Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
23/16.8T9ENT-C.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
OPOSIÇÃO
EMBARGOS DE TERCEIRO
LITISPENDÊNCIA
Data do Acordão: 10/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Os embargos de terceiro visam a defesa da posse, constituindo ónus do embargante alegar e provar essa posse.

II - O único facto que a embargante invoca (e que considera relevante para os efeitos por si pretendidos) é, pura e simplesmente, a circunstância de o veículo ter sido registado em seu nome. Tal invocação é totalmente irrelevante, porquanto os factos constitutivos da posse do veículo correspondem ao exercício dos poderes materiais inerentes ao direito de propriedade sobre o mesmo, não resultando a posse do veículo da mera presunção de titularidade decorrente do registo.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Recorre MF do despacho proferido, em 14 de janeiro de 2019, pela Exmª Juíza do Juízo de Instrução Criminal de Santarém (Juiz 2), nos autos de “Embargos de Terceiro” registados sob o nº 23/16.8T9ENT-C, autos esses processados por apenso ao processo-crime nº 23/16.8T9ENT, despacho que julgou verificada a exceção de litispendência, indeferindo, assim, a apreciação do mérito dos referidos embargos de terceiro.

Da respetiva motivação retira as seguintes (transcritas) conclusões:
“A. Vem o presente recurso interposto da decisão que julgou totalmente procedente a exceção dilatória de litispendência, e consequentemente do conhecimento do mérito da causa dos Embargos de Terceiro, do qual a ora Recorrente não se conforma com a decisão recorrida, uma vez que a mesmo é inadequada, pois atendendo à prova produzida e à propriedade e posse do bem, a Meritíssima Juiz deveria de ter proferido decisão diferente.

B. A Embargante intentou a presente ação após o arresto da sua viatura automóvel com a matrícula LE-, marca Ford, modelo Fiesta, com o fundamento de que a mesma tinha sido adquirida com dinheiro proveniente da Casa do Povo ----, que tinha sido entregue pela mãe da Embargante, ML.

C. O veículo automóvel de matrícula LE-, marca Ford, modelo Fiesta, foi adquirido pela Embargante em 23 de Março de 2011, e arrestado no dia 16 de Julho de 2018.

D. O veículo foi adquirido pela Recorrente, com ajuda financeira de familiares, e contribuiu para a aquisição do mesmo com a entrega do veículo automóvel, com a matrícula --EI, marca Citroen, modelo Xantia, através da Lei de incentivo ao abate (Decreto-Lei n.º 292-A/2000, de 15 de Novembro), donde recebeu o valor de 4.352,79 € (quatro mil e trezentos e cinquenta e dois Euros e setenta e nove cêntimos), conforme Documento n.º 4 da P.I.

E. O Código Civil não nos dá uma definição expressa do direito de propriedade, no entanto o artigo 1305º caracteriza-o: “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.

F. Se interpretássemos a propriedade como se tratasse de um domínio, de maneira geral, estaríamos a ignorar o direito de propriedade constitucionalmente consagrado (artigo 62º da Constituição da República Portuguesa), na qual a propriedade, é muito mais que um direito exclusivo e ilimitado, e que deve atender às suas funções sociais, sob pena de perda da mesma.

G. O artigo 62.º CRP tutela quanto ao conteúdo básico da garantia constitucional: o direito de aceder à propriedade (de adquirir bens); o direito de não ser dela arbitrariamente privado; e o direito de a transmitir inter vivos ou mortis causa; e, reconduz ainda ao direito de usar e fruir a propriedade, por ser ele indissociável do direito fundamental em causa enquanto direito (também) de liberdade.

H. E a propriedade já foi entendida pura e simplesmente como um direito subjetivo do proprietário de usar, gozar, dispor e reaver a coisa, como melhor lhe aprouvesse.

I. Quanto às faculdades de usar e fruir, não obstante inexistir uma referência expressa no preceito que as abranja, não se pode deixar de considerar a respetiva inclusão no conteúdo essencial do direito fundamental em apreço, com efeito, dá a possibilidade ao proprietário de aproveitar o seu bem. Para tal terá de existir um consentimento da parte do proprietário, para que a proteção constitucional da propriedade compreenda o direito ao aproveitamento dos bens.

J. O artigo 62.º da CRP institui por conseguinte uma garantia de existência de propriedade, através da tutela dos direitos já adquiridos, bem como de um direito de aquisição de propriedade, onde ainda não há um valor patrimonial, mas sim um direito em abstrato, à aquisição de valores patrimoniais, surgindo ainda a confusão entre o domínio e propriedade, uma vez que esta era vista apenas como um direito real, sem estar ligada ao campo obrigacional.

K. O domínio é o alicerce dos direitos reais. As faculdades de gozar, usar, dispor e reaver a coisa, são inerentes ao domínio. Sendo afinal estas as faculdades do proprietário, como estabelece o artigo 1305º do Código Civil, e assim, ao proprietário resta apenas a titularidade do bem, faltando-lhe o domínio, ou seja, o gozar, dispor, usar e reaver o bem, já que não mantém mais a relação com a coisa, por não exercer mais o poder que lhe é inerente. O domínio é a ingerência direta sobre a coisa, a relação do indivíduo com ela.

L. Posto isto, com os fundamentos constitucionais que adquiriram os direitos reais, é difícil entender a propriedade apenas como uma relação do sujeito com a coisa, antes disso, a propriedade assume muito mais uma relação obrigacional. É patente que o proprietário tem as faculdades de usar, gozar, dispor e reaver o bem, desde que esteja consolidado seu domínio. Pelo que se entende que a propriedade tem dois conteúdos: um interno, que corresponde ao domínio, inserindo-o como direito real por excelência e um externo, que se relaciona com as obrigações, que não se desvincula do conceito de propriedade.

M. E, assim, no caso em apreço verifica-se que o direito de propriedade do veículo automóvel de matrícula LE-, marca Ford, modelo Fiesta, pertence à Embargante. Encontrando-se registado em seu nome desde o momento da sua aquisição, apesar de tal registo não ter efeitos constitutivos.

N. Ademais, foi a favor da Recorrente que ocorreu a traditio do bem, figurando esta como proprietária no âmbito do contrato de compra e venda celebrado com o vendedor da referida viatura.

O. Escreveu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-02-2014, consultável em www.dgsi.pt, o seguinte: “… A intenção de domínio não tem de explicitar-se e muito menos por palavras. O que importa é que se infira do próprio modo de atuação ou de utilização”.

P. Pelo que, apesar da frequência com que a mãe da Embargante usa o veículo automóvel, tal só ocorre porque a Embargante o permite, no entanto, continua a ser a Embargante a pagar o IUC do respetivo veículo, bem como as demais despesas de manutenção do mesmo.

Q. E quando se coloca em causa a propriedade de um veículo automóvel, por a proprietária permitir que outra pessoa o possa utilizar, está a violar-se um direito de propriedade constitucionalmente consagrado no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.

R. Pelo que a Embargante é dona legítima e única proprietária do veículo automóvel de matrícula -LE-, marca Ford, modelo Fiesta, tendo assim toda a legitimidade em deduzir a presente ação de Embargos de Terceiro, e defender o contrário é colocar em crise a certeza e segurança que o legislador pretendeu acautelar com a forma contratual nominada - contrato de compra e venda.

S. E, assim, ao decidir como decidiu, o tribunal violou os artigos 874º e 1305º do Código Civil, e o artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.

T. Ainda assim, por definição, o artigo 1251º do Código Civil diz que: “posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”, e o artigo 1253º refere que: “são havidos como detentores ou possuidores precários:

a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;

b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;

c) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem”.

U. Ou seja, a posse encontra-se assente em dois elementos necessários: o corpus e o animus. Assim, se alguém tiver o mero exercício material sobre a coisa, sem a intenção de a ter para si, estaríamos perante um caso de detenção. Ele teria apenas o corpus, por ser um simples ato, um mero exercício, a posse natural. O animus, isolado, desprovido do corpus, torna-se inofensivo, pois apenas reside no campo intencional, subjetivo do indivíduo, sem qualquer possibilidade de reconhecimento legal.

V. E, assim, a posse pode ser entendida como a exteriorização dos poderes inerentes ao domínio, o exercício do direito real subjetivo de usar, gozar e dispor de uma determinada coisa, gerando efeitos jurídicos, e, portanto, tal exercício goza de proteção contra terceiros, enquanto que a detenção pode ser resumida como o exercício da posse em nome de terceiro, a seu mando ou dando consentimento para tal, não gozando, desta maneira, de legitimidade para exigir os efeitos de posse, porquanto não a exerce por si.

W. Podendo-se verificar isso mesmo através da análise do texto in Código Civil Anotado, 2009, 16ª edição revista e atualizada, p. 1060, onde refere: “o corpus da posse, traduz-se no «poder de facto» manifestado pela atividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (arts. 1251º e 1252º, n.º 2). Atividade que não carece, aliás, de ser sempre efetiva, pois uma vez adquirida a posse, o corpus permanece como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (1257º, n.º 1). Quanto ao animus possidendi, a sua presença e relevância não poderão ser recusadas quando a atividade em que o corpus se traduz, pela causa que a justifica, seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar, em seu benefício, uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real”.

X. Como já referido supra, mesmo apesar de a mãe da Embargante usar o veículo automóvel de matrícula LE-, marca Ford, modelo Fiesta, só o usa com o consentimento da Embargante. Não querendo para si a posse do veículo, limitando-se a usá-lo no seu dia-a-dia a título de “empréstimo” - falta-lhe assim o animus possidendi, pois pelo simples facto de usar a viatura frequentemente, não é motivo suficiente para se considerar que a mãe da Embargante tem a posse efetiva do automóvel, mas sim detém a posse momentaneamente, enquanto dele usufrui.

Y. Pois, seguramente, se a mãe da Recorrente quisesse adquirir a propriedade do veículo acima referido por usucapião, tal não teria viabilidade ou provimento, por ausência completa de matéria fáctico-jurídica.

Z. Ademais, quanto aos factos que se reporta, necessária se mostrava a produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento em detrimento da opção tomada pelo douto tribunal a quo ao decidir como decidiu, em sede de saneador-sentença, e a este propósito escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-11-1999, consultável em www.dgsi.pt, o seguinte: “ … nos termos do artigo 1253, a mera detenção, consiste no exercício de poderes de facto sobre a coisa sem animus possidendi, isto é "sem intenção de agir como beneficiários do direito"… “.

AA. E, assim, ao ter a Embargante entregue para abate um veículo já seu, para a aquisição do veículo automóvel de matrícula LE-, marca Ford, modelo Fiesta, ter ainda contribuído monetariamente para a sua aquisição, dúvidas não restam de que é a legítima proprietária da viatura.

BB. Ao decidir como decidiu, o tribunal violou os artigos 1251º, 1257º e 1305º do Código Civil, e o artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.

CC. Não obstante, a presente ação foi declarada improcedente por ter sido suscitada uma exceção dilatória de litispendência, com o fundamento em que haveria uma repetição ou uma contradição da decisão já proferida no apenso B - oposição ao arresto -.

DD. O artigo 580º do Código de Processo Civil refere que: “ (…) 1 - As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado. 2 - Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. (…)”, mas para se verificarem verificar os requisitos da litispendência, o artigo 581º do Código de Processo Civil refere que: ”1
- Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. 2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. 3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. 4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”

EE. Assim, para estarmos perante uma exceção por litispendência, terá que em duas ações distintas, estarem verificados os mesmos sujeitos, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, conforme se afere pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-07-2017, consultável em www.dgsi.pt, que refere: “ (…) I. A litispendência, pressupondo a repetição da mesma ação em dois processos, depende, pois, da verificação cumulativa da identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir, de modo a evitar contradizer ou reproduzir decisão anterior (…)”, e, no caso em apreço, não se verifica que haja identidade de sujeitos.

FF. Um dos fundamentos para a arguição da exceção dilatória de litispendência, é o de que poderiam estar em causa os mesmos factos e os mesmos sujeitos que constam no apenso B (Oposição ao Arresto), com o fundamento de que a mãe da Embargante, como detém o domínio e os benefícios do veículo automóvel, era assim a legítima proprietária do veículo, apesar de o registo de propriedade constar em nome da Embargante, sem que tal registo tenha efeitos constitutivos.

GG. No entanto, e como referido supra, apesar de a Embargante não ser a condutora habitual do veículo, isso não inviabiliza que seja a legítima proprietária do veículo. Fazendo com que esta seja parte legítima para suscitar os Embargos de Terceiro e lançar mão de todos os expedientes legais para a defesa da propriedade.

HH. Sendo que, após o Arresto do veículo automóvel, a Embargante deduziu Embargos de Terceiro nos presentes autos (apenso C), tendo sido posteriormente notificada para se opor ao arresto (apenso B), e onde, por despacho datado de 07-09-2018, quanto à Embargante foi decidido que “… torna-se manifesto que a ora Oponente não é de forma alguma Requerida no âmbito do presente procedimento cautelar de arresto, sendo ao invés apenas e tão-somente um terceiro (alegadamente) afetado pelo decretamento no mesmo”.

II. E assim ser considerada como terceira e sendo afastada enquanto parte da oposição ao procedimento cautelar de arresto (apenso B). Ficando como Requerida nesses autos (apenso B) a sua mãe, ML, desse modo, verifica-se que não há identidade de sujeitos nas duas ações.

JJ. A Embargante só é parte legítima nos presentes autos, enquanto que a sua mãe só é parte no apenso B.

KK. Pelo que não se verifica qualquer exceção de litispendência no presente caso, pois não se verificam preenchidos os requisitos da tríplice identidade (identidade de sujeitos, identidade de pedido e identidade de causa de pedir).

LL. Sem prescindir e por mero dever de cautela sempre se dirá que, quanto muito, verifica-se uma prejudicialidade de uma causa em relação à outra, ou seja, entre o apenso B e os presentes autos, conforme se verifica no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-07-2017, consultável em www.dgsi.pt, refere que “(…) estando pendente causa prejudicial, a solução passa pela suspensão da instância, nomeadamente nos termos previstos no artigo 272.º do Código de Processo Civil.. (…)”, pelo que poderia inclusive ser a causa suspensa até haver uma decisão transitada em julgado no apenso B.

MM. De qualquer forma, não deve o direito à defesa da propriedade, por via de dedução de Embargos de Terceiro, ser cortado ab initio, sem mais, por via da simples suposição de que a mãe da recorrente, por utilizar o veículo, é a sua proprietária, e assim, ao decidir como decidiu, o tribunal violou os artigos 580º e 581º do Código de Processo Civil.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve conceder-se provimento ao presente recurso em conformidade com as alegações que antecedem, como é de DIREITO e JUSTIÇA”.

O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância apresentou resposta ao recurso, concluindo pela respetiva improcedência.

Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, entendendo também que o presente recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Efetuado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Uma única questão é suscitada no presente recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal: determinar se ocorrem, in casu, os pressupostos de verificação da exceção de litispendência.


2 - A decisão recorrida.

É do seguinte teor o despacho revidendo:
I. MF, solteira, residente na rua Professor …., Algueirão, deduziu os presentes Embargos de Terceiro, em oposição ao Arresto para Efeitos de Perda Alargada, previsto pelos arts. 7.° e 10.° da Lei nº 5/2002, de 11.01, do veículo de matrícula LE-, marca Ford, Modelo Fiesta JA8, deduzido pelo Ministério Público (Apenso B).

Fundamenta a sua oposição ao arresto, alegando, em síntese, que é proprietária e legítima possuidora do referido veículo.

Pugna para que seja ordenado o levantamento do arresto decretado sobre o veículo automóvel de matrícula -LE- e, em consequência, seja, esse bem, devolvido à sua legítima proprietária.

Os embargos foram recebidos por despacho de folhas 25, determinando o cumprimento do art. 348.° do Código de Processo Civil.

Regularmente notificadas as partes primitivas, o Ministério Público deduziu contestação e reconvenção (cfr. folhas 27 a 32), alegando, no essencial, que a Requerida ML (arguida nos autos principais) vem, desde 31.12.2010, de forma exclusiva, ininterrupta, usando, possuindo e fruindo do referido veículo, com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.

Pugna para que seja reconhecida a propriedade do veículo de matrícula LE¬, por parte de ML, nos termos do disposto no art. 348.°, nº 2, do Código de Processo Civil.

A Embargante replicou (cfr. folhas 258 a 261), sustentando a inadmissibilidade formal da reconvenção e, subsidiariamente, referindo que os factos invocados pelo Ministério Público devem ser julgados improcedentes e não provados, com as legais consequências.

Nessa sequência, o Ministério Público pronunciou-se a folhas 264 a 266.

Foi hoje realizada audiência prévia, data designada por despacho proferido em 17.12.2018 (cfr. folhas 268).

Cada uma das partes manteve as posições já assumidas nos respetivos articulados, exercendo o seu direito ao contraditório quanto às questões suscitadas por este Tribunal, nomeadamente no que concerne à exceção dilatória da Iitispendência e/ou caso julgado, nos termos previstos pelo art. 577.°, alínea i), do Código de Processo Civil.

II. O Tribunal é o competente.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias. As partes são legítimas.

III. Impõe-se, desde já, conhecer da referida exceção dilatória (art. 576.°, nº 2, do Código de Processo Civil).

Como se sabe, os embargos de terceiro visam, no fundamental e em termos estruturais, a defesa de situações possessórias, como, aliás, expressamente, se consigna no art. 1285.° do Código Civil.

A embargante tem, assim, no fundamental, de invocar e provar a sua posse (correspondente ao exercício de poderes materiais inerentes ao direito de propriedade).

Neste sentido, a argumentação hoje expendida pelo ilustre mandatário da Embargante resulta prejudicada, pois a defesa da situação possessória é, de facto, o pilar fundamental dos presentes embargos de terceiro, e não qualquer outra questão probatória meramente acessória ou instrumental, como é a relativa ao valor expendido, por terceiros, no aludido veículo.

Temos, pois, como essencial a prova que foi já produzida no âmbito da providência de Arresto para Efeitos de Perda Alargada, que pressupôs a demonstração dos factos descritos nos pontos 14) a 17) da decisão que apreciou o requerimento de oposição apresentado pela arguida/requerida ML (Apenso B).

Aí ficou demonstrado - e tendo por base as declarações prestadas pela própria arguida/requerida ML, a solicitação da mesma, em diligência de prova no âmbito do referido arresto - que:

14) No dia 22.11.2011, novamente com dinheiro pertença da Casa do Povo, a arguida comprou, em estado de novo, por valor não concretamente apurado, mas não inferior a € 15.000,00, o automóvel de matrícula -LE-, marca Ford, Modelo Fiesta JA8, 1.2, a gasolina.

15) A arguida registou, sem onerações, o veículo em nome da sua filha MF - ora Embargante -.

16) No entanto, sempre foi a arguida ML a usá-lo desde aquela data até à atualidade, daí que continue na sua posse e seja esta a tomadora do seguro de responsabilidade civil do mesmo.

17) O referido veículo tem um valor de mercado nunca inferior a € 7.500,00.

Estando em causa a posse desse veículo, é manifesto que se encontra demonstrado - ainda que em termos indiciários e sem prejuízo da decisão (final) que venha a ter lugar no incidente de liquidação - que essa posse não pertence à ora Embargante, mas sim à sua mãe, arguida nos autos principais de instrução e requerida no referido arresto.

Impõe-se, por isso, evitar que se possa definir uma situação concreta de forma válida, mas totalmente contraditória e incompatível com outra decisão anteriormente proferida com o mesmo objeto.

O objeto da presente causa reconduz-se ao domínio e à extração de benefícios do referido veículo automóvel, resultando demonstrado, como já referido, que tal domínio se encontra na esfera de disponibilidade da primitiva requerida, e arguida, ML - e não da Embargante; não obstante quanto a esta (a Embargante) exista formalmente, a seu favor, o registo automóvel.

Adianta-se, neste aspeto, que, à luz do art. 7.° da Lei nº 5/2002, de 11.01, tal registo é totalmente irrelevante, já que a aplicação da perda alargada pressupõe a existência de um património no domínio e benefício do condenado, e não, necessariamente, na sua titularidade (cfr., a este propósito, o Ac. do TRP de 17.09.2014, proc. n.01653/12.2JAPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt).

A exceção dilatória da litispendência tem como objetivo manifesto a economia processual, visando evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, isto é, que a causa seja julgada mais do que uma vez, o que "brigaria" com a força do caso julgado.

Parece-nos ser este o caso concreto, uma vez que o Tribunal, a proferir decisão de mérito, esta poderia ser uma repetição ou uma contradição da decisão proferida em sede de arresto (Apenso B).

Em face do exposto, e nos termos dos citados normativos legais, nada mais resta do que julgar procedente a referida exceção dilatória de Iitispendência; sendo que, caso transite em julgado a anterior/primeira decisão proferida, será então a força/autoridade do caso julgado que estará sempre em causa.

IV. Por fim, importaria analisar a admissibilidade da reconvenção deduzida pelo Ministério Público.

Ora, em face do que acima ficou exposto, não pode, este Tribunal, agora, apreciar tal reconvenção.

Apesar do art. 348.°, nº 2, do Código de Processo Civil expressamente prever a possibilidade de o embargado, na contestação - enquanto "parte primitiva" - pedir o reconhecimento, "... quer do seu direito de propriedade sobre os bens, quer de que tal direito pertence à pessoa contra quem a diligência foi promovida", neste caso, foi julgada procedente uma exceção dilatória, por via da qual se dá prevalência à posse e ao domínio de facto da Requerida ML, exercido sobre o veículo automóvel em causa, afastando o direito da Embargante, sempre no quadro legal aplicável pelos arts. 7.° e 10.° da Lei nº 5/2002, de 11.01.

Deste modo, ficou prejudicada a identidade de sujeitos processuais na relação material controvertida que o art. 348.°, nº 2, do Código de Processo Civil pressupõe - com todo o respeito pelas posições processuais vertidas nestes autos, quer nos articulados, quer na presente diligência.

É que, sendo "afastada" a Embargante da discussão de facto e de direito, pela procedência de matéria de exceção, estaria definitivamente vedada a sua possibilidade de defesa relativamente à situação material controvertida, tanto mais que, neste caso, ela deve ser meramente indiciária, por estarmos no âmbito de uma providência de arresto e porque a requerida, ML, que não apresentou a sua defesa direta relativamente à reconvenção, pode sempre, no limite, vir a apresentar defesa nos termos da "ação principal", de acordo com o disposto no art. 9.° da Lei nº 5/2002, de 11.01.

Dispõe o art. 349.° do Código de Processo Civil que: "a sentença de mérito proferida nos embargos constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência e titularidade do direito invocado pelo embargante ou por algum dos embargados, nos termos do nº 2 do artigo anterior".

A apreciação do mérito da causa mostra-se prejudicada, como acima se referiu.

São, no essencial, estas as duas razões que nos levam a concluir pela inadmissibilidade de apreciação dos fundamentos da reconvenção deduzida nestes autos.

V. Decisão:
Pelo exposto, e nos termos dos citados normativos legais, decido:

a) Julgar procedente a exceção dilatória de Iitispendência;

b) Abster-me, por conseguinte, do conhecimento do mérito da causa e, em consequência, julgar prejudicada a apreciação da reconvenção deduzida”.


3 - Apreciação do mérito do recurso.

Alega a embargante, em breve súmula, que é a proprietária do veículo automóvel LE- (um Ford Fiesta), pelo que deve ser levantado o arresto decretado no âmbito do processo-crime em que é arguida a respetiva mãe.

Cabe decidir.
Analisada a situação posta nos autos, verificamos existirem os seguintes elementos de facto (elementos que, aliás, foram considerados como assentes no despacho recorrido e que não foram diretamente questionados na motivação do recurso):

1º - No dia 22-11-2011, com dinheiro pertença da “Casa do Povo ---”, a mãe da ora embargante comprou, em estado novo, por valor não concretamente apurado (mas não inferior a 15.000 euros), o veículo automóvel -LE- (um Ford Fiesta).

2º - A mãe da ora embargante, que é arguida no processo-crime em causa (processo do qual estes autos são apenso - constituindo o apenso C -), registou esse veículo automóvel LE- em nome da ora embargante (sua filha).

3º - Foi sempre a mãe da embargante (arguida no processo principal, repete-se) a “usar” o veículo automóvel LE-, desde a data da sua compra até à atualidade, estando tal veículo, sempre, na sua posse (e sendo, aliás, tal arguida a tomadora do seguro de responsabilidade civil do mesmo).

Face a tais factos, e com o devido respeito por diferente opinião, constata-se que a embargante nunca esteve na “posse” do veículo automóvel -LE-.

Mais: a embargante nem sequer teve, alguma vez, a “composse” de tal veículo, ou seja, nunca o possuiu em conjunto com a sua mãe.

Mais ainda: a embargante, a não ser de modo puramente formal (por inscrição no registo, ou seja, por mera presunção decorrente do registo), nunca foi proprietária do veículo automóvel em causa.

Daqui decorre, a nosso ver, ser inquestionável a existência de uma mesma causa de pedir e de um mesmo pedido, quer no apenso B (onde foi decretado o “arresto” do veículo automóvel -LE-, e no qual houve, no respetivo decurso, impugnação de tal “arresto”, alegando-se, nessa impugnação, sem mais, que a propriedade do veículo é da ora embargante e não da sua mãe -), quer no presente apenso de “Embargos de Terceiro” (apenso C).

A própria recorrente, na motivação do recurso e bem vistas as coisas, nem sequer questiona a existência da identidade da causa de pedir e do pedido em ambos os referidos apensos.

O que a recorrente questiona, isso sim, é a identidade das partes nos dois apensos (porquanto no apenso B é parte a sua mãe, e, nos presentes autos, é parte o ora recorrente).

Contudo, e com o devido respeito, tal alegação é puramente formal, não atendendo à substância da relação jurídico-material controvertida.

Com efeito, a relação material controvertida é de natureza penal (e não civil), e, nesta sede (sede penal), interessa saber, indiciariamente (na fase em que o processo-crime se encontra), quais os bens pertença da arguida (mãe da embargante) e arrestá-los preventivamente, com vista a salvaguardar as finalidades inerentes à aplicação das sanções penais que venha a ocorrer no final do processo-crime em causa.

A esta luz, a mera circunstância de a respetiva mãe ter registado em nome da embargante o veículo automóvel arrestado preventivamente (tendo, ao que tudo indicia - sem prejuízo de efetiva e melhor prova -, esse registo sido até feito de “má-fé”) não implica, minimamente, que a embargante assuma nos autos a qualidade de “terceiro”, nem, como se nos afigura óbvio, que a embargante possa vir discutir a questão da “posse” do veículo arrestado (ou, por outras palavras, possa vir também discutir os fundamentos - os mesmos fundamentos - da impugnação deduzida relativamente ao referido arresto).

Numa outra ordem de ideias, deu-se como provado, no apenso B (e está também em apuramento no processo principal - o processo-crime propriamente dito -), que a mãe da embargante comprou o veículo automóvel -LE- com dinheiro pertença da “Casa do Povo …”, dinheiro de que se apropriou ilicitamente, e considerou-se também aí como provado que a posse desse veículo sempre foi da compradora (a arguida, mãe da embargante).

Ora, os embargos de terceiro deduzidos pela ora embargante visam a defesa da posse do aludido veículo, constituindo ónus da embargante alegar e provar essa posse.

Porém, compulsados os presentes autos de “Embargos de Terceiro”, o único facto que a embargante invoca (e que a embargante considera relevante para os efeitos por si pretendidos) é, pura e simplesmente, a circunstância de o veículo ter sido registado em seu nome.

Só que, essa invocação é, quando a nós, totalmente irrelevante, porquanto os factos constitutivos da posse do veículo correspondem ao exercício dos poderes materiais inerentes ao direito de propriedade sobre o mesmo, não resultando a posse do veículo da mera presunção de titularidade decorrente do registo.

Com efeito, e como bem se escreve no Ac. do S.T.J. de 16-12-2010 (relator Oliveira Vasconcelos, disponível in www.dgsi.pt), “presume-se que quem está na posse de uma coisa é titular do direito correspondente aos atos que pratica sobre ela; pode haver conflito desta presunção com outras, nomeadamente a proveniente do registo; aqui, a lei estabelece uma prevalência da presunção derivada da posse; entende-se que alguém exerce a posse sobre um veículo automóvel se o vem usando e fruindo como seu dono, ininterruptamente, durante certo lapso de tempo, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém; goza, assim, da presunção de que é titular do direito de propriedade sobre o mesmo veículo; mas pode acontecer que outrem goze também de outra presunção: a derivada do registo de propriedade sobre o veículo; esta presunção tem, no entanto, que ceder perante a presunção derivada da posse do autor, conforme se determina no nº 1 do artigo 1268º do Código Civil; nada mais tendo sido alegado para além da presunção do registo e movendo-se a questão no plano dos factos a que a posse nos conduz, temos que considerar apenas o regime estabelecido no citado artigo 1268º do Código Civil (…). Assim prevalecendo a presunção derivada da posse”.

Em suma: tendo a posse do veículo sido, sempre, da mãe da embargante, a embargante, e perante as suas próprias invocações constantes da motivação do recurso, em nada será prejudicada pelo arresto preventivo do veículo ocorrido no apenso B, arresto relativamente ao qual a sua mãe deduziu oposição, como fundamentos idênticos aos dos presentes “Embargos de Terceiro” (ou seja, alegando que o veículo não é seu, mas da sua filha - face ao registo do mesmo em nome da filha -),oposição que, ao que consta destes autos, ainda não foi decidida - por decisão transitada em julgado -.

Assim, o tribunal a quo, ao considerar verificada a exceção de litispendência questionada no presente recurso, analisou corretamente os factos e aplicou, com total acerto, as normas legais aqui aplicáveis.

É que, e resumindo o teor do despacho revidendo, a verificação da exceção de litispendência (ou a de caso julgado, caso, entretanto, venha a ocorrer decisão com trânsito em julgado no apenso B) constitui a única forma de prevenir o surgimento de decisões judiciais contraditórias, ou seja, de prevenir a possibilidade de a decisão de mérito a proferir nos presentes “Embargos de Terceiro” colidir, frontalmente, de modo substancialmente incompatível e processualmente inaceitável, com a decisão final relativa à oposição ao arresto em causa (apenso B).

Na verdade, e em breve síntese, em ambos os apensos se discute a propriedade/posse do veículo automóvel LE-, e, perante o que é alegado pela embargante (e é também alegado pela sua mãe - no apenso B -), o único elemento que “comprova” essa propriedade/posse a favor da embargante é o registo do veículo em seu nome.

A questão é, pois, a mesma em ambos os apensos, e, em substância, as partes são também as mesmas em tais apensos.

Por conseguinte, o despacho recorrido não nos merece qualquer censura.

Face ao predito, o recurso interposto pela embargante MF é totalmente de improceder, mantendo-se o despacho proferido, em 14 de janeiro de 2019, nos presentes autos de “Embargos de Terceiro”.


III - DECISÃO
Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se, consequentemente, o douto despacho revidendo.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 08 de outubro de 2019


(João Manuel Monteiro Amaro)

(Laura Goulart Maurício)