar, posto que o recorrente também nada aduz a este respeito. 9. Deste modo, improcede a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida. * Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.IV – Decisão Custas a cargo do Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário. * Évora, 25 de Outubro de 2024 Francisco Xavier Mário Branco Coelho Manuel Bargado (documento com assinatura electrónica) |