Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
254/22.1T8LGS.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: SUSPEIÇÃO
JUIZ NATURAL
FACTOS CONCRETOS
Data do Acordão: 05/08/2024
Votação: RELATOR
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Na interpretação e preenchimento da cláusula geral de suspeição, a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem adoptado um critério particularmente exigente, a fim de evitar distorções do princípio do juiz natural, exigindo que a circunstância impeditiva esteja fundamentada em motivo sério e grave, a avaliar em função das circunstâncias objectivas do caso, de acordo com o critério do senso e da experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador.
2 – Com o levantamento do incidente da suspeição do juiz, é comummente aceite que fica potencialmente colocada em causa a independência e a imparcialidade do magistrado judicial, com reflexos directos na regra do juiz natural na repartição dos processos e com eventuais entropias na própria administração da justiça.
3 – Para que se possa suscitar eficazmente a suspeição de um juiz não basta invocar o receio da existência de uma falta de imparcialidade é necessário que esse receio nasça de alguma das circunstâncias integradas na esfera de protecção da norma.
4 – A aferição da suspeição deve ser extraída de factos ou eventos concretos, inequívocos e concludentes que sejam susceptíveis de colocar em causa a independência e a imparcialidade do julgador e a objectividade do julgamento.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 254/22.1T8LGS.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Comércio de Lagoa – J 1
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Incidente de Suspeição
I – Relatório:
“(…), Construções, Lda.” veio deduzir incidente de suspeição relativamente à Sra. Dra. (…), Juíza de Direito, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 119.º e seguintes do Código de Processo Civil.
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A Requerente fundamentou a sua pretensão na percepção que a actuação da Meritíssima Juíza de Direito é de molde a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade e independência, que esta agiu com preconceito e ideia pré-concebida a respeito da insolvente, pretendendo assegurar a liquidação do património desta.
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A insolvente adiantou que «nos presentes autos de insolvência existem quatro momentos protagonizados pela Meritíssima Juíza sobre quem incide o presente incidente que, conjugados entre si, geram na insolvente uma fundada desconfiança sobre a sua necessária imparcialidade».
E terminou, referindo que «tudo conjugado, parece resultar, à evidência, que a Meritíssima Juíza pretende assegurar a liquidação da insolvente, demonstrando ao longo de todo o processo um preconceito em relação à insolvente que faz com que, com o devido respeito, não esteja apta a conduzir o processo de forma imparcial».
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Autuado por apenso, os autos foram conclusos à Mmª. Juíza recusada para responder, o que esta fez.
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II – Factualidade com interesse para a justa decisão do incidente:
1 – “(…), SARL” veio solicitar a insolvência da “(…), Construções, Lda.”.
2 – A insolvente opôs-se à declaração de insolvência requerida.
3 – Por sentença datada de 04/05/2023 foi declarada a insolvência da “(…), Construções, Lda.”, que transitou em julgado.
4 – Após a declaração de insolvência, foi negociado, elaborado e apresentado um plano de insolvência.
5 – No dia 12/09/2023 foi realizada assembleia de credores convocada para discutir e votar a proposta de plano de insolvência apresentado pela administradora no dia 20/07/2023, tendo a mandatária do credor “Instituto da Segurança Social, IP” requerido que fosse admitido o voto por escrito no prazo de 5 (cinco) dias, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 211.º do CIRE.
6 – Nesse momento, o Conselho Directivo do “Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP” não tinha emitido a credencial necessária para a votação.
7 – A Meritíssima Juíza de Direito decidiu indeferir o requerimento de votação por escrito formulado pelo credor “Instituto da Segurança Social, IP”, lavrando despacho com o seguinte conteúdo:
O voto por escrito pode ser autorizado pelo Juiz, nos termos do artigo 211.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresa. Todavia, a decisão do Juiz é informada pelos princípios e pelas regras que resultam do mesmo Código.
As decisões no processo de insolvência e especialmente no que respeita às oportunidades dadas ao devedor para recuperar são da competência dos credores, motivo pelo qual o Tribunal submeteu à deliberação dos credores presentes, a possibilidade de votação por escrito conforme requerido pelo Instituto de Segurança Social. Não obstante tal decisão caber ao Juiz enquanto presidente da assembleia.
Assim, tendo em consideração a posição tomada pelos restantes credores, os motivos invocados pelo Instituto de Segurança Social e considerando ainda que o plano pode sofrer alterações na própria assembleia, os prazos de apresentação das alterações não constituem motivo para deferir a possibilidade de voto por escrito. Cada credor tem que comparecer na assembleia representado por quem tenha poderes para tomar posição nas deliberações. O funcionamento interno do Instituto de Segurança Social não pode condicionar o normal correr dos processos.
Em face do exposto, indefiro a votação por escrito.
Notifique”.
8 – Submetido a votação o plano não foi aprovado.
9 – A insolvente interpôs então recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora. Por despacho proferido em 06/11/2023, a Meritíssima Juíza decidiu não admitir o recurso de apelação, por entender que o despacho recorrido “foi proferido ao abrigo de um poder discricionário”.
10 – Inconformada com o despacho de não admissão do recurso, a insolvente apresentou reclamação do mesmo para o Venerando Tribunal da Relação de Évora, pugnando pela admissão do recurso interposto.
11 – A reclamação apresentada pela insolvente foi deferida e, consequentemente, admitido o recurso interposto pela insolvente.
12 – Por acórdão datado 25/01/2024 foi concedido provimento ao recurso de apelação interposto pela insolvente e revogada a decisão recorrida, concedendo-se ao credor “Instituto da Segurança Social, IP” o prazo de 5 (cinco) dias para votar o plano de recuperação que havia sido submetido a discussão na assembleia de credores que reuniu a 12/09/2023, anulando-se o subsequente processado.
13 – Na sequência do Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, a Meritíssima Juiz proferiu, em 26/02/2024, o despacho com o seguinte conteúdo: “(…) notifique os credores que estiveram presentes na assembleia de credores do dia 12.9.2023 para, em cinco dias, votarem por escrito o plano apresentado pela devedora a 6.9.2023 – artigo 211.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.
14 – Apresentados os votos por escrito, em 07/03/2024, a Meritíssima Juiz proferiu o seguinte despacho:
(…) Deliberação sobre o Plano de insolvência:
Decorrido o prazo para votação por escrito, verifica-se que:.
Estão reclamados créditos no valor de € 1.142.266,80 (apensos B+C).
Dos créditos reclamados apenas € 55,36 são subordinados.
Estiveram presentes na assembleia de credores para votação do plano os seguintes credores, representando o valor total de € 953.329,18; - Instituto de Segurança Social, IP com créditos no valor total de € 521.372,78; - Ministério Público em representação da Autoridade Tributária, com créditos no valor de € 25.676,42; - (…), SARL com créditos no valor de € 406.279,98.
Todos os credores presentes votaram tendo votado: 1. A favor da aprovação da proposta de plano de insolvência - Instituto de Segurança Social, IP, com créditos no valor de € 521.372,78 . 2. Contra a aprovação da proposta de plano de insolvência - Ministério Público em representação da Autoridade Tributária, com créditos no valor de € 25.676,42; - (…), SARL com créditos no valor de € 406.279,98, € No total de € 431.956,40.
Considerando que estiveram presentes credores que representam mais de 1/3 dos créditos com direito de voto, e que a proposta de plano foi votada favoravelmente por credores que representam mais de 50% dos votos emitidos, considera-se aprovada a proposta de plano de insolvência – artigo 212.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Publique-se – artigo 213.º do CIRE».
15 – Seguidamente, na sequência da aprovação do Plano, foram publicados os correspondentes Anúncios/Editais e foi junto aos autos o Parecer da Administradora da Insolvência, pugnando pela sua homologação.
16 – Em 03/04/2024, foi proferido despacho que recusou a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores e, em consequência, determinou o prosseguimento dos autos para liquidação.
17 – A insolvente manifestou a intenção de interpor recurso desta decisão.
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III – Enquadramento jurídico:
O princípio da independência dos tribunais[1] implica uma exigência de imparcialidade que, na projecção do direito a um Tribunal independente e imparcial constitucionalmente garantido e reconhecido em instrumentos que integram o sistema internacional de protecção dos direitos humanos, nomeadamente na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (artigo 6.º) e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 14.º) [2].
Na actividade jurisdicional, um dos pontos mais relevantes para garantir a existência de decisões correctas e justas é que a actuação do magistrado esteja estruturada em parâmetros de isenção e que, assim sendo, o julgador não mantenha uma relação questionável com qualquer das partes nem seja portador de algum interesse directo ou indirecto no resultado da disputa, a fim de analisar o litígio com o distanciamento necessário e sem qualquer condicionamento interno ou externo.
A protecção da imparcialidade do juiz é assegurada pelos impedimentos e, complementarmente, pelas suspeições, que podem assumir a natureza de escusa ou de suspeição strictu sensu.
As asserções acima enunciadas justificam uma previsão suficientemente ampla de suspeições do juiz, cuja disciplina é regulada, no plano infraconstitucional, nos artigos 119.º a 129.º do Código de Processo Civil.
Não merece qualquer contestação que, no incidente de suspeição, não está em causa a discordância do recusante com as decisões tomadas pelo julgador e da apreciação do mérito das mesmas, pois, em princípio, essa dissensão substantiva ou processual pode ser objecto de impugnação por via de recurso. E, de igual modo, nesta sede, está arredada a avaliação inspectiva ou disciplinar do trabalho do julgador, actividades que estão cometidas ao Conselho Superior da Magistratura.
É consensual na doutrina e na jurisprudência que, num incidente de suspeição, o que se discute é a posição de um juiz perante um determinado processo e se o julgador está (ou não) em condições de apreciar a questão sub judice com objectividade e imparcialidade.
Também de forma indiscutível é aceite que o fundamento da suspeição deverá ser avaliado segundo dois parâmetros: um de natureza subjectiva – indagar se o juiz manifestou, ou tem motivo para ter, algum interesse pessoal no processo – outro de ordem objectiva – averiguar se, do ponto de vista de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, a confiança na imparcialidade e isenção do juiz estaria seriamente lesada.
Os fundamentos da suspeição estão precipitados no artigo 120.º[3] do Código de Processo Civil e esse instituto é accionado quando ocorra motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conduzindo ao afastamento do julgador inicial em caso de procedência do incidente.
Na interpretação e preenchimento da cláusula geral de suspeição, a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem adoptado um critério particularmente exigente, a fim de evitar distorções do princípio do juiz natural, exigindo que a circunstância impeditiva esteja fundamentada em motivo sério e grave, a avaliar em função das circunstâncias objectivas do caso, de acordo com o critério do senso e da experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador.
Os fundamentos podem referir-se à imparcialidade subjectiva, do foro íntimo, que se presume, só podendo ser posta em causa em circunstâncias muito excepcionais e objectiváveis, ou à imparcialidade objectiva, por verificação de «circunstâncias relacionais ou contextuais objetivas suscetíveis de gerar no interessado o receio da existência de ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa», como «circunstâncias ou contingências de relação com algum dos interessados»[4].
Para que a suspeição se actualize num afastamento do juiz, não é necessário demonstrar uma efectiva falta de isenção e imparcialidade, sendo suficiente, atentas as particulares circunstâncias do caso, um receio objectivo de que, vista a questão sob a perspectiva do cidadão comum, o juiz possa ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para actuar de forma imparcial[5].
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Abrantes Geraldes afiança que a dedução de um incidente como o de suspeição, pelo que sugere ou implica, deve ser resguardada para casos evidentes que o legislador espelhou no preceito em reforço dos motivos de escusa previstos no artigo 119.º. Ocorre, porém, que, com frequência que não encontra objectivas razões, acaba por ser desencadeado e substancialmente apoiado apenas numa divergência quanto ao que foi decidido; noutros casos, intui o objectivo de “atemorizar” o juiz[6].
Efectivamente, com o levantamento do incidente da suspeição do juiz, é usualmente aceite que fica potencialmente colocada em causa a independência e a imparcialidade do magistrado judicial, com reflexos directos na regra do juiz natural na repartição dos processos e com eventuais entropias na própria administração da justiça.
Daqui resulta que o recusante deve ter cautelas na invocação de tão gravosa matéria, sem que tal signifique qualquer limitação dos seus direitos de defesa, desde que exista motivo válido para a parte se sentir lesada com a actuação do juiz.
Para que se possa suscitar eficazmente a suspeição de um juiz não basta invocar o receio da existência de uma falta de imparcialidade é necessário que esse receio nasça de alguma das circunstâncias integradas na esfera de protecção da norma.
Neste capítulo, é jurisprudência consolidada deste Tribunal da Relação de Évora que «uma coisa é as partes com a impressão (que pode ser correcta ou incorrecta) de que o juiz é ou se tornou parcial; outra coisa bem diferente é que isso se extraia de factos ou eventos concretos, inequívocos e concludentes, que vão precisamente nesse sentido[7].
Vejamos se existe o referido motivo sério e grave que possa levar a desconfiar da imparcialidade do Juiz[8], sendo que o elemento determinante consiste em saber se as apreensões da interessada podem ter-se como objectivamente justificadas[9].
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No plano prático, esta suspeição tem na sua base a discordância com o sentido decisório de diversos despachos proferidos pela Meritíssima Juíza de Direito e com a desconfiança que os mesmos causaram ao nível da imparcialidade julgatória da senhora Juíza de Direito.
Quanto ao primeiro momento, o da declaração de insolvência, a sociedade “(…), Construções, Lda.” conformou-se com essa decisão e, nessa ordem de ideias, face à aceitação dessa decisão, não existe qualquer motivo para duvidar da imparcialidade e isenção do julgador a quo.
No que concerne à não admissão do recurso, a Meritíssima Juíza de Direito não se pronunciou expressamente, mas, por via da intervenção dos Tribunais Superiores, a situação foi reparada e nenhum efeito danoso ocorreu na esfera dos interesses da insolvente, tendo o recurso interposto sido admitido.
Relativamente ao exercício do direito de voto por escrito, na sua parte mais pertinente, a Meritíssima Senhora Juíza de Direito afiançou que «a questão do voto escrito do Instituto de Segurança Social, é uma questão que tem sido colocada recorrentemente nos processos de insolvência, e a solução que se adotou desde há já algum tempo, depois de prévias advertências ao Instituto de Segurança Social, tem sido a não admissão. Posição com a qual se pretende disciplinar o processo, que tem natureza urgente, perante uma reiterada posição do Instituto de Segurança Social, que se apresenta nas assembleias de credores representado por mandatário que alega não dispor de poderes para tomar posição, e requer que a votação decorra por escrito.
Tem entendido a respondente que, tendo o voto escrito caráter excecional, sendo as assembleias convocadas com uma ordem de trabalhos pré-definida, o Instituto de Segurança Social tem que se organizar e fazer representar nas assembleias por pessoa com os necessários poderes para votar como fazem os demais credores, muitos deles pessoas coletivas com processos internos de tomada de decisão mais ou menos complexos.
A posição tomada quanto à questão da admissão do voto escrito, não foi adotada apenas neste processo».
Como bem refere a sociedade insolvente, a decisão tomada pela Meritíssima Juíza de Direito foi revogada e o objectivo subjacente à intenção de permitir o voto por escrito do “Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP” foi concretizado. Por outras palavras, através do funcionamento do sistema de recursos a questão controvertida acabou por ser decidida favoravelmente aos interesses da recusada.
Prosseguindo, a propósito da não homologação do plano, a Senhora Juíza de Direito avançou que: «a respondente no exercício da sua função, entendeu que o plano favorecia o credor Instituto de Segurança Social, único credor que aprovou o plano, em detrimento dos demais credores que tinham prioridade no pagamento por força de garantias prevalecentes, pelo que entendeu violava o princípio da igualdade.
Tal decisão admite recurso, sendo essa a via legal, para sindicar as decisões judiciais.
A determinação do prosseguimento dos autos para liquidação, na sequência da não homologação do plano, é o que a lei estabelece».
A insolvente manifestou a intenção de interpor recurso desta decisão e esse é o método normal para as partes manifestarem a sua discordância processual em caso de vencimento nas causas e nos respectivos incidentes.
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Dito isto, estamos perante a análise de questões que recaem sobre o mérito de decisões proferidas pelo Juízo de Comércio de Lagoa e que são susceptíveis de ser sujeitas a recurso, estando, como já se afirmou em momento anterior, a resolução do presente incidente apartado de qualquer análise sobre a bondade técnica-jurídica de tais determinações jurisdicionais.
Utilizando as palavras da recusante, aquilo que se pergunta é se face a essa «postura inequívoca e continuada quanto à tomada de posição ao longo do processo de insolvência, quer na condução dos trabalhos, quer na prolação de despachos» existe uma ideia pré-elaborada a respeito da insolvente?
Numa visão panorâmica da jurisprudência nacional as questões do voto por escrito e da violação do princípio da igualdade na aprovação (ou não homologação) nos planos de insolvência (ou situações afins) são amplamente escrutinadas pelos Tribunais Superiores e, assim, neste contexto de divergência interpretativa, não se pode afirmar que existe um sentido decisório destacado da realidade que esteja orientado por interesses internos ou externos ao normal desenvolvimento da lide, que visem causar dano ou prejuízo à insolvente ou que se esteja perante uma ideia pré-determinada sobre o destino da lide.
No plano interpessoal, a Senhora Juíza de Direito recusada deixou consignado que «não tem ou teve qualquer relação de natureza pessoal ou profissional com a insolvente os seus sócios ou gerentes, e a relação com os seus mandatários é estritamente profissional» e não existe qualquer indício explicito ou implícito que a referida afirmação seja enganadora ou incorrecta – aliás, nem tal é invocado, a qualquer título, pela recusante ou pelo seu mandatário.
Analisada a pronúncia da Julgadora a quo não se apreende qualquer violação do dever de imparcialidade e de isenção ao nível da aplicação da direito ou da existência de qualquer pré-disposição para artificialmente pretender atingir, directa ou indirectamente, um determinado resultado processual tendente à liquidação da sociedade insolvente.
Na realidade, face aos elementos disponibilizados nos autos, não se comunga da ideia que a Meritíssima Juíza adoptou uma postura inequívoca e continuada de falta de parcialidade, isenção ou diligência profissional.
Pelo contrário, aquilo que se retira de toda a factualidade assente e da análise dos autos é que existiram divergências relativamente à interpretação factual de determinadas situações e na aplicação do direito, mas não se respiga qualquer motivo para afastar a senhora Juíza de Direito do processo em curso.
Tudo o mais corresponde a situações atinentes ao mérito da causa, cujo o conhecimento está subtraído aos poderes de decisão convocados em sede de incidente de suspeição, uma já decidida favoravelmente à sociedade insolvente e outra decisão em que se mostra anunciada a intenção de dedução de nova impugnação por via recursal.
Neste contexto, todo o enquadramento não permite que a situação seja enquadrada na esfera de protecção do artigo 120.º do Código de Processo Civil, donde forçosamente terá de improceder o incidente.
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IV – Sumário: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, decide-se indeferir o incidente de suspeição.
Custas pela sociedade recusante, ao abrigo do disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Notifique e registe.
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VI – Da litigância de má-fé:
Não havendo motivo para declarar a parcialidade da Meritíssima Juíza de Direito importa averiguar se a situação em apreciação se pode enquadrar no âmbito da litigância de má-fé. Para tal, concede-se à parte recusante um prazo de 10 dias para se pronunciar, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 123.º do Código de Processo Civil.
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Processei e revi.
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Évora, 08 de Maio de 2024

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho



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[1] Artigo 203.º (Independência)
Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.
[2] Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal, § 2. A tutela da imparcialidade: impedimentos e suspeições, Coimbra, 2015.
[3] Artigo 120.º (Fundamento de suspeição):
1 - As partes podem opor suspeição ao juiz quando ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
2 - O disposto na alínea c) do número anterior abrange as causas criminais quando as pessoas aí designadas sejam ou tenham sido ofendidas, participantes ou arguidas.
3 - Nos casos das alíneas c) e d) do n.º 1 é julgada improcedente a suspeição quando as circunstâncias de facto convençam de que a ação foi proposta ou o crédito foi adquirido para se obter motivo de recusa do juiz.
[4] Embora a respeito do processo penal, tem aqui, com as necessárias adaptações, aplicação o ensinamento de Henriques Gaspar, anotação ao artigo 43.º, Código de Processo Penal comentado, H. Gaspar et alii, Almedina, Coimbra, 2016.
[5] Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal, § 2. A tutela da imparcialidade: impedimentos e suspeições, Coimbra, 2015, pág. 27.
[6] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I (Parte Geral e Processo de Declaração), 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 162.
[7] Decisão do Tribunal da Relação de Évora de 22/03/2021, processo 75/14.
[8] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, págs. 243-244.
[9] ”Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 14ª Edição, Ediforum, Lisboa, 1997, pág. 189.