Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7471/22.2T8STB-G.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA
LEILÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 03/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A liquidação no âmbito do processo de insolvência é da competência exclusiva do administrador da insolvência, nos termos do disposto no artigo 55.º, n.º 1, alínea a), do CIRE e artigo 2.º/1, do Estatuto do Administrador da Insolvência; logo, o despacho judicial em que se ordena ao administrador da insolvência que diligencie pela venda da verba única da massa insolvente pela proposta de valor mais elevado inclusive, já depois de o administrador da insolvência ter aceite a proposta apresentada por um outro proponente é ilegal na medida em que o julgador extravasou os seus poderes no âmbito da liquidação, não lhe cabendo, de todo, dar ordens ao administrador da insolvência sobre o modo de proceder no que respeita à dita conversão dos bens da massa insolvente em quantias pecuniárias.
2 – O terceiro que interveio nos autos na qualidade de proponente e que viu ser aceite a proposta para aquisição da verba única da massa insolvente que apresentou no âmbito do segundo leilão eletrónico, beneficia do efeito de caso julgado formado com o despacho que autorizou o administrador da insolvência a aceitar a proposta que havia sido apresentada por aquele terceiro.
3 – Embora os efeitos constitutivos da venda só operem com a celebração da escritura pública de compra e venda, a aceitação, pelo Administrador da Insolvência, da proposta de aquisição apresentada por um terceiro no âmbito do leilão eletrónico – aceitação que se tornou eficaz logo que chegou ao poder do destinatário ou dele foi conhecida (artigo 224.º, n.º 1, do Código Civil) – tem efeitos obrigacionais, concretamente a vinculação do administrador da insolvência (e da proponente, aqui apelante) à celebração do contrato de compra e venda, pelo preço proposto pela segunda e aceite pelo primeiro.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 7471/22.2T8STB-G.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntos: Rosa Barroso
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
Nos presentes autos de insolvência da sociedade comercial (…) – Transportes e Centro de (…), Lda., a sociedade (…) – Sociedade Imobiliária, SA, proponente na venda efetuada por leilão eletrónico que teve por objeto a verba única da massa insolvente, interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo de Comércio de Setúbal, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, o qual tem o seguinte teor:
«Notifique o sr. A.I. para, em conformidade com o sugerido pelo credor hipotecário, diligenciar pela venda pelo valor mais elevado das propostas obtidas, dado que a venda não se mostra concretizada ainda».

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«I – O despacho recorrido desrespeitou de forma manifesta os interesses da recorrente que se achavam legitima e legalmente protegidos.
II – Através de requerimento de 24 de abril de 2024, o Administrador da Insolvência, (…), nos termos do disposto do artigo 151º do CIRE apresentou o Plano de Liquidação que previa a venda da única verba da Massa Insolvente, em Abril de 2024 através de Leilão Eletrónico, pelo valor base de € 1.150.000,00 e o valor mínimo de € 1.000.000,00 e, para a hipótese de se frustrar essa modalidade de venda, proceder-se à alienação por negociação particular, em Maio de 2024 pelo valor base de € 1.000.000,00 e mínimo de € 900.000,00 e em junho de 2024, pelo valor base de € 900.000,00 e mínimo por € 810.000,00.
III – Tal plano de liquidação não mereceu qualquer oposição.
IV – Assim, entre 28 de março de 2024 e 29 de abril do mesmo ano, decorreu um Leilão eletrónico para a venda da única verba com o valor base de € 1.150.000,00 e mínimo de € 1.000.000,00 para o qual não foram apresentadas quaisquer propostas.
V - O Sr. administrador de Insolvência promoveu a realização de um 2º Leilão eletrónico que decorreu entre 13 de maio de 2024 e 4 de junho do mesmo ano, e, apesar da circunstância de o referido Plano de liquidação prever uma descida dos valores base e mínimo, o Sr. administrador da Insolvência entendeu de, em concordância com o credor hipotecário manter os valores do leilão anterior.
VI - Como resultado deste segundo leilão eletrónico apareceu uma proposta no valor de € 900.000,00 apresentada pela ora recorrente.
VII - Notificado pelo Sr. Administrador de Insolvência do resultado do leilão, o credor hipotecário aceitou a realização da venda pelo valor apresentado pela ora recorrente, consoante melhor flui do requerimento de fls., apresentado pelo AI a 18 de julho de 2024 e respetivos documentos anexos.
VIII - Através de requerimento de 9 de setembro de 2024, o Sr. Administrador de Insolvência, solicitou ao Meritíssimo Juiz a informação de saber se poderia proceder à aceitação da proposta no montante de € 900.000,00 obtido no referido leilão e diligenciar pela formalização da venda, tendo em conta o lapso temporal decorrido e a ausência de quaisquer outras propostas de valor superior válidas.
IX - Tal requerimento mereceu o seguinte despacho datado de 16 de setembro de 2024, com a referência citius 100110132 “Não existindo oposição por parte dos credores, o Tribunal nada opõe à projetada venda.”
X - Na sequência desse despacho, em 18 de setembro de 2024, o sr. administrador de Insolvência, por intermédio da empresa “(…) e (…), Lda” enviou email ao representante da ora recorrente, comunicando-lhe o seguinte: “(…) Vimos por este meio confirmar adjudicação do imóvel a seguir descrito, pelo montante de € 900.000,00, referente ao processo supra identificado.
Face ao explanado juntamos o NIB da conta da Massa Insolvente, assim como a nossa fatura, aguardando o envio dos comprovativos de pagamento no valor de:
€ 90.000,00 correspondente a 10%, à ordem da Massa insolvente; € 27.675,00 (€ 22.500,00 + € 5.175,00 IVA) correspondente a 2,5%, à ordem de (…) e (…), Lda., cujo NIB consta da nossa fatura.
(…)
(Não constando o teor deste email nos autos junta documento comprovativo do mesmo, Doc. 1)
XI - Em cumprimento dessa notificação, em 19 de setembro de 2024, a ora recorrente procedeu ao pagamento através de transferência bancaria para a conta da Massa Insolvência da quantia de € 90.000,00 e procedeu ao pagamento € 27.675,00 à empresa (…) e (…), Lda..
XII - Em 8 de outubro de 2024 o Sr. Administrador de insolvência, em cumprimento do disposto do artigo 61º do CIRE, veio prestar a informação sobre o estado da liquidação, acrescentando ainda que “O AI aceitou a proposta, para venda da verba única, pelo montante de € 900.000,00 em concordância com o Credor Hipotecário, encontrando-se a diligenciar pela marcação de escritura.”
XIII - Sucede que, através de requerimento de 22/10/2024 a Insolvente (…) Ilustre, Lda., veio pedir a junção aos autos da proposta de € 1.300.000,00 formulada pela sociedade comercial (…) Solene, Lda.; que o cheque de 10% desse valor, no montante de € 130.000,00 seja aceite nos autos; que o depósito de € 90.000,00 seja devolvido à sociedade comercial, (…) – Sociedade Imobiliária, S.A.; o cancelamento da escritura marcada, pelo que a mesma não venha a ser outorgada; a notificação do credor hipotecário para se pronunciar sobre a proposta apresentada de € 1.300.000,00; a anulação da decisão do Administrador de insolvência de adjudicar por € 900.000,00, por violação do preceituado no artigo 161.º do CIRE;
XIV - O referido requerimento, mereceu da parte do Meritíssimo Juiz a seguinte decisão:
Notifique o Sr. Administrador de Insolvência e credor hipotecário para no prazo de 10 dias se pronunciarem”.
XV - O Sr. administrador de insolvência através de requerimento de 29 de outubro de 2024, no essencial, veio dizer que as tentativas de venda levadas a cabo, cumpriram os requisitos legais, e foi possível obter uma proposta de € 900.000,00; que a mesma obteve a concordância do credor hipotecário para a aceitação da referida proposta, apesar de a mesma ser inferior ao valor mínimo da mesma; que a devedora no seu requerimento de 25/06/2024 informou pretender apresentar uma proposta de valor não inferior a € 1.500.000,00; e que nunca até 22 de outubro do ano em curso apresentou qualquer proposta apesar do Sr. AI, no seu requerimento de 18 de julho de 2024, ter concordado em que fosse concedido à devedora um prazo máximo e improrrogável de 10 dias para que apresentasse proposta de valor superior válida com pagamento de sinal de, pelo menos, 10% do valor total proposto; Diz ainda o Sr. AI que em cumprimento do despacho de 16/09/2024, por não existir qualquer oposição, foi determinada a aceitação da proposta obtida em leilão eletrónico, o que já foi efetivado, quer pela comunicação ao comprador da aceitação da sua proposta, quer pelo pagamento do valor referente ao sinal bem como já foi remetida a respetiva declaração para efeitos fiscais por forma a serem liquidados os impostos; Mais salienta o Sr. AI que se encontra a diligenciar pela marcação da escritura, pelo que, salvo melhor entendimento não existe qualquer fundamento para anulação da adjudicação já efetivada; por último, a proposta apresentada que a vendedora recebeu foi completamente extemporânea e não cumpria os requisitos formais, designadamente o cheque apresentado que não estava conforme o artigo 164.º, n.º 4, do CIRE;
XVI - O credor hipotecário no seu requerimento de 05/11/2024, refere, com interesse para a lide:
a) É manifesto que a proposta apresentada pela sociedade interessada, (…) Solene, Unipessoal, Lda., no valor de 1.300.000, eur. (…), é preferível à obtida no âmbito do leilão, pois que o seu valor proporcionará maior satisfação dos créditos reconhecidos;
b) Contudo, o momento em que a mesma foi trazida aos autos suscita dúvidas a propósito da respectiva aceitação, com consequente preterição da única até então obtida, no valor de 900.000,00 eur. (proposta inferior ao mínimo de venda, no leilão que, ainda assim e na ausência de outra de melhor valor, levou a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de …, CRL, a manifestar o assentimento à realização da venda);
c) Mas vejamos, o leilão durante o qual foi obtida a proposta mais baixa foi encerrado em 04/06/2024, quer isto dizer que sobre a data da sua apresentação decorreram, já, 5 meses sem que tenha havido lugar à concretização do negócio proposto, facto que muito prejudica os credores e para o qual não existe qualquer motivo ou fundamento aceitável;
d) Consequentemente, contra a aceitação, agora, da maior e mais recente proposta não poderá ser aduzido argumento da sua extemporaneidade, pois que estamos perante duas propostas que padecem de igual defeito ou desvio;
e) Com feito, se a primeira e menor foi apresentada dentro do prazo fixado para o encerramento do leilão (4/6/2024), certo é que não veio a ser concretizada, devendo ser colocada em causa a respectiva eficácia ou validade, sobretudo agora, que chega ao Sr. administrador de insolvência uma outra proposta que melhor protege os interesses da massa insolvente e, consequentemente, de todos os credores;
f) Estamos, pois, na presença de questão que terá de ser decidida à luz dos legítimos interesses dos credores, e não dos interesses das relapsas proponentes;
g) Neste sentido deve o Sr. administrador de insolvência notificar a sociedade autora da proposta de 1.300.000,00 eur, aceitando-a, mediante condição de realização da correspondente escritura de compra do imóvel em prazo não superior a 10 dias, sob pena de imediata e definitiva desconsideração.
h) Decorrido o referido prazo e caso não tenha sido celebrada a venda pelo melhor preço por responsabilidade da proponente, deverá o Sr. administrador de insolvência notificar a sociedade autora da proposta de menor valor para, em igual prazo, proceder à sua concretização, fixando- se que em caso de sua não concretização será dado lugar a novo leilão;
i) Para assegurar a rápida concretização da escritura publica de compra e venda a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo coloca à disposição do Sr. administrador de insolvência todos os seus recursos, designadamente de o seu serviço de contratação, por via do qual estará assegurado o agendamento da necessária escritura notarial, em prazo inferior aos indicados 10 dias.
XVII - Perante este circunstancialismo fáctico, salvo o devido respeito por entendimento diverso, parece obvio que o referido despacho em causa, proferido pelo Mm.º Juiz não é o mais adequado, desrespeitando os legítimos interesses da recorrente.
XVII - Com efeito, do circunstancialismo apontado tira-se a ilação segura de que a ora recorrente agiu sempre com a melhor boa fé, cumprindo escrupulosamente as suas obrigações, aceitando as decisões do Sr. AI e credor hipotecário.
XIX - Compreende-se ainda que atuação do Sr. AI foi a mais curial no sentido de proceder à liquidação da massa insolvente cumprindo integralmente as suas obrigações.
XX - Resulta ainda que a adjudicação do imóvel pelo Sr. AI à ora recorrente constituiu um ato perfeitamente legal respaldado pela concordância do Mm.º Juiz a quo no seu despacho de 16 de setembro de 2024.
XXI - Alias, o despacho de 16 de setembro de 2024, não foi objeto de reclamação nem de recurso, pelo que transitou em julgado ficando, desse modo, plenamente válida a decisão do Sr. AI em adjudicar o imóvel à ora recorrente, pelo que qualquer outra solução invocada posteriormente não poderá ser atendida.
XXII - Com efeito, o referido despacho tem força obrigatória dentro do processo, pois constitui caso julgado conforme estipula o artigo 620.º do CPC.
XXIII - Por outro lado, o despacho recorrido não teve em consideração o anteriormente decidido nem as decisões do Sr. AI tomadas com base no despacho de 16 de setembro de 2024.
XXIV - Ora, assim mostra-se patente o desrespeito pela posição da ora recorrente.
XXV - Na verdade, como resulta dos elementos constantes do processo e supra referidos, a recorrente apresentou uma proposta de compra no valor de € 900.000,00 do imóvel em causa e, por seu lado o Sr. AI comunicou à recorrente que, consultado o credor hipotecário aceitava essa proposta que considerava valida.
XXVI - Deste modo, quer a proposta de compra efetuada pela recorrente, que a declaração de aceitação dessa proposta de por banda do Sr. AI, nos termos do artigo 230.º, n.º 1, do CC, são irrevogáveis.
XXVII - Mas, para além disso o Sr. AI autorizado pelo referido despacho de 16 de setembro de 2024, já transitado em julgado, concluiu com a ora recorrente a celebração do contrato de compra e venda ao comunicar-lhe a adjudicação do imóvel e notificando-a para efetuar os pagamentos supra referidos, o que a recorrente, de imediato, fez.
XXVIII - Desse modo, ficou concluído um contrato promessa de compra e venda mediante o qual o Sr AI, em representação da Massa Insolvente se obrigou a vender o imóvel em causa à ora recorrente, tendo esta pago as quantias exigidas, ficando a aguardar a marcação da respetiva escritura pública.
XXIX - De outro modo, sempre existiria, em caso de incumprimento, à recorrente o direito de execução específica, nos termos do artigo 830.º, n.º 1, do CC, direito esse que o despacho recorrido veio retirar à recorrente.
XXX - Pois, a decisão constante no despacho recorrido vem, inequivocamente na prática, proceder à resolução do contrato legitimamente celebrado entre o Sr. AI e a recorrente, o que faz, salvo o devido respeito por entendimento diferente, ao arrepio das obrigações já assumidas.
XXXI - Na verdade, a resolução do contrato é admitida, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, do CC, fundada na lei ou em convenção.
XXXII - Ora, nenhuma destas modalidades de resolução existe no caso presente.
XXXIII - Aliás, salvo o devido respeito, o despacho recorrido, não é devidamente fundamentado, deficiência essa que é apontada pelo artigo 154.º do CPC.
XXXIV - Com efeito, a Mm.ª Juiz fundamenta, como se disse de modo insuficiente, na circunstância da venda não se mostrar concretizada ainda, o que, não merece, de todo, acolhimento.
XXXV - Na verdade, não é imputável à recorrente o facto de ainda não se ter procedido à celebração da escritura publica de compra e venda, pelo que, a solução viável, acelerar o andamento, seria a de notificar o Sr. AI para proceder, num breve espaço de tempo à celebração da mesma.
XXXVI - Por outro lado, o credor hipotecário vem defender, no seu requerimento de 5 de novembro de 2024: “(…) que o leilão durante o qual foi obtida a proposta mais baixa foi encerrado em 4 de junho de 2024, ou seja, que sobre a data da sua apresentação decorreram já 5 meses sem que tenha havido lugar à concretização do negocio proposto (…) e, consequentemente contra a aceitação agora da maior e mais recente proposta não poderá ser aduzido o argumento da sua extemporaneidade, pois que estamos perante duas propostas que padecem de igual defeito ou desvio (…) e se a primeira e menor foi apresentada dentro do prazo para o encerramento do leilão (4 de junho de 2024), certo é que não veio a ser concretizada, devendo ser colocada em causa a respetiva eficácia ou validade, sobretudo agora que chega ao Sr. AI uma outra proposta que melhor protege os interesse da Massa Insolvente e consequentemente, de todos os credores.”
XXXVII - Ora, esta posição do credor hipotecário que acabou por ter acolhimento pela Meritíssima Juiz no despacho recorrido, não é aceitável, pelas razoes já acima aduzidas e, na realidade, não é mais do que o aproveitamento da circunstância de o credor hipotecário poder receber uma quantia superior fazendo, para o efeito, “tábua rasa” das regras em que deve funcionar a liquidação e da posição anteriormente assumida da aceitação da proposta apresentada e validada da recorrente.
XXXVIII - Alias, a referida argumentação do credor hipotecário que veio a ser acolhida pela Mm.ª Juíza padece de uma falácia evidente, pois o referido argumento de não poder ser arguida a extemporaneidade da proposta mais recente por ambas as propostas padecerem de igual defeito ou desvio e, no dizer do credor hipotecário se a primeira e menor foi apresentada dentro do prazo do encerramento do leilão, certo é que não veio a ser concretizada, devendo ser colocada em causa a respetiva eficácia ou validade, sobretudo agora que chega ao Sr. AI uma outra proposta que melhor protege os interesses da Massa insolvente e consequentemente de todos os credores.
XXXIX - Ora, esse argumento, por outras palavras e na realidade, significa que, as regras que regulam a liquidação da Massa Insolvente não são de aplicar e que, proveniente do nada a proposta da recorrente validada está sujeita à caducidade face aos interesses do credor hipotecário.
XL - Com efeito, não se vislumbra motivo algum para a envergonhada invocação de caducidade ter suporte em qualquer norma legal.
XLI - Pelo exposto, resulta de forma patente que desde o início a recorrente agiu de boa fé, cumpriu todas as suas obrigações, celebrou de forma válida um contrato e foi, no final, desconsiderada, prejudicada, não compreendendo a decisão tomada e de que recorre.
XLII - Aliás, os objetivos fundamentais do direito são, em suma, o cumprimento dos princípios da certeza e segurança jurídica.
XLIII - Ora, salvo o devido respeito, no caso em apreço parece que esses princípios não foram integralmente respeitados, ficando a recorrente com um sentimento profundo de descrédito no cumprimento da lei.
XLIV - Alias, podemos encontrar uma perfeita formulação da importância desses princípios no Ac. do STA de 13/11/2007, P. 0164A/04, cujo sumário nos permitimos transcrever – O princípio do Estado de Direito concretiza-se através de elementos retirados de outros princípios, designadamente, o da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos.
II - Tal princípio encontra-se expressamente consagrado no artigo 2.º da CRP e deve ser tido como um princípio politicamente conformado que explicita as valorações fundamentadas do legislador constituinte.
III - Os citados princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado.
XLV - O douto despacho sob censura violou ou fez menos boa interpretação das normas dos artigos 230.º, n.º 1, 410.º, n.º 1, 432.º, n.º 1, 830.º, n.º 1, do Código Civil, artigos 154.º e 620.º do Código de Processo Civil e artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douto despacho sob censura e decidindo-se antes nos moldes acima apontados, ou seja, mantendo-se a proposta apresentada pela recorrente com todas as consequências legais, como é de inteira e liminar JUSTIÇA»

I.3.
Não foi apresentada resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
FACTOS
Resulta dos autos a seguinte factualidade:
1 – Mediante requerimento datado de 24 de abril de 2024, o Administrador da Insolvência, (…), apresentou o Plano de Liquidação que previa a venda da única verba da Massa Insolvente (um bem imóvel sobre o qual incide hipoteca registada a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de …, C.R.L.) através de Leilão Eletrónico, pelo valor base de € 1.150.000,00 e o valor mínimo de € 1.000.000,00, a realizar no dia em Abril de 2024; para a hipótese de se frustrar essa modalidade de venda, aquele Plano previa a venda por negociação particular, pelo valor base de € 1.000.000,00 e mínimo de € 900.000,00, a realizar em Maio de 2024; para a hipótese de se frustrar a venda, aquele Plano previa a realização de venda por negociação particular pelo valor base de € 900.000,00 e mínimo por € 810.000,00, a realizar em junho de 2024, e, de novo, em julho de 2024, pelo valor base de € 810.000,00 e mínimo de € 729.000,00.
2 – Não resulta dos autos que tenha sido deduzida qualquer oposição àquele Plano de Liquidação.
3 - Entre 28 de março e 24 de abril de 2024 decorreu um leilão eletrónico para a venda da verba única (com o valor base de € 1.150.000,00 e o valor mínimo de € 1.000.000,00), não tendo sido apresentadas quaisquer propostas.
4 – Entre 15 de maio e 4 de junho de 2024 decorreu um segundo leilão eletrónico tendo em vista a venda da verba única supra mencionada, tendo sido mantidos os valores base e mínimo do primeiro leilão eletrónico.
5 – No âmbito do segundo leilão eletrónico foi apresentada a proposta da ora apelante, no valor de € 900.000,00.
6 – Em 25 de junho de 2024, a insolvente juntou aos autos requerimento mediante o qual se pronunciou sobre a proposta referida em (5), dizendo que a «mesma prejudica todos os credores não chegando tal valor para pagar ao credor principal, a Caixa de Crédito Agrícola» e anunciou que «pretendia apresentar e identificar no processo um comprador que deseja adquirir o imóvel por valor não inferior a € 1.500.000,00 e que depositará 10% do valor em conta da massa insolvente», pedindo, a final, que fosse sustida a venda pelo valor de € 900.000,00.
7 – No requerimento referido em (6) não é identificado qualquer interessado na aquisição do imóvel.
8 – Notificado do requerimento que se vem referindo, o sr. Administrador da Insolvência veio, por requerimento datado de 18 de julho de 2024, informar que: (i) o Plano de Liquidação não mereceu qualquer oposição por parte da devedora e dos credores; (ii) notificou o credor hipotecário para que este se pronunciasse sobre o valor e modalidade da venda, o qual deu a sua concordância antes do início de cada leilão; (iii) no segundo leilão eletrónico foram mantidos os valores base e mínimo com a concordância do credor hipotecário; (iv) notificou o credor hipotecário, questionando-o sobre a aceitação, ou não, da proposta de € 900.000,00, tendo obtido uma resposta positiva por parte daquele; (V) em contactos com o mandatário e o ex-gerente da insolvente apurou que «não existe de facto nenhuma proposta concreta para a aquisição do imóvel, no estado físico e jurídico em que se encontram»; não obstante, o AI concordou em que fosse concedido à devedora um prazo máximo e improrrogável de 10 dias para a apresentação de uma proposta de valor superior aos € 900.000,00, com pagamento de sinal, no valor de pelo menos 10% do valor total proposto, e que, findo esse prazo, sem que nada fosse junto, que lhe fosse permitido aceitar a proposta de € 900.000,00, obtida no segundo leilão eletrónico.
9 – Mediante requerimento datado de 9 de setembro de 2024, o sr. Administrador da Insolvência informou o tribunal que até àquela data não lhe tinha sido remetida qualquer proposta de aquisição do imóvel por valor superior ao obtido no segundo leilão eletrónico e que, existindo já a concordância do credor hipotecário para a aceitação da proposta pelo valor de € 900.000,00, fosse informado se podia proceder à aceitação daquela proposta e diligenciar pela formalização da venda; juntou email enviado pelo mandatário da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo no qual expressa a concordância desta última com a proposta de € 900.000,00.
10 - Em 16 de setembro de 2024 o tribunal recorrido proferiu despacho com o seguinte teor: «Tomei conhecimento do estado dos autos. Não existindo oposição por parte dos credores, o Tribunal nada opõe à projetada venda. Notifique e, após, aguardem os autos a junção de nova informação trimestral».
11 – Mediante requerimento datado de 8 de outubro de 2024, o administrador da insolvência informou o tribunal de que tinha aceite a proposta para venda da verba única, pelo montante de € 900.000,00, “em concordância com o credor hipotecário”, e que se encontrava a diligenciar pela marcação da escritura; juntando comprovativo da transferência para a conta da massa insolvente, pela ora recorrente, do valor de € 90.000,00 correspondente a 10% do valor da proposta.
12 - Mediante requerimento de 22 de outubro de 2024, a insolvente, através do seu mandatário, comunicou que «a sociedade comercial (…) Solene, Unipessoal, Lda. fez junto da leiloeira indicada pelo sr. Administrador da insolvência, uma concreta proposta para adquirir o imóvel pelo valor de € 1.300.000,00, “remetendo um cheque de € 130.000,00, «ainda antes de ser concretizada a notificação Citius da informação a que se refere o artigo 61.º do CIRE», e que a leiloeira «não só devolveu o cheque como argumentou que o bem já havia sido adjudicado, pelo que a proposta não poderia ser aceite», requerendo, a final: «a junção aos autos da proposta de € 1.300.000,00 formulada pela sociedade (…) Solene, Lda., que o cheque de 10% na quantia de € 130.000,00 seja aceite nos autos, que o depósito de € 90.000,00 seja devolvido à sociedade comercial (…) – Imobiliária, Lda., o cancelamento da escritura marcada ou que a mesma não venha a ser marcada, a notificação do credor hipotecário para se pronunciar sobre a proposta apresentada de 1.300.000,00€ e a anulação da decisão do AI de adjudicar por € 900.000,00, por violação do preceituado no artigo 61.º do CIRE». Juntamente com o requerimento foi junta uma carta da sociedade (…) Solene, Unipessoal, Lda. dirigida à (…) e (…), Lda. e datada de 10.10.2024, contendo uma proposta de aquisição do imóvel em causa nos autos pelo valor de € 1.300.000,00 e um cheque emitido sob o Banco (…) no montante de € 130.000,00, à ordem da Massa Insolvente da (…), Transportes e Centro de (…), Lda., datado de 10.10.2024, bem como uma carta da (…) e (…), Lda. dirigida à (…) Solene, Unipessoal, Lda., datada de 15 de outubro de 2024, da qual se extrai o seguinte trecho: «Em relação à vossa proposta informamos que a mesma não pode ser aceite em virtude de o bem em causa já ter sido adjudicado e já ter sido recebido o sinal e encontrando-se a aguardar a marcação da escritura. Face ao exposto, devolvemos o vosso cheque n.º (…), no valor de € 130.000,00 passado à ordem da massa insolvente de (…) Ilustre, Lda.».
13 – O tribunal a quo ordenou a notificação do Administrador da Insolvência e do credor hipotecário para se pronunciarem sobre o requerimento supra referido, no prazo legal, o que eles fizeram.
15 – Seguidamente foi proferido o despacho objeto do recurso.


II.3.
Mérito do recurso
Está em causa no presente recurso uma decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, no âmbito do apenso de liquidação, que ordenou ao senhor administrador da insolvência que diligenciasse pela venda do bem imóvel melhor identificado nos autos «pelo valor mais elevado das propostas obtidas».

Insurge-se a apelante contra tal decisão judicial, argumentando, em síntese, o seguinte: (i)o despacho recorrido desrespeitou de forma manifesta os legítimos interesses da recorrente que sempre agiu com a melhor boa fé, cumprindo escrupulosamente as suas obrigações, aceitando as decisões do sr. AI e credor hipotecário; (ii) a adjudicação do imóvel pelo sr. AI à ora recorrente constituiu um ato respaldado pela concordância do juiz a quo no seu despacho de 16 de setembro de 2024; (iii) o despacho de 16 de setembro de 2024 não foi objeto de reclamação ou de recurso, pelo que transitou em julgado, adquiriu força obrigatória dentro do processo, ficando, desse modo, plenamente válida a decisão do sr. AI em adjudicar o imóvel à recorrente; (iv) quer a proposta de compra efetuada pela recorrente, quer a declaração de aceitação dessa proposta por parte do sr. AI, nos termos do artigo 230.º do Código Civil, são irrevogáveis; (v) desse modo, ficou concluído um contrato promessa de compra e venda mediante o qual o sr. AI, em representação da massa insolvente, se obrigou a vender o imóvel em causa à recorrente, tendo esta pago as quantias exigidas, ficando a aguardar a marcação da respetiva escritura pública; de outro modo, assistiria à recorrente, em caso de incumprimento, o direito de execução específica nos termos do artigo 830.º do CC, direito que o despacho recorrido «veio retirar à recorrente»; (vi) a decisão constante do despacho recorrido vem, na prática, proceder à resolução do contrato legitimamente celebrado entre a recorrente e o sr. AI; (vii) a resolução do contrato é admitida nos termos do disposto no artigo 432.º do CC, fundada na lei ou em convenção, e nenhuma destas modalidades de resolução se verifica no caso em apreço; (viii) não é imputável à recorrente o facto de ainda não se ter procedido à celebração da escritura pública de compra e venda.

Vejamos.

O despacho sob recurso ordena ao sr. Administrador da insolvência que diligencie pela venda do imóvel que constitui a verba única da massa insolvente pelo valor da proposta de maior valor. Na prática, tal decisão judicial implicou a preterição da proposta que havia sido apresentada pela aqui apelante, no montante de € 900.000,00, por esta ser de valor inferior à proposta apresentada pela sociedade comercial (…) Solene, Unipessoal, Lda.[1].

Como supra assinalámos, o despacho recorrido foi proferido no âmbito do apenso de liquidação, a qual se destina à conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária que deve ser distribuída pelos credores. Tendo em vista aquele desiderato, a liquidação envolve quer a alienação dos bens e direitos com conteúdo patrimonial que hajam sido aprendidos para a massa insolvente, quer a cobrança (judicial e/ou extrajudicial) de créditos do devedor sobre terceiros.

A liquidação é da competência exclusiva do administrador da insolvência (artigo 55.º, n.º 1, alínea a), do CIRE[2] e artigo 2.º/1, do Estatuto do Administrador da Insolvência[3]), sob a fiscalização da assembleia de credores, da comissão de credores, quando exista, e do juiz (artigo 58.º do CIRE). Ao juiz não cabe, por conseguinte, a direção da administração, «o que tem como reflexo fundamental a circunstância de, fora dos poderes que lhe estão concretamente assinalados, o juiz não dispor da faculdade de instruir o administrador da insolvência sobre o modo de proceder, não poder impedi-lo de atuar, nem, por contrapartida, o administrador está sujeito a cumprir indicações que, nesses domínios, o juiz seja tentado a dar-lhe» – assim, Luís Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Volume I, Reimpressão, Quid Juris, 2006, págs. 269-270.
A este propósito afirmou-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 17.03.2022[4], o seguinte: «O administrador da insolvência é um dos órgãos da insolvência (Capítulo II, Secção I, do CIRE). As suas funções são essencialmente executivas e o mesmo tem a seu cargo as duas operações nucleares do processo de insolvência: a verificação do passivo e a apreensão e a liquidação do ativo (cfr. Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, 2º ed., pág. 75). Em consonância com o que consta do EAJ, resulta do CIRE que a liquidação é uma das tarefas legalmente cometidas ao administrador de insolvência que a exerce com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir (artigo 55.º, n.º 1, alínea a), e sob a fiscalização do juiz o qual pode, a todo o tempo, exigir ao administrador que preste informações sobre qualquer assunto ou que apresente relatório da atividade desenvolvida e do estado da administração ou liquidação (artigo 58.º). A atividade do administrador da insolvência está ainda sujeita a controlo pela entidade responsável pelo acompanhamento, fiscalização e disciplina dos administradores judiciais, podendo ser-lhe aplicadas sanções em caso de incumprimento dos deveres previstos na lei (artigo 17.º do EAJ). Não obstante estar sujeito à aludida fiscalização, a liquidação do ativo é da competência do administrador da insolvência ao qual cabe realizar todos os atos necessários à dita conversão do ativo em quantia pecuniária, nos moldes regulados nos artigos 156.º a 170.º. O juiz não tem “qualquer poder de direção sobre o administrador da insolvência, apenas controlando a legalidade dos atos praticados e a sua adequação ao fim do processo e ao objetivo de servir a justiça e o direito, como se refere no artigo 12.º, n.º 1, do Estatuto do Administrador Judicial (...). Compreende-se que assim seja pois “quanto ao juiz e às funções que desempenha, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas adotou um novo entendimento. Deu, numa palavra, início ao processo de desjudicialização. O juiz limita-se a intervir nas fases verdadeiramente jurisdicionais, ou seja, nas fases de declaração de insolvência, da homologação do plano de insolvência e da verificação e da graduação de créditos. (…)».
Resulta do acabado de expor que o despacho recorrido, através do qual o tribunal a quo ordenou ao administrador da insolvência que diligenciasse pela venda da verba única da massa insolvente pela proposta de valor mais elevado (inclusive, já depois de o sr. AI ter aceite a proposta apresentada pela ora apelante) é um despacho ilegal na medida em que o julgador extravasou os seus poderes no âmbito da liquidação, não lhe cabendo, de todo, dar ordens ao administrador da insolvência sobre o modo de proceder no que respeita à dita conversão dos bens da massa insolvente em quantias pecuniárias.
O que bastaria, quanto a nós, para revogar o despacho recorrido.
Na perspetiva da apelante o despacho recorrido viola o caso julgado formado com o despacho proferido em 16 de setembro de 2024. Este último tem o seguinte teor: «Tomei conhecimento do estado dos autos. Não existindo oposição por parte dos credores, o Tribunal nada opõe à projetada venda. Notifique e, após, aguardem os autos a junção de nova informação trimestral» (negritos nossos).
Tal despacho foi proferido na sequência (e por causa) de um requerimento do sr. administrador da insolvência, datado de 18 de julho de 2024, no qual aquele pediu ao tribunal que, findo o prazo concedido à devedora para a apresentação de uma proposta de valor superior àquela que fora apresentada pela aqui apelante, com pagamento de sinal no valor de pelo menos 10% do valor total proposto, se nenhuma proposta fosse apresentada «lhe fosse permitido aceitar a proposta de € 900.000,00, obtida no segundo leilão eletrónico» (sic).
Ora, atento o teor do requerimento precedente de tal despacho, este deve ser interpretado como um despacho que defere o solicitado pelo sr. AI, ou seja, que autoriza o sr. administrador da insolvência a aceitar a proposta da aqui apelante. Logo, trata-se de um despacho decisório.
Resulta dos autos que o referido despacho (de 16 de setembro de 2024) não foi objeto de reclamação ou de recurso. Por conseguinte, aquele despacho transitou em julgado (artigo 628.º do CPC).
O caso julgado consiste na insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado, traduzindo-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal, incluindo por aquele que a proferiu. O caso julgado torna indiscutível o conteúdo da decisão proferida pelo tribunal[5], sendo consabido que ele visa garantir aos particulares o mínimo de certeza do Direito ou da segurança jurídica indispensáveis à vida de relação[6]. O caso julgado pode ser material ou formal, assentando o critério da distinção no âmbito da sua eficácia; assim, o caso julgado material tem força obrigatória dentro e fora do processo e por isso não pode ser alterado em qualquer ação nova que porventura se proponha sobre o mesmo objeto, entre as mesmas partes e com fundamento na mesma causa de pedir (artigo 619.º do CPC); já o caso julgado formal não projeta a sua eficácia para fora do processo respetivo, pelo que a sua imutabilidade restringe-se ao processo em que se formou (artigo 620.º do CPC). As decisões proferidas numa ação pendente podem ser decisões de forma, se incidem sobre aspetos processuais, ou decisões de mérito, se apreciam, no todo ou em alguns dos seus elementos, a procedência ou a improcedência da ação. Em regra, o caso julgado apenas vincula as partes da ação, não podendo, também em regra, afetar terceiros. O que é dizer que o caso julgado possui, em geral, uma eficácia meramente relativa, reflexo do princípio do contraditório plasmado no artigo 3.º do CPC. Porém, a mera possibilidade de desenvolver uma atividade processual própria numa ação pendente é suficiente para justificar a inclusão de um terceiro no âmbito subjetivo do caso julgado[7]. Assim sendo, um terceiro que tenha tido tal possibilidade (de desenvolver uma atividade processual própria no âmbito de uma ação pendente) pode ser beneficiado (ou prejudicado) pelo caso julgado de uma decisão proferida em tal ação.

Volvendo ao caso sub judice, no despacho proferido em 16.09.2024 o tribunal a quo deferiu o que lhe havia sido solicitado pelo sr. administrador da insolvência, ou seja, autorizou este último a aceitar a proposta que havia sido apresentada pela ora apelante. Ao assim decidir, porque de uma decisão se trata embora não estivesse no âmbito das suas faculdades autorizar o sr. administrador da insolvência a aceitar a proposta de um proponente, o tribunal a quo esgotou o seu poder jurisdicional sobre tal questão, a saber, a quem e por que valor iria ser efetuada a venda daquela verba (artigo 613.º/1, do CPC); e porque aquela decisão não foi objeto de reclamação ou de recurso transitou em julgado. O que, como vimos, significa que o mesmo tribunal (ou qualquer outro) não pode voltar a pronunciar-se sobre a questão, modificando-a ou substituindo-a por outra.
A (…) – Sociedade Imobiliária, SA, aqui apelante, é um terceiro que interveio nos autos na qualidade de proponente e que viu ser aceite a proposta para aquisição da verba única da massa insolvente que apresentou no âmbito do segundo leilão eletrónico, pelo que beneficia do efeito de caso julgado formado com aquele despacho datado de 16.09.2024.
Sucede que no despacho recorrido o tribunal a quo substituiu aquela (primeira) decisão transitada em julgado por uma outra ao ordenar ao sr. administrador da insolvência que diligenciasse pela venda da verba única da massa insolvente pelo valor mais elevado das propostas obtidas, ou seja, pelo valor da proposta apresentada pela sociedade à (…) Solene, Unipessoal, Lda.. Desta forma, o despacho recorrido viola o caso julgado (formal) que se havia formado com o despacho judicial datado de 16 de setembro de 2024.
O que também bastaria para revogar o despacho sob recurso.
Acresce que no despacho sob recurso o julgador a quo fundamenta a sua decisão no facto de «a venda não ter sido ainda concretizada». Tal afirmação não é, todavia, juridicamente exacta. Não se olvidando que os efeitos constitutivos da venda só operam com a celebração da escritura pública de compra e venda, no caso resulta dos autos que o sr. Administrador da Insolvência já havia aceite a proposta de aquisição apresentada pela aqui apelante no âmbito do segundo leilão eletrónico ocorrido, aceitação que se tornou eficaz logo que chegou ao poder do destinatário ou dele foi conhecida (artigo 224.º, n.º 1, do CC). Resulta dos autos que na data de 8 de outubro de 2024, a apelante já havia transferido para a conta da massa insolvente o montante correspondente a 10% do preço que oferecera, o que pressupõe que já tivera conhecimento da aceitação da sua proposta. Ora, tal aceitação da proposta apresentada pela aqui apelante seguida do pagamento, pela aqui apelante, do valor correspondente a 10% do montante da proposta apresentada pela segunda, tem efeitos obrigacionais, concretamente a vinculação do administrador da insolvência (e da proponente, aqui apelante) à celebração do contrato de compra e venda, pelo preço proposto pela segunda e aceite pelo primeiro (artigo 762.º do Código Civil). Assim sendo, o despacho em que se ordena ao administrador da insolvência que diligencie pela venda “pelo valor da melhor proposta obtida”, quando a proposta da aqui apelante não foi a proposta apresentada de maior valor, implicaria, se tal despacho de mantivesse na ordem jurídica, uma violação da obrigação a que o administrador da insolvência se vinculou ao aceitar a proposta da (…), a saber, a obrigação de celebrar com a ora apelante o negócio jurídico de compra e venda. Donde, também por esta razão o despacho recorrido não se pode manter na ordem jurídica.


*

Em face de todo o exposto, deve o despacho recorrido ser revogado, procedendo, desta feita, a apelação.

Sumário: (…)

III.

DECISÃO

Em face do exposto, acordam julgar a apelação procedente e, em conformidade, revogam o despacho recorrido.
As custas na presente instância de recurso são da responsabilidade da apelante porque foi quem do recurso tirou proveito (artigo 527.º/1, in fine, do CPC), sendo que nenhum pagamento é devido a esse título já que a apelante já procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual.
Notifique.
Évora, 13 de março de 2025
Cristina Dá Mesquita
Rosa Barroso
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite



__________________________________________________
[1] Proposta no montante de € 1.300.000,00, apresentada na data de 10.10.2024.
[2] O qual tem a seguinte redação: «Além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir, preparara o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram».
[3] O qual tem o seguinte teor: «O administrador judicial é a pessoa incumbida da fiscalização e da orientação dos atos integrantes do processo especial de revitalização, bem como da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, sendo competente para a realização de todos os atos que lhe são cometidos pelo presente estatuto e pela lei».
[4] Processo n.º 3904/19.3T8VCT-H.G1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª Edição, Lex, 1997, pág. 567.
[6] Refira-se, porém, que pode haver circunstâncias excecionais em que o caso julgado pode ser alterado, ou seja, em que o interesse da segurança deve ceder perante a necessidade superior de assegurar a justiça. Com efeito, o caso julgado material pode ser modificado ou revogado por via do recurso extraordinário de revisão quando aquele se haja formado em condições anormais, isto é, quando hajam ocorrido circunstâncias patológicas suscetíveis de produzir uma injustiça clamorosa- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3.ª Edição Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 158.
[7] Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 588.