Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANABELA LUNA DE CARVALHO | ||
Descritores: | LEGITIMIDADE PROCESSUAL CONDOMÍNIO PRÉDIO OBRAS | ||
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Data do Acordão: | 12/07/2023 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | - A legitimidade processual afere-se da indicação da lei ou, na falta dessa indicação, do interesse em demandar perspetivado pela utilidade que o autor obterá com o ganho da ação, face à relação material controvertida desenhada por este na petição. - O arranjo estético do edifício integra-se, em primeira linha, num interesse comum, na medida em que, sendo alusivo a todo o edifício e não apenas a uma fração, interessa a todos os condóminos. - A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado (artigo 33.º, n.º 3, do CPC). - Sendo o alinhamento estético do edifício prevalentemente um interesse do condomínio, caberá ao administrador realizar os atos que preservem esse alinhamento, nomeadamente pela via judicial, se necessário e de imediato se a urgência assim o ditar, acautelando a posteriori a ratificação dos atos pela assembleia extraordinária de condóminos. - O condómino que desacompanhado dos demais, integrantes do condomínio, aciona um outro condómino que alegadamente, através duma obra, pôs em causa esse alinhamento estético, não logra acautelar em definitivo o efeito útil normal da ação, sem que se conheça a vontade destes. - A mesma mostra-se necessária para assegurar a sua legitimidade. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 1284/23.1T8PTM.E1 2ª Secção
Acordam no Tribunal da Relação de Évora I (…) – Gestão de (…), Limitada, com sede na Rua (…), Lote 1-Corpo F-Apartamento B, R/C, condomínio (…) – Sítio dos (…), Portimão, veio em 30/03/2023 requerer contra (…) e (…), casados, residentes na Rua (…), n.º 29, (…), a presente providência de Ratificação Judicial de Embargo de Obra Nova, com inversão do contencioso. Alega, em suma, ser proprietária de duas frações autónomas (letras “C” e “K”) em prédio urbano que identifica, sito em Portimão, vendeu aos requeridos uma fração do mesmo prédio (letra “BB”) e, em 20/03/2023 o seu representante legal deparou-se com uma obra junto à fração “BB”, no jardim anexo ao edifício, obra essa que consiste na impermeabilização dos solos, utilizando massas de cimento, onde deveria estar um terreno natural e relva natural. Após o que, os requeridos instalaram tapetes de borracha sintética, como imitação da relva natural em espaços comuns do condomínio. No dia 27/03/2023 o representante legal da requerente acompanhado de três testemunhas e na presença das autoridades policiais interpelou o responsável pela execução da obra para a parar de imediato, o que foi acatado, tendo sido lavrado auto da ocorrência. A obra em causa não foi autorizada pela assembleia de condóminos, descaracteriza a conceção dos jardins tal como foram licenciados, altera substancialmente o espaço visual de conjunto e as características dominantes do empreendimento e, importa desvalorização dos espaços comuns e das respetivas frações autónomas. A requerente não pode aceitar ver o seu investimento imobiliário desvalorizar através da obra levada a cabo pelos requeridos. A requerente prometeu vender a fração “C” a terceiro, conforme contrato-promessa que junta, o qual já fez saber que qualquer alteração nas zonas comuns do prédio, sem a devida autorização dos restantes condóminos, será motivo para não celebrar o contrato prometido. Pelo que considera justificado não só o pedido de ratificação judicial do embargo da obra nova, mas também inversão do contencioso, uma vez que a tutela cautelar se mostra suficiente para substituir a definitiva. Por despacho de 03/04/2023 a Mm.ª Juíza ordenou a notificação da requerente para esclarecer: 1) qual foi a concreta área (em m2) que foi intervencionada pelos requeridos; 2) o motivo pelo qual a referida área aparente(“a”) ser delimitada por muros; 3) que utilização a própria requerente faz do referido espaço e na detenção de quem o mesmo se encontra, nomeadamente, se se trata de espaço afeto a utilização exclusiva dos requeridos; 4) deverá ainda quantificar o prejuízo a que visa alegadamente obviar com a instauração do presente procedimento (e que identifica com a desvalorização das suas frações). E juntar aos autos o título constitutivo da propriedade horizontal com vista a atestar a natureza comum do espaço que foi intervencionado. Na sequência, a requerente veio em 06/04/2023 esclarecer que: 1. A área que foi intervencionada pelos requeridos foi de cerca de 60 m2. 2. A área está delimitada por muros pelo motivo de que os mesmos consubstanciam os limites do condomínio, ou seja, de um lado do muro a área intervencionada pelos requeridos e do outro a via pública e respetivos passeios. 3. A requerente não faz uma utilização própria do espaço/área intervencionada pelos requeridos. O mesmo é detido pelos requeridos e afeto a utilização exclusiva dos mesmos, tal como consta da escritura de propriedade horizontal ora junta. 4. O prejuízo que a requerente visa impedir estima-se numa desvalorização não inferior a 20% do valor das suas frações. Tendo atualmente as mesmas um valor comercial de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros) cada, o prejuízo quantifica-se em € 80.000,00 (oitenta mil euros) em cada fração, num total de € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros). Citados os requeridos, vieram em 01/09/2023 deduzir oposição. Alegam, em suma, que a obra está concluída. Foi realizada em parte comum ainda que de uso exclusivo da fração dos requeridos, pelo que a legitimidade ativa para a presente providência, que visa reparar e reprimir um alegado uso abusivo ou contrário às normas, regulamentares e legais, pertence ao condomínio, representado pelo administrador. A primeira ordem de paragem ocorreu em 20/03/2023, pelo que, em 30/03/2023 data do pedido de ratificação, estavam decorridos mais de 5 dias, tendo o embargo caducado. A área de logradouro em questão não é um jardim, não está afeta a uma perspetiva de conjunto e, não existe vinculação legal, documento administrativo, alvará ou comunicação prévia, que implique a “alegada” obrigação de existência de um “jardim natural” na área em litígio, um logradouro de uso exclusivo. Devendo a providência improceder. A requerente foi notificada para exercer as exceções ao contraditório. Por requerimento de 06/10/2023, veio alegar que: À data da apresentação do requerimento inicial a obra não estava concluída, a requerente tem legitimidade ativa para defender os seus direitos de compropriedade sobre as partes comuns, a ordem do embargo extrajudicial foi dada a 27 de março, e apenas com esse ato se reuniram os requisitos legais. Seguidamente foi proferido saneador sentença que declarou a ilegitimidade ativa da requerente e absolveu os requeridos da instância, dando por prejudicadas as restantes questões a apreciar. Inconformada com tal decisão veio a requerente recorrer, assim concluindo as suas alegações de recurso: Nestes termos, e em conclusão: I – O Tribunal a quo deu como provado que o espaço onde ocorreu a obra consubstancia parte comum do edifício, por constituírem parte da estrutura do edifício, mas que são de uso exclusivo da fração dos RR.. II – Contudo, ainda que as referidas partes comuns sejam de uso exclusivo da fração dos RR., continuam a ser partes comuns do edifício e, por isso, toda e qualquer intervenção deve ser precedida de aprovação pela Assembleia de Condóminos. III – Conforme previsto nas alíneas a) e b), do número 2, do artigo 1422.º do Código Civil, é vedado aos condóminos “prejudicar, quer com obras novas, quer por falta de reparação, a segurança, a linha arquitetónica ou o arranjo estético do prédio”, que não tenham aprovação da Assembleia de condomínio. IV – Sem prescindir, que o número 3, do mesmo preceito, menciona que “as obras que modifiquem a linha arquitetónica ou o arranjo estético do edifício podem ser realizadas se para tal se obtiver prévia autorização da assembleia de condóminos aprovada sem oposição”. V – No momento em que decorreu, a obra não se encontrava aprovada pela Assembleia de Condóminos, sendo, por isso, desconforme à regulamentação do condomínio, que possui eficácia erga omnes. VI – Porque os RR. não respeitaram as restrições a que estavam adstritos, e efetuaram obras no logradouro sem autorização prévia da Assembleia, qualquer condómino tem o direito a demandar os condóminos que erradamente procederam, e de exigir a reconstituição do que resulta da regulamentação do condomínio. VII – Termos em que a sociedade Recorrente possui legitimidade ativa para prossecução dos presentes autos. VIII – Pelo que, e salvo o devido respeito, é visível que o douto Juiz a quo, errou ao não considerar o facto de a Recorrente ter interesse em demandar. IX – Pelo que, a douta sentença recorrida deve ser revogada nos termos pugnados. A final requer que seja dado provimento ao presente recurso, devendo a providência cautelar de ratificação de embargo de obra nova ser decretada.
Não foram apresentadas contra-alegações. II Do objeto do recurso: Considerando a delimitação que decorre das conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), importa apreciar: - Se a requerente tem legitimidade desacompanhada do condomínio ou quem o representa para a presente providência de ratificação judicial de embargo de obra nova. III A factualidade a considerar contém-se no relatório supra. IV Fundamentação de direito:Coloca-se a questão de saber se um condómino tem legitimidade ativa para acionar um outro condómino que realiza uma obra, alegadamente não autorizada pelo condomínio, (colocação de relva sintética em vez de relva natural) em bem comum, ainda que de seu uso exclusivo. Está em causa a legitimidade processual cuja falta determina a verificação da correspondente exceção dilatória, dando lugar à absolvição do réu da instância, como resulta da decisão impugnada. E não a legitimidade substancial ou substantiva, que tem que ver com a efetividade da relação material, interessando ao mérito da causa. O artigo 30.º do Código de Processo Civil estabelece que: «1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. 2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.» Assim, a legitimidade processual afere-se da indicação da lei ou, na falta dessa indicação, do interesse relevante em demandar perspetivado pela utilidade que o autor obterá com o ganho da ação, face à relação material controvertida desenhada por este na petição. Importa apurar em primeiro lugar qual é o interesse relevante na determinação da legitimidade. No caso concreto a requerente apresenta-se como condómina e, nessa qualidade visa defender contra um outro condómino, um interesse que sumariamente caracterizou como respeitante ao arranjo estético do edifício, pois que, diz, a colocação de relva sintética desalinha a arquitetura dos edifícios e dos equipamentos comuns, bem como dos espaços ajardinados. O arranjo estético do edifício integra-se, em primeira linha, num interesse comum, na medida em que, sendo alusivo a todo o edifício e não apenas a uma fração, interessa a todos os condóminos. Assim, o que se pretende defender extravasa os limites da relação condómino – condómino. Da defesa desse interesse a requerente faz derivar um outro, por natureza próprio, que respeita à sua capacidade de ganho relativamente a uma fração que tem em venda e que se objetiva no risco de frustração de venda da mesma fração, caso o arranjo estético do edifício se mantenha desrespeitado. Para efeitos de legitimidade processual surge a dúvida quanto à relevância deste interesse próprio do condómino em concorrência com aquele, do conjunto dos condóminos face ao que dispõe o n.º 3 do citado artigo 30.º do CPC, que ressalva o “interesse relevante”. No caso concreto cremos que, objetivamente, o interesse relevante é aquele que tem como titulares o conjunto dos condóminos porque o aspeto estético do edifício, de forma imediata diz respeito a todos eles. Logo, o condomínio teria seguramente legitimidade para demandar nesta ação. Ainda assim, a Requerente interpõe o seu interesse num negócio que sendo exclusivamente pessoal, e não do condomínio, poderá resultar frustrado com a obra cuja realização visa obstar, o que nos permitirá questionar se, a par daquele interesse do condomínio no arranjo estético do edifício, o seu não será igualmente um interesse relevante, concorrencial, na legitimação da sua intervenção individualizada? A resposta a tal questão não pode, a nosso ver, dispensar o enunciado no n.º 2 do artigo 30.º que faz corresponder o interesse em demandar com a utilidade derivada da procedência da ação. Essa utilidade pressupõe que o efeito útil normal da decisão fique salvaguardado com as partes que se escolheram para vir ao processo. A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado (artigo 33.º, n.º 3, do CPC). Impõe-se então perguntar se com estas partes fica salvaguardado o efeito útil normal da decisão ? Ademais da regulação da figura, o legislador instituiu uma forma de organização do grupo constituído pelos condóminos, de modo a assegurar a formação de uma vontade própria e única e um sistema de gestão e funcionamento eficaz. (…) Assim, a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e a um administrador (artigo 1430.º/1, do Código Civil). A assembleia é um órgão colegial, composto por todos os condóminos, ao qual cabe deliberar acerca da administração das partes comuns do edifício. Pelo processo colegial de formação da declaração coletiva opera-se não apenas uma mutação quantitativa correspondente à soma dos votos maioritários, mas uma real mutação qualitativa, que reconduz as vontades individuais à vontade do próprio grupo. O administrador é o órgão executivo da administração das partes comuns do edifício e das deliberações da assembleia de condóminos, eleito e exonerado por ela (artigo 1435.º/1, do Código Civil) tem como incumbência não só o desempenho das funções enumeradas no artigo 1436.º, específicas do seu cargo, e noutras disposições legais, como as que lhe forem delegadas pela assembleia.” Está em causa uma obra em espaço comum, sendo irrelevante, para esta caracterização, a sua utilização exclusiva. V Por todo o exposto, acorda-se, por maioria, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida. Custas pela apelante. Évora, 7 de dezembro de 2023 Anabela Luna de Carvalho (Relatora) Rosa Barroso (2ª Adjunta) |