Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
394/22.7GDFAR-C.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: DEBATE INSTRUTÓRIO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DIREITO DE PARTICIPAÇÃO
DIREITO DE DEFESA
COARGUIDO NÃO REQUERENTE
Data do Acordão: 12/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. O debate instrutório está sujeito ao princípio do contraditório, matriz do processo penal moderno e democrático, que assegura aos arguidos a possibilidade efetiva de influenciar o desenvolvimento do processo.
II. Tal garantia estende-se - em toda a linha - aos coarguidos (e seus defensores) não requerentes da abertura da fase de instrução, mas que estejam acusados como coautores de crime imputado ao que a requereu, razão pela qual aqueles são obrigatoriamente notificados para participarem em tal diligência judicial (artigo 297.º/3 CPP).
III. A relevância da sua presença e participação no debate emerge, desde logo, das possibilidades que da decisão instrutória poderão decorrer para o devir processual.
IV. Daí que a interdição ao defensor de coarguido não requerente da abertura de instrução, de formular as suas conclusões sobre a suficiência dos indícios e/ou sobre questões de direito de que dependa o sentido da decisão instrutória, constitua a nulidade prevista na no artigo 120.º/2-d) CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora:

A - Relatório:
Nos autos de recurso independente em separado do processo comum singular supra numerado e que dele constituem o apenso C, da Comarca de Faro – Juízo Central Criminal de Faro, J2 – a arguida AA, interpôs recurso (interposto a 26-09-2023 – pags. 7 a 16 deste apenso), do despacho de 25-09-2023 do Mmº Juiz de Instrução Criminal da Comarca de Faro – que consta de fls. 4 a 6 deste apenso – e que não permitiu o uso da palavra ao mandatário da arguida – não requerente da instrução - para conclusões finais.
A arguida AA foi ouvida em declarações no acto.
O processo foi distribuído neste Tribunal a 07-11-2023.
O Exmº Procurador-geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer a 09-11-2023.
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Da decisão do Mº Juiz que não concedeu a palavra ao mandatário da arguida, ouvida em declarações no debate instrutório de 25-09-2023, interpôs a arguida AA o presente recurso, que subiu em separado, com as seguintes conclusões:
1º - Estando a Arguida, ora Recorrente, doutamente Acusada em co-autoria com os demais Arguidos, verificando-se a conexão, a mera circunstância de não ter requerido a abertura de Instrução, não a deverá inibir de se pronunciar, em sede de Debate Instrutório, onde esteve presente, onde prestou declarações, e onde, como imperativo legal, esteve assistida pelo seu Mandatário.
2º - O impedimento constante do douto Despacho de que ora se recorre, que temos por Inconstitucional, está ferido de Nulidade, oportunamente invocada, cujas legais consequências serão o regresso dos autos à fase de Debate Instrutório, que terá que ser repetido.
3º - A presença do Mandatário da ora Recorrente, na diligência de Debate Instrutória, obrigatória, não se limita ao direito de assistir, negando-se-lhe o direito de se manifestar, alegando como os demais intervenientes.
4º - Como referido supra, a não permissão de prestação de alegações, em sede de Debate Instrutório, configura Nulidade, nos termos do disposto no artigo 120º nºs 1 e 2-c) do Código de Processo Penal, que a ora Recorrente invocou no próprio acto, e, não tendo sido atendida, logo manifestou intenção de apresentar o presente Recurso,
5º - pelo que, nos termos do disposto no artigo 122º-1 do Código de Processo Penal, a ora invocada nulidade torna inválido o Debate Instrutório, que deverá ser repetido (nº 2 / artº 122º C.P.P.) bem como os actos que lhe sucederem.
6º - Mesmo que se não tratasse de uma Nulidade, mas de uma Irregularidade, o Acto continuará a ser inválido, havendo que o repetir, porquanto o Mandatário da ora Recorrente imediatamente o invocou, bem como, perante o indeferimento, logo manifestou intenção de apresentar o presente Recurso.
7º - Igualmente, e havendo conexão, na medida em que todos os Arguidos estão doutamente acusados de comparticipação, negando a possibilidade de prestação de Alegações ao Mandatário da Recorrente, o douto Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 24º-1-d) do Código de Processo Penal, uma vez que a Notificação do artigo 297º-4 do C.P.P., significa que nenhum Arguido é Notificado para não se poder “manifestar”, alegando, como os demais, limitando-se a assistir.
8º - Para além do referido supra, a negação do direito de alegar em sede de Instrução, por parte da Arguida não requerente da Instrução, revela-se Inconstitucional, nos termos do disposto nos artigos 18º e 32º-1-3 da Constituição da República Portuguesa.
9º - Devia, pois, o douto Tribunal “a quo”, ter permitido, como requerido pelo Mandatário da Arguida AA, a prestação de Alegações, nos termos do disposto no artigo 302º-4 do Código de Processo Penal, e não o tendo permitido, decidiu contra a CRP (artºs 18º e 32º/CRP), inconstitucionalmente, em violação, das disposições dos artigos 24º-1-d), 64º-1-c), 67º-1, 120º-1-2-c), 122º-2, 297º-4 e 302º-4, todos do Código de Processo Penal, pelo que, verificada a Nulidade oportunamente invocada, deverá o Acto ser anulado, determinando-se o regresso dos autos à fase de Debate Instrutório, o que deverá ser determinado em sede do presente recurso, que temos por merecedor de integral provimento.
Termos em que, deve o presente Recurso merecer provimento, consequentemente, reconhecendo-se a invocada Nulidade, se revogando o douto Despacho de Fls que, para além de Inconstitucional, configurando nulidade, negou, ao Mandatário da Recorrente, a possibilidade de produzir Alegações em sede de Instrução, com o fundamento de que, não tendo requerido a abertura de Instrução, apesar de acusada em co-autoria, havendo conexão, não lhe assistia tal direito, devendo determinar-se o regresso dos autos à fase de Instrução, com a consequente nulidade de eventuais ulteriores actos processuais.
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A Digna magistrada do M.P. junto do tribunal recorrido emitiu parecer defendendo a improcedência do recurso, concluindo:
1 – Insurge-se a recorrente contra o despacho que indeferiu o seu requerimento de formulação de conclusões em sede de debate instrutório, mas manifestamente não lhe assiste razão;
2 – A recorrente vem acusada em co-autoria com os demais arguidos, da prática dos crimes imputados na acusação, não tendo requerido a abertura da fase de instrução;
3 – Tal fase processual teve lugar porque os co-arguidos, BB e CC a requereram;
4 – Em sede de debate instrutório, o Mmo. Juiz concedeu a palavra para formulação de conclusões, sucessivamente, ao Ministério Público e aos/às Il. Mandatários/as dos arguidos requerentes da Instrução;
5 – O Il. Mandatário da recorrente solicitou palavra para formulação de conclusões, o que foi indeferido pelo tribunal a quo com o fundamento no facto de não ter sido requerente de instrução;
6 – É contra este despacho que se insurge a recorrente, sustentando que:
i) A decisão integra a nulidade a que alude o artigo 120.º, n.º 1 e n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal;
ii) Subsidiariamente, é inválido por padecer de irregularidade;
iii) A interpretação que o Tribunal a quo faz do artigo 297.º, n.º 3 do Código de Processo Penal é inconstitucional por violação dos artigos 18.º e 32.º, n.os 1, 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa.
7 – Pugna pela declaração de invalidade [nulidade ou irregularidade] de tal despacho e anulação de todos os actos a partir do momento imediatamente anterior ao do debate instrutório;
8 – Não lhe assiste razão, visto que:
- O despacho não enferma das invalidades assacadas;
- Ainda que assim se considerasse, as invalidades arguidas mostram-se sanadas; - Os efeitos de eventuais invalidades não são os por si referidos;
- Não se verifica qualquer inconstitucionalidade.
9 – A decisão recorrida não enferma de nulidade uma vez que não consta do rol dos artigos 119.º e 120.º do Código de Processo Penal nem existe outra disposição legal que comine o seu teor com nulidade;
10 – A recorrente argui a nulidade a que alude o artigo 120.º, n.º 2, alínea c), que não se verifica no caso concreto;
11 – Porque cremos que a mesma pretendia referir-se à alínea d) de tal preceito, desde já referimos que a nulidade em causa por omissão de diligências em instrução apenas ocorre quando não se pratica o único acto legalmente obrigatório, isto é, o debate instrutório que, no caso, foi realizado;
12 – E a não concessão de palavra para formulação de conclusões ao Il. Mandatário da recorrente decorre do facto de essa não ser requerente da instrução, uma vez que esta apenas tem o direito de estar presente e de assistir aos actos de instrução, não acarretando a indicada nulidade ou outra qualquer invalidade;
13 – Note-se que o legislador apenas previu a obrigatoriedade, no caso de co-arguidos, de estes serem notificados da data em que se realizará o debate instrutório, não sendo sequer obrigatória a sua presença e a sua falta não implica substituição, nem a ausência de advogado/a estando o/a arguido/a presente implica a nomeação de outro/a;
14 – Os não requerentes de instrução conformam-se com a sujeição a julgamento, sendo sua opção não contraditar os elementos da acusação e as provas indicadas pelo Ministério Público;
15 – Não é, pois, igual, a intervenção de arguidos/as requerentes e não requerentes de tal fase processual;
16 – Ainda que V. Exas. considerem que o despacho recorrido padece de invalidade, sempre essa se encontra sanada pelo decurso dos prazos para a sua arguição – no caso da nulidade, até ao encerramento do debate instrutório, tal como dispõe a alínea c) do n.º 3 do artigo 120.º do Código de Processo Penal e, no caso de irregularidade, até ao final do próprio acto tal como determina o artigo 123.º, n.º 1 do mesmo diploma legal;
17 – Ao contrário do que afirma a recorrente, não foram arguidas por si, no seguimento do despacho recorrido, quaisquer nulidades ou invalidades, tendo apenas a recorrente solicitado que fosse exarado em acta que não lhe havia sido concedida palavra para formulação de conclusões;
18 – Não tendo sido respeitado um iter procedimental necessário, eventuais invalidades ocorridas ficaram sanadas;
19 – Pugna a recorrente pelo retorno dos autos à fase do debate instrutório, também não lhe assistindo razão nesta parte. Hipotizando-se, por cautela, a possibilidade de V. Exas. considerarem o despacho inválido e julgando que a invalidade foi arguida a tempo, entende o Ministério Público que nunca os actos subsequentes ao debate seriam afectados pois as invalidades apenas se comunicam aos actos posteriores se os afectarem de forma inelutável e a sua repetição apenas é ordenada se i) ocorrer essa comunicação e ii) for necessária a indicada repetição – artigo 122.º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Penal;
20 – Desde logo, a decisão instrutória não ficou afectada pelo acto, visto que não violou o disposto no artigo 307.º, n.º 3 do Código de Processo Penal. Do mesmo modo, não vemos como os actos que se lhe seguiram possam ter sido afectados por eventual invalidade do despacho recorrido;
21 – Por fim, saliente-se que também não assiste razão à recorrente no que tange à invocada questão de inconstitucionalidade;
22 - A recorrente defende que a interpretação de que a notificação a que alude o artigo 297.º, n.º 3 do Código de Processo Penal não implica que os não requerentes de instrução possam formular conclusões, é inconstitucional face ao vertido nos artigos 24.º, n.º1, alínea d), 64.º, n.º 1, alínea c), 67.º, n.º 1, 120.º, n.º 1 e 2, alínea c), 297.º, n.º 4 do Código de Processo Penal e artigos 18.º e 32.º, n.º 1 a 3 da Constituição da República Portuguesa, assim sindicando a violação:
- Das suas garantias de defesa;
- Da sua presunção de inocência; e
- Do direito a escolher defensor/a e ser por ele/a assistida em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado/a é obrigatória;
23 – Em primeiro lugar, referiremos que não nos parece que uma tal interpretação possa contender com o princípio da presunção de inocência. As alegações recursivas não evidenciam de que modo o despacho recorrido poderá ter colocado em causa esta garantia constitucional. A nosso aviso, o despacho recorrido não violou a proibição de presunção de culpa da recorrente, nem o princípio do in dubio pro reo;
24 - Do mesmo modo, não vislumbramos em que medida poderá ter sido colocado em causa o direito da arguida a escolher defensor/a e a ser por este/a assistido/a, visto que a arguida escolheu o seu Il. Mandatário e por ele foi assistida;
25 - Relativamente às garantias de defesa, o que a Constituição assegura, secundada pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos, é que seja concedido aos/às arguidos/as a possibilidade de ampla e efectiva defesa. Sem embargo, a este respeito, a jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça são convergentes na consideração da margem do legislador na definição da marcha do processo, cabendo, no entanto, ao julgador analisar se eventual modelo de processo configura um impedimento ilegal ou arbitrário que contrarie as garantias do processo criminal;
26 – O legislador nacional optou por distinguir a intervenção processual dos requerentes e dos não requerentes de instrução, sendo que, quanto aos segundos, apenas prevê como obrigatória a sua notificação da data da realização do debate instrutório para, querendo, estar presentes, o que nem sequer é obrigatório;
27 – Não existe previsão legal que implique que aos mesmos seja concedida palavra no debate para formulação de conclusões e tal opção legislativa não se nos afigura arbitrária nem contrária às garantias do processo criminal, visto que se trata de uma consequência de opção da recorrente;
28 – Com efeito, deduzida acusação, a recorrente teve a faculdade de requerer a abertura de instrução e de não a requerer, ciente de que, não o fazendo, seria submetida a julgamento. E a recorrente, apesar de se ter conformado com essa possibilidade, argumenta que o seu direito de defesa foi violado por não lhe ter sido possibilitado que formulasse conclusões num debate que nem teria lugar se estivesse apenas em causa a sua conduta processual;
29 - Não vemos que lhe possa assistir razão;
30 – Face ao exposto, deverá o recurso improceder, mantendo-se a decisão recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA!
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Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer afirmando que o recurso não merece provimento, devendo confirmar-se o despacho recorrido.
Foi observado o disposto no n. 2 do art. 417° do Código de Processo Penal.
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B - Fundamentação
B.1 – O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«Neste momento, pelo ilustre Mandatário da arguida AA foi pedida a palavra para efeitos de conclusões finais, não tendo sido deferida, porquanto pela referida arguida não foi requerida a abertura da instrução».
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B.2 – O objecto do recurso delimita-se pelo teor das conclusões do recurso, sendo certo que apenas duas questões são suscitadas, a invalidade processual do despacho recorrido e, subsidiariamente, a inconstitucionalidade que resulta da sua interpretação normativa.
Quanto ao primeiro ponto estávamos nós convencidos, por memória, de que o debate instrutório tinha como uma das suas essenciais características o exercício do contraditório.
Não sendo já a memória confiável naturalmente que fomos rever o CPP que, no seu artigo 298º nos assegura - e descansa quanto ao seu conteúdo - dizendo o seguinte:
Artigo 298.º
Finalidade do debate
O debate instrutório visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento.

Assente que esta é uma das características essenciais do debate instrutório, resta recordar o que a respeito do mesmo se concretiza nos artigos seguintes, designadamente os artigos 301º, nº 2 e 302º, nº 4 do diploma.
Assim:
Artigo 301.º
Disciplina, direcção e organização do debate
(…)
2 - O debate decorre sem sujeição a formalidades especiais. O juiz assegura, todavia, a contraditoriedade na produção da prova e a possibilidade de o arguido ou o seu defensor se pronunciarem sobre ela em último lugar.
(…)
E ainda que, finda a produção da prova:
Artigo 302.º
Decurso do debate
4 - Antes de encerrar o debate, o juiz concede de novo a palavra ao Ministério Público, ao advogado do assistente e ao defensor para que estes, querendo, formulem em síntese as suas conclusões sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios recolhidos e sobre questões de direito de que dependa o sentido da decisão instrutória.
5 - É admissível réplica sucinta, a exercer uma só vez, sendo, porém, sempre o defensor, se pedir a palavra, o último a falar.
Ora, no caso, o defensor da arguida acusada de, em co-autoria, ter praticado crimes de tão pouca gravidade como um crime de homicídio, um crime de sequestro, um de ofensa à integridade física qualificada, foi impedido de contraditar quanto à suficiência ou insuficiência de indícios e sobre questões de direito e, logo, insurgiu-se contra tal, afirmando pretender interpor recurso da decisão.
Como sabemos resulta do art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, que “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determina subordinados ao princípio do contraditório”.
Em virtude dessa estrutura acusatória, o juiz de julgamento encontra-se tematicamente vinculado à apreciação da acusação, em sentido material, o que constitui para o arguido uma garantia de defesa, na qual se inclui claramente o princípio do contraditório, que significa, conforme Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, volume I, pág. 523, (a) o dever e o direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; (b) o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; (c) em particular, direito do arguido de intervir no processo e de pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo (cfr. Acs TC ns. 54/87 e 154/87; (…).
Naturalmente sempre haverá quem, com um argumento ou outro, tente reduzir o contraditório a um simples pró-forma arredável por incómodo, mas que inelutavelmente reconduzem o actual processo penal português a um arremedo inquisitório que, na essência, põe em causa a própria inserção democrática do processo penal português.
O que não se justifica é trazer à colação o decidido no acórdão do TRC de 20-10-2014. Os fundamentos deste aresto e sua decisão inserem-se num universo factual e jurídico distinto.
Desde logo o que ali se encontrava em discussão era apenas a falta de advogado de arguido não requerente da instrução, que se encontrava notificado para o acto e não compareceu.
Tanto é que a nulidade invocada era a ausência do referido advogado. Isto é, a violação do disposto no artigo 64º, nº 1, al. b) do CPP e a correspondente nulidade, a prevista no artigo 119º, al. c) do diploma.
Ou seja, era uma questão de falta de representação, invocada por outro arguido.
Fazer a analogia de situações e retirar daqui que o arguido – mesmo o não requerente da instrução – não tem direito ao contraditório num caso de co-autoria é abusivo.
Por outro lado, a simples circunstância de se tratar de imputação de vários crimes em co-autoria e a necessidade de os notificar só realça a importância que a sua presença – e intervenção – tem no destino final do próprio despacho de pronúncia, precisamente porque a decisão tem necessárias consequências no seu destino processual penal.
E se o legislador - nesses casos - alerta para a necessidade de os notificar para, querendo, estarem presentes, não faz qualquer sentido relegá-los para a condição de “convidados silenciosos”, impedidos de exercerem o contraditório. É uma gritante contradição! É convidá-los para uma inutilidade!
E, naturalmente, não é necessária norma expressa plantada entre os artigos 297º a 309º do CPP que tal preveja. O princípio do contraditório resulta directamente dos preceitos constitucionais e não precisa de ser “repisado” em todos os capítulos do Processo Penal.
Por isso, como já afirmámos noutro local, argumentar com a inexistência de norma de tal jaez é recusar o pensamento jurídico.
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O diploma que vem de ser referido estabelece, no entanto, remédio para tais leituras no artigo 120º, nº 2, al. d), que dispõe:
Artigo 120.º
Nulidades dependentes de arguição
1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.
2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
(…)
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:
a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado;
(…)
c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;
(…).
E, é certo, o mandatário da arguida suscitou a nulidade do despacho no próprio acto e antes do encerramento do debate instrutório, anunciando o recurso. Anúncio que foi uma clara manifestação de inconformidade com o acto praticado.
Logo, o acto nulo não se pode considerar sanado, porquanto atempadamente suscitado, pelo que o disposto no artigo 410º, nº 3 do CPP é muito claro na afirmação de que «O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada».
Tal constatação acarreta, nos termos do disposto no artigo 122.º nº 1 do CPP, enquanto efeitos sequenciais da declaração de nulidade, a invalidade de todos os actos praticados, incluindo o do despacho de pronúncia ou não pronúncia e de todos os que se seguiram.
Em função do que se decide, a revogação da decisão implica a desnecessidade de análise da questão de inconstitucionalidade invocada que, por outro lado, seria claramente procedente se a decisão recorrida se mantivesse.
Por outro lado, a questão a decidir, a necessidade do contraditório no processo penal português, é questão reiteradamente encarada pela jurisprudência do STJ e do Trib. Constitucional de forma pacífica e afirmativa.
Ou seja, por essas razões o recurso é manifestamente procedente.
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C - Dispositivo:
Em face do exposto acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em declarar o recurso procedente, declarando-se nulo o despacho recorrido incluindo o despacho de pronúncia ou não pronúncia e de todos os actos que se seguiram.
Sem tributação.
Notifique.
Évora, 18 de Dezembro de 2023
(Processado e revisto pelo relator)
João Gomes de Sousa
João Carrola
Carlos Campos Lobo