Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
589/15.0JALRA-E.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: APREENSÃO DE BENS EM PROCESSO PENAL
FINALIDADES
Data do Acordão: 10/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - A apreensão é uma medida estritamente cautelar, que visa prevenir a dissipação do bem nos casos em que a declaração de perda a favor do Estado se apresenta como possível em fase ainda embrionária do processo, atendendo às concretas circunstâncias do caso em apreciação. Justifica-se, ainda, a mesma apreensão ao serviço da prova.

II- Não se trata ainda de uma decisão definitiva sobre o destino dos bens, alicerçada sempre necessariamente em provas mais concludentes de todos os factos probandos, mas de uma medida cautelar baseada em indícios, em prova indiciária. E esses indícios justificam suficientemente aqui as apreensões de todos os bens reclamados pela recorrente, independentemente de serem da sua propriedade (a possibilidade de perdimento ocorre também aqui).
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. Nos autos de inquérito n.º 589/15.0JALRA, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Criminal de Tomar, foi proferido despacho em que a Senhora Juíza de instrução criminal decidiu indeferir o pedido formulado por MB, para revogação do despacho de apreensão de bens ao arguido NB, seu filho, bens alegadamente pertencentes à requerente e à sociedade "D…, Urbanização e Construção Civil, Unipessoal, Lda."

Inconformada, recorreu a requerente, concluindo:
“1ª O presente recurso vem interposto da segunda Decisão, que indeferiu o pedido de revogação do despacho de apreensão de bens que pertencem à recorrente e consequente entrega /devolução.

2ª Dão-se por conhecidos todos os factos e documentos, em particular os juntos pela recorrente, constantes dos presentes autos, bem como se dão por conhecidos os trâmites e termos do presente processo, incluindo o anterior Acórdão do TRE.

3ª A decisão aqui em causa começa por fazer uma apreciação da legislação aplicável, a título de fundamento de direito e, de seguida, faz uma apreciação em "concreto" das apreensões efectuadas e dos hipotéticos factos que a justificam.

4ª Só podem ser objecto de apreensão os objectos que tenham servido a prática de um crime ou que constituam vantagens desse crime [art. 178º, do CPP).

5ª Para o efeito, têm de se indicar e sindicar os factos que demonstrem que os objectos tenham servido a prática de um crime ou facto que demonstrem serem os objectos apreendidos uma vantagem do crime.

6ª Acontece que, o Tribunal “a quo” não faz uma descrição dos factos que sustentam a sua decisão, mas somente alegadas justificações e hipóteses para eventuais factos.

7ª Lendo com atenção o despacho aqui em crise, não se vislumbram factos que possam sustentar as apreensões.

8ª Na verdade, o processo principal está ainda na fase de inquérito, pelo que, contra o arguido NB, só existem indícios de ter praticado crimes de burla qualificada e de associação criminosa, segundo o Ministério Público.

9ª A recorrente desconhece se assim ocorre e não tem obrigação de conhecer.

10ª Os factos imputados aos arguidos e indiciariamente ao arguido NB, vão desde finais de 2015 até ao dia 13 de Dezembro de 2018, como consta dos autos principais.

11ª No que diz respeito ao veículo automóvel e às televisões, consta no despacho recorrido que estes bens estavam na posse do arguido NB, o que "inculca a probabilidade elevada de terem sido comprados com os proventos da actividade ilícita analisas nos autos".

12ª Estas considerações de mera probabilidade do despacho recorrido são conclusões e não factos.

13ª Na verdade, o único facto é que os bens estavam na posse material (e não jurídica) do arguido NB.

14ª A posse jurídica destes bens pertence à recorrente, que é mãe do arguido, pelo que tem melhor posse do que o filho, porque titulada no direito de propriedade, como qualquer jurista sabe.

15ª No despacho recorrido não há factos Que permitam concluir pela elevada probabilidade de estes bens terem sido comprados com os proventos de qualquer actividade do arguido NB.

16ª Nem sequer consta no presente processo, nem nos autos principais, qualquer elemento de prova pelo qual se demonstre que o arguido NB tenha em concreto ganho qualquer tipo de proventos com os factos em investigação.

17ª E muito menos que o arguido NB tenha entregue à recorrente qualquer provento seu, legítimo ou ilegítimo.

18ª Antes pelo contrário, em 2018 era a recorrente quem estava a sustentar o arguido NB, por ser seu filho.

19ª Aliás, o Tribunal “a quo" reconhece que o veículo automóvel está registado em nome da recorrente, que as duas televisões e o computador foram adquiridas pela recorrente e que a documentação da sociedade D…, Lda. também pertence à recorrente.

20ª Estes são factos jurídicos estão consubstanciados em prova documental, que está junta aos autos, e o Tribunal “a quo" devia ter indicado os meios de prova para dar como provados estes factos, mas não o faz, porque teria de valorar estes factos na sua totalidade e plenitude, o que não fez.

21ª Na verdade, o veículo automóvel foi adquirido pela recorrente em 19/07/2017, pelo preço de 28.000,00 €, e foi pago contra a entrega de outro veículo automóvel da recorrente, ao qual foi atribuído o valor de retoma de 16.500,00 € e com a entrega de 11.500,00 € em dinheiro.

22ª Os 11.500,00 € em dinheiro foram pagos através do sinal de 1.000,00 € e de duas transferências bancárias, de 5.000,00 € e de 5.500,00 €, feitas respectivamente em 25/06/2017 e de 26/07/2017 da conta bancária sedeada na Caixa Geral de Depósitos em nome de MB.

23ª Por sua vez, o veículo automóvel dado de retoma, pelo valor de 16.500,00 €, tinha a matrícula -00-, era também um BMW e tinha sido adquirido pela recorrente em 2014.

24ª O veículo automóvel esteve em Lisboa até meados de 2018, na posse da recorrente, que aliás requereu na EMEL o selo de estacionamento para a freguesia do Areeiro, onde reside, que está no vidro da frente da viatura apreendida e que as autoridades judiciárias e o Tribunal podem verificar.

25ª Se os factos imputados aos arguidos, no processo principal, estão balizados entre 2015 e 2018, e se a aquisição do veículo automóvel pela recorrente, em 2017, foi feita com a retoma de outro veículo seu, adquirido em 2014, e com dinheiro que lhe pertence, então, jamais se pode concluir que o veículo automóvel foi adquirido com proventos de qualquer actividade ilícita alegadamente praticada pelo arguido NB.

26ª Em 2014, data de aquisição do veículo de retoma, não havia qualquer investigação de actividade alegadamente criminosa do arguido NB.

27ª Por outro lado, as duas televisões foram adquiridas pela recorrente em 28/07/2018, pelo preço de 880,00 € e 670,00 €, para a sua casa sita na Póvoa do Varzim.

28ª Também o computador portátil marca ASUS foi adquirido pela recorrente em 10/08/2018.

29ª Como se sabe, os factos indicados do processo principal vão desde 2015 até 13/12/2018, portanto, o computador foi adquirido pela recorrente muito próximo dos factos em investigação no processo principal e não é crível que tenha servido para qualquer crime.

30ª No entanto, a recorrente aceita que seja feita a perícia ao computador, contudo, finda essa perícia o computador tem de ser devolvido à recorrente.

31ª No que diz respeito à sociedade comercial D…, Lda., a mesma foi constituída em 01/10/2018, tendo como objecto social a promoção imobiliária (veja-se doc 9 do RI).

32ª O Tribunal "a quo" para justificar a apreensão dos documentos da sociedade comercial da recorrente, D…, Lda., considerou que "é provável que estivesse a utilizar (o arguido) a referida sociedade para, designadamente, praticar burlas".

33ª A sociedade D…, Lda. foi constituída em 1/10/2018, ou seja, muito próximo do dia 13/12/2018, pelo que, não podia ter sido usada para cometer crimes praticados entre 2015 e finais de 2018, porque nem sequer existia.

34ª Acresce que, esta sociedade tem como objecto social a promoção imobiliária, tem como única gerente a recorrente, que não é arguida no processo principal.

35ª No dia 26/10/2018 e no exercício da sua actividade, a D. adquiriu um apartamento, por escritura, sito no Largo…, Póvoa do Varzim, pelo valor de 210.000€ (ver doc. 13 do RI).

36ª Assim, desde a sua constituição a D…, Lda. estava a exercer a sua actividade normal e tem como gerente a recorrente, que não é arguida e não tem sequer registo criminal.

37ª Mais uma vez, estes factos não foram apreciados pelo Tribunal "a quo".

38ª Além disso, esta sociedade não consta dos autos principais como sendo um dos veículos para os indiciados crimes de burla ou de associação criminosa.

39ª O Tribunal "a quo" para justificar a apreensão dos documentos da D. serve-se de ilações e não de factos.

40ª Aliás, consta do despacho recorrido que "não há indícios de que que o arguido NB tenha realizado qualquer tarefa concreta na sociedade "D.", mas, contraditoriamente, conclui que "é provável que estivesse a utilizar a referida sociedade para, designadamente, praticar burlas".

41ª Com o devido respeito, estamos perante um paradoxo ou um oximoro, porque na mesma frase o Tribunal "a quo" reconhece que não há indícios de utilização pelo arguido da sociedade e, simultaneamente, entende que há probabilidade de a usar para praticar burlas.

42ª Tal raciocínio não é possível e não é aceitável, havendo claramente uma contradição entre os factos e os seus fundamentos, porque se não há indícios de o arguido utilizar em proveito próprio a sociedade, então, não a podia utilizar para praticar burlas.

43ª Assim, em face dos factos constantes dos autos, não pode manter-se a apreensão dos documentos da sociedade D... Lda.

44ª Por outro lado, e em desespero de justificação, consta no despacho recorrido que a "requerente não podia desconhecer o comportamento do arguido, seu filho, desde logo atendendo ao certificado de registo criminal do mesmo, situação que a mesma não esconde, ao fazer menção aos "desgostos" causados pelo seu filho e a "problemas com a justiça".

45ª Esta afirmação é no mínimo deselegante e no máximo uma falta de sensibilidade jurídica, porque nenhuma Mãe tem de assacar com as responsabilidades pessoais e criminais do filho.

46ª Concluir que a recorrente tem responsabilidades por ser Mãe é voltar ao tempo dos Romanos, em que os filhos pagavam pelos erros dos Pais e vice-versa.

47ª Esse conhecimento dos antecedentes criminais do filho não faz da recorrente criminosa e tal raciocínio tem de ser censurado.

48ª Aliás, esta afirmação do Tribunal "a quo" não tem qualquer esteio em factos e é uma afirmação proferida de forma abusiva.

49ª Por outro lado, a Senhora Juíza do Tribunal "a quo" tem a ousadia de concluir que a recorrente colocou estes bens em seu nome porque conhecia "dos antecedentes criminais do arguido e da sua actuação financeira, pretendendo, assim, proteger esses bens de eventuais credores".

50ª O Tribunal "a quo" não apresenta nenhuma prova que sustente esta sua conclusão.

51ª O Tribunal "a quo" nunca ouviu a recorrente, não a conhece pessoalmente e não constam nos autos nenhuns factos que lhe sejam imputados.

52ª O Tribunal "a quo" faz juízos de valor totalmente infundados e injustificados.

53ª Os indícios que constam do processo principal não dizem respeito a MB, aqui recorrente, nem aos seus bens pessoais.

54ª Não consta em nenhuma parte do processo principal que a recorrente e os seus bens pessoais façam parte de qualquer indício de crime.

55ª Não constando do Despacho aqui em crise os factos para a apreensão dos bens pessoais da recorrente, o mesmo é nulo por falta de fundamentação de facto.

56ª Além disso, também não há nos autos nenhum indício ou prova que estes bens foram adquiridos "com os proventos da actividade ilícita analisada nos autos".

57ª E também não se pode censurar uma Mãe que pretende ajudar o filho, através de um negócio de promoção imobiliária.

58ª Segundo Paulo Pinto de Albuquerque, "em termos materiais, a apreensão respeita aos objectos que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime ou que constituíram o seu produto, lucro, preço ou recompensa" (em Comentário do Código de Processo Penal, 4ª Edição actualizada, Universidade Católica Editora, pág. 504º, em comentário ao art? 178º, do CPP).

59ª Cabe ao Ministério Públio demonstrar que os objectos aqui em causa serviram para a prática de qualquer crime ou que foram adquiridos com os proventos de um crime. E tal prova não existe nos autos.

60ª Nenhum destes bens está relacionado com a prática dos crimes de burla qualificada, associação criminosa ou receptação.

61ª Não há nenhuma prova nos autos, nem no Despacho aqui em apreciação, que o veículo automóvel, os documentos da sociedades, o computador ASUS ou as duas televisões, tenham servido para a prática de qualquer crime, que sejam o objecto de qualquer crime ou que sejam ou produto e/ou vantagem de qualquer crime.

62ª No entanto, no que diz respeito ao computador admite-se a sua peritagem e posterior devolução à recorrente.

63ª Sempre se acrescenta que não é só a inexistência de factos para sustentar a relação destes bens com os alegados crimes, mas, outrossim, a demonstração inequívoca pela recorrente de que são bens pessoais e empresariais, que nada têm a ver com as actividades relatadas no processo crime principal.

64ª Acresce que, estes bens não estavam em nenhum local do crime.

65ª Na verdade, a casa onde foram apreendidos é propriedade da recorrente, adquirida com o seu dinheiro, e tudo lhe pertence.

66ª Esse apartamento foi adquirido pela recorrente em 26/7/2018, altura em que o seu filho e arguido NB foi para lá viver.

67ª Nos autos não há nenhum facto ilícito imputado ao arguido NB, após Julho de 2018, que tenha ocorrido naquele apartamento.

68ª O apartamento onde foram feitas as apreensões não é o "local do crime".

69ª Por outro lado, o artº 186º, do CPP, prevê expressamente que os bens são apreendidos para "efeitos de prova", pelo que, devem ser restituídos quando tal se torna desnecessário.

70ª Na presente situação nenhuma das apreensões, com excepção aparente do computador, é necessária para a prova dos crimes de burla qualificada, associação criminosa ou receptação.

71ª A viatura automóvel as duas televisões e os documentos da D…, Lda. não são necessários para demonstração de qualquer crime.

72ª Estes bens pertencem exclusivamente à recorrente, foram adquiridos de forma legítima e não são necessários no âmbito do presente processo.

73ª Não demonstram a existência de nenhum crime, não pertencem a nenhum arguido, não foram adquiridos com o produto de qualquer alegado crime e não estavam no local do crime.

74ª Face ao acima exposto, tem de se concluir que o despacho recorrido tem de ser revogado, por inexistirem nos autos factos que demonstrem que os bens e objectos da recorrente tenham servido para a prática de crimes ou que sejam proventos de crimes, bem como por ter sido demonstrado que são bens pessoais da recorrente, por si legitimamente adquiridos e sem qualquer ligação com as actividades em investigação nos autos principais.

Nestes termos, nos mais de Direito e sempre com o mui douto suprimento de Vª Exª, deve a Decisão aqui em crise ser revogada por nulidade da mesma devido a falta de fundamentação de facto ou, assim não se entendendo, deve ser revogada por estar demonstrado que não se verificam os requisitos da apreensão dos bens da recorrente e, em qualquer circunstância e em sua substituição, ser proferido Acórdão que determine a entrega dos bens à recorrente mas, no que diz respeito ao computador, admite-se que somente após a devida peritagem, porque assim se fará a devida e costumada Justiça.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:
“1. Ao contrário do sustentado pela recorrente, nesta fase da investigação não está de forma alguma assente a quem é que efectivamente pertenciam, de facto, os objectos apreendidos, visto que, por exemplo, a própria recorrente admite que o seu filho e aqui arguido NB utilizava o computador apreendido sem qualquer restrição e de forma exclusiva.

2. Mais: também ao contrário do sustentado no recurso, a recorrente não era, nem é actualmente, proprietária do veículo automóvel acima identificado, visto que a sua proprietária é a "CB Comercio de Automóveis, S. A" (cfr. fls. 6430 dos autos principais), sendo que a própria recorrente declarou que era o arguido NB quem, de facto, utilizava exclusivamente o veículo automóvel.

3. A decisão recorrida não padece de qualquer nulidade por falta de fundamentação, encontrando-se devidamente fundamentada de facto e de direito.

4. Quanto ao mérito da decisão recorrida, também não assiste razão à recorrente, reiterando-se que não se encontra de forma alguma assente que a recorrente seja a efectiva proprietária, de facto e/ou de direito, das coisas apreendidas.

5. Ou melhor, quanto ao veículo automóvel já se encontra assente que, não só não era proprietária, como que, quem o utilizava, usando e fruindo das utilidades da coisa, era o arguido NB, pelo que nem sequer se encontra assente que a recorrente tenha legitimidade para requerer o levantamento da apreensão e a devolução do veículo.

6. Sem prescindir e no que concerne ao computador, importa não olvidar que a própria recorrente não contesta a necessidade de ser levado a cabo um exame, fazendo inclusivamente menção ao facto de o arguido NB ter utilizado o computador durante vários meses.

7. Assim, verifica-se uma elevada probabilidade de o computador conter elementos de prova muito relevantes para a descoberta da verdade material, nomeadamente documentação contabilística (facturas, balancetes, etc.), ficheiros e documentos relacionados com as burlas (pedidos de cotação, recibos, guias de transporte, correspondência entre os burlados, etc.), bem como anotações do próprio arguido, semelhantes às constantes em inúmeros documentos que foram apreendidos durante as buscas a outras residências (com referências a quantias monetárias que cabiam a cada arguido, com indicação de contacto telefónicos de vários intervenientes, etc.).

8. Ou seja: há fortes indícios de que o arguido NB utilizou o computador para praticar crimes (pelo menos burlas) e que, ademais, o computador contém vários elementos susceptíveis de servir de prova, pelo que a sua apreensão foi adequada e justificada, como a própria recorrente acaba por admitir, quando se refere à realização de exames ao computador.

9. Qualquer decisão definitiva quanto ao destino do computador é actualmente prematura, até porque, por exemplo, do seu exame poderão vir a resultar indícios de que a recorrente tinha pleno conhecimento da actividade levada a cabo pelo arguido, importando não olvidar que, até analisando os documentos apreendidos, não há qualquer indício de que o arguido NB tenha realizado qualquer tarefa concreta na aludida sociedade "D." ("estranhando-se que a recorrente não tenha estranhado tal facto" e questionado que actividade estaria o arguido a levar efectivamente a cabo).

10. Portanto, tal objecto é susceptível de vir a ser declarado perdido a favor do Estado, nos termos do disposto nos artigos 109.°/1 e/ou 111.0 do Código Penal.

11. Quanto à documentação contabilística, a sua apreensão é necessária nesta fase da investigação, sendo importante não olvidar que o arguido NB, filho da recorrente, encontra-se fortemente indiciado de ter praticado vários crimes de burla qualificada e de um crime de associação criminosa, sem prejuízo de actualmente estarem já a ser investigados também vários crimes de natureza fiscal e branqueamento de capitais.

12. Na verdade, foram já recolhidos fortes indícios de que este arguido teve uma intervenção relevante em inúmeras sociedades (por exemplo, na "E", na "P" e na "TV"), tendo ligações sólidas a outros arguidos fortemente indiciados de idênticos crimes (conforme decorre das vigilâncias policiais e do teor das sessões das intercepções telefónicas transcritas nos autos).

13. Mais: o arguido praticou tais factos ciente de que, muito provavelmente, estaria iminente o cumprimento da pena de prisão efectiva que, após ter sido desligado dos presentes autos, se encontra actualmente a cumprir (situação que certamente também seria do conhecimento da aqui recorrente, como resulta da sua alusão aos problemas do arguido com o sistema de Justiça).

14. Ora, atendendo a que várias das sociedades onde o arguido NB teve intervenção são suspeitas ou já se encontram fortemente indiciadas de terem praticado crimes (através dos seus legais representantes), a autoridade policial não tinha outro dever que não, aquando da execução das buscas, apreender toda a documentação relativa a quaisquer sociedades onde o arguido pudesse actuar.

15. Sendo ainda prematuro, nesta fase, efectuar qualquer juízo conclusivo sobre a extensão do conhecimento que a recorrente tinha do real envolvimento do arguido NB em actividades criminais, sem prejuízo de urgir notar que, o próprio facto de a recorrente ter colocado vários bens utilizados e fruídos exclusivamente pelo arguido em nome da recorrente é, pelo menos, um forte indício de que a mesma estava ciente do registo criminal do arguido, do tipo de actividades que ele levava a cabo e das suas várias dívidas, sendo assim tal registo uma forma de proteger esses bens de credores (por exemplo, de eventuais acções executivas de que o seu filho pudesse ser alvo).

16. Com efeito, não podemos olvidar a probabilidade elevada de o arguido - não se podendo deixar de admitir a hipótese de o fazer mancomunado com a sua mãe ou, pelo menos, com a sua tolerância - estar a utilizar a sociedade "D" para, por exemplo, branquear capitais, praticar fraudes à Autoridade Tributária, praticar burlas e/ou, à semelhança do que sucedeu com outras sociedades investigadas nos autos, comprar artigos, a preços abaixo do mercado, a sociedades investigadas nos autos.

17. Tanto assim, que vejam-se as empresas associadas às passwords que o arguido NB deu aos Srs. Inspectores da Polícia Judiciária (cfr. fls. 7 e 8 do Apenso B¬5): "D.", "PC", "S" e "TV" (o email "naab74" corresponde a um dos mails pessoais do arguido, daí o facto de as letras corresponderam às primeiras letras de cada nome do arguido).

18. Ou seja, a sociedade "D" encontrava-se "na companhia" de várias sociedades arguidas investigadas nos autos, sendo que todas as regras da experiência comum nos impelem a, em tal caso, adoptar as maiores reservas.

19. Ou seja, importa continuar a examinar toda essa documentação em conjunto com outra também apreendida nos autos, importando salientar que, actualmente, se encontram a ser levadas a cabo perícias de natureza financeira.

20. Assim, a apreensão dessa documentação é, por ora, necessária e adequada, atendendo a que a mesma é susceptível de servir de prova e que, ademais, podemos estar perante instrumentos ou produtos susceptível de vir a ser declarados perdidos a favor do Estado.

21. Isto sem prejuízo de, caso a recorrente o pretenda, nada obstar a que, salvo casos excepcionais devidamente fundamentados, lhe possam vir a ser devolvidos alguns documentos originais (ficando cópia nos autos) ou que, à custa da recorrente, lhe possa ser dada cópia de documentos.

22. Quanto ao veículo automóvel, este foi apreendido por se encontrar na posse do arguido NB, que o utilizou durante diversos meses, sendo tal objecto susceptível de vir a ser declarado perdido a favor do Estado, por constituir uma vantagem da prática do crime.

23.Tanto assim que, no dia 13/11/2018, em que foram cumpridos os mandados de busca à ordem dos presentes autos, o arguido encontrava-se no Supermercado Continente Modelo, na Póvoa de Varzim, fazendo-se transportar no veículo BMW.

24. Nesse veículo, o arguido levava consigo abundante documentação relativa ao objecto dos presentes autos, bem como o computador apreendido nos autos (veja-se fls. 1 do Apenso B-5).

25. O que, tudo conjugado, é mais um forte indício de que era o arguido quem usava e fruía de todas as utilidades do veículo automóvel, de tal forma que já guardava e espalhava vários documentos pessoais e profissionais nesse mesmo veículo, conduta típica de quem é "o dono da coisa".

26. Por seu turno, as televisões, que também se encontravam na casa onde apenas o arguido vivia, foram apreendidas por poderem constituir vantagens da prática do crime, importando mais uma vez relembrar que era o arguido a única pessoa que gozava das utilidades da coisa.

27. Além do mais, atendendo a que o arguido fazia parte de uma "rede criminosa" cujo modo de actuação se caracterizou, em vários casos, por utilizar testas-de-ferro para tentar dissimular a actuação dos verdadeiros autores do crime, verificava-se fundado receio do desaparecimento, ocultação ou transferência de todos esses objectos, que justificou plenamente a actuação da Polícia Judiciária.

28. Tanto as televisões como o veículo automóvel são susceptíveis de vir a ser declarados perdidos a favor do Estado, sendo todos potenciais vantagens do facto ilícito típico, visto podermos estar perante coisas que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem (cfr. artigo 110.0/1,b) do CPP), importando salientar o regime flexível previsto nos n.os 2 a 5 do Código de Processo Penal.

29. No caso concreto, em face do que acima já sustentámos, há uma probabilidade elevada de a perda das vantagens poder fundamentar-se em qualquer uma das alíneas previstas no artigo 111.°/2 do Código de Processo Penal.

30. É que, precisamente por ser altamente frequente que os autores deste tipo de crimes não tenham veículos automóveis e outros bens valiosos que adquiriram - através de rendimentos obtidos com a prática de crimes - registados em seu nome, é que o legislador fixou o actual regime jurídico, de forma a evitar que "o crime compense".

31. Portanto, não assiste qualquer fundamento para conceder provimento à pretensão da recorrente, notando-se ainda que o despacho final de encerramento do inquérito terá que ser proferido até ao dia 13/11/20 19 Cem face dos prazos máximos da prisão preventiva), momento processual em que o objecto do inquérito ficará balizado e em que, tal como decorre da lei, terá que ser tomada uma posição fundamentada quanto ao destino de todos os objectos apreendidos, designadamente os referidos pela recorrente.

32. Ou seja, aquando desse despacho de acusação Ce de arquivamento parcial) será fixado o objecto do inquérito (princípio da vinculação temática), com a indicação dos factos e dos crimes considerados indiciados, sendo que, se não em data anterior, pelo menos nessa data o Ministério Público terá também que se pronunciar quanto à perda dos instrumentos, produtos e vantagens do crime.

33. Não podendo colher a posição da recorrente, no sentido de ser exigível que, nesta fase da investigação, o Ministério Público tenha já que apresentar uma "espécie" de despacho de acusação, com a descrição pormenorizada de todos os factos que já considera fortemente indiciados e que justificam a apreensão dos referidos objectos, o que nem sequer se coadunaria com a aplicação do segredo de justiça.

34. Assim, consideramos que, além dos argumentos já acima expostos, também se demonstra equilibrado e adequado que qualquer tomada de decisão quanto ao destino dos objectos apreendidos apenas seja tomada no despacho final de encerramento de inquérito, recordando-se que está em causa um período de somente cerca de 3 (três) meses (a contar da presente data).

35. Em suma: é nosso entendimento que não assiste qualquer fundamento para conceder provimento à pretensão da recorrente, pelo que deve ser negado provimento ao presente recurso e manter-se a decisão proferida pela Meritíssima Juíza de Instrução Criminal.”

Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta acompanhou a resposta ao recurso.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. O despacho recorrido é o seguinte:
“MB, mãe do arguido NB, vem requerer a entrega dos bens apreendidos ao arguido NB e que, segundo o requerimento, serão sua pertença: o automóvel marca BMW, matrícula -SD-, um computador portátil marca ASUS, duas televisões e diversos documentos relativos à sociedade "D - Urbanização e Construção Civil - Unipessoal, Lda.".

A recorrente fundamenta o requerimento, em síntese, no seguinte:

- tais bens são de sua pertença;
- a viatura automóvel, as duas televisões e os referidos documentos não são objecto de crime de burla nem são necessários para a demonstração de crime de burla.

O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento do requerido.

Vejamos.
Determina o artigo 178.º, n.º 1 e 5 do Código de Processo Penal a apreensão dos instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim de todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova (n.º 1), sendo que os órgãos de polícia criminal podem, ainda, efectuar apreensões quando haja fundado receio de desaparecimento, destruição, danificação, inutilização, ocultação ou transferência de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos provenientes da prática de um facto ilícito típico, susceptíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado (n.º 5). Por seu lado, dispõe o artigo 109.º, n.º 1 do Código Penal que são declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.

Acrescenta o artigo 110.º, n.º 1 do Código Penal que são declarados perdidos a favor do Estado: a) os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e b) as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem, abrangendo a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem (n.º 2).

Prescreve o artigo 111.º, n.º 1 do Código Penal que a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada. Porém, nos termos do disposto no n.º 2, ainda que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando: a) o seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios; b) os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou c) os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida.

No caso concreto, a requerente vem pedir o levantamento da apreensão de um automóvel, um computador, duas televisões e diversos documentos relativos a sociedade, nos termos supra descritos, apreensão esta efectuada no âmbito de busca domiciliária a imóvel propriedade da requerente, sito na Rua …, na Póvoa de Varzim, onde, à data, vivia o arguido NB, filho da requerente.

Nos autos, foi aplicada ao arguido NB a medida de coacção de prisão preventiva, por se encontrar fortemente indiciado da prática, designadamente, de crimes de burla qualificada e associação criminosa.

Ora, é certo que o veículo em causa encontra-se, efectivamente, registado em nome da requerente, que o computador e as televisões terão sido adquiridos em nome desta e que a documentação apreendida pertence à sociedade D, Lda., de que a requerente também faz parte.

Porém, todos os objectos e documentos apreendidos foram encontrados na posse do arguido, sendo certo que tal utilização dos objectos, por parte do arguido, também não é contrariada pela requerente.

Aliás, é usual que, no tipo de criminalidade em investigação – económica e organizada -, objectos sejam colocados em nome de terceiros (familiares, pessoas próximas ou, mesmo, contactadas para o efeito), para evitar a perda desses mesmos bens, por serem objecto do crime ou obtidos através das vantagens desse mesmo crime.

Com efeito, considerando a indiciada actuação comercial do arguido NB, proeminente no âmbito da associação criminosa em investigação, foram apreendidos os objectos cuja devolução a sua mãe ora requer, com fundamento no facto de terem sido utilizados na prática de crimes e/ou na probabilidade elevada de terem sido comprados com os proventos de actividade ilícita. De facto, atento o teor do certificado de registo criminal de NB e das informações policiais juntas aos autos, conclui-se que o mesmo vem dedicando a sua vida a actuação comercial ilícita, geradora de proventos também eles ilícitos.

Particularmente, no que concerne ao computador, tendo em conta a actividade comercial em investigação, e a circunstância de tal objecto ser utilizado exclusivamente pelo arguido NB, provavelmente para a prática de crimes de burla, é previsível que o mesmo possa conter documentos contabilísticos, anotações e informações sobre negócios, registos estes essenciais à descoberta da verdade. Assim, é imprescindível efectuar perícia informática, como determinado, após o que poderá ser equacionada eventual devolução.

No que diz respeito à documentação apreendida, analisados os autos, decorre das vigilâncias policiais e do teor das intercepções telefónicas que existem fortes indícios de que o arguido NB participou, de forma relevante, em diversas sociedades, estando fortemente relacionado com outros arguidos, também eles indiciados de crimes da mesma natureza – crimes de burla, associação criminosa, crimes fiscais, …. Assim, considerando que as sociedades, em cuja actuação o arguido participou, são suspeitas – sendo que algumas se encontram fortemente indiciadas - de terem praticado crimes, necessário se torna manter a apreensão de toda a documentação relativa a quaisquer sociedades onde o arguido pudesse actuar, a fim de melhor esclarecer o quadro global de actuação.

Acresce que não há indícios de que o arguido NB tenha realizado qualquer tarefa concreta na sociedade "D", pelo que é provável que estivesse a utilizar a referida sociedade para, designadamente, praticar burlas, tal como sucedeu com outras sociedades investigadas nos autos, razão pela qual é indispensável o exame pericial a toda essa documentação, estando a ser realizadas perícias financeiras, cujo resultado importa aguardar.

Quanto ao automóvel e as televisões, como já se disse, os mesmos foram encontrados na posse do arguido, sendo que a própria requerente não nega a utilização exclusiva dos bens pelo arguido. De facto, atendendo à actividade comercial do arguido, analisada nos autos, e aos elevados montantes económicos que os arguidos obtiveram com os crimes em investigação, ao que acresce o facto de não lhes serem conhecidos quaisquer rendimentos que justifiquem a aquisição de bens desta natureza - inculca a probabilidade elevada de terem sido comprados com os proventos da actividade ilícita analisada nos autos e, por isso, susceptíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado.

Importa, ainda, considerar que a requerente não podia desconhecer o comportamento do arguido, seu filho, desde logo atendendo ao certificado de registo criminal do mesmo, situação que a mesma não esconde, ao fazer menção aos “desgostos” causados pelo seu filho e a “problemas com a Justiça”. Note-se a circunstância de a requerente ter colocado vários bens utilizados exclusivamente pelo arguido em seu nome, demonstrando que tinha conhecimento dos antecedentes criminais do arguido e da sua actuação financeira, pretendendo, assim, proteger esses bens de eventuais credores.

Em conclusão, dir-se-á que todos os objectos referidos pela requerente são susceptíveis de vir a ser declarados perdidos a favor do Estado, por terem sido utilizados para a prática dos crimes investigados e/ou constituírem vantagens da prática desses crimes, sendo que a requerente não podia desconhecer, pelas razões expostas, tal factualidade.

Pelo exposto, indefere-se o requerido.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão a apreciar respeita à sindicabilidade do despacho que, mantendo a apreensão de bens ao arguido NB, indeferiu um pedido de entrega desses mesmos bens, formulado por MB, mãe do arguido.

Alega a recorrente que tais bens são sua pertença e que inexiste fundamento legal para manter a apreensão, já que a proveniência não se relaciona com a prática do crime, nem no que respeita à aquisição dos bens, nem à utilização.

A recorrente alega que a decisão recorrida não se encontra sustentada de facto e de direito, sendo nula por falta de fundamentação, inexistindo em concreto qualquer fundamento que justifique a manutenção da apreensão dos objectos. Alega ainda que não se mostram apreciadas as razões apresentadas pela recorrente no seu requerimento e as provas da propriedade por si oferecidas.

Os bens em causa, apreendidos no âmbito de uma busca domiciliária a um imóvel da recorrente que era efectivamente a residência do arguido à data da diligência (este facto não é controvertido em recurso), consistem em documentação diversa (designadamente a relativa à firma "D, Lda." de que a recorrente é sócia), um computador, duas televisões e o automóvel BMW matrícula SD.

A recorrente centra a argumentação na sua qualidade de proprietária dos bens apreendidos, procurando demonstrar ainda a licitude da aquisição. E aceita-se que a sua argumentação, assente nas provas que apresentou, possa vir a ser determinante numa futura avaliação e decisão final sobre o destino a dar aos objectos em causa.

Mas do que se trata agora é tão só da sindicância de uma medida de natureza cautelar, que se justifica tanto por necessidades de obtenção e de preservação de prova, como de prevenção da dissipação de bens cuja perda pode vir a ser declarada no processo (por uma determinada relação dos bens com a prática do crime).

Na verdade, o art. 178.°/1 e 5 do CPP prevê a apreensão “dos instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova”. E “os órgãos de polícia criminal podem ainda efectuar apreensões quando haja fundado receio de desaparecimento, destruição, danificação, inutilização, ocultação ou transferência de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos provenientes da prática de um facto ilícito típico suscetíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado (n.º 5).

O art. 109.º, nº 1, do CP prevê a perda a favor do Estado dos “instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática”.

O art. 110.º, nº 1, do CP determina que “são declarados perdidos a favor do Estado: a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem”” e, de acordo com o nº 2, abrange-se “a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.

E se o art. 111.º, nº 1, determina que “a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada”, de acordo com o nº 2 “ainda que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando: a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios; b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida.

A recorrente alega que o despacho é nulo por ausência de fundamentação de facto e de direito, não tendo sido ainda ponderadas as razões que apresentou. Mas esta asserção não corresponde à realidade da decisão e não encontra suporte legal.

Legalmente, a existir a deficiência em causa, consubstanciaria mera irregularidade: não se encontra abrangida por nenhuma das alíneas dos artigos 119.° e 120.° do CPP nem por qualquer outra norma, e para constituir nulidade teria de estar prevista como tal em alguma disposição legal. E a decisão demonstra que as razões da recorrente foram ali integralmente ponderadas.


Desde logo, no despacho começa por se considerar que “o veículo em causa encontra-se, efectivamente, registado em nome da requerente, que o computador e as televisões terão sido adquiridos em nome desta e que a documentação apreendida pertence à sociedade D, Lda., de que a requerente também faz parte”, pelo que da circunstância desta alegação (e demonstração) ser reiterada no recurso não resultaria, por si só, a detecção de um erro de decisão.

Mas o despacho encontra-se também suficientemente sustentado de facto e de direito, não se tendo limitado a reproduzir acriticamente o quadro legal aplicável. Depois de identificar correctamente as normas legais aplicáveis, destacou-se pertinentemente ali que, “todos os objectos e documentos apreendidos foram encontrados na posse do arguido, sendo certo que tal utilização dos objectos, por parte do arguido, também não é contrariada pela requerente”, que “é usual no tipo de criminalidade em investigação – económica e organizada -, que os objectos sejam colocados em nome de terceiros (familiares, pessoas próximas ou, mesmo, contactadas para o efeito) para evitar a perda desses mesmos bens, por serem objecto do crime ou obtidos através das vantagens desse mesmo crime” (assim sucede frequentemente e essa probabilidade não está também afastada, aqui).

É também de acompanhar a decisão quando ali se procede ao enquadramento da natureza e tipo de objectos apreendidos cuja devolução se requer, no contexto da “indiciada actuação comercial do arguido NB, proeminente no âmbito da associação criminosa em investigação”. Trata-se, inquestionavelmente, de objectos que se encontravam em poder do arguido, na sua total e exclusiva disposição, com uma probabilidade por ora suficientemente sustentada (ou seja, indiciariamente sustentada já que o processo se encontra ainda em fase de investigação) de poderem estar a ser utilizados na prática do crime e/ou de poderem ter sido comprados com os proventos de actividade ilícita. Apesar da argumentação desenvolvida pela recorrente, sustentada em elementos probatórios de algum peso, é certo, a probabilidade de relacionamento dos bens em causa com a prática do crime, relacionamento num dos dois sentidos possíveis que relevam juridicamente, mantém-se.

E neste momento processual é disso apenas que se trata: de um juízo de indiciação sobre a possibilidade de futuro decretamento de perda a favor do Estado.

A apreensão é uma medida estritamente cautelar, que visa prevenir a dissipação do bem nos casos em que a declaração de perda a favor do Estado se apresenta como possível em fase ainda embrionária do processo, atendendo às concretas circunstâncias do caso em apreciação. Justifica-se, ainda, a mesma apreensão ao serviço da prova (e estarão nesta situação o computador e a documentação).

Não se trata ainda de uma decisão definitiva sobre o destino dos bens, alicerçada sempre necessariamente em provas mais concludentes de todos os factos probandos, mas de uma medida cautelar baseada em indícios, em prova indiciária. E esses indícios justificam suficientemente aqui as apreensões de todos os bens reclamados pela recorrente, independentemente de serem da sua propriedade (a possibilidade de perdimento ocorre também aqui).

Como se disse no despacho, “no que concerne ao computador, tendo em conta a actividade comercial em investigação, e a circunstância de tal objecto ser utilizado exclusivamente pelo arguido NB, provavelmente para a prática de crimes de burla, é previsível que o mesmo possa conter documentos contabilísticos, anotações e informações sobre negócios, registos estes essenciais à descoberta da verdade. Assim, é imprescindível efectuar perícia informática, como determinado, após o que poderá ser equacionada eventual devolução.

No que diz respeito à documentação apreendida, analisados os autos, decorre das vigilâncias policiais e do teor das intercepções telefónicas que existem fortes indícios de que o arguido NB participou, de forma relevante, em diversas sociedades, estando fortemente relacionado com outros arguidos, também eles indiciados de crimes da mesma natureza – crimes de burla, associação criminosa, crimes fiscais, …. Assim, considerando que as sociedades, em cuja actuação o arguido participou, são suspeitas – sendo que algumas se encontram fortemente indiciadas - de terem praticado crimes, necessário se torna manter a apreensão de toda a documentação relativa a quaisquer sociedades onde o arguido pudesse actuar, a fim de melhor esclarecer o quadro global de actuação.

Acresce que não há indícios de que o arguido NB tenha realizado qualquer tarefa concreta na sociedade "D", pelo que é provável que estivesse a utilizar a referida sociedade para, designadamente, praticar burlas, tal como sucedeu com outras sociedades investigadas nos autos, razão pela qual é indispensável o exame pericial a toda essa documentação, estando a ser realizadas perícias financeiras, cujo resultado importa aguardar.

Quanto ao automóvel e as televisões, como já se disse, os mesmos foram encontrados na posse do arguido, sendo que a própria requerente não nega a utilização exclusiva dos bens pelo arguido. De facto, atendendo à actividade comercial do arguido, analisada nos autos, e aos elevados montantes económicos que os arguidos obtiveram com os crimes em investigação, ao que acresce o facto de não lhes serem conhecidos quaisquer rendimentos que justifiquem a aquisição de bens desta natureza - inculca a probabilidade elevada de terem sido comprados com os proventos da actividade ilícita analisada nos autos e, por isso, susceptíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado.”

Tudo ponderado, é de aceitar como correcta a conclusão de que “Existe, por tudo, a susceptibilidade de virem a ser declarados perdidos a favor do Estado, por terem sido utilizados para a prática dos crimes investigados e/ou constituírem vantagens da prática desses crimes, sendo que a requerente não podia desconhecer, pelas razões expostas, tal factualidade”.

Acresce que o prazo de encerramento do inquérito ocorre dentro de trinta dias, dado tratar-se de inquérito com arguidos presos preventivamente. E como nota o Ministério Público na resposta ao recurso, será o “momento processual em que o objecto do inquérito ficará balizado e em que, tal como decorre da lei, terá que ser tomada uma posição fundamentada quanto ao destino de todos os objectos apreendidos, designadamente os referidos pela recorrente. (…) será fixado o objecto do inquérito (princípio da vinculação temática), com a indicação dos factos e dos crimes considerados indiciados, sendo que, se não em data anterior, pelo menos nessa data o Ministério Público terá também que se pronunciar quanto à perda dos instrumentos, produtos e vantagens do crime. Não podendo colher a posição da recorrente, no sentido de ser exigível que, nesta fase da investigação, o Ministério Público tenha já que apresentar uma "espécie" de despacho de acusação, com a descrição pormenorizada de todos os factos que já considera fortemente indiciados e que justificam a apreensão dos referidos objectos, o que nem sequer se coadunaria com a aplicação do segredo de justiça.”

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pela recorrente, taxa de justiça 2UC (art. 521.º, n.º 2, do CPP).

Évora, 22.10.2019

(Ana Maria Barata de Brito)

(António João Latas)