Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2020/19.2T9FAR.E1
Relator: JOSÉ SIMÃO
Descritores: CRIME DE VIOLAÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
FALTA DE LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Data do Acordão: 02/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não tendo o representante legal do menor apresentado queixa contra o ora arguido (condição de procedibilidade), não tendo o inquérito sido legalmente iniciado ao abrigo do artº 113º nº 5 do C. Penal (na medida em que foi totalmente omitida a prolação do despacho em que se determinasse a abertura do inquérito ao abrigo daquele preceito em que se fundamentasse, expressa e casuisticamente, o uso de tal faculdade, em obediência ao princípio da legalidade da acção penal) importa concluir não ter o Ministério Público legitimidade para a acção penal.
Em conformidade, julga-se verificada a falta de legitimidade do Mº Pº para a promoção do procedimento criminal, devendo, em conformidade, declarar-se o extinto o mesmo procedimento, nos termos conjugados do artº 250º nº 5, do C. Penal e 49º do CPPenal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

Nos presentes autos de inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, IS, imputando-lhe a prática de um crime de violação da obrigação de alimentos, p. e p. no artº 250º nºs 1 a 4 do C.Penal.

Remetidos os autos a julgamento, pela Mma Juiz foi proferido despacho em que por falta de legitimidade do Ministério Público para a promoção do presente procedimento criminal declarou extinto o procedimento criminal, nos termos dos artºs 250º nº 5 do C. Penal e 49º do CPPenal e determinou o arquivamento dos autos.

Inconformado, o Ministério Público recorreu tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

“1. Recorre-se da decisão proferida pela Mmª Juiz a quo, na parte em que, após ter entendido que o Ministério Público não tinha legitimidade para a ação penal, por falta de queixa por parte da respetiva titular, decide pelo arquivamento dos autos.

2 - A apreciação e decisão sobre a falta de legitimidade do Ministério Público para a ação penal consiste numa questão prévia que obsta ao conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no art. 311°, nº1, do C.P.P.;

3 - Tal decisão forma apenas caso julgado formal, e não conhece do mérito da acusação (não tendo o processo chegado à fase de julgamento), nada obstando à reformulação de nova acusação;

4 - Tanto mais estando em causa a prática de um crime de violação de alimentos, p. e p. pelo art. 250°, do C.P., que consiste num crime de execução permanente, que só se consuma quando cessa o incumprimento da dita obrigação;

5 - Ao decidir o arquivamento dos autos, nos termos em que o fez, violou a Mma Juiz a quo o princípio da titularidade da ação penal pelo Ministério Público, ínsito no art. 263°, do C.P.P., o que expressamente se argui, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 412°, nº2, aI. a), do C.P.P.;

6 - Requerendo-se, assim, que se determine a revogação da decisão proferida, na parte em que determina o arquivamento, e a sua substituição por outra que determine a devolução dos autos ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal”.

O arguido não respondeu ao recurso.

Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu douto parecer, tendo referido no mesmo, para além do mais que “… não há que discutir se o crime persiste ou não, mas apenas a legitimidade processual evidenciada para a acção penal em causa!

E se for o caso de o Ministério Público entender que o crime persiste no tempo deverá instaurar outro inquérito munido da competente queixa; depois o que poderá discutir-se é o que fica ou não abrangido pela temporalidade da queixa e pelo caso julgado formal do despacho proferido nos presentes autos pelo tribunal a quo.

Termos em que entendo que não assiste razão ao ilustre magistrado do Ministério Público em primeira instância, devendo ser confirmado o despacho judicial recorrido”.

Observou-se o disposto no art. 417º nº 2 do CPPenal, o arguido não respondeu.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II- Fundamentação

O teor da decisão recorrida datada de 23-05-2021 é o seguinte:

Registe e autue como processo comum, com intervenção do tribunal singular.

O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia

Questão prévia: da (falta de) legitimidade do Ministério Público para a promoção dos autos

O arguido IS vem acusado da prática, em autoria material, de um crime de violação da obrigação de alimentos, p. e p. pelo art. 250.°, 1,2,3 e 4, do Código Penal.

Nos termos do preceituado no nº 5 do art. 250.° do Código Penal, o crime de violação da obrigação de alimentos reveste natureza semipública estando, pois, o procedimento criminal dependente da apresentação de queixa.

Dispõe o art. 113.°, 1, do Código Penal que "quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação". Por seu turno e no que ora releva, nos termos do n. ° 4 do mesmo preceito legal, "se o ofendido for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa, este pertence ao representante legal e, na sua falta, às pessoas indicadas sucessivamente nas alíneas do n." 2, aplicando-se o disposto no número anterior".

Nos termos do art. 49.°, 1, do Código de Processo Penal, "quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo", sendo que, para este efeito, "considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele" (n." 2). E, "a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respetivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais", como se dispõe no n° 3 do mesmo artigo.

"A efectivação da queixa não está sujeita a quaisquer formalidades legalmente impostas - cfr. artigo 246, nº 1 do CPP que, embora mencionando a «denúncia», engloba esta, a queixa e a participação - podendo ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto, não se tomando necessário sequer que a queixa seja como tal designada, tomando-se apenas indispensável que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar o procedimento criminal contra o agente pelos factos que descreve ou menciona – assim, Figueiredo Dias, DIREITO PENAL PORTUGUÊS, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas - Editorial , 1993, pág. 675; no mesmo sentido, Ac. R de Lisboa de 18/02/2003, Proc. n° 0084955; Ac. R do Porto de 27/10/2010, Prac. n° 989/05.3TASTS.P1 e Acs. R de Coimbra de 18/01/2012, Prac. n° 45/10.2GDCVL.C1 e de 06/03/2013, Proc. n° 763/09.8T3AVR-A.C2, disponíveis em www.dgsipt" - cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.04.2013,disponível em www.dgsi.pt, processo nº 1034/10.2TAALM - 5).

Compulsado o texto da acusação, verifica-se ser ofendido - o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação - DS, nascido em …. Sendo o ofendido menor de 16 anos, o exercício do direito de queixa pertence, desde logo, ao seu representante legal.

Com efeito, salvo disposição em contrário, os menores carecem de capacidade para o exercício de direitos (art. 123.°do Código Civil), sendo essa incapacidade suprida pelo poder paternal e, subsidiariamente, pela tutela (art. 124.° do mesmo código).

Nos termos do art. 1878.° do Código Civil, "compete aos pais, no interesse dos filhos, ( ... ) representá-los, ainda que nascituros, ( ... )"; "o poder de representação compreende o exercício de todos os direitos e o cumprimento de todas as obrigações do filho, excetuados os atos puramente pessoais, aqueles que o menor tem o direito de praticar pessoal e livremente e os atos respeitantes a bens cuja administração não pertença aos pais" - cfr. art. 1881.°, 1, do mesmo código.

Os representantes legais do menor são, pois, os seus pais, tendo qualquer um deles legitimidade para, sozinho, em representação daquele (menor), apresentar queixa crime - cfr., entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.02.2004, disponível em www.dgsi.pt, processo n." 1157/2004-9.

Os pais do menor DS são o ora arguido, IS, e AR - cfr. fls. 17.

Ora, sendo certo que o ora arguido não apresentaria, em representação do seu descendente menor, queixa contra si mesmo, certo é, também, que a progenitora, AR, não apresentou queixa crime contra o pai do seu filho. Com efeito, analisado todo o processado, verifica-se que os autos se iniciaram com base numa certidão extraída dos autos de Incumprimento das Responsabilidades Parentais que correram termos pelo Juiz 2 do Juízo de Família e Menores de … sob o nº…, certidão essa a cuja emissão esteve subjacente uma promoção do Digno Magistrado do Ministério Público com o seguinte teor: "4. Atento o comportamento do requerido, promove-se se extraia certidão da sentença de Regulação das Responsabilidades Parentais, da decisão de incumprimento, da presente promoção e despacho judicial que sobre a mesma recair, e se remeta aos serviços do Ministério Público, a fim de instaurar procedimento criminal contra o mesmo, pela prática do crime de violação da obrigação de alimentos, previsto e punido pelo artigo 250.° do Código Penal".

Do teor do despacho judicial incidente sobre tal promoção flui que, naqueles autos, foi requerido pela mãe do menor DS que IS "cumprisse o sentenciado, através da sentença homologatória proferida, em …, na Ação de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais que correu termos sob o n…., entenda-se, por este nunca o haver feito". Nada consta, daquela certidão, que está a fls. 2 a 7, de onde possa extrair-se (lançando mão, desde logo, do que se dispõe no art. 236.° do Código Civil) ter havido intenção, por banda de AR - requerente naquele apenso de Incumprimento das Responsabilidades Parentais - de apresentar queixa crime contra o progenitor do seu filho, antes se extraindo, do requerido naqueles autos, que a mesma pretendia que, no âmbito desse processo, o aí requerido IS, ora arguido, fosse obrigado a cumprir, coercivamente, as prestações alimentícias a que ficara obrigado por via do acordo datado de …, homologado que foi por sentença transitada em julgado.

Compulsados os autos, verifica-se que, recebida a aludida certidão, o Ministério Público determinou que a mesma fosse registada, distribuída e autuada como inquérito (para averiguação da eventual prática do crime de violação da obrigação de alimentos) e determinou, sucessivamente, todas as diligências que entendeu por pertinentes, no âmbito do inquérito, para averiguar da eventual responsabilidade criminal do arguido.

Nem no primeiro despacho (conforme se imporia), nem em nenhum dos subsequentemente proferidos, no decurso do inquérito a que procedeu, consignou o Ministério Público por que motivo dava início ao inquérito, não tendo ponderado o facto de não ter sido apresentada queixa relativamente ao crime alegadamente indiciado. Com efeito, o inquérito, autuado em 06 de junho de 2019, correu os seus termos, sendo que, no dia 18 de junho de 2019, o Ministério Público determinou a inquirição, na qualidade de testemunha, de AR "relativamente aos factos descritos a fls. 7 referente ao não pagamento da pensão de alimentos e respetivo período". Aí se determinou dever a mesma "esclarecer, para além do mais, se tem conhecimento de que o denunciado é ou era titular de bens imóveis ou móveis, se o mesmo aufere rendimentos de trabalho, qual o valor, desde quando e em que entidade patronal; se o não pagamento reiterado da pensão de alimentos pelo denunciado colocou com causa a satisfação de necessidades de alimentação, vestuário, educação e saúde do filho DS; se teve necessidade de recorrer ao auxílio de outrem para fazer face às despesas de alimentação, vestuário, educação e saúde do menor; em caso afirmativo, deverá identificar nos autos as pessoas que prestaram tal auxílio; qual o auxílio/ajuda (dinheiro, roupa, medicamentos, artigos escolares, etc.) concretamente prestado por outrem, e indicar o valor total das prestações em dívida", bem como "indicar testemunhas dos factos".

Tal diligência foi efetivada no dia 18 de setembro de 2019, não tendo AR declarado pretender procedimento criminal contra o ora arguido - cfr. auto de inquirição de fls. 34 a 35. Subsequentemente, já no transato dia 09 de fevereiro de 2021, foi determinado pelo Ministério Público que fosse estabelecido contacto telefónico com AR para que a mesma esclarecesse se IS procedera ao pagamento de quaisquer quantias a título de pensão de alimentos "até à presente data" - cfr. fls. 193; conforme se vê do teor de fls. 196, AR informou que o ora arguido "ainda não pagou nada relativo à pensão de alimentos do filho, a não ser 50 euros que deu por altura do Natal passado, após insistência da declarante".

Ora, estando em causa, conforme supra se disse, um crime de natureza semipública e não tendo sido exercido o direito de queixa pela progenitora de DS (nunca tendo aquela expressado a intenção de que o progenitor do menor fosse perseguido criminalmente), coloca-se a questão de saber se o Ministério Público tinha legitimidade para dar início ao procedimento criminal.

Com relevo, estabelece o art. 113.°, 5, do Código Penal que: "Quando o procedimento criminal depender de queixa, o Ministério Público pode dar início ao procedimento no prazo de seis meses a contar da data em que tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse do ofendido o aconselhar e: a) Este for menor ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa; ou b) O direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas ao agente do crime".

Flui, pois, deste normativo que, estando em causa um crime de natureza semipública e sendo o ofendido menor, o Ministério Público poderia dar início ao processo, no prazo de 6 meses a contar da data em que teve conhecimento do facto e dos seus autores e independentemente da existência de queixa, se o interesse do ofendido o aconselhasse.

O poder-dever de dar início ao processo reclama, assim, um juízo de ponderação dos interesses do ofendido, devendo o Ministério Público dar início ao processo, independentemente da (in)existência de queixa, sempre que, feita tal ponderação, o interesse do ofendido o aconselhar - juízo este que, conforme tem sido entendido de forma pacífica na doutrina e jurisprudência, é insindicável.

Todavia, a lei reclama que o processo se inicie com um concreto juízo de ponderação dos interesses do menor e que tal ponderação conduza à conclusão de que o interesse do menor aconselha a abertura do processo de inquérito e o seu prosseguimento - como se o crime investigado, a partir desse momento, revestisse natureza pública [pois que será irrelevante, a partir desse momento, a manifestação de vontade - pelo menor que entretanto complete 16 anos de idade ou, antes dessa data, pelo representante legal do mesmo - no sentido do não prosseguimento do procedimento criminal.

Pode ler-se, a este propósito, na decisão proferida pela e instância no âmbito do processo n." 1034/10.2TAALM, apreciada no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.04.2013 (disponível em www.dgsi.pt, relator, Artur Vargues, processo n." 1034/10.2TAALM- 5):

"Embora se trate de uma norma geral e abstracta, não podemos ignorar que tal preceito teve na sua génese a problemática dos crimes sexuais, em que, por os titulares do direito de queixa poderem ter sido participantes no crime ao terem proporcionado a criação de perigo para o menor e, eventualmente o encobrimento ou conivência com a situação, se justifica que o Estado, como responsável pela salvaguarda e protector dos interesses dos menores, possa dar início ao processo, perseguindo os autores dos factos, independentemente da existência de queixa. Por tal razão impõe-se ao Mº Pº, caso decida dar início ao processo, justificar por que razão o faz. Na verdade como refere Rui do Carmo (in O Abuso Sexual de Menores, 2ª ed., pág 54) «na decisão do MºPº de dar início ao procedimento criminal sem queixa ou de perseguir apesar da desistência da queixa, deve ser fundamentada – o que resulta de um dever de justificação da posição assumida face aos representantes legais do menor vítima e também face a este, nos casos em que lhe deve ser assegurado o direito de participação na formação de tal decisão (…) exporá as razões de facto que, em concreto, suportam a conclusão que o interesse da vítima, objectivamente impõe o procedimento criminal».

Adiante-se, ainda assim, que se o dever de fundamentação dos actos decisórios, em conformidade com o artº 97º do CPPenal, reclama que o MºPª justifique o inicio do processo estando em causa um crime de natureza sexual, maior dever de fundamentação reclamaria uma decisão de abertura de um processo crime no caso em apreço, em que se investigou a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência – o interesse do menor na abertura de um processo crime é seguramente mais evidente num crime de natureza sexual do que num crime (doloso) contra a integridade física, e menos evidente o será se o crime de ofensa à integridade física tiver sido praticado por negligência”.

No sentido da necessidade de fundamentação expressa – que não pode, segundo cremos, até por maioria de razão, deixar de aplicar-se à faculdade prevista no artº 113º, 5 do C.Penal. pronunciou-se o Ac.Tribunal Constitucional nº 403/2007, assim: “A atribuição desta faculdade ao Ministério Público, devendo ser, como o foi no caso, devidamente fundamentada, também não contende com os princípios da legalidade e da determinabilidade, estando fixadas na lei as condições que possibilitam o exercício da acção penal. A ponderação, a ser feita necessariamente caso a caso, da intensidade do interesse do menor, sendo, como é, rodeada da referida garantia de dever de fundamentação expressa, não permite a acusação de estarmos perante uma situação em que o risco da arbitrariedade e da subjectividade seja incompatível com os princípios constitucionais”.

Neste Acórdão o Tribunal Constitucional firmou o seguinte juízo:: “a) Não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 113º, nº 6, e 178º, nº 4 do C.Penal, interpretados no sentido de que, iniciado o procedimento criminal pelo MºPº por crimes de abuso sexual de crianças e de actos sexuais com adolescentes, independentemente de queixa dos ofendidos ou seus representantes legais, por ter entendido, em despacho fundamentado, que tal era imposto pelo interesse das vítimas, a posterior oposição destas ou dos seus representantes legais não é suficiente, por si só para determinar a cessação do procedimento (…)”

Citando este Acórdão do Tribunal Constitucional, pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.03.2011, "( .. .) daqui se retira um dever de fundamentação expressa da faculdade atribuída ao Ministério Público - já que no caso, a legitimidade do MºPº ao contrário do que sucede ordinariamente, é de apreciação casuística, com base num juízo de adequação e oportunidade (vide. Ac. da Relação do Porto de 07.06.06) - sob pena de se correrem riscos de arbitrariedade e subjectividade incompatíveis com os princípios constitucionais da legalidade e da determinabilidade. No mesmo sentido do citado Acórdão do TC. exigindo expressa fundamentação do despacho do Ministério Público, se pronunciou o AC. do STJ de 07 de Julho de 1999, de onde se repesca esta impressiva passagem " .. .flui que a intervenção do Ministério Público deixou de ser automática, não estando apenas dependente da idade, exigindo a lei, agora ao Magistrado que pondere a situação e equacione as vantagens e os inconvenientes apoiado em dados objectivos que o expresse, para que se possa qjuízar se o interesse da vítima aconselha o desencadeamento da acção. Do exame dos autos, não resulta que o Ministério Público tivesse feito qualquer ponderação alicerçada em factos objectivos ( .. .). Ora, no caso em apreço, diferentemente do que acontecia no caso do Acórdão do Tribunal Constitucional, não sabe este tribunal nem, mais grave ainda, sabe o arguido, com o mínimo de segurança e certeza jurídicas a que título o MºPº iniciou o presente procedimento, se confiando na idade inferior a 16 anos da vítima e portanto, na validade da queixa apresentada pela sua mãe, se pretendendo actuar ao abrigo do artigo 178º n. °4 do CP, sendo que em obediência à lei, o Ministério Público tem a sua actividade condicionada a requisitos de actuação predefinidos que não se podem confundir com o exercício de um mero poder discricionário, pelo que em obediência ao princípio da legalidade da acção penal impunha-se-Ihe que fundamentasse expressamente o respectivo despacho (não existe sequer qualquer despacho do Ministério Público que faça em inquérito referência ao artigo 178º n° 4 do CP)) aliás, na exacta medida em que a lei diz que o deve fazer - artigos 9 7º n. ° 4 do CPP em conjugação com o artigo 178º n. ° 4 do CP. E «o dever de fundamentação explica-se pela necessidade de justificação do exercício do poder estadual, da rejeição do segredo nos actos do Estado, na necessidade de avaliação dos actos Estaduais, aqui se incluindo a controlabilidade, a previsibilidade, a fiabilidade e a confiança nos actos do Estado".

Ora, conforme acima se disse, no caso ora em apreço, o Ministério Público ao dar início ao processo de inquérito, não proferiu qualquer decisão justificativa da abertura do processo, nos termos sobreditos, não podendo, por essa via, sustentar-se a sua legitimidade na previsão do artº 113º, 5º do C.Penal.

Pelo exposto, não tendo o representante legal do menor DS apresentado queixa contra o ora arguido (condição de procedibilidade), não tendo o inquérito sido legalmente iniciado ao abrigo do artº 113º nº 5 do C. Penal (na medida em que foi totalmente omitida a prolação do despacho em que se determinasse a abertura do inquérito ao abrigo daquele preceito em que se fundamentasse, expressa e casuisticamente, o uso de tal faculdade, em obediência ao princípio da legalidade da acção penal) importa concluir não ter o Ministério Público legitimidade para a acção penal.

Em conformidade, julga-se verificada a falta de legitimidade do Mº Pº para a promoção do presente procedimento criminal e, em conformidade, declaro extinto o mesmo procedimento, nos termos conjugados do artº 250º nº 5, do C. Penal e 49º do CPPenal.

Notifique.

Oportunamente, arquive-se os autos.

III- Apreciação do recurso

O objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação, artºs 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.

As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).

Perante as conclusões do recurso a questão a decidir consiste em saber se a decisão recorrida deve ser revogada na parte em que determinou o arquivamento dos autos, ou se os autos devem ser remetidos ao Ministério Público, enquanto titular da acção penal.

O Ministério Público alega que a decisão sobre a falta de legitimidade do Ministério Público para a acção penal constitui uma questão prévia, que obsta ao conhecimento do mérito da causa, nos termos do artº 311º, nº 1, do CPPenal, que forma apenas caso julgado formal e que nada obsta à reformulação de nova acusação.

Cumpre decidir.

O arguido foi acusado da prática de um crime de violação de obrigação de alimentos, p. e p. no artº 250º nº 1 do C. Penal, que nos termos do nº 4 do mesmo preceito é de natureza semi-pública.

O processo foi apresentado à Mma Juiz de julgamento nos termos do artº 311º do CPPenal, que ao proceder ao saneamento dos autos, nos termos do nº 1 daquele preceito, declarou a ilegitimidade do Ministério para a promoção do procedimento criminal por virtude de AR, mãe do menor DS, não ter apresentado queixa, no prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos factos, nem o Ministério Público proferiu qualquer decisão justificativa da abertura do processo, no prazo referido, a partir da data em que teve conhecimento dos factos e do seu autor, como resulta do artº 113º nº 5 do C.Penal.

A queixa, em relação aos crimes semi-públicos (artº 49º do CPPenal), bem como em relação aos crimes particulares (artº 50º do CPPenal) traduz a vontade do ofendido de instauração do procedimento criminal pela prática de determinado facto contra o seu autor.

Como refere o Prof. Figueiredo Dias em “ As Consequências Jurídicas do Crime” pág. 665 “Queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos através do qual o titular do respectivo direito (em regra o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra a pessoa com ele relacionada”.

Nos crimes semipúblicos e particulares a existência de queixa é um pressuposto processual, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, na obra citada a pág. 663, que “ contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efectivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e razão de ser” isto é, constituem um pressuposto positivo de punição, completamente autónomo dos elementos constitutivos do crime.

No que respeita à forma da queixa, não existe uma fórmula de apresentação, pelo que basta a pretensão inequívoca do seu titular de instauração de procedimento criminal contra o responsável pelos factos que relata.

Quanto ao prazo estabelece o artº 115º, nº 1 do C. Penal no seu nº 1 que “O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz”

O prazo para o exercício do direito de queixa é de seis meses e é um prazo de caducidade ou de preclusão exterior ao exercício processual desse direito e como tal um prazo perentório fixado na lei.

Como salienta Carvalho Fernandes, em “Teoria geral do Direito Civil II: Fontes conteúdo e garantias da relação jurídica, Universidade Católica”, 5ª Edição, pág. 706, o direito não sendo respeitado extingue-se pelo seu não exercício dentro do limite temporal fixado na lei.

O período de tempo decisivo para a contagem do prazo é aquele que medeia entre a tomada de conhecimento do facto e a apresentação da queixa, no caso concreto, por parte da mãe do menor, ou a apresentação por parte do Ministério Público de decisão justificativa da abertura do processo, nos termos do artº 113 nº 5 do C.Penal.

A punição efetiva de um facto que integra um crime semi-público depende não só de exigências substantivas, mas também da verificação de condições de procedimento.

Ora, em relação ao “pedaço de vida”, retratado na acusação não foi apresentada queixa por parte da mãe do menor, nem foi apresentada decisão justificativa por parte do Ministério Público da abertura do processo, então, o procedimento criminal extinguiu-se e por isso não podia iniciar-se, e caso já se tenha iniciado não pode prosseguir.

Assim, o Ministério Público não tinha legitimidade processual para dar inicio ao procedimento criminal contra o arguido, pelo crime que lhe é imputado nos presentes autos, e dado que este elemento é autónomo em relação aos elementos constitutivos do crime, isto é, constitui um pressuposto da punição, que se extinguiu impõe-se manter a decisão recorrida e nesta sequência determinar o arquivamento dos autos.

IV- Decisão

Termos em que acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência mantem-se a decisão recorrida.

Sem custas.

Notifique

Évora, 22 de fevereiro de 2022

(texto elaborado revisto pelo relator, artº 94º, nº 2 do CPPenal)

José Maria Martins Simão

Maria Onélia Vicente Neves Madaleno