Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MOREIRA DAS NEVES | ||
Descritores: | MEDIDA DE SEGURANÇA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DO INTERNAMENTO ACOMPANHAMENTO DA EXECUÇÃO DA MEDIDA | ||
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Data do Acordão: | 04/05/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. A previsão legal da medida de segurança de suspensão da execução do internamento encontra o seu esteio no princípio da proporcionalidade, previsto no § 2.º do artigo 18.º da Constituição. Com ela giza-se proporcionar ao agente as condições de prosseguir um tratamento em liberdade, que o mantenha equilibrado e, por essa via, controlada a perigosidade, que impedirá a repetição da prática de factos ilícitos-típicos. II. É justamente por isso que a medida de suspensão da execução do internamento incorpora, necessariamente, um conjunto de regras de conduta, «em termos correspondentes às prevenidas no artigo 52.º CP, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regime de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados» (artigo 98.º, § 3.º CP). III. Tendo esta medida alguma semelhança com a suspensão da execução da pena de prisão, aplicável aos imputáveis, não deverá, porém, com ela confundir-se. IV. O sucesso da medida depende, em boa medida, da proatividade da DGRSP, do Ministério Público e do tribunal em prol do programa da lei, devendo aquela posicionar-se como elo mobilizador e agregador dos serviços da comunidade que poderão contribuir para o sucesso do acompanhamento judicialmente determinado. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório 1. Por sentença de 20/11/2020 (transitada a 21/12/2020), por se ter considerado que AR, com os sinais dos autos, era inimputável relativamente aos crimes pelos quais fora acusado (dano e ameaça agravada), em razão da dimensão do perigo para bens jurídicos decorrente da sua situação clínica, foi-lhe aplicada a medida de segurança de suspensão da execução do internamento, na condição de o agente se submeter a tratamento médico-psiquiátrico, com frequência da respetiva consulta e cumprimento das prescrições e tratamentos que viessem a ser determinados; bem assim como a vigilância tutelar e acompanhamento pelos técnicos da DGRS, devendo esta articular com os serviços de saúde os detalhes operacionais relativos ao acompanhamento médico. O plano de acompanhamento foi homologado a 3/5/2021. Na sequência de informação da DGRSP (Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais), de 5/5/2021, na qual se dá conta de dificuldades, por banda do agente, no cumprimento das obrigações fixadas, veio a determinar-se a audição prevista no artigo 495.º do Código de Processo Penal (CPP), que decorreu a 8/7/2021, na sequência da qual, com fundamento no disposto no artigo 95.º, § 1.º, al. a) e § 2.º, ex vi artigo 98.º, § 6.º, al. b), ambos do Código Penal (CP), a Mm.a Juíza do Juízo Local de Ferreira do Alentejo, por despacho de 16/10/2021, considerou terem falido as razões que permitiram a aplicação daquela medida de segurança, impondo a revogação desta e determinando o sequente cumprimento do internamento. 2. Não se conformando com esta decisão dela veio recorrer o condenado, formulando as seguintes conclusões da sua motivação: «A. - O recurso incide sobre o douto despacho que decidiu revogar a suspensão da execução da medida de internamento e, em consequência, determinou que o arguido cumpra tal medida de internamento em estabelecimento clínico especializado, por período não inferior a três anos, a fim de se submeter a tratamento psiquiátrico. B. - Por douta sentença transitada em julgado a 21.12.2920, o Recorrente foi declarado inimputável, por força da perturbação cerebral orgânica delirante de que padece e da impossibilidade de avaliar a ilicitude do facto e de se determinar de acordo com essa avaliação, havendo ainda o fundado receio de praticar factos graves da mesma natureza; C. - Mais se determinou o internamento do Recorrente em estabelecimento clínico especializado, por período não inferior a três anos, a fim de se submeter a tratamento psiquiátrico, suspenso na sua execução, mediante o cumprimento das seguintes regras de conduta: a) - Submeter-se a tratamento médico psiquiátrico, frequentar a consulta com a periodicidade que lhe for exigida, seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados; b) – Aceitar a “vigilância tutelar” e o acompanhamento da DGRSP da área da sua residência e comparecer perante o técnico de reinserção sempre que tal lhe for ordenado”; D. – A suspensão decorria de 22.12.2020 a 02.12.2023; E. - A DGRSP veio informar que o Arguido não acatava as determinações que lhe foram impostas, tendo faltado á consulta de psiquiatria agendada para o dia 04.05.2021; F. - O Recorrente vive sozinho e só agora tem acompanhamento domiciliário da Santa Casa e visitas de uma sobrinha porque se encontra acamado; G. – E tem 84 anos de idade e desde 2019 que não há registo de qualquer incidente com o Recorrente; H. – Nos termos dos Artº 95º, 96º e 50 do C. Penal qualquer actuação do Arguido não implica ope legis, a revogação imediata da suspensão, pois é ainda necessária, que a sua actuação revele que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por via dela, serem alcançadas; I. - “É importante apurar as circunstâncias em que o Arguido violou as suas obrigações para se avaliar até que ponto as finalidades da suspensão não foram atingidas e com o apoio no princípio da culpa”. – Ac. STJ de 16-05.91. J. - Antes de decidir, o tribunal deve proceder a diligências com vista a averiguar das razões ou motivos que conduziram o condenado a não comparecer às entrevistas e respectivas consultas médicas; K. - O Recorrente vivia sozinho e sem apoio de qualquer familiar até há cerca de um mês e em momento algum a DGRSP deu nota deste facto; L. - O Recorrente foi declarado inimputável e por consequência carece de capacidade para avaliar a ilicitude das suas condutas, mas até à data continuou a ser tratado como adulto e pessoa responsável; M. - As convocatórias sempre foram feitas via CTT e desconhecemos se o Arguido sabe ler correctamente ou tem noção do seu teor; N. - O Recorrente sempre compareceu ás diligências deste Tribunal porque sempre foi ajudado e alertado pelo Defensor; O. - O Recorrente não tem um percurso criminal que justifique um internamento compulsivo. Os dois processos reportam-se a crimes da mesma natureza e com o mesmo ofendido. P. - Violou por isso, a douta decisão recorrida, as normas constantes dos Artº 95º, 98º e 50º todos do Código Penal e princípio da adequação, necessidade e proporcionalidade consagrada no Artº 27º da CRP.» 3. Na sua resposta o Ministério Público junto do órgão jurisdicional recorrido sustentou o bom fundamento da decisão judicial, sintetizando a sua posição nos seguintes termos: «1.- O recorrente, não negando que tenha havido incumprimento das obrigações determinadas, entende que tais violações não põem em causa os objectivos da suspensão do internamento e que o tribunal deveria ter procedido a diligências com vista a averiguar das razões ou motivos que conduziram o recorrente a não cumprir com as suas obrigações. 2.- Analisando o caso em concreto, consta dos autos que, em 05.05.2021, a DGRSP veio dar conta de que o recorrente não acatava as determinações que lhe foram impostas, tendo faltado à consulta de psiquiatria agendada para o dia 04.05.2021 e que ao ser confrontado com a necessidade de tratamento, “descontrolou-se, tornando-se ofensivo e mantendo um discurso delirante, designadamente dizendo que “ia a Setúbal contratar uma judiciária para deslindar tudo”. 3.- A DGRSP referiu, ainda, que os familiares e vizinhos do recorrente receavam a sua impulsividade e agressividade, bem como as suas ideias delirantes e persecutórias, concluindo que: “AR não aceita, nem compreende a sua condição judicial, nem o seu estado mental, o que inviabiliza o seu tratamento em regime ambulatório, colocando-se em situação de perigo, assim como, aos que dele se aproximarem, situação que colocamos à consideração dos autos.” 4.- Resulta, finalmente, dos autos, que se procedeu à audição do arguido, nos termos do disposto no artigo 495.º n.º 2 do Código de Processo Penal, bem como da Exma. Sra. Técnica da DGRSP responsável pelo acompanhamento daquele. 5.- E, no decurso de tal audição, ficou patente que o recorrente não reconhece que padece de um problema do foro psiquiátrico, o que verbalizou, tendo o seu discurso sido desconexo e agressivo. 6.- A Exma. Sra. Técnica, ouvida no mesmo acto, confirmou que o recorrente não tem consciência da sua situação jurídico-penal, nem da doença de que padece, o que torna impossível o seu acompanhamento em regime de ambulatório, uma vez que o mesmo falta às consultas que lhe são agendadas e não toma os medicamentos que lhe são prescritos, declarando, ainda, que os vizinhos e os familiares têm medo do mesmo. 7.- Pelo que, da análise dos autos em causa, é evidente que os mesmos contêm os elementos de prova mais do que suficientes para que se tivesse decidido pela revogação da suspensão do internamento aqui em questão. 8.- É por demais evidente que o recorrente não reconhece as patologias de que padece o que impossibilita o seu tratamento em regime de ambulatório, uma vez que o mesmo não comparece nas consultas, não toma a medicação que lhe é prescrita, nem aceita o acompanhamento da DGRSP, não acatando as orientações da Técnica responsável. 9.- Assim, face a tudo o “supra” exposto, é por demais evidente que o recorrente violou as regras de conduta que lhe foram impostas como condição de suspensão da medida de internamento, e o seu comportamento justificam o seu internamento, já que, com a adopção do mesmo, coloca-se a si a aos terceiros que com ele cruzam, em perigo.» 4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância de recurso, elaborou douto parecer sustentando a improcedência do recurso pelas razões já constantes da resposta elaborada na primeira instância. 5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta. 6. Efetuado exame preliminar e nada obstando ao prosseguimento do recurso foram os autos aos vistos e depois à conferência. Cumpre agora apreciar e decidir. II – Fundamentação A. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a única questão trazida a esta instância de recurso é a aferição da verificação dos pressupostos legais relativos à revogação da suspensão da medida de segurança de internamento. B. O despacho proferido pela Mm.a Juíza tem o seguinte teor: ««Por sentença proferida nestes autos, transitada em julgado em 21/12/2020, foi o arguido AR declarado inimputável relativamente à prática de um crime de dano e de um crime de ameaça agravada, em virtude de sofrer de perturbação cerebral orgânica delirante que o incapacitou de avaliar, no momento da prática dos factos, a sua ilicitude, e de se determinar de acordo com essa avaliação. Declarou-se, ainda, que em virtude da perturbação de que padece, a natureza e gravidade dos factos praticados se considera existir um fundado receio de que o arguido venha a praticar factos graves da mesma natureza, suscetíveis de afetar a integridade física, a saúde ou a vida de terceiras pessoas. Mais se determinou o internamento do arguido em estabelecimento clínico especializado, por período não inferior a três anos, a fim de se submeter a tratamento psiquiátrico, suspenso na sua execução, mediante o cumprimento das seguintes regras de conduta: “a. Submeter-se a tratamento médico psiquiátrico, frequentar a consulta com a periodicidade que lhe for exigida, seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados; b. Aceitar a «vigilância tutelar» e o acompanhamento da DGRSP da área da sua residência e comparecer perante o técnico de reinserção social sempre que tal lhe for ordenado. (…)” O período de suspensão da execução da medida de internamento situa-se, assim, entre 22/12/2020 e 22/12/2023. * Sucede que, em 05/05/2021, veio a DGRSP (cfr. ref.ª 1965779) dar conta de que o arguido não acata as determinações que lhe foram impostas, tendo faltado à consulta de psiquiatria agendada para o dia 04/05/2021 e, ao ser confrontado com a necessidade de tratamento, «descontrolou-se, tornando-se ofensivo e mantendo um discurso delirante, designadamente dizendo que “ia a Setúbal contratar uma judiciária para deslindar tudo”». Acrescentou, ainda, a DGRSP que os familiares e vizinhos do arguido receiam a sua impulsividade e agressividade, bem como as suas ideias delirantes e persecutórias, concluindo que: “AR não aceita, nem compreende a sua condição judicial, nem o seu estado mental, o que inviabiliza o seu tratamento em regime ambulatório, colocando-se em situação de perigo, assim como, aos que dele se aproximarem, situação que colocamos à consideração dos autos.” Acresce que é do conhecimento funcional deste Tribunal que no âmbito do processo n.º 90/19.2GAFAL o arguido foi, também, declarado inimputável, tendo-lhe sido aplicada a medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento por um período máximo de 6 meses, suspensa por igual período. Procedeu-se à audição do arguido, nos termos do disposto no artigo 495.º n.º 2 do CPP, bem como da Técnica da DGRSP responsável pelo acompanhamento daquele, conforme resulta do respetivo auto. No decurso de tal audição, foi visível que o arguido não reconhece que padece de um problema do foro psiquiátrico (o que verbalizou), tendo o seu discurso sido desconexo e agressivo. O mesmo se extrai das declarações da Técnica ouvida no mesmo ato que declarou que o arguido não tem consciência da sua situação jurídico-penal, nem da doença de que padece, o que torna impossível o seu acompanhamento em regime de ambulatório, uma vez que o mesmo falta às consultas que lhe são agendadas e não toma os medicamentos que lhe são prescritos. Declarou, ainda, que os vizinhos e os familiares têm medo do arguido. Na sequência desta audição, veio o Ministério Público promover que seja revogada a suspensão do internamento e que, em consequência, seja determinado o internamento do arguido em estabelecimento de saúde adequado ao tratamento das patologias de que padece. Notificado o arguido para se pronunciar, veio o mesmo alegar que os autos não reúnem elementos suficientes para se concluir pela revogação da suspensão, havendo que elaborar um relatório social sobre as condições económicas, sociais e familiares do arguido. ** Cumpre decidir: Dispõe o artigo 95.º aplicável ex vi do artigo 98.º n.º 6 al. b) do CP, que a revogação da suspensão do internamento ocorre quando: “a) o comportamento do agente revelar que o internamento é indispensável; ou b) o agente for condenado em pena privativa da liberdade e não se verificarem os pressupostos da suspensão da execução, nos termos do n.º 1 do artigo 50.º” Prescreve, ainda, o n.º 2 do mesmo artigo, que a revogação determina o internamento. Revertendo ao caso, resulta à saciedade dos elementos de prova recolhidos nos autos e que se sumariaram supra, que o arguido não reconhece as patologias de que padece o que impossibilita o seu tratamento em regime de ambulatório, uma vez que o mesmo não comparece nas consultas, não toma a medicação que lhe é prescrita, nem aceita o acompanhamento da DGRSP, não acatando as orientações da Técnica responsável. Tal comportamento constitui uma violação clara e inequívoca das regras de conduta a que ficou condicionada a suspensão da medida de internamento que lhe foi aplicada. Acresce que o arguido manifesta um discurso delirante, persecutório e agressivo, descontrolando-se quando confrontado com a patologia de que padece e com a necessidade de se submeter a tratamentos, sendo que os familiares e vizinhos receiam a sua impulsividade e agressividade. De todo o exposto se retira que não só o arguido violou as regras de conduta que lhe foram impostas como condição de suspensão da medida de internamento, como o seu comportamento o coloca em perigo, bem como aos terceiros que consigo se cruzam. Conclui-se, assim, que o comportamento do arguido, por si só, revela que se encontra prejudicada a esperança que este Tribunal depositou no seu tratamento em regime de ambulatório, quando decidiu suspender a medida de internamento aplicada, tornando-se, por conseguinte, indispensável o seu internamento. * Face ao exposto, ao abrigo do disposto no artigo 95.º n.º 1 alínea a) e n.º 2, aplicável ex vi do artigo 98.º n.º 6 al. b) ambos do CP, decide-se: i) revogar a suspensão da execução da medida de internamento aplicada ao arguido AR e, consequentemente; ii) determinar que o arguido cumpra tal medida de internamento em estabelecimento clínico especializado, por período não inferior a três anos, a fim de se submeter a tratamento psiquiátrico. Notifique. * Após trânsito: – Emita mandados de detenção e condução do Arguido ao estabelecimento clínico adequado ao cumprimento da medida de segurança de internamento. - Comunique ao TEP, à DGRSP e à DSIC.» C. Pressupostos legais da revogação da medida de segurança de suspensão do internamento Pelo presente recurso vem questionada a verificação dos pressupostos da revogação da medida de segurança de suspensão de internamento, aplicada ao agente pela sentença de 20/11/2020. Pois bem. O quadro normativo norteador das condições de revogação da medida de segurança de suspensão do internamento, previsto no artigo 95.º ex vi artigo 98.º, § 6.º, al. b), ambos do CP, postula que a mesma só deva ocorrer se o comportamento do agente revelar que o internamento é indispensável; ou se o agente for condenado em pena privativa da liberdade e não se verificarem os pressupostos da suspensão da execução, nos termos do § 1.º do artigo 50.º CP. Isto é, a lei reserva a passagem aos «remédios pesados» do direito penal, como é, evidentemente, o internamento do agente (como preconiza a DGRSP e o Ministério Público e decidiu o tribunal recorrido), apenas quando isso se mostrar ajustado e proporcional. Ou seja, quando a mobilização dos serviços disponíveis na comunidade se mostrar insuficiente para acautelar o perigo de repetição de factos ilícitos e a reintegração do agente na comunidade; ou quando o agente for condenado em pena privativa da liberdade e não se verificarem os pressupostos da suspensão da execução da pena (circunstância descartada no presente caso, por se não ter verificado). Sucede que neste caso o agente/recorrente não foi condenado em qualquer pena; e a demonstração da indispensabilidade do internamento do agente mostra-se longe de estar feita. Vejamos porquê. As condições fixadas na sentença, com referência à medida de segurança aplicada, foram as seguintes: o agente deveria submeter-se a tratamento médico-psiquiátrico; e para isso frequentar a consulta e seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados; bem assim, que os serviços da DGRSP contactariam o serviço de saúde frequentado pelo agente para ser estabelecido um plano de tratamento. Importará, também, relembrar, com base nos factos provados na sentença e nas informações prestadas pela DGRSP (de 13/4/2021, de 5/5/2021 e de 8/7/2021 – esta na diligência de audição), a situação pessoal do agente: AR nasceu a … (tem 84 anos de idade). É viúvo e vive só em casa própria. Possui como habilitações literárias apenas a 1.º classe, mas sabe ler e escrever. Tem uma sobrinha por afinidade (IR) com a qual os serviços mantêm contacto. Sofre de perturbação cerebral orgânica delirante, sendo a sintomatologia principal um delírio persecutório, com ideias delirantes mal sistematizadas, para o que necessita de acompanhamento médico e de medicação regular. Referem os serviços da DGRSP que o agente não respeita as condições fixadas na sentença, nomeadamente: «não acata as determinações que lhe foram impostas, tendo faltado à consulta de psiquiatria agendada para o dia 04/05/2021 e, ao ser confrontado com a necessidade de tratamento, “descontrolou-se, tornando-se ofensivo e mantendo um discurso delirante, designadamente dizendo que ia a Setúbal contratar uma judiciária para deslindar tudo”». Mais acrescentou a DGRSP que os familiares e vizinhos do arguido receiam a sua impulsividade e agressividade, bem como as suas ideias delirantes e persecutórias. Concluindo que: «AR não aceita, nem compreende a sua condição judicial, nem o seu estado mental, o que inviabiliza o seu tratamento em regime ambulatório, colocando-se em situação de perigo, assim como, aos que dele se aproximarem, situação que colocamos à consideração dos autos.» (1) Para melhor se compreender o que está verdadeiramente em causa será necessário recordar a natureza e finalidades da medida de segurança que foi aplicada ao agente e se mostra em (claro e objetivo défice de) cumprimento. Dispõe o artigo 98.º, § 1.º CP, que: «O tribunal que ordenar o internamento determina, em vez dele, a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida.» A previsão legal desta medida de segurança não privativa da liberdade encontra o seu esteio no princípio da proporcionalidade (2), previsto no § 2.º do artigo 18.º da Constituição, permitindo que nos casos menos graves, em que ao processo de reintegração do agente da sociedade não é imprescindível a privação da liberdade, este ocorra sem privação daquela. A manutenção em liberdade do agente dos factos ilícitos constitui um maius face às soluções de clausura obrigatória, para o agente e para a comunidade, na medida em que neste está pressuposto um grande investimento na reinserção social do agente em liberdade, assegurando-lhe as condições de acesso ao tratamento adequado, de molde a permitir manter a sua liberdade, protegendo-se, do mesmo passo os bens jurídicos de terceiros. Tendo esta medida alguma semelhança com a suspensão da execução da pena de prisão, aplicável aos imputáveis, não deverá, porém, com ela confundir-se. Pois que, contrariamente ao que sucede nesta, em que a simples ameaça do cumprimento da pena de prisão exerce sobre o condenado uma benévola coação psicológica para que não volte a delinquir; na suspensão da medida de segurança de internamento essa coação psicológica não funciona da mesma maneira, justamente em razão das condicionantes impostas pela anomalia psíquica que está na base da inimputabilidade. O que nestes casos verdadeiramente se giza é, apenas, proporcionar ao agente as condições de prosseguir um tratamento em liberdade, que o mantenha equilibrado e, por essa via, controlada a perigosidade, que impedirá a repetição da prática de factos incorpora, necessariamente, um conjunto de regras de conduta, «em termos correspondentes às prevenidas no artigo 52.º CP, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regime de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados» (artigo 98.º, § 3.º CP). Na sentença proferida no Juízo de Ferreira do Alentejo considerou-se que a medida de segurança da suspensão do internamento, com acompanhamento do agente por banda da DGRSP, sujeito a tratamento e acompanhamento pela DGRSP, se mostrava ajustada a prevenir o risco de reincidência e adequado a reintegrar o agente na comunidade. A aplicação desta da medida de segurança não reclusiva fundou-se, pois, num juízo de prognose favorável, dentro de uma margem de risco prudencial que está pressuposta e que decerto valeu a pena correr. A mesma foi condicionada, como é também pressuposto, ao acompanhamento e tratamento em liberdade (com consultas médicas e toma da medicação prescrita) - com isso gizando manter sob controlo a perigosidade criminal e assegurando, consequentemente, a proteção dos bens jurídico-penais. As coisas não têm corrido bem (não têm mesmo - porque o agente não se mostra clinicamente controlado, como era suposto). Mas esse insucesso não é imputável ao agente. Pois este é uma pessoa idosa, que vive sozinha, sem beneficiar de nenhum tipo de apoio familiar ou social, que nessas condições é imprescindível; sendo-o mais ainda se, como é o caso, o agente padecer também de anomalia psíquica. O que vem falhando é a falta de proatividade da DGRSP, do Ministério Público e do tribunal recorrido, que se posicionaram acriticamente, afivelados a um paradigma burocrático que não só contraria, como na prática inviabiliza, o programa da lei. Senão, vejamos: - o agente vem sendo convocado por carta ou através da GNR para ir aos serviços da DGRSP (e não vai); - é notificado da data e hora das consultas (onde também não comparece), sendo essas notificações feitas também via correio ou GNR. É a isto que se vem cingindo o acompanhamento pela DGRSP! Ora, para se lograrem os objetivos visados com a douta decisão que suspendeu o internamento, o acompanhamento do caso tem de ser efetivo, proactivo, constituir-se em fator agregador de suprimento das necessidades de integração social do agente. A mera vigilância burocrática é claramente insuficiente, constituindo deveras uma «burla de etiquetas», por não se tratar de um efetivo «acompanhamento». Os serviços de reinserção social da justiça, dotados de técnicos muito competentes e (mas como é bem-sabido sempre insuficientes), sabem que é assim que deve ser. E por isso a DGRSP tem de posicionar-se como elo mobilizador e agregador dos serviços da comunidade que poderão contribuir para o sucesso do acompanhamento judicialmente determinado. Assinala Maria João Antunes, com inteira pertinência neste contexto, que «a medida de segurança de internamento de inimputáveis por anomalia psíquica interroga-nos sobre a necessidade de repensar as disposições legais que a conformam, ao ponto de questionar se faz sentido manter a intervenção penal nesta área. A queda das certezas da psiquiatria biológica e positivista enredou os juristas em dificuldades, praticamente inultrapassáveis, no que diz respeito ao pressuposto desta medida de segurança – a perigosidade criminal do agente (...)» (3) A tais certezas e à via da imposição da medida de segurança de internamento «contrapõe-se hoje uma resposta médico-psiquiátrica centrada na necessidade (ou não) de tratamento do agente declarado inimputável em razão de anomalia psíquica. Ao que acresce que a intervenção médico-psiquiátrica atual – psicofarmacológica, psicoterapêutica e psicossocial – permite, cada vez mais, internamentos menos prolongados e modalidades de tratamento que não passam pelo internamento.» (4) O que se mostra absolutamente imprescindível para lograr o plano da lei é, pois, mobilizar os serviços da comunidade, concretamente da segurança social, que dispõe de programas próprios e meios de prestação de cuidados e de serviços a pessoas que se encontram no seu domicílio, em situação de dependência psíquica, e que não conseguem por si só assegurar, temporária ou permanentemente, a satisfação das suas necessidades básicas (que na circunstância são cuidados clínico-medicamentosos). Importa garantir ao agente (ao invés de – na sua concreta circunstância - pretender responsabilizá-lo por não ir sozinho, pelo seu pé, sem nenhuma espécie de apoio, às consultas e aos serviços da DGRSP) a marcação das consultas, a efetiva condução acompanhada do mesmo aos serviços de saúde mental e a toma regular da medicação necessária ao controlo da patologia que o afeta. Breve: consideramos que a decisão recorrida não apenas desrespeitou o programa da lei, como também os critérios nela definidos para a revogação da medida de segurança em curso (artigo 95.º ex vi artigo 98.º, § 6.º, al. b), ambos do CP), pelo que a mesma não poderá manter-se. III – DISPOSITIVO 1. Destarte e por todo o exposto, acordamos em conceder integral provimento ao recurso interposto, e, consequentemente, revogar o despacho recorrido. 2. Mais determinamos que os serviços da DGRSP, com a máxima urgência, concertarão com os demais serviços da comunidade, o efetivo acompanhamento do recorrente, de molde a assegurar a presença deste nas consultas periódicas nos serviços de saúde mental e a toma da medicação ajustada à contenção dos efeitos delirantes da sua doença psiquiátrica, fonte dos riscos que a medida judicial imposta visa justamente acautelar. 3. Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP a contrario). Évora, 5 de abril de 2022 J. F. Moreira das Neves (relator) José Proença da Costa Gilberto da Cunha ---------------------------------------------------------------------------------------- 1 «… situação que colocamos à consideração dos autos» (!!!) 2 Neste sentido Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2020 (reimpressão), Almedina, pp. 124. 3 Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2020 (reimp.), Almedina, pp. 124-125. 4 Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2020 (reimp.), Almedina, pp. 125. |