| Decisão Texto Integral: | 
 
 
 
 Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
 
 No Juízo do Trabalho de Tomar, por apenso a processo especial emergente de acidente de trabalho, que ainda se encontra na fase conciliatória, veio AA propor procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória, demandando Fidelidade – Companhia de Seguros S.A. e Instituto de Segurança Social, I.P., pedindo o arbitramento de reparação provisória pela Ré Seguradora, em renda mensal de € 4.300,00, acrescida dos retroactivos contados desde a data do acidente, o que já perfazia € 55.900,00, devendo a Segurança Social ser condenada, subsidiariamente e a título de subsídio de doença, no pagamento de idêntico valor.
 Após oposição da Seguradora, realizou-se audiência de julgamento e foi proferida sentença julgando o procedimento totalmente improcedente.
 
 Daqui o recurso do Requerente, concluindo:
 1.	O Tribunal a quo decidiu nos termos seguintes: (…)
 2.	Tal decisão padece de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil. Na parte em que,
 3.	Absolve o Instituto da Segurança Social I.P. do pedido sem que os pressupostos da sua intervenção ou não-intervenção tenham sido abordados ou fundamentados;
 4.	O que configura um excesso de pronúncia (ou, no mínimo, uma contradição insanável entre os fundamentos e a decisão), na medida em que o Tribunal se pronunciou sobre uma questão que expressamente declarou não ter necessidade de abordar (nota de rodapé número 8, constante da fundamentação da sentença “não importa sequer abordar os pressupostos da intervenção do Instituto da Segurança Social I.P.”).
 5.	O Tribunal a quo cometeu um erro de interpretação e aplicação do disposto no artigo 9.º, n.º 2 e do artigo 10.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro ao considerar que não se provaram as circunstâncias concretas do alegado acidente, bem como que o Recorrente estivesse ao serviço da entidade empregadora/tomadora do seguro no momento da queda. Ora,
 6.	Está indiciariamente provado:
 a)	o Recorrente é sócio-gerente da "BB, Lda.", com estabelecimento sito no local onde ocorreu a queda (Rua …, em Tomar;
 b)	a queda do Recorrente;
 c)	o local da queda,
 d)	a fractura,
 e)	a prestação de cuidados médicos prestados pela seguradora,
 f)	a marcação de cirurgia pelos médicos da seguradora,
 g)	o pagamento mensal de prestações por parte da companhia de seguros ao Recorrente, até à comunicação de recusa da responsabilidade;
 h)	o Recorrente era sócio-gerente de três sociedades;
 i)	cabendo-lhe tarefas que implicavam deslocações operacionais, como a reposição de trocos, sendo tais deslocações instrumentais à sua actividade habitual.
 7.	O artigo 9.º, n.º 2 e artigo 10.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, estabelece, para os membros de órgãos de administração ou direcção, uma presunção de que o acidente ocorrido no local e tempo de trabalho é um acidente de trabalho, considerando-se que a actividade do trabalhador se insere no âmbito da gerência ou administração que não se compadece com a rigidez de um horário fixo ou de um local específico de trabalho, sendo intrínseco a estas funções a disponibilidade para as exercer em diversos momentos e locais, desde que no interesse da empresa.
 8.	O Tribunal a quo desconsiderou a especialidade da posição de gerente e o alcance da presunção legal estabelecida para estas funções que inverte o ónus da prova, cabendo à parte contrária (neste caso, à Seguradora) o dever de ilidir tal presunção.
 9.	Verificou-se, assim, um erro de julgamento na aplicação do direito, por violação do artigo 9.º, n.º 2 e artigo 10.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, que impunha o reconhecimento da presunção de acidente de trabalho. Acresce que,
 10.	O Tribunal violou o artigo 388.º, n.º 2, do CPC, nomeadamente, desvalorizado a aceitação inicial do sinistro, pela seguradora, com a prestação de cuidados, o agendamento de cirurgia e o pagamento inicial de diversos montantes pecuniários mensais, factos reveladores da existência do fumus boni iuris, necessário à procedência da providência em apreço.
 11.	Neste sentido veja-se o Acórdão proferido no Processo 331/21.6T8VIS.C1, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, cujo sumário supra transcrevemos (…)
 12.	Ao concluiu pela ausência de prova de uma “efectiva situação de necessidade económica grave e clamorosa”, o Tribunal a quo, cometeu um manifesto erro de julgamento.
 13.	O tribunal errou ao considerar que a possibilidade teórica de recebimento de dividendos inviabiliza a constatação de situação de carência económica, quando tal rendimento não é certo, regular nem sequer se encontra provado nos autos.
 14.	Demonstram a situação de necessidade económica, os seguintes factos considerados como indiciariamente provados:
 a)	atrasos nos pagamentos do crédito habitação e electricidade;
 b)	o requerente estar de baixa médica;
 c)	as elevadas despesas suportadas pelo requerente, com o crédito habitação, electricidade e propina da filha;
 d)	a existência de um Processo Especial para Acordo de Pagamento (PERSI) movido pelo banco BPI, relativo ao crédito habitação do requerente;
 e)	a diminuição drástica dos rendimentos do Recorrente após o acidente, que passou de €4.300,00 mensais, para €880,00 pagos pela Companhia de Seguros e de 27 de Setembro de 2024 em diante 0,00€, fruto da fuga à responsabilidade perpetrada pela Companhia de Seguros.
 15.	Acresce que a sentença recorrida faz interpretação indevida dos factos provados e omite uma avaliação conforme com os princípios de equidade e tutela efectiva do direito à subsistência (arts. 20.º e 63.º da CRP) fundamentando-se na possibilidade teórica de obter rendimento e desvalorizando a efectiva e drástica diminuição da capacidade de obter rendimentos para fazer face às despesas essenciais e compromissos financeiros já existentes do requerente.
 16.	Em suma, a sentença incorreu em erro de julgamento ao não considerar provada a situação de necessidade económica grave e clamorosa, violando o disposto no artigo 388 do C.P.C..
 17.	O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na ponderação da incapacidade para o trabalho do requerente, trabalhador que se encontrava de baixa médica, ao desconsiderado, de forma indevida, os atestados de incapacidade temporária absoluta para o trabalho, devido às lesões resultantes da queda.
 18.	A baixa médica implica, por reconhecimento médico-legal, uma incapacidade temporária para o exercício de qualquer tipo de actividade laboral, incluindo funções de gestão, que também exigem capacidade física e mental, concentração e ausência de dores ou instabilidade.
 19.	A Lei n.º 98/2009 prevê a reparação das incapacidades temporárias para o trabalho (absoluta e parcial), nos termos do seu artigo 47.º, n.º 1, alíneas a) e b), sendo a condição de baixa médica, por si só, um forte indício e prova da existência de uma incapacidade que impede o exercício normal das funções e justifica o arbitramento de reparação provisória.
 20.	Em suma, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao desvalorizar os atestados de baixa médica (Certificados de Incapacidade Temporária para o Trabalho) e a sua implicação na capacidade do Recorrente para auferir rendimentos do trabalho. Diga-se ainda,
 21.	Um trabalhador de baixa médica está, por definição legal e médica, impedido de exercer qualquer actividade profissional, independentemente do tipo de funções ou da sua natureza sob pena de violação grave do regime de protecção social e de eventual responsabilidade disciplinar e/ou penal.
 22.	Acresce ainda que, o impedimento temporário por facto respeitante ao trabalhador que não lhe seja imputável e se prolongue por mais de um mês, nomeadamente doença, acidente determina a suspensão do contrato de trabalho;
 23.	Pelo que, de forma alguma, o Recorrente podia trabalhar e como tal auferir rendimento, sem que previamente lhe fosse atestada a alta médica, pelo médico com competência para o efeito.
 24.	A decisão em cheque, viola o disposto no artigo 64.º da CRP, que consagra o direito fundamental à protecção da saúde, incumbindo ao Estado garantir o acesso dos cidadãos aos cuidados médicos e, em caso de incapacidade para o trabalho, à correspondente protecção social, nomeadamente através do pagamento de prestações pecuniárias substitutivas do rendimento de trabalho.
 25.	O Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado que o direito à protecção da saúde abrange não só o acesso aos cuidados médicos, mas também a garantia de que, em caso de incapacidade temporária absoluta para o trabalho, o trabalhador tem direito a uma prestação pecuniária adequada que lhe permita manter a dignidade e as condições mínimas de subsistência..
 
 A Seguradora respondeu, sustentando a manutenção do julgado.
 Posteriormente a este acto, e com fundamento na posição assumida pela Seguradora nas suas contra-alegações, o Requerente apresentou requerimento de condenação daquela como litigante de má fé.
 O Ministério Público nesta Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
 Cumpre-nos decidir.
 
 Da arguição de nulidade
 Argumenta o Requerente que a sentença incorreu em nulidade por excesso de pronúncia – art. 615.º n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil – na parte em que absolveu do pedido o Instituto da Segurança Social, I.P., pois não abordou nem fundamentou os pressupostos da sua intervenção ou não-intervenção, “na medida em que o Tribunal se pronunciou sobre uma questão (a responsabilidade do Instituto da Segurança Social) que expressamente declarou não ter necessidade de abordar.”
 Apreciando, diremos que esta nulidade apenas ocorre quando o juiz não resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, ou conheça de outras questões não suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso das mesmas.
 Referia o Prof. Alberto dos Reis[1], que “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (…), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (…) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.”
 No caso, o Recorrente arguiu a nulidade da sentença por ter julgado improcedente o pedido subsidiário deduzido em relação ao ISS, sem ter apreciado os pressupostos da sua responsabilidade.
 Analisando a sentença, após uma extensa análise dos pressupostos da providência requerida, esta chega à conclusão que tais requisitos não se encontram preenchidos, declarando: “Aqui chegados, fácil é constatar que no presente caso não se mostram reunidos os pressupostos da providência requerida, o que importa a absolvição de ambas os Requeridos.”
 E em nota a esta conclusão, a sentença escreve, ainda, o seguinte: “Como tal, não importa sequer abordar os pressupostos da intervenção do Instituto da Segurança Social I.P..”
 Estava em apreciação nos autos o preenchimento dos pressupostos da providência requerida, e certo é que tais pressupostos foram analisados, retirando a sentença a consequência lógica do juízo que fez, acerca do não preenchimento dos respectivos requisitos.
 Pode o Recorrente não concordar com os argumentos e conclusões da sentença recorrida, mas tal juízo apenas poderá fundar a sua revogação por erro de direito, mas não a anulação.
 Julga-se, pois, improcedente a nulidade arguida pelo Recorrente.
 
 A matéria de facto provada julgada provada na sentença, e não impugnada no recurso, é a seguinte:
 1.	No dia 29 de Março de 2024, na Rua (…), em Tomar, junto ao n.º 27 e 31, em circunstâncias não concretamente apuradas, antes das 13h00, o Requerente caiu e bateu com o pé direito, originando traumatismo do tornozelo e fractura alinhada do maléolo lateral;
 2.	Após a queda, o Requerente sentou-se numa das cadeiras da esplanada ali existente e, porque o pé começou a inchar, foi colocando gelo;
 3.	Passado algum tempo, por sugestão de algumas pessoas presentes, o Requerente chamou o INEM, que chegou ao local pelas 13h05 e o levou ao Hospital de Abrantes, onde foi admitido pelas 13h44m, tendo recebido tratamento médico, com imobilização gessada;
 4.	O Requerente é sócio gerente da sociedade “BB, Lda.”, NIF …, com sede em (…) e que possui estabelecimento no local mencionado em 1;
 5.	Nas circunstâncias referidas em 1, a sociedade “BB, Lda.” tinha a responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho transferida para a requerida Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…);
 6.	Após ter participado o evento referido em 1 à Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. e até que esta procedeu à averiguação das circunstâncias em que o mesmo sucedeu, foram prestados tratamentos médicos ao Requerente, ao abrigo do contrato referido em 5, inicialmente no Hospital de S. Francisco em Leiria e posteriormente no Hospital da Luz em Coimbra;
 7.	No dia 23 de Setembro, a requerida Companhia de Seguros comunicou ao Requerente que não iria assumir a responsabilidade decorrente do evento referido em 1, porque não se tratou de um acidente de trabalho;
 8.	Nas circunstâncias referidas em 7, o Requerente tinha consulta de cirurgia pré-agendada para o dia 27 de Setembro de 2024, agendamento esse efectuado pelo Dr. (…), médico da companhia de Seguros requerida;
 9.	A referida consulta veio a ser desmarcada no dia 16 de Junho de 2024 e, na mesma data reagendada para o dia 26 de Setembro de 2024;
 10.	Até à data referida em 7, a seguradora pagou ao Requerente cerca de 880,00€ mensais;
 11.	Desde 28 de Maio de 2024 o Requerente foi aconselhado a abandonar progressivamente as canadianas, o que não conseguiu fazer logo, em virtude das dores que sentia no membro inferior direito e instabilidade e desequilíbrio que o impediram de realizar a ordem dada pelo médico;
 12.	Por esse motivo, o referido médico decidiu que haveria de ser administrada ao Requerente o medicamento Diprofus;
 13.	O Requerente necessita de ser submetido a cirurgia ao pé direito, embora actualmente e desde da não apurada já se movimente sem canadianas e com calçado normal;
 14.	O Requerente encontra-se de baixa médica;
 15.	O Requerente possui despesas mensais com os seguintes valores aproximados:
 i.	Prestação relativa ao crédito habitação e crédito pessoal conexo – 1.320,00€;
 ii.	Electricidade – Cerca de 229,00€;
 iii.	Água  – quantia não apurada;
 iv.	Alimentação – quantia não apurada;
 16.	O requerente suporta ainda os custos com a propina da filha, estudante do ensino superior na Universidade Católica Portuguesa, de valor não concretamente apurado;
 17.	O requerente deixou de pagar a prestação do crédito à habitação vencida em 10 de Fevereiro de 2026 e a do crédito conexo que se venceu em 10 de Janeiro de 2025, tendo sido colocado em situação de PERSI, conforme comunicação de 6 de Março de 2025 constante de fls. 20, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
 18.	O requerente chegou a atrasar o pagamento de factura de electricidade;
 19.	 O requerente desempenha as funções de gerente nas sociedades BB, Lda., CC, Lda. e DD, Lda., efectuando:
 i.	Gestão comercial e administrativa;
 ii.	Gestão de recursos humanos;
 iii.	Reposição de notas e moedas nas caixas registadoras para a realização dos trocos;
 20.	O requerente não tem horário de trabalho;
 21.	O vencimento mensal ilíquido declarado pelo sinistrado nas referidas sociedades nas circunstâncias referidas em 1 era o seguinte:
 i.	BB, Lda. – 1.500€;
 ii.	CC, Lda. – 1800€;
 iii.	DD, Lda. – 1000€;
 22.	O valor diário do subsídio de refeição em tais circunstâncias era o seguinte:
 i.	BB, Lda. – 6,00€
 ii.	CC, Lda. – 6,00€
 iii.	DD, Lda. – 4,00€
 23.	Nos 12 meses anteriores à data referida em 1, foram os seguintes os vencimentos declarados pelo requerente:
 a)	BB, Lda. (Recibos juntos ao Processo Principal):
 2023	Abril		€ 1.000,00
 Maio		€ 1.000,00
 Junho		€ 1.000,00
 Julho		€ 1.000,00
 Agosto		€ 1.000,00
 Setembro	€ 1.000,00
 Outubro	€ 1.000,00
 Novembro	€ 1.000,00
 Dezembro	€ 1.000,00
 2024	Janeiro		€ 1.000,00
 Fevereiro	€ 1.500,00
 Março		€ 1.500,00
 b)	CC, Lda. (Recibos juntos ao Processo Principal):
 2023	Abril		€ 1.800,00
 Maio		€ 1.800,00
 Junho		€ 1.800,00
 Julho		€ 1.800,00
 Agosto		€ 1.800,00
 Setembro	€ 1.800,00
 Outubro	€ 1.800,00
 Novembro	€ 1.800,00
 Dezembro	€ 1.800,00
 2024	Janeiro		€ 1.800,00
 Fevereiro	€ 1.800,00
 Março		€ 1.800,00
 c)	DD, Lda. (Recibos juntos ao Processo Principal):
 2023	Abril		€ 1.000,00
 Maio		€ 1.000,00
 Junho		€ 1.000,00
 Julho		€ 1.000,00
 Agosto		€ 1.000,00
 Setembro	€ 1.000,00
 Outubro	€ 1.000,00
 Novembro	€ 1.000,00
 Dezembro	€ 1.000,00
 2024	Janeiro		€ 1.000,00
 Fevereiro	€ 1.000,00
 Março		€ 1.000,00
 24.	A retribuição transferida para a seguradora requerida na data mencionada em 1 era a seguinte:
 a)	BB, Lda.: Salário base - 1.500,00€, Subsídio refeição diário - 6,00€;
 b)	CC, Lda.: Salário base - 1.800,00€, Subsídio refeição diário - 6,00€;
 c)	DD, Lda.: Salário base - 1.000,00€; Subsídio refeição diário - 4,00€;
 
 APLICANDO O DIREITO
 Dos requisitos para arbitramento de indemnização provisória
 Como se decidiu nos Acórdãos desta Relação de Évora de 08.02.2018 e de 10.07.2025 (proferidos, respectivamente, nos Procs. 241/17.1T8FAR-A.E1 e 2782/24.5T8STR-A.E1, ambos publicados na página da DGSI), podem ser identificados os seguintes requisitos cumulativos para o arbitramento de reparação provisória, nos termos do art. 388.º do Código de Processo Civil:
 a)	esteja indiciada a existência de obrigação de indemnizar a cargo do requerido;
 b)	ocorra uma situação de necessidade por parte do requerente; e,
 c)	que essa situação de necessidade seja consequência dos danos sofridos.
 Trata-se de uma medida que visa antecipar uma situação de carência decorrente do acto lesivo, assente no princípio de que, enquanto a reparação do dano não for ajuizada definitivamente, existem situações humanas pontuais de necessidade, que foram criadas ou se agravaram com a produção do evento, que merecem tutela imediata provisória.
 Como refere Lebre de Freitas[2], “o titular do direito a indemnização tem a possibilidade de pedir que lhe seja arbitrada uma quantia mensal, a título de reparação provisória do dano sofrido, até que a decisão definitiva, a proferir na acção de indemnização, transite em julgado: quando, em consequência do facto ilícito, tenha ocorrido morte ou lesão corporal; quando, em consequência do facto ilícito, tenha ocorrido dano susceptível de pôr seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado.”
 A decisão recorrida não concedeu a providência requerida, porquanto entendeu que nenhum dos seus requisitos estava demonstrado. Para o efeito, argumentou o seguinte:
 “(…) não se apuraram factos integradores de uma alegada situação de necessidade, que o evento reportado tenha gerado danos integradores dessa situação ou semelhantes, ou configure, sequer, um acidente de trabalho.
 Por um lado, não se apurou que o requerente esteja incapaz de trabalhar, pois as funções de gerência que desempenhava (gestão comercial e administrativa, gestão de recursos humanos ou reposição de moedas para realização de trocos) são perfeitamente compatíveis com a lesão no pé, ainda que não consolidada, não se tratando de tarefas que impliquem movimentação permanente ou esforços físicos. E também não se apurou que não afira outros rendimentos, sendo relevante a possibilidade de receber dividendos enquanto sócio/dono de pelo menos uma das empresas visadas.
 Acresce que não ter ficado demonstrado que a falta de pagamento do crédito à habitação ou outras despesas tenha origem no acidente reportado e, portanto, se verifique um nexo causal entre este e a alegada situação de carência financeira.
 Por último, não ficou claro que se tenha verificado um acidente de trabalho, não tendo sido possível estabelecer uma ligação entre as funções desempenhadas pelo requerente – que eram de gestão e administração – e a presença física no local dos factos, ou seja, não foi possível apurar que o requerente ali estivesse por força do trabalho.
 Em síntese, não se provou uma efectiva situação de necessidade económica grave e clamorosa susceptível de pôr em causa o sustento e a habitação do requerente, que o legislador pretendeu acautelar, assim como se apurou que as dificuldades financeiras reportadas sejam posteriores ao evento verificado que, atentos os elementos (para já) recolhidos, não pode ser classificado como acidente de trabalho.”
 Quanto ao primeiro requisito, o Recorrente argumenta que os arts. 9.º n.º 2 e 10.º da LAT estabelecem, “para os membros de órgãos de administração ou direcção, uma presunção de que o acidente ocorrido no local e tempo de trabalho é um acidente de trabalho, considerando-se que a actividade do trabalhador se insere no âmbito da gerência ou administração que não se compadece com a rigidez de um horário fixo ou de um local específico de trabalho, sendo intrínseco a estas funções a disponibilidade para as exercer em diversos momentos e locais, desde que no interesse da empresa.”
 Será assim?
 O diploma preambular ao Código do Trabalho, a Lei n.º 7/2009, de 12/02, estabelece no seu art. 4.º n.º 1 al. b) que o regime relativo a acidentes de trabalho e doenças profissionais aplica-se, com as necessárias adaptações, “a administrador, director, gerente ou equiparado, sem contrato de trabalho, que seja remunerado por essa actividade.”
 De acordo com o art. 8.º n.º 1 da LAT, é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
 Júlio Gomes ensina que “a noção de acidente de trabalho nasceu em estrita conexão com a teoria do risco profissional, um risco específico, distinto do risco geral da vida a que todos os seres humanos e que resultava fundamentalmente da concentração num espaço circunscrito (a fábrica) e num tempo delimitado da máquina e da mão-de-obra.”[3]
 Reflectindo esta teoria do risco profissional, Carlos Alegre definiu o acidente de trabalho como “um acontecimento não intencionalmente provocado (ao menos pela vítima), de carácter anormal e inesperado, gerador de consequências danosas no corpo ou na saúde, imputável ao trabalho, no exercício de uma actividade profissional, ou por causa dela, de que é vítima um trabalhador.”[4]
 A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando que o evento pode não ser instantâneo, nem violento, mas deve ser súbito e resultar de uma relação de trabalho.[5][6]
 Importa notar que o art. 10.º n.º 1 da LAT, ao prescrever que “a lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho”, estabelece apenas uma presunção de causalidade, iuris tantum, entre o acidente e a lesão.
 Mas não estabelece uma presunção de ocorrência do acidente – o sinistrado continua com o ónus de prova da ocorrência do evento causador das lesões.[7]
 Como escreve Pedro Romano Martinez, “não se trata de uma presunção da existência do acidente, mas antes uma presunção de que existe nexo causal entre o acidente e a lesão ocorrida.”[8]
 Depois deste percurso pela doutrina e jurisprudência que reputamos de maior relevo, podemos afirmar que o acidente de trabalho é um evento normalmente súbito (ou, pelo menos, de curta duração), imprevisto, de origem externa, causador de lesão na saúde ou na integridade física ou psíquica do trabalhador, e ocorrido no tempo e no local de trabalho, ou por ocasião do trabalho.
 Sucede que tais requisitos não ocorrem no caso dos autos.
 Com efeito, está apenas demonstrado que o Recorrente, na via pública, caiu e bateu com o pé. E apesar de ser sócio-gerente de uma sociedade comercial com estabelecimento perto do local onde o evento ocorreu, nada ficou demonstrado acerca dos motivos pelos quais se encontrava naquele local ou se estava a desempenhar qualquer actividade relacionada com a gerência da empresa.
 Note-se que havia alegado estar ao serviço da sociedade, “tendo ido levar moedas e notas de 5€ para fazer trocos no estabelecimento”, mas esse facto foi declarado não provado, em decisão não impugnada.
 Daí que não seja possível concluir que, nas circunstâncias de facto apuradas, o Recorrente se encontrasse no local e no tempo de trabalho, tendo em conta a definição que o art. 8.º n.º 2 da LAT fornece destes conceitos: para além de não se encontrar no estabelecimento mas na via pública, nada se sabe acerca do seu tempo de trabalho, nomeadamente sobre o seu período normal de trabalho, ou sequer se ocorria qualquer outra circunstância que permite a extensão do conceito, nos termos do art. 9.º n.º 1 da LAT.
 Neste sentido, esta Relação de Évora já decidiu – no seu Acórdão de 13.10.2016 (Proc. 164/14.6T8TMR.E1 e publicado na página da DGSI) – que “compete ao sinistrado, gerente da sociedade, provar que no momento do acidente estava a prestar a sua actividade em proveito desta. Não tendo cumprido este ónus, não pode qualificar-se como de trabalho o acidente de que foi vítima.”
 De igual modo, no Acórdão da Relação do Porto de 12.09.2022 (Proc. 510/20.3T8PRT.P1, publicado na mesma página), decidiu-se o seguinte: “I – Independentemente de ocorrer ou não no tempo e no local de trabalho, o que relevará fundamentalmente para que um acidente possa ser considerado como de trabalho é que o trabalhador se encontre, no momento da sua verificação, sob a autoridade da entidade empregadora, se encontre a executar um serviço ou tarefa por ela determinado. II – Assim, sofrendo o sinistrado, médico dentista, queda quando se encontrava a avaliar/reparar infiltração em marquise da clínica onde prestava serviço, sendo em simultâneo gerente da sociedade empregadora, o acidente não é de trabalho se está não provado que nesse dia estivesse a cumprir ordens da sociedade empregadora.”
 Ao contrário do que afirma o Recorrente, não é possível concluir, sem qualquer arrimo nos factos provados, que era intrínseco às suas funções de gerente a disponibilidade para as exercer em diversos momentos e locais, e que naquele momento preciso estava a executar uma actividade no interesse da empresa.
 Nada disto resulta dos factos provados, e não estabelecendo o art. 10.º n.º 1 da LAT qualquer presunção de existência de acidente de trabalho, devemos concluir como fez a primeira instância: visto que não foi possível estabelecer qualquer nexo entre as funções de gerente desempenhadas pelo Recorrente e a sua presença no local e no tempo do evento, fica por demonstrar a própria existência de acidente de trabalho.
 Por outro lado, como igualmente se afirma na decisão recorrida, não é possível concluir que as dificuldades económicas que o Recorrente enfrenta sejam consequência das lesões físicas produzidas no evento dos autos.
 Nada na matéria de facto demonstra que o Recorrente tenha deixado de auferir a respectiva remuneração enquanto sócio-gerente, ou sequer que tal eventualidade se tivesse ficado a dever às referidas lesões físicas.
 Note-se que o Recorrente não é um mero trabalhador, que aufere a respectiva retribuição como contrapartida do seu trabalho.
 Pelo contrário, é sócio-gerente remunerado de uma sociedade por quotas, como tal sujeito a regras diferentes dos trabalhadores da sociedade, tendo direito a remuneração, de acordo com o art. 255.º do Código das Sociedades Comerciais, fixada pelos sócios, salvo disposição em contrário do contrato de sociedade.
 Ou seja, aufere uma remuneração enquanto gerente e não como trabalhador, pelo que o seu direito à remuneração não cessa pelo simples facto de se encontrar de baixa médica ou por deixar de exercer aquelas funções, antes se exigindo deliberação dos sócios retirando o direito à remuneração ou a sua renúncia ao cargo – cfr. os Acórdãos da Relação de Lisboa de 28.09.2023 (Proc. 4489/20.3T8ALM.L1-2) e da Relação de Évora de 07.03.2024 (Proc. 1225/22.3T8PTG.E1), também publicados na página da DGSI.
 Daí que a decisão recorrida tenha afirmado, correctamente, que não estava demonstrada a perda da remuneração de gerência ou sequer que as dificuldades financeiras do Recorrente tivessem a sua origem no evento dos autos.
 É, pois, de manter a decisão de improcedência da providência requerida – quer quanto à Seguradora, quer quanto ao ISS, tanto mais que a causa de pedir assenta na existência de um acidente de trabalho e consequente perda de remunerações, eventos não demonstrados, sendo que o subsídio de doença está sujeito a um procedimento administrativo gerido pela Segurança Social, de acordo com as regras específicas do DL n.º 28/2004, de 04/02, e das respectivas decisões cabe impugnação judicial da competência dos tribunais administrativos, nos termos do art. 4.º n.º 1 al. b) do ETAF (cfr. o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 27.09.2023, Proc. 015502/22.0T8SNT.S1, na página da DGSI).
 
 Para terminar, quanto ao requerimento de litigância de má fé apresentado pelo Recorrente, na sequência da apresentação das contra-alegações da Seguradora, há a reparar que não foi essa a primeira vez que esta alegou que a data do evento coincidia com um feriado de Sexta-Feira Santa – essa alegação já constava do art. 7.º da oposição – e nos autos sempre manteve uma posição coerente de negação da existência de acidente de trabalho e de não reconhecimento da perda de remunerações de gerência.
 Os autos não demonstram, assim, a dedução de oposição pela Seguradora cuja falta de fundamentação não devesse ignorar, ou sequer que tivesse alterado a verdade dos factos, omitido factos relevantes para a decisão ou o dever de cooperação, ou que tenha feito do processo um uso manifestamente reprovável, motivo pelo qual a arguição de litigância de má fé deduzida pelo Recorrente também improcede.
 
 DECISÃO
 Destarte, decide-se:
 a)	negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida;
 b)	julgar improcedente a arguição de litigância de má fé deduzida pela Recorrente.
 Custas pelo Recorrente.
 
 Évora, 2 de Outubro de 2025
 
 Mário Branco Coelho (Relator)
 Paula do Paço
 Emília Ramos Costa
 
 
 
 
 
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 [1] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143.
 [2] In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª ed., pág. 114.
 [3] In O Acidente de Trabalho – O Acidente In Itinere e a sua Descaracterização, 1.ª ed., Coimbra Editora, 2013, pág. 34.
 [4] In Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2.ª ed., Almedina, 2001, pág. 35.
 [5] Vide, neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.03.2012 (Proc. 159/05.0TTPRT.P1.S1) e de 16.06.2015 (Proc. 112/09.5TBVP.L2.S1), ambos publicados em www.dgsi.pt.
 [6] De igual modo se pronunciou o STJ no Acórdão de 01.06.2017 (Proc. 919/11.3TTCBR-A.C1.S1), publicado na mesma página, decidindo que não se prova a ocorrência de acidente de trabalho quando “o trabalhador (…), que veio a falecer mais tarde, foi encontrado, caído na via pública, junto ao camião com atrelado, propriedade da Ré, sua empregadora, e que estava imobilizado no Parque de estacionamento do Terminal.”
 [7] Neste sentido, o mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01.06.2017.
 [8] In Direito do Trabalho, 2.ª ed., Almedina, 2005, pág. 816, nota 2.
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