Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANA BARATA BRITO | ||
Descritores: | CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMÓVEL COM CARTA CADUCADA SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO DESPENALIZAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 07/11/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | 1. O art. 2º nº 2 do Código Penal, que trata da (aplicação da lei no tempo) lei despenalizadora, é a norma que regula as situações de conversão de crime em contra-ordenação, atenta a diferente natureza qualitativa do ilícito. 2. A utilização alternativa do n.º 4 do mesmo art. 2º, que prevê a aplicação de lei penal favorável, pressuporia que a contra-ordenação se confrontasse com o crime numa relação de grau ou de quantidade, o que não se verifica. 3. Se a conduta do agente já não constitui crime no momento da aplicação da lei, se ainda não era contra-ordenação no momento da sua prática, e se inexiste norma transitória que trate a sucessão, impõe-se fazer operar a lei descriminalizadora, conforme art. 2º, nº 2 do Código Penal e art. 29º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa. 4. Mas independentemente da ocorrência desta sucessão de leis no tempo, e da relevância dos factos omitidos na sentença agora (e por causa dela) ao nível da ilicitude, as concretas circunstâncias da falta de carta de condução válida sempre seriam necessárias à decisão condenatória, por indispensáveis a uma conscienciosa aferição do grau de culpa e à determinação da pena. 5. Cumpriria diferenciar, também ao nível da culpa, entre o condutor que não possui título válido porque nunca obteve carta de condução, e aquele que apenas o deixou caducar sem renovação. [1] | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. No Processo n.º 595/11.3GTABF do 3º juízo do Tribunal Judicial de Albufeira foi proferida sentença em que se decidiu condenar o arguido J como autor de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, do art. 3°, n° 2 do D.L.2/98, de 03.01, na pena de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros), no total de 350,00 (trezentos e cinquenta euros). Inconformado com o assim decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo que: “O arguido J, foi pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, no total de 350,00 €. A questão em causa nos autos centra-se no seguinte facto: da punibilidade da condução de veículo automóvel com título caducado por parte do arguido – Princípio da aplicação da lei mais favorável. O arguido habilitou-se a conduzir em 29/12/1976, tendo a sua carta de condução caducado no dia 18/07/2008, sendo que os factos dados como provados ocorreram no dia 24/06/2011, ou seja, quase três anos após a caducidade da carta do arguido. O artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, prescreve que o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais. Se à data dos factos tal condução era punível a título criminal, posteriormente, em 05/11/2012, entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 138/12012, que deu nova redacção ao Código da Estrada, mormente ao seu artigo 130.º, n.º 3, alínea d) e n.º 5, que agora dispôs, sob a epígrafe, "Caducidade e cancelamento dos títulos de condução", que: “o título de condução é cancelado quando tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido. Os titulares de título de condução cancelados consideram -se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido”. Por sua vez, o n.º 7 do referido preceito legal passou a estipular o seguinte: “quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de € 120 a € 600.” Assim sendo, por força do disposto no n.º 7 do artigo 130.º do Código da Estrada, a conduta do arguido passou a ser punida a título de contra-ordenação sendo-lhe, patentemente, mais favorável, em concreto, o regime actualmente em vigor, razão pelo qual lhe é aplicável, nos termos do n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal. Assim sendo, deveria o arguido ter sido absolvido da prática do crime de que vem acusado.” O arguido não respondeu ao recurso. Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência. Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência. 2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados: “1. No dia 24 de Junho de 2011, cerca das 11:00 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ----LB, pela A2, km 235,300, área desta comarca, sem que para tal se encontrasse legalmente habilitado, com a respectiva licença de condução, que bem sabia se necessária para o efeito; 2. O arguido não era, à data, detentor de qualquer licença que o habilitasse a conduzir; 3. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei; 4. Apurou-se, ainda, que: 5. O arguido exerce a profissão de motorista; 6. O arguido não tem antecedentes criminais.” Foi consignada a inexistência de factos não provados. 3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão a apreciar respeita à punibilidade da condução de veículo automóvel efectuada pelo arguido com título caducado, tendo em vista a sucessão de leis no tempo. Na sentença, fundamentou-se o enquadramento jurídico dos factos provados da forma seguinte: “O arguido vem acusado da prática de determinados factos que o terão feito incorrer num crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3°, nº.1 e 2 do Decreto-Lei n° 2/98, de 03 de Janeiro. Dispõe este normativo que 1. Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2. Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel, a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias". Trata-se de um tipo de crime de perigo abstracto, não se exigindo a produção de um concreto resultado, um dano concreto, apresentando-se o perigo, tão-só, como a motivação do legislador para punir tal conduta. O tipo de ilícito em apreciação consuma-se com a conduta do agente que conduza um veículo na via pública ou equiparada, sem que esteja habilitado legalmente para o efeito, o que oferece uma maior perigosidade ante a possibilidade ou mesmo iminência de ocorrência de danos para outros bens jurídicos, maxime pessoais, no âmbito da circulação estradal. Existe, pois, uma presunção por parte do legislador, as mais das vezes fundada numa observação empírica, de que a situação - de condução em estado de embriaguez - é perigosa em si mesma, do ponto de vista dos bens jurídicos penalmente tutelados (cfr. PAULA RIBEIRO DE FARIA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 1999, pág. 1093, a propósito do crime de condução em estado de embriaguez), sendo certo que o bem jurídico protegido pela norma é a segurança da circulação rodoviária. Com esta incriminação pretendeu-se evitar ou, pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, que tem vindo a aumentar, drasticamente, no nosso país e punir aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança da circulação rodoviária. São elementos objectivos do tipo de crime em presença: - a acção de condução; -de automóvel ou motociclo; -em via pública ou equiparada; -sem habilitação legal (cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Crimes Rodoviários, Universidade Católica Editora, 1996, pág.67,68). Nos termos do art. 121° do Código da Estrada, "só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito", sendo que, no caso dos automóveis ligeiros, é necessário ser titular de carta de condução de veículos de categoria B (cfr. arts. 122°, nº1 e 123°, nº1, al. b), todos do Código da Estrada). Para obter este título, além de outros requisitos, dispõe o art. 126°, nº. l, al. e) do Código da Estrada, que é necessária a aprovação "no respectivo exame de condução", sendo os documentos que titulam a habilitação para conduzir veículos motorizados emitidos pelas autoridades competentes e válidos para as categorias de veículos e períodos de tempo neles averbados (cfr. art. 122°, nº 3 do C. Estrada). Relativamente ao elemento subjectivo, o crime ora em análise é doloso, pelo que só as condutas dolosas que preencham este tipo de ilícito são puníveis, podendo o dolo manifestar-se em qualquer uma das suas modalidades (art. 14° do C. Penal). Da factualidade julgada provada, dúvidas não restam de ter o arguido cometido o crime de condução ilegal que lhe é imputado, posto que, no circunstancialismo de tempo, modo e lugar acima mencionados conduzia o veículo automóvel também supra identificado, na via pública, sem que, para tal, possuísse carta de condução válido, e, ainda assim, fê-lo sabendo que não possuía habilitação para tal e que a sua conduta era proibida e punida por lei. Não se levantam, deste modo, problemas ao nível do preenchimento dos elementos objectivos do ilícito, bem como, igualmente, quanto ao elemento subjectivo, no dolo, que, no caso dos autos, se afirma na sua forma directa (art. 14°, n º l do C. Penal). Pelo que, e em conclusão, não se verificando quaisquer elementos susceptíveis de integrarem uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, em face da matéria que resultou provada, resta referir que o arguido, com a sua conduta, preencheu todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime sub judice, cometendo, assim, um crime de condução de veículo na via pública sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3°, nº l e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03 de Janeiro.” Como se vê, o tribunal ignorou o tema trazido ao recurso, mais concretamente a entrada em vigor de lei nova, ou seja, a sucessão de normas substantivas no tempo. Na sentença, procedeu-se à aplicação dos artigos 3º nº 1do Decreto-Lei n.º 2/98 e 121º nº 1 do Código da Estrada, não curando de tratar das alterações ao Código da Estrada entretanto operadas pelo Decreto-Lei n.º 138/12012, entrado em vigor em data posterior à prática dos factos, mas anterior à prolação da decisão condenatória. E isto, desde logo, porque a sentença desconsiderou a circunstância de a falta de habilitação legal para conduzir ter concretamente emanado de uma omissão de revalidação de carta de condução anteriormente obtida. No entanto, como bem nota o Ministério Público na motivação do recurso, o arguido habilitou-se a conduzir em 29/12/1976, tendo a sua carta de condução caducado a 18/07/2008. Estes factos resultam documentalmente demonstrados a fls. 7, estão já articulados no auto de notícia que originou o inquérito, embora não apareçam na acusação. E tais factos omitidos na sentença repercutem-se na decisão de direito, do modo como o Ministério Público bem o apresenta no recurso. Mas independentemente da ocorrência de sucessão de leis no tempo, e mesmo para lá da circunstância de uma falta de habilitação com título válido poder realizar crime, aqueles factos que o tribunal desconsiderou nunca seriam indiferentes à decisão de direito. Mesmo que não relevassem a nível da ilicitude, eles seriam sempre necessários a uma conscienciosa decisão sobre a culpa, influindo na decisão sobre a pena. A este nível (da culpa), seriam sempre de considerar como distintas as situações, diferenciando o condutor que não possui título válido porque nunca obteve carta de condução, daquele que, tendo-o obtido, deixou caducar o título sem curar da renovação. Acresce que, no caso, e atenta a sucessão de leis no tempo, estes factos relevam também para a decisão, ainda ao nível da tipicidade, mais precisamente da ilicitude. Embora relevassem já, independentemente da alteração legislativa, repete-se, pelo que havia sempre de os ter incluído na matéria de facto da sentença. É certo que eles não constavam da acusação – que foi aliás proferida ao abrigo da lei antiga, à luz da qual se tratava de factos prescindíveis ao juízo sobre a ilicitude – o que, no entanto, nunca dispensaria o juiz de os vir a tratar na condenação, mesmo independentemente da alteração legislativa entretanto ocorrida, já que relevavam para a culpa e em sentido favorável ao agente. Ao não o ter feito, a sentença incorreu em vício do art. 410º, nº 2 do Código Penal. Na verdade, a “insuficiência da matéria de facto provada” ocorre quando o tribunal deixa de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de apropriada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa. E assim ocorre no caso presente, detectando-se a referida lacuna no apuramento da matéria de facto imprescindível à decisão de direito. Embora não expressamente arguido pelo recorrente, trata-se de vício de conhecimento oficioso, que despoleta o reenvio do processo para novo julgamento (art.426º, nº 1 do Código de Processo Penal). No entanto, no presente caso, os autos contêm os elementos para decidir da causa, pelo que se procederá tão só à supressão do vício. Para tanto, e tendo em conta a prova documental junta aos autos a fls. 7, considerar-se-á como aditamento à matéria de facto provada que o arguido se habilitara a conduzir veículos automóveis ligeiros de passageiros em 29/12/1976, não tendo procedido em 18/07/2008 (data em que completou 50 anos de idade), nem até à prolação da sentença, à renovação do título de condução. O artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro pune o condutor de veículo automóvel na via pública ou equiparada, sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada. O artigo 121.º, n.º 1, do Código da Estrada preceitua que só pode conduzir automóveis na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito com carta de condução. Tendo-se, o arguido, habilitado a conduzir automóveis em 29/12/1976, tendo a sua carta de condução caducado no dia 18/07/2008 por ter então completado os 50 anos de idade, e tendo os factos provados ocorrido no dia 24/06/2011, haveria que ter procedido à ponderação de regimes penais que se sucederam no tempo. Como pertinentemente assinala o Ministério Público, em 05/12/2012 entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 138/12012, que alterou o artigo 130.º, n.º 3, alínea d), n.º 5 e nº 7 do Código da Estrada, os quais passaram a ter a seguinte redacção: nº 3, alínea d) — “O título de condução é cancelado quando tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido”; nº 5 — “Os titulares de título de condução cancelados consideram -se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido”; e nº 7 — “Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de € 120 a € 600”. Ora, o título de condução de que o arguido era titular é de considerar caducado apenas desde 18/07/2008, por força do disposto no artigo 4.º, n.º 1, e 2, al. a), do Decreto-Lei n.º 45/2005, norma em vigor à data dos factos e ainda operante para o título de condução do arguido, conforme resulta da disposição transitória do art. 9º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 138/2012 (“As cartas de condução de qualquer dos modelos aprovados por legislação anterior cuja primeira emissão ou revalidação tenha ocorrido antes da entrada em vigor do presente diploma mantêm -se válidas pelo período nelas averbado, só devendo ser revalidadas no seu termo”), Assim, à data dos factos, a carta de condução do arguido encontrava-se caducada, mas ainda não cancelada. Sendo que a condução com título caducado (e ainda não cancelado) passou a ser punida com coima (a partir de 05/12/2012), ou seja, passou a integrar infracção contra-ordenacional. Infracção contra-ordenacional que a lei em vigor à data dos factos também previa, mas reservava-a, ao que ora interessa, à condução com título por revalidar até dois anos – “Quem conduzir veículo com título não revalidado nos termos … antes do decurso do prazo de … (dois anos) é sancionado com coima de € 120 a € 600”. Ao ter agora alargado o campo de aplicação do tipo contra-ordenacional, o legislador retirou do tipo criminal determinadas condutas, nas quais se inclui a ora em apreciação. E se à data dos factos a condução praticada pelo arguido realizava um crime, assim deixou de suceder por força de norma entretanto entrada em vigor (já depois da acusação mas ainda antes da sentença), que passou a punir essa mesma conduta como contra-ordenação. O Ministério Público conclui o recurso com um mero pedido de absolvição, nada promovendo quanto a eventual condenação do recorrido em coima. Também não se pronuncia, de modo expresso, no sentido contrário. A absolvição do crime da acusação resulta efectivamente do disposto no art. 2º do Código Penal, que trata da aplicação da lei no tempo, mais precisamente do nº 2, que prevê os casos de lei descriminalizadora (“o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções”). É esta a norma que regula a situação presente – de conversão de crime em contra-ordenação. Mas sempre se poderia discutir a utilização alternativa do n.º 4 do art. 2º do Código Penal, que prevê a aplicação de lei penal favorável (“quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicável o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente…”), originando então a condenação do recorrido em coima. Mas tal condenação pressuporia que o ilícito contra-ordenacional se confrontasse com o ilícito penal numa relação de grau ou de quantidade. Ou seja, de “menos” para “mais”, tratando-se assim de uma “espécie menor” de um “direito sancionatório público comum”. Seria, então, possível descortinar uma solução de continuidade, em situações de sucessão de leis como a presente, o que justificaria o seu enquadramento no nº 4 do art. 2º do Código Penal. As origens do ilícito de mera ordenação social, que nasceu precisamente para ser “não penal”, bem como a autonomia dogmática que mantém (revelada e sustentada no tratamento normativo de matérias como a sanção, a autoria, a culpa, o erro, a responsabilização das pessoas colectivas), afastam o entendimento de que se poderia tratar aqui de um “direito penal menor”. A diferença qualitativa (e não meramente quantitativa) entre os dois ilícitos (penal e contra-ordenacional) é declarada por autores como Eduardo Correia, Figueiredo Dias, Fernanda Palma, Taipa de Carvalho. E ditará a opção pela aplicação do nº 2 do art. 2º do Código Penal (aqui, Fernanda Palma manifesta posição contrária. Para a autora, apesar da diferente natureza dos ilícitos, é de relevar que “nestas situações existe um comportamento humano referente essencialmente idêntico, que assegura a unidade do facto e a continuidade normativa” – in “A aplicação da lei no tempo: a proibição da retroactividade in pejus, in Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal”, 1998, p. 425/6)). Esta opção (pela aplicação do nº 2 do art. 2º do Código Penal) resulta lógica e necessariamente da natureza do ilícito de mera ordenação social, como não direito penal menor. E também o ilícito contra-ordenacional está submetido ao princípio da legalidade - art. 2º do Regime Geral das Contra-ordenações - “Só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática”. O art. 3º nºs 1 e 2 do Regime Geral das Contra-ordenações (aplicação no tempo) preceitua que “a punição da contra-ordenação é determinada pela lei vigente no momento da prática do facto…” e que “se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada”. Assim, a conversão legislativa de uma infracção penal numa contra-ordenação constitui uma despenalização da conduta e tem necessariamente eficácia retroactiva. A responsabilidade penal extingue-se. Não havendo então norma transitória (como sucede no caso), as acções despenalizadas não podem vir a ser então julgadas como contra-ordenações, pois assim resulta da proibição da retroactividade da lei contra-ordenacional (que tem eficácia pós-activa, como se disse - art. 3º, nº 1 do Decreto-Lei 433/82). O facto sub judice já não é crime, no momento do julgamento, mas ainda não era contra-ordenação, no momento da conduta. Esta impunidade de comportamentos que integravam crime no momento da conduta, mas já realizam contra-ordenação no momento da aplicação da lei, resolver-se-ia com a existência de uma norma transitória, ou seja, de preceito(s) que previsse(m) um regime transitório para a conversão de crimes em contra-ordenações (a proibição da retroactividade da lei contra-ordenacional não está expressamente consagrada na Constituição da República Portuguesa). A criação de norma (transitória) é actividade reservada ao legislador. Na ausência dela, resta ao tribunal declarar a despenalização. É esta a posição amplamente desenvolvida por Taipa de Carvalho no seu “Sucessão de Leis Penais” (a pp 150-194 na ed. 2008). Centrando decisivamente o problema na natureza das contra-ordenações, este autor tece críticas à “rendição da doutrina e da jurisprudência” a “falaciosos argumentos da praticabilidade dos complexos sistemas sociais dos nossos dias”. E na intransigente defesa dos “mais genuínos princípios-fundamentos do Estado-de-Direito” considera não poder existir a mínima dúvida de que a conversão legislativa de uma infracção penal numa contra-ordenação constitui uma despenalização da respectiva conduta e, necessariamente, tem eficácia retroactiva”, que “a lei que cria contra-ordenações só se aplica aos factos praticados depois da sua entrada em vigor” e que, “se a lei que altera a qualificação do facto de crime para contra-ordenação, não estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às acções praticadas antes do seu início de vigência, tais acções que, necessária e constitucionalmente, são despenalizadas, também não podem ser julgadas como ilícito de mera ordenação social: Tornaram-se portanto juridicamente irrelevantes” (loc. cit. p. 152). Também o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciou já no mesmo sentido – “Se a lei que altera a qualificação de um facto como crime ou contravenção para contra-ordenação não estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às acções praticadas antes do início da sua vigência, tais acções devem considerar-se juridicamente irrelevantes pois que tendo sido, necessária e constitucionalmente, despenalizadas (como crimes ou contravenções) também não podem ser julgadas como ilícitos de mera ordenação social” (STJ 09-05-2002, Pereira Madeira). Por tudo, concluímos que a conduta do arguido já não constitui crime, não era ainda contra-ordenação à data da prática e, inexistindo norma transitória que trate a sucessão, impõe-se fazer operar a lei descriminalizadora (art. 2º, nº 2 do Código Penal e art. 29º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa), de acordo com o pedido formulado em recurso pelo Ministério Público. 4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em: Julgar procedente o recurso, revogando-se a sentença e absolvendo-se o arguido. Sem custas. Évora, 11.07.2013 (Ana Maria Barata de Brito) (António João Latas) __________________________________________________ [1] - Sumariado pela relatora |