Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
305/19.7T8SSB.E2
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: DOAÇÃO
REVOGAÇÃO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BENS COMUNS DO CASAL
Data do Acordão: 02/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- A “destruição” de uma doação de um imóvel comum dos avós a um neto é passível de se operar através da revogação por ingratidão do donatário (art.º 974º do Cód. Civil) em razão deste último ter sido condenado pela prática de um crime doloso (violência doméstica, p.p. no art.º 152º, nº1 e nº2, do Código Penal) contra a sua avó, a que corresponde uma pena de prisão de 2 a 5 anos;
II- Para tanto, o crime doloso não tem de ser praticado contra todos os doadores, nem mesmo apenas contra os doadores: pode sê-lo contra o seu cônjuge ou algum dos seus descendentes, ascendentes, adoptantes ou adoptados.
III- Conquanto o direito potestativo do falecido marido da Autora a revogar a doação tenha caducado com a sua morte já que não é, por regra, transmissível mortis causa (art.º 976º, nº1 do Cód. Civil) manteve-se incólume o da Autora.
IV- Porém, como o bem doado foi um bem comum do casal, a revogação pela mesma judicialmente requerida não pode deixar de abranger a totalidade do imóvel.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

1. O…, intentou acção declarativa, sob a forma comum, contra seu neto, D…, pedindo que seja declarada a revogação da doação da metade do prédio identificado no artigo 2º - por então considerar já não ser possível revogar a doação na parte que pertencia ao seu falecido marido - em razão da ingratidão do donatário.

Pediu ainda a A., caso assim não se entendesse, que a doação mencionada no artigo 2º (da p.i.) fosse convertida em doação com reserva de usufruto nos temos do artigo 958º do Código Civil, conversão a operar nos termos do artigo 293º do Código Civil, dado que era essa a vontade dos doadores e consciência do donatário aquando da celebração da doação.

Veio, subsequentemente ampliar o pedido, o que foi admitido, formulando o seguinte : que seja declarada totalmente revogada a doação ao réu realizada pela autora e pelo seu falecido marido A…, por escritura pública de 2 de dezembro de 2013 do prédio urbano, sito em Cotovia, Lote 1, em Sesimbra, freguesia de Sesimbra (Castelo), concelho de Sesimbra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…), com o valor patrimonial atual de € 63.214,20, por ter ficado comprovada a ingratidão do donatário. E, caso assim não se entenda, o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio, ou se entenda que a revogação poderá ser apenas parcial, deve a doação ser convertida em doação com reserva de usufruto nos termos do artigo 958º do Código Civil, conversão a operar nos termos do artigo 293º do Código Civil, dado que era essa a vontade dos doadores e consciência do donatário aquando da celebração da doação.”.

O réu foi citado contestou, constituindo mandatário no processo, mas a contestação foi desentranhada e devolvida ao apresentante por intempestiva.

Foram declarados confessados os factos alegados na petição inicial – art.º 567º, nº 1 do CPC – e efetuadas as notificações aos mandatários para alegar por escrito.

De seguida foi proferida sentença que , julgando a acção procedente por provada, decidiu “declarar totalmente revogada a doação ao réu realizada pela autora e pelo seu falecido A…, por escritura pública de 2 de dezembro de 2013 do prédio urbano, sito em Cotovia, Lote 1, em Sesimbra, freguesia de Sesimbra (Castelo), concelho de Sesimbra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…), com o valor patrimonial atual de € 63.214,20, por ter ficado comprovada a ingratidão do donatário”.

Mais fixou à acção o valor de € 40.000,00.

2. É desta sentença que recorre o R., assim como do despacho que admitiu a ampliação do pedido e que fixou à causa o valor de € 40.000,00, formulando, na sua apelação, as seguintes conclusões:

A - Em 18/01/2021 o Réu, por requerimento nos autos, para correção do valor da causa, que havia sido apresentado pela A., invocou que foi junto aos autos, com a Petição Inicial como Doc. 2, a caderneta predial emitida em 28/03/2019, onde se vê que o imóvel tinha como valor patrimonial € 63.214,20.

B - O valor das ações judiciais é determinado em função dos critérios gerais previstos nos artigos 297º e seguintes do CPC, sendo evidente que os presentes autos devem ter o seu valor corrigido para € 63.214,20.

C - O requerimento em causa, apresentado nos autos em 18/01/2021, nunca obteve despacho.

D - Ao invés, fixa a douta sentença no valor da ação em € 40.000, sem considerar o requerido pelo R.. O documento que justifica a alteração está nos autos desde a entrada da PI., pelo que nada justifica a falta de apreciação e de consideração do valor alegado pelo R., como determinam os artigos 297º e 306º CPC.

E - A sentença é omissa face ao pedido de alteração do valor, nada referindo sobre o valor da causa, é assim omissa por não ter apreciado o requerimento supra referido. Devendo por isso ser anulada. Neste sentido vai o Acórdão do STJ de 03/10/2017, Revista n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1 - 1.ª Secção Cível, Alexandre Reis (Relator) * Pedro Lima Gonçalves Cabral Tavares.

F - A omissão, só será para estes efeitos, da nulidade, relevante quando se verifique a ausência de posição ou de decisão do tribunal, sobre matérias quanto às quais a lei imponha que sejam conhecidas e sobre as quais o juiz deva tomar posição expressa. Essas questões, são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal, (n.º 2 do artigo 608.º do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deve conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.

G - Nestes termos, deve a sentença proferida ser anulada, e substituída por outra que fixe o valor da ação em € 63.214,20, como alegado.

H - A A. veio em sede de Alegações juntas aos autos em 07/05/2021, solicitando que fosse declarada totalmente revogada a doação ao Réu realizada pela A. e pelo seu falecido marido A…, quando antes e em PI se pedia e só, a revogação da parte da doação privativa da A.

I – A A., disse nos autos por requerimento de 24/05/2021 (referencia 5775910) quando, em resposta, ao Réu diz: “ 1. A Autora não veio alterar o pedido nas suas alegações”.

J – A A., formulou pedido em sede de P.I.

L – Nos termos e para os efeitos do artigo 264º do CPC, tem que haver acordo entra as partes para que se altere ou amplie o pedido ou a causa de pedir. Ora nestes autos, tal não sucedeu, o Réu manifestou a sua discordância. (Que não ficou contemplada na sentença). Existe neste ponto excesso de pronúncia, por cuja consequência de nulidade se requer.

M – Por procedência do ponto anteriormente alegado e por via dele , deve também a douta sentença ser anulada, na parte em que condena declarar totalmente revogada a doação, esta condenação vai para além do pedido. O estipulado no artigo 974º do Código Cível, não é aplicável por extensão à situação dos autos, na medida em que, o Réu não cometeu qualquer crime contra o falecido marido da A., e bem está documentado nos autos.

Deverá pois, ao invés do que sucedeu na sentença recorrida por violados os Art.s: 668º nº 1 alíneas c) e d); Art. 659º nº 2, todos do Código do Processo Civil, ser declarada a revogação da doação efetuada apenas pela A.

Termos em que deve o presente Recurso de Apelação ser julgado procedente e provado e, por via dele, satisfeitos todos os pedidos do Recorrente como é de JUSTIÇA!

3. Não houve contra-alegações.

4. OBJECTO DO RECURSO

Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – as questões cuja apreciação as mesmas convocam, são as seguintes:

4.1. Da (in) admissibilidade de ampliação do pedido;

4.2. Do valor da causa fixado na sentença;

4.3. Reapreciação jurídica da causa: se a circunstância de o crime de violência doméstica ter sido perpetrado pelo donatário apenas contra um dos cônjuges doadores, a ora A., obstaculiza à revogação da doação do imóvel.

II. FUNDAMENTAÇÃO

5. É o seguinte o quadro fáctico assente que emerge da sentença recorrida:

A) A Autora é avó do Réu e tinha à data da propositura da acção (16.5.2019) 88 anos de idade;

B) Por escritura pública de 2 de dezembro de 2013, a Autora e o seu falecido marido, A…, doaram ao Réu o prédio urbano, composto por moradia construída em paredes de alvenaria coberta a telha, com 1 só piso., r/c com 5 assoalhadas, 2 casas de banho, 2 cozinhas, 2 vestíbulos, corredor, e despensa sito em Cotovia, Lote 1, em Sesimbra, freguesia de Sesimbra (Castelo), concelho de Sesimbra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…), com o valor patrimonial atual de € 63.214,20, conforme docs. 1, 2 e 3 que se juntam e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

C) Tal imóvel foi doado ao Réu na “condição” de a Autora e o seu falecido marido poderem livremente usufruir como proprietários do imóvel enquanto vivessem,

D) Bem como, ficou estabelecido que o tio do Réu, J…, que vivia com os pais, pudesse sempre ter um espaço para viver naquela casa.

E) “Condição” essa que era essencial para os doadores,

F) E da qual o donatário tinha plena consciência e manifestou verbalmente a sua concordância,

G) Tal “condição” não ficou escrita, por haver, nessa altura, plena confiança no neto por parte dos doadores.

H) Essa casa sempre foi, até hoje, a casa de morada de família da Autora, do seu falecido marido, e do seu filho J…, após o divórcio deste, tendo continuado tal situação inalterada após a escritura de doação.

I) A Autora sempre agiu como “usufrutuária” em relação à dita casa, que era vista por terceiros como a casa da “Autora”;

J) O dito imóvel é composto de uma casa principal e de um anexo que estava arrendado a terceiros;

L) Há cerca de 10 anos, o Réu passou a ir viver com a avó, ora Autora, e com o avô (entretanto falecido), tendo ocupado um quarto na parte principal da casa;

M) Algum tempo depois, e já depois da escritura de doação acima referida, após ter terminado o contrato com o inquilino do anexo, o Réu propôs à Autora passar a ocupar o referido anexo, pagando à Autora o valor de renda mensal de € 150,00 (cento e cinquenta euros) tendo o Réu ainda chegado a pagar dois meses de renda;

N) Mas depois deixou de fazer pagamentos, dizendo à avó que não tinha dinheiro para os estudos e para a renda, tendo a mesma permitido, todavia, que o Réu ali continuasse a habitar.

P) Os contratos de água, luz, tv cabo, telefone e gás da casa principal estão em nome da Autora (ou alguns ainda em nome do seu falecido marido), sendo a mesma quem quase sempre suporta os respetivos custos;

Q) A Autora, de há cerca de 10 anos para cá, tem sustentado o Réu;

R) Há cerca de 3 anos a esta parte, desde a morte do marido da Autora, avô do Réu, este passou a ter um comportamento arrogante, cruel e agressivo para com a Autora, agredindo-a verbalmente, utilizando, para com ela, um palavreado indecoroso e agressivo e ameaçando colocá-a num lar.

S) O Réu nunca apoiou a Autora fosse no que fosse, antes constituindo um encargo financeiro e fonte de trabalhos.

T) A Autora passou a ter medo de estar em casa e do próprio neto, ora Réu, o que a levou a sair da casa, só aí regressando quando tomou conhecimento de que o Réu já não estava a morar lá;

U) Foi deduzida, contra o réu, acusação por denúncia caluniosa em processo que corre termos sob o n.º 167/19.4T9SSB, com julgamento marcado para o dia 18/11/2021;

V) No processo sob o nº 157/19.7GASSB, foi o réu condenado pela prática de um crime de violência doméstica praticado contra a autora, por sentença transitada em julgado.

6. Do mérito do recurso

6.1. Do valor da causa

A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido, devendo atender-se a este valor para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal (art.º 296.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.).

Entende o apelante que estes autos devem ter o seu valor corrigido para € 63.214,20, correspondente ao valor patrimonial do imóvel dos autos.

Sem razão, porém.

Com efeito, estatui o art.º 301.º do CPC que :“1 - Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.

2 - Se não houver preço nem valor estipulado, o valor do ato determina-se em harmonia com as regras gerais.

3 - Se a ação tiver por objeto a anulação do contrato fundada na simulação do preço, o valor da causa é o maior dos dois valores em discussão entre as partes”.

Determina, por seu turno, o artigo 306.º do CPC : “1 - Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes.

2 - O valor da causa é fixado no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o n.º 4 do artigo 299.º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença (…)”.

Como vimos, o valor da causa foi fixado na sentença de acordo com o valor indicado na petição inicial e que não mereceu oposição do R. em sede própria – cfr. art.º 305º, nº1 do CPC- já que a sua contestação foi, como se disse, desentranhada.

De acordo com o estatuído no nº4 deste citado normativo “ a falta de impugnação por parte do réu significa que aceita o valor atribuído
a causa pelo autor”.

“Embora competindo ao juiz a fixação do valor da causa este não pode deixar de ter em conta a posição das partes, assumida no processo, relativamente ao valor, quer ela seja expressa ou meramente tácita, só devendo modificá-lo, se o valor aceite por ambas as partes estiver em plena desarmonia com o valor real.”[1]

Ora, perante o acordo aqui tacitamente alcançado acerca do valor da causa e não havendo fundamento para considerar estar o mesmo em plena desarmonia com o valor real, não havia, como não há, razão para o modificar.

6.2. Da (in) admissibilidade de ampliação do pedido

Entende o apelante que, “nos termos e para os efeitos do artigo 264º do CPC, tem de haver acordo entra as partes para que se altere ou amplie o pedido ou a causa de pedir, o que não sucedeu”.

Vejamos.

Para justificar a admissibilidade do pedido de “revogação total da doação em causa” entendeu-se no despacho recorrido que o mesmo “decorre naturalmente do primeiro pedido de revogação parcial porquanto no mesmo foi havia sido escrito, ainda que entre parêntesis, “(…) (na medida em que já não é possível revogar a doação na parte que pertencia ao falecido marido da autora) (…)”, ou seja, mencionando-se a outra parte do imóvel.

Do pedido inicial decorre, pois que a autora pretende revogar toda a doação, mas como um dos doadores já faleceu, expressou-se a convicção de que só seria legalmente possível revogar metade.

No entanto, segundo o alegado pela autora, tratou-se de um erro de enquadramento jurídico porquanto revista a jurisprudência sobre a matéria em sede de alegações, chegou a autora à conclusão de que a letra e o espírito da Lei lhe permite pedir a revogação total da doação.

Daí que tenha, em sede de alegações finais (artigo 567º, nº. 2 do CPC), peticionado a revogação total da doação.

Nos termos do artigo 265º do Código de Processo Civil “O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.”

A autora está em tempo de pedir a ampliação do pedido porquanto se considera, não havendo audiência de discussão e julgamento, que o encerramento da discussão em 1ª instância é precisamente o articulado das alegações finais na sequência da notificação da parte para os termos e efeitos do disposto no nº.2 do artigo 567º do CPC.

Pelo exposto, admite-se a ampliação do pedido nos precisos termos requeridos pela autora.

Como se extrai do despacho antecedente, entendeu-se ser admissível a ampliação do pedido nos termos do nº2 do art.º 265º do CPC que prescinde do acordo das partes- que efectivamente aqui não existiu - por a mesma se configurar como “desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo”.

E para que tal suceda, como como já explicava Alberto dos Reis, “a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial”.[2]

E não temos dúvidas que, no caso, assim sucede: na petição inicial a A. pediu que fosse declarada a revogação da doação da metade do prédio aí identificado vindo, subsequentemente, ampliá-lo para a totalidade do mesmo prédio. Ou seja, o objecto inicial foi tão-só ampliado; não ocorreu nenhuma alteração na sua identidade.

Aliás, a causa de pedir manteve-se incólume–i.e. os factos geradores da revogação da doação são os mesmos – sendo que a pretensão primitiva se modificou apenas para mais e a circunstância de ter sido possível à A. logo na petição ter formulado este pedido não impede que até ao encerramento da discussão o venha a fazer.

Nenhum reparo há, pois, a fazer ao despacho recorrido.

6.3. Reapreciação jurídica da causa: se a circunstância de o crime de violência doméstica ter sido perpetrado pelo donatário apenas contra um dos cônjuges doadores, a ora A., obstaculiza à revogação da doação do imóvel.

Importa considerar que estamos em presença de um contrato pelo qual alguém, por espírito de liberdade, e à custa do seu património, dispõe, gratuitamente, de uma coisa, ou de um direito, ou assume uma obrigação em benefício do outro contraente (cfr.art.º 940º do Cód. Civil).

São, assim, elementos constitutivos da doação: a atribuição patrimonial geradora de enriquecimento; a diminuição do património do doador e o espírito de liberalidade.[3]

A doação é, regra geral, um contrato formal, já que o art.º 947º, nº1 do Cód. Civil, na redacção do D.L. 116/2008, de 4.7. condiciona a validade da doação de imóveis à sua celebração por escritura pública ou por documento particular autenticado (sem prejuízo do disposto em lei especial).

Previu também a lei, no art.º 958º e segs,. que as partes possam incluir no contrato determinadas cláusulas acessórias, dentre as quais a reserva de usufruto.

Aliás, é precisamente no art.º 958º que se estabelece que o doador possa reservar para si ou para terceiro o usufruto dos bens doados, o que não dispensa, porém, o donatário do ónus de aceitar a doação da nua propriedade, o que tem de fazer em vida do doador (art.º 945º, nº1).

Por conseguinte, naquele caso, o doador, num único negócio jurídico limita o objecto da liberalidade à nua propriedade, retendo, para si, o direito de gozo temporário e pleno da coisa que constitui o usufruto.

A lei admite igualmente a possibilidade de as doações serem oneradas com encargos ( art.º 963º, nº1 ) que consistem em restrições impostas ao beneficiário da liberalidade que o obriga à realização de determinada prestação no interesse do autor da liberalidade , de terceiro ou do próprio beneficiário , podendo, por isso, consoante os casos, revestir tanto a natureza de uma obrigação em sentido técnico, como a de um ónus jurídico.[4] Caso o encargo não venha a ser cumprido, quer o doador quer os seus herdeiros poderão resolver a doação mas apenas se esse direito lhes tiver sido conferido pelo contrato ( art.º 966º).

Quaisquer dessas estipulações, i.e. quer a reserva de usufruto, quer os encargos, terão de constar também do documento legalmente exigido para a celebração do contrato de doação, sob pena de invalidade (art.º 1440º do Cód. Civil conjugado com o art.º 80º, nº1 do Código do Notariado e art.ºs 219º, 220º e 221º, nº1 do Cód. Civil).

Enquanto a doação não for aceite, pode o doador livremente revogar a sua declaração negocial (cfr. art.º 969) ; uma vez aceite, a mesma torna-se irrevogável, a não ser que se verifique a ingratidão do donatário, art.º 970º.

Por seu turno, o art.º 974º explicita que a doação pode ser revogada por ingratidão quando o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador ou quando se verifique alguma das ocorrências que justificam a deserdação.

“O conceito jurídico de ingratidão do donatário tem muito pouco a ver com o seu correspondente significado na linguagem comum, sendo muitíssimo mais restrito.”[5]

Com efeito o sentido a atender encontra-se vertido noutros preceitos legais, reportado a uma situação que se configurada quanto a um herdeiro seria qualificada como justificativa de indignidade, nos termos do art.º 2034º ou de deserdação, art.º 2166.

“ Face ao carácter taxativo da enumeração legal não é possível fundamentar o acto revogatório nem em comportamentos moralmente censuráveis não enumerados nas normas legais, nem sequer na “ ingratidão” ou “ indignidade” de pessoas distintas do donatário[6]

As causas de constituição do direito potestativo de revogação das doações podem ser ordenadas em três categorias:

“Em primeiro lugar, aparecem-nos os casos de condenação do donatário por crime cometido contra a pessoa, os bens ou a honra do doador, ou do seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado (art.º 2166º, nº1 alíneas a) e b) e art.º2034º, alíneas a) e b) do Cód. Civ.).

A alínea a) do nº1 do art.º 2166º, refere-se aos casos de crime doloso cometido contra a pessoa, bens ou honra do doador, ou do seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, desde que ao crime corresponda a pena superior a seis meses de prisão. A alínea a) do art.º 2034ºcompleta a hipótese da alínea a) do nº1 do art.º 2166º, concedendo ao doador o direito potestativo de revogar a doação em caso de cumplicidade ou de tentativa de homicídio contra as pessoas indicadas.

A alínea b) do nº1 do art.º 2166º refere-se às hipóteses de condenação do donatário por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as pessoas acima mencionadas. A alínea b) do art.º 2034º (condenação por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas por crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos) é neste contexto consumida pela previsão normativa da alínea b) do nº1 do art.º 2166º, formulada em termos mais abrangentes , por não exigir que ao crime corresponda pena superior a dois anos.”[7]

“Em segundo lugar, a remissão do art.º974º, engloba as hipóteses de recusa injustificada de alimentos ao autor da sucessão ou aos seus herdeiros ( art.º 2166º, nº1 c) ) . O conceito de “recusa injustificada de alimentos” há-de ser preenchido com o auxílio do texto do art.º 2011º do Código Civil : o donatário ou os seus herdeiros só devem alimentos ao doador na medida em que os bens doados pudessem assegurar ao doador meios de subsistência e este carecesse deles”.[8]

“Em terceiro e último lugar, a remissão do art.º 974º engloba também os casos de “atentado contra a liberdade de testar” enunciados na alínea c) do art.º 2034º e de “atentado contra o próprio testamento” indicados na alínea d) do artigo citado.

A categoria do “atentado contra a liberdade de testar” inclui as hipóteses em que o donatário “por meio de dolo ou de coacção” induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu (art.º 2034º, c) do Cód. Civ); a categoria do “atentado contra o próprio testamento” integra as situações em que o donatário “ dolosamente subtraiu , ocultou, falsificou ou subtraiu o testamento, antes ou depois da morte do autor da sucessão, ou se aproveitou de qualquer desses factos ( cfr. art.º 2034º, al. d) do Cód. Civil).”.[9]

Sendo estes os casos de revogação taxativamente fixados na lei, isto significa que, como dissemos, fora deles, não há possibilidade de o doador revogar a doação.

“ A revogação por ingratidão do donatário corresponde, pois, a uma hipótese equiparável à resolução do contrato, com um regime particular, nomeadamente quanto ao exercício do direito ( art.º 976º) e aos efeitos extintivos ( art.º 978º, nº1) e não se poderia enquadrar numa típica resolução por incumprimento, na medida em que a ingratidão dificilmente corresponderia à falta de realização de prestações contratuais por parte do donatário mas pode entender-se que se confere a uma das partes ( doador) o direito de se desvincular invocando um motivo ( ingratidão) que vem, posteriormente, a pôr em causa o equilíbrio contratual”[10].

De todo o modo, situações há em que o legislador nem sequer permite a revogação por ingratidão do donatário (cfr. art.º 975º).

Feito este breve excurso pelas normas que o caso sub judice convoca, a primeira conclusão a retirar é que a destruição do negócio jurídico em causa – doação de um imóvel comum dos avós a um neto – só é passível de se operar através da revogação por ingratidão do donatário (art.º 974º do Cód. Civil) em razão deste último, ora apelante, ter sido condenado pela prática de um crime doloso (violência doméstica, p.p. no art.º 152º, nº1 e nº2, do Código Penal) contra a sua avó, ora apelada, a que corresponde uma pena de prisão de 2 a 5 anos.

Como se extrai com clareza do art.º 2166º, o crime doloso não tem de ser praticado contra todos os doadores, nem mesmo apenas contra os doadores: pode sê-lo contra o seu cônjuge ou algum dos seus descendentes, ascendentes, adoptantes ou adoptados.

Acresce que a circunstância de um dos membros do casal doador ter falecido não constitui óbice à revogação pretendida.

Conquanto o direito potestativo do falecido marido da Autora a revogar a doação tenha caducado com a sua morte já que não é, por regra, transmissível mortis causa[11] ( art.º 976º, nº1 do Cód. Civil) manteve-se incólume o da Autora.

Porém, como o bem doado foi um bem comum do casal, a revogação pela mesma judicialmente requerida não pode deixar de abranger a totalidade do imóvel.

É que na comunhão matrimonial de bens há um conjunto patrimonial unitário sobre o qual incide um só direito com dois titulares; estes não são titulares de quotas, ainda que ideais, sobre os bens integrantes da comunhão.

Consequentemente, a destruição do negócio não pode circunscrever-se a “uma quota”, antes tem de abranger a totalidade, sem embargo de tal bem vir a ser, subsequentemente, objecto de partilha (por óbito de um dos membros do casal).

Por isso, o pedido (ampliado) da Autora não pode deixar de proceder, como na 1ª instância se decidiu.

III. DECISÃO

Nestes termos, acorda este colectivo em julgar improcedente a apelação confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo Apelante.

Évora, 10 de Fevereiro de 2022

Maria João Sousa e Faro (relatora)

Elisabete Valente

Cristina Dá Mesquita

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[1] Acórdão desta Relação de 25.1.2108 ( rel. Des. Mata Ribeiro).

[2] In Comentário, vol.3º, pag.93.

[3] Assim, L. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol.III, 2015, pag.158.

[4] Idem, Menezes Leitão, pag.184/185.

[5] Idem, autor e ob.cit.pag.208.

[6] Nuno Manuel Pinto Oliveira, in “ Scientia Iuridica, Tomo L, nº 290, Maio/Agosto 2001, pag.157.

[7] Idem, autor e ob.cit.pag.158.

[8] Idem, pag.159.

[9] Idem, pag.160/161.

[10] Pedro Romano Martinez in “ Da cessação do Contrato “, 2ª ed., pag.297.

[11] Sê-lo ia apenas se a acção já estivesse pendente ou se o donatário tiver cometido contra o doador o crime de homicídio ou, por qualquer causa o tiver impedido de revogar a doação ( cfr. ressalva do art.º976º, nº3).