Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2294/03-1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULO MOTORIZADO
INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
Data do Acordão: 02/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário:
I. Em face da actual redacção do art.º 69º, n.º 3 do CP, a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados apenas é aplicável a quem está habilitado a conduzir;
II. Do mesmo modo – e essencialmente pelas mesmas razões - a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no Código da Estrada para as infracções graves ou muito graves apenas é aplicável ao agente habilitado a conduzir.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em audiência, os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora:

No Tribunal Judicial da Comarca de Odemira correu termos o Proc. Sumário n.º 77/03.7GBODM, no qual foi julgado o arguido A., melhor identificado na sentença de fol.ªs 22 a 36, datada de 4.04.2003, tendo sido condenado:
Pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 2 do DL 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 95 (noventa e cinco) dias de multa à taxa diária de 3 (três) euros, o que perfaz a quantia global de 285 (duzentos e oitenta e cinco) euros, e – subsidiariamente – na pena de 63 (sessenta e três) dias de prisão;
Pela prática de uma contra-ordenação estradal, pela condução de veículo sob a influência de álcool, p. e p. pelo art.º 81º, n.ºs 1, 2 e 5 al.ª a) do Código da Estrada, com a redacção introduzida pela Lei 20/2002, de 21 de Agosto, na coima de 350 (trezentos e cinquenta) euros;
Pela prática de uma contra-ordenação estradal, relativa à falta de seguro, p. e p. pelo art.º 131º, n.ºs 1 e 2 do Código da Estrada, na coima de 320 (trezentos e vinte) euros;
Pela prática de uma contra-ordenação estradal, relativa à falta de selo de imposto de circulação, p. e p. pelos art.ºs 1º, 2º e 15º do DL 116/94, de 3 de Maio, na coima de 60 (sessenta) euros;
Em cúmulo, foi condenado na coima única de 730 (setecentos e trinta) euros e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de dois meses, ao abrigo do disposto no art.º 139º, n.º 2 do Código da Estrada.
Recorreu o Ministério Público daquela sentença – apenas no que respeita à sanção acessória de inibição de conduzir - concluindo a motivação do recurso que apresentou formulando as seguintes conclusões:
De acordo com o art.º 146º, al.ª m) do Código da Estrada, a condução de veículo com uma taxa de álcool no sangue superior a 0,5 g/l e inferior a 0,8 g/l constitui uma contra-ordenação grave.
Estabelece o art.º 139º, n.ºs 1 e 2 do mesmo diploma que as contra-ordenações graves e muito graves são sancionadas com sanção mínima de um mês e máximo de um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, conforme seja contra-ordenação grave ou muito grave.
A aplicação de tal sanção acessória pressupõe, no pensamento do legislador, que o arguido seja titular de licença ou carta de condução, caso contrário estará naturalmente inibido de conduzir, por não estar habilitado à prática dessa actividade.
Verificando-se a condução sob influência do álcool por quem não está habilitado a conduzir, como sucedeu no presente caso, tal sanção acessória não poderá ser aplicada, pelo que deve a sentença recorrida ser substituída por outra que “não condene o arguido na sanção acessória de inibição de conduzir”.
O arguido não respondeu e o Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, face à argumentação expendida pelo recorrente na motivação do recurso.
Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, procedeu-se a julgamento, com observância dos formalismo legal (art.º 423º do Código de Processo Penal).
Foram dados como provados na decisão recorrida os seguintes factos:
No dia ... de 2003, pelas ... horas, na Rua ... , área da Comarca de Odemira, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ... , pertencente a A.
Tendo sido fiscalizado por uma patrulha pertencente ao Posto Territorial de Vila Nova de Milfontes, por ter tido intervenção em acidente de viação, o mesmo não era titular de qualquer licença que legalmente o habilitasse a conduzir o veículo acima referido.
Foi ainda o arguido submetido ao teste de pesquisa de alcoolémia no sangue, tendo acusado uma taxa de 0,71 g/l.
O arguido circulava com o referido veículo sem ter seguro de responsabilidade civil obrigatório, bem como selo de imposto de circulação.
Do acidente resultaram apenas danos materiais.
O arguido sabia que não podia conduzir o aludido veículo na via pública, por não estar legalmente habilitado para o efeito, e, apesar disso, conduziu-o, da forma descrita.
Antes de iniciar a condução o arguido ingeriu bebidas alcoólicas em quantidade determinada, mas sabendo que tal lhe causaria uma TAS igual ou superior a 0,5 g/l.
O arguido tinha conhecimento de que não podia ingerir tais bebidas e seguidamente conduzir veículos automóveis, mas não se absteve de incorrer em tal conduta.
O arguido sabia, ainda, que para circular com o veículo na via pública tinha de ser detentor de seguro de responsabilidade civil automóvel, bem como de selo de imposto de circulação.
O arguido agiu de forma voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei como crime.
O arguido não tem antecedentes criminais, não tem filhos, tem carro próprio, mora com a companheira em casa da mãe desta, pelo que não paga qualquer montante pecuniário a título de renda, e dedica-se, temporariamente, desde 11 de Março de 2003, à apanha de morangos, auferindo por cada dia de trabalho a quantia de 15 euros, sendo que trabalha todos os dias, excepto ao Sábado; não tem quaisquer outros bens ou rendimentos.
É sabido que as conclusões do recurso delimitam o âmbito do conhecimento do mesmo e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (art.ºs 402º, 403º e 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, e, a título de exemplo, o acórdão do STJ, de 13.03.91, in Proc. 416794, 3.ª Secção, citado por Maia Gonçalves em anotação ao art.º 412º do C.P.P. Anotado e Comentado, 12.ª edição).
Atentas as conclusões do recurso interposto e o âmbito do mesmo, assim delimitado, sendo certo que recorrente delimitou expressamente o âmbito do mesmo, apenas uma questão é colocada à apreciação deste tribunal: é a de saber se ao arguido (que não está habilitado a conduzir veículos automóveis) devia (ou não) ser aplicada a sanção acessória da inibição de conduzir, pela prática da contra-ordenação p. e p. pelo art.º 146º, al.ª m) do CE (por conduzir sob o feito do álcool, com uma taxa de 0,71 g/l).
6.1. O arguido não é titular de carta de condução que o habilite a conduzir veículos automóveis.
Foi condenado – além do mais que aqui não importa considerar – pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos art.ºs 81º, n.ºs 1, 2 e 5 al.ª a), 146º, al.ª m) e 139º, todos do Código da Estrada (condução sob o efeito do álcool, com uma taxa de 0,71 g/l), na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de dois meses.
Entende o recorrente que a sanção acessória de inibição de conduzir não devia ser aplicada ao arguido porque – alega – tal aplicação “pressupõe, no pensamento do legislador, que o arguido seja titular de licença ou carta de condução” e que, quem não esteja habilitado a conduzir estará, naturalmente, inibido de conduzir.
6.2. A aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir veículos “com motor de qualquer categoria” ao agente que seja condenado pela prática de qualquer dos crimes previstos no art.º 69º, n.º 1, al.ªs a) a c) do CP, quando o agente não seja titular de carta de condução, oferece algumas dúvidas, principalmente depois da alteração introduzida ao art.º 69º, n.º 3 do CP pela Lei 77/2001, de 13.07. De facto, enquanto na anterior redacção se estabelecia que a proibição implicava, “para o condenado que for titular de licença de condução, a obrigação de a entregar...”- o que pressupõe que podia o condenado não ser titular de licença de condução – na actual redacção estabelece que “o condenado entrega na secretaria do tribunal... o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo”, o que parece levar a concluir que só será condenado em tal sanção acessória quem for titular de título de condução.
6.3. Assim o entendemos.
Reconhecemos que a questão não é pacífica, como nos dá conta o acórdão da RC de 28.05.2002, in Col. Jur., Ano XXVII, t. 3, 45, onde se decidiu que “o crime de condução em estado de embriaguez do art.º 292º do CP é punido com a sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados, mesmo que o condenado não seja titular da necessária habilitação legal para conduzir”, defendendo que se mantêm válidos os argumentos a favor da utilidade prática da aplicação de tal sanção que eram utilizados na vigência do art.º 69º do CP, redacção anterior à Lei 77/2001.
6.3.1. Em favor desta posição apontam-se:
- O comentário, a propósito, de Simas Santos e Leal-Henriques, in Código Penal Anotado, 1995, 541: “Na Comissão Revisora a consagração da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados... foi referida como correspondendo a uma necessidade de política criminal. A sua necessidade, mesmo para os não titulares de licença de condução, foi justificada para obviar a um tratamento desigual que adviria da sua não punição, tendo-se procurado abranger essa hipótese com a redacção dada ao n.º 3.
(...) mesmo no caso da falta de licença, a sanção não será inútil, já que ficará fazendo parte do cadastro do condenado, poderá, se vier a habilitar-se no prazo, ser aplicável efectivamente e é-o sempre também em relação aos veículos cuja condução exija aquela licença”;
- O facto da inibição abranger qualquer veículo motorizado ( e não apenas os veículos automóveis), sendo que o agente pode não estar habilitado para conduzir determinada categoria de veículos e estar habilitado para conduzir outra ou outras categorias;
- A redacção do art.º 126º do Código da Estrada, onde se estabelece – como requisito para a obtenção de título de condução – que o candidato não esteja a cumprir proibição ou inibição de conduzir, o que permite concluir que a inibição a quem não possui licença é uma inibição à posterior obtenção de licença.
6.3.2. Estes argumentos, salvo o devido respeito, parecem ter perdido actualidade, face às alterações introduzidas pela Lei 77/2001:
Por um lado, temos que presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9º, n.º 3 do Código Civil) e que a interpretação da lei deve ter em conta as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (mesmo artigo, n.º 1).
Por outro lado, e face a isso, o legislador – quando alterou o art.º 69º, n.º 3 do CP – não podia deixar de saber da polémica jurisprudencial que então existia quanto à aplicação (ou não) da sanção acessória da proibição de conduzir ao condenado, por qualquer dos crimes previstos no art.º 69º do CP, que não fosse titular de licença de condução; não obstante, e sabendo que um dos argumentos relevantes para concluir pela aplicação de tal sanção era a redacção que tinha o art.º 69º, n.º 3 do CP (onde se admitia a possibilidade de o condenado não ser titular de licença de condução), não deixou de alterar tal disposição, retirando tal argumento e deixando claro que o condenado “entrega... o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo”, o que afasta a ideia da aplicação da sanção acessória ao agente que não esteja habilitado com “título de condução”.
Por outro lado, não pode esquecer-se que licença de condução (expressão utilizada no n.º 3 do art.º 69º do CP, redacção anterior) não se identifica com “título de condução” – expressão utilizada na actual redacção do art.º 69º, n.º 3 do CP – pois o título de condução pode ser carta de condução, licença de condução ou outros títulos de habilitação a conduzir veículos a motor, como se vê dos art.ºs 122º a 125º do Código da Estrada; o uso de tal expressão não pode deixar de ser entendida, assim, como referindo-se ao título de condução que habilita o agente a conduzir o veículo com o qual cometeu o crime pelo qual foi condenado, pois é essa perigosidade do agente que se pretende evitar, sendo que bem pode acontecer que o mesmo esteja habilitado com outros títulos - significa isto, em suma, que a obrigação de entregar o título de condução (determinado) supõe a habilitação do condenado com um título de condução e que o mesmo não esteja apreendido, o que também resulta do facto do legislador, com a alteração que introduziu no art.º 69º, n.º 1, al.ª a) do CP pela Lei 77/2001, deixar de sancionar com a proibição de conduzir o crime de condução sem habilitação legal, o que hoje parece pacífico, pelo menos na Secção Criminal desta Relação.
Por outro lado, os argumentos da Comissão Revisora acima sintetizados parecem afastados pela nova redacção dada ao art.º 69º, n.º 3 do CP, argumentos a que o legislador, ao efectuar tal alteração, não podia ser alheio, sendo certo que não vemos aqui qualquer desigualdade, porque são distintas as situações.
Por outro lado, ainda, o disposto no art.º 126º do CE, que se mantém em vigor, não afasta este entendimento, designadamente se tivermos em conta que aí se prevêem os requisitos para obtenção de título de condução e bem pode acontecer que o agente (habilitado com determinado título de condução) esteja inibido ou proibido de conduzir e pretenda obter outro título, para outra categoria de veículo, diferente daquele, tendo então justificação a proibição prevista no art.º 126º do CE.
6.4. Perguntar-se-á: que tem isto a ver com os autos?
Tem, é que estes argumentos valem, por maioria de razão, quando o agente for condenado pela prática de uma contra-ordenação grave ou muito grave.
Se o legislador, não obstante a severidade com que veio sancionar, pela redacção dada àquele preceito pela Lei 77/2001, os crimes previsto no art.º 69º do CP, no que respeita à sanção acessória (cujo limite mínimo e máximo elevou para o triplo), veio afastar a aplicação de tal sanção relativamente ao agente de qualquer dos crimes aí previstos não habilitado com título de transporte, não faz sentido nem tem justificação – quer legal, quer prática – que ao agente da contra-ordenação grave ou muito grave seja aplicada a inibição de conduzir se ele não está habilitado com carta de condução.
A razão que determina a necessidade da aplicação daquela sanção é a perigosidade que o agente representa, enquanto condutor, que exerce uma actividade (legal) para a qual está habilitado; não o estando, não faz sentido proibi-lo de exercer tal actividade (a condução), pois ele está já proibido, por lei penal, de a exercer.
Valem aqui as razões expostas supra quanto à interpretação do art.º 126º do Código da Estrada – é que, repetimos, bem pode acontecer que o agente esteja habilitado com um título de condução (licença de condução, por exemplo) e pretenda obter outro; nesse caso faz sentido o estabelecido no art.º 126º citado, ao impedir a obtenção de um título de condução a quem esteja proibido ou inibido de conduzir.
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto e, consequentemente, decide-se:
revogar a sentença recorrida, no que à sanção de inibição de conduzir aplicada ao arguido respeita;
manter a sentença recorrida quanto ao mais.
--
Sem tributação.

(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 3 / 2 / 2004

a) Alberto Borges
Fernanda Palma
FernandoCardoso
Ferreira Neto