Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
255/21.7T8CSC.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A FILHOS MENORES
EXECUÇÃO DE ALIMENTOS
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 05/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Não tendo a prestação de alimentos ao menor sido fixada judicialmente, é de considerar que o processo adequado à sua cobrança coerciva é precisamente a execução especial por alimentos regulada nos artigos 933º e seguintes do CPC, servindo como título executivo o acordo homologado pela conservadora donde emerge a obrigação do seu pagamento.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO
1. T., exequente nos autos de execução especial por alimentos à margem referenciados, nos quais figura como executado A., inconformada com a decisão que indeferiu liminarmente o requerimento executivo, dela veio interpor recurso, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
1. O presente recurso é interposto da decisão proferida pelo tribunal a quo, que indeferiu liminarmente o Requerimento executivo da Execução Especial de alimentos por considerar que o acordo junto não é titulo executivo suficiente para que os autos possam prosseguir o seu decurso, entendendo que para a propositura da referida acção carecia a Exequente de propor previamente incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, nos termos do art. 41.º do RGPTC.
2. Salvo melhor opinião, a decisão recorrida carece de fundamento legal, encontrando-se inquinada de erro de julgamento por errada interpretação e aplicação do Direito.
3. Por Acordo de Regulação das Responsabilidades Parentais, homologado em 08.05.2019, em Processo de Divórcio por Mútuo Consentimento n.º 12283/2019, que correu termos na Conservatória do Registo Civil de Lisboa, e o qual de imediato transitou em julgado, por terem as partes prescindido do respectivo prazo de recurso, acordaram as partes num valor, o qual o Executado se encontra obrigado a entregar mensalmente à Exequente, por conta da pensão de alimentos da filha de ambos, C..
4. O Executado nunca pagou qualquer valor por conta da pensão de alimentos a que se encontra obrigado, pelo que se encontra em dívida com o valor referente à mesma.
5. A Apelante, Exequente na Execução Especial de alimentos, à margem identificado, apresentou Execução Especial de Alimentos (prevista nos art. 933. E ss do CPC) para que fosse coercivamente cobrada a dívida em que o Executado incorreu ao não entregar voluntariamente os valores a que estava e está obrigado mensalmente.
6. A Apelante sufraga a jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 74/15.0T8SXL-T.L1-2, de 15.04.2021 e do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20.04.2009, no âmbito do processo n.º 2907/05.0TBPRD- A.P1, bem como do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 809/15.0T8VCT.G1, de 14.01.2016.
7. Nos termos dos quais (Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º74/15.0T8SXL-T.L1-2, de 15.04.2021) :
"IV) Para instauração da execução especial de alimentos que se reporta este normativo não é necessário o prévio recurso ao incidente de incumprimento do artigo 41.º do RGPTC, nem, igualmente, ao mecanismo do artigo 48.º do mesmo diploma, muito embora, claro está, não possa o credor de alimentos receber duplamente a prestação de que é credor numa das vias, se já a recebeu noutra "
8. Salvo melhor opinião, mal andou, o Tribunal recorrido ao não aplicar, no caso dos autos, os normativos dos citados artigos 933.º e ss. do C.P.C. e assim denegar à Recorrente a execução do Acordo relativamente às Responsabilidades Parentais, em que se inclui cláusula referente à pensão de alimentos, coartando-lhe o acesso ao Direito e a possibilidade de ver cobrado o valor que o Executado lhe está obrigado a entregar, por conta da Pensão de alimentos da filha de ambos, através de um método que permite à Exequente assegurar que o Executado não dissipe o seu património e momento anterior à cobrança da dívida em causa, por informado previamente da pretensão da Exequente.
9. É entendimento destes Acórdãos, tal como da Apelante que, os meios à disposição da exequente que se articulam entre si numa relação alternativa, cabendo a escolha ao credor, e bastando-se, assim, o acordo homologado como título executivo para a execução especial de alimentos, não fazendo a lei depender a possibilidade de propositura de execução especial de alimentos da apresentação prévia do incidente de incumprimento, previsto no artigo 41.º do RGPTC.
10. Até porque, ao invés do declarado pelo tribunal a quo, nunca o Executado fica prejudicado no seu direito ao contraditório, ja que mantém a possibilidade de oposição à execução e à penhora.
11. Entendimento diferente implicaria ainda que cada vez que a Exequente pretendesse a cobrança de uma pensão mensal teria de recorrer ao incidente de imcumprimento para o prévio reconhecimento desta.
12. Mais, ao contrário do que o Douto Tribunal a quo vem declarar, a obrigação exequenda apresenta-se como obrigação certa, exigível e líquida.
13. A liquidação de obrigação exequenda que somente dependa de simples cálculo aritmético (e desde que a lei ou sentença não exija liquidação prévia, como se viu que não ser exigida no nosso caso), por assentar em factos que ou estão abrangidos pela segurança do título executivo ou são factos que podem ser oficiosamente conhecidos pelo tribunal, pode ser realizada directamente no Requerimento Executivo, nos termos do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 692/11.5TTMAI-C.P1, de 20.10.2014.
14. No caso sub judice, temos que o valor exacto de pensão de alimentos que os progenitores acordaram consta do referido título executivo; bem como, a forma de actualização do mesmo, por referência à taxa de inflação do INE, a qual é inclusive de conhecimento oficioso do tribunal pois consta do Portal do INE.
15. A exequente especificou todos as pensões de alimentos que se encontram em dívida, explicitou e aplicou a taxa de inflação da sua actualização anual com base na informação que conhecimento oficioso do Portal do INE, concluindo o requerimento executivo com um pedido líquido.
16. Encontrando-se o valor (certo) da obrigação de alimentos estipulada no acordo de alimentos homologado e transitado em julgado, a sua data de vencimento devidamente constante do acordo e as respectivas prestações vencidas segundo a mesma, a forma de actualização inscrita no acordo e do conhecimento do Tribunal por publicada anualmente no Portal do INE, a liquidação efectuada pela Exequente no Requerimento Executivo por simples cálculo aritmético completa a tríade exigida à obrigação exequenda: certeza, exigibilidade e liquidez.
17. Pelo que, se encontra a Exequente em condições de fazer uso do mecanismo da execução especial por alimentos prevista nos artigos 933.º e seguintes do C.P.C para cobrança coerciva das prestações alimentares vencidas e vincendas, já que a execução especial por alimentos é um dos procedimentos legalmente previstos para a cobrança coerciva da obrigação de alimentos e a que, in casu, melhor acautela, no entendimento da exequente, os superiores interesses da menor.
18. Assim, encontra-se ferida de ilegalidade, a fundamentação sustentada na douta decisão do tribunal a quo.
19. Mais, obstar à prossecução do processo com base nos argumentos apontados entra em clara contradição com o dever de boa gestão processual consagrado no artigo 6.º do Código de Processo Civil que remete para o postulado de agilização processual, tendo o juiz tem o dever de providenciar, por exemplo, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais sanáveis, ou de garantir o andamento célere do processo
20. Já que, como se entende no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 74/15.0T8SXL-T.L1-2, de 15.04.202 1: "De todo o modo, caso não se verificasse, os requisitos legais da obrigação exequenda, caberia desenvolver os necessários trâmites com vista a tornar a obrigação certa, exigível e líquida, se a mesma o não fosse em face do título executivo. É o que resulta do artigoa713.º do CPC."
21. Atento todo o exposto, entendemos que a decisão proferida, ao ter decidido, como decidiu, violou, por erro de aplicação e interpretação as normas – arts. 6., 10.º, 713.º, 726.º 1. a), 933.º e seguintes do C.P.C. e 41º RGPTC, devendo ser substituída por uma outra, que receba e ordene o prosseguimento dos autos, com as devidas e legais consequências.
Nestes termos e nos melhores de Direito ao caso aplicáveis, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores, deverá a sentença apelada, que constituiu objecto deste recurso, ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento da execução, com o respeito pela Lei que é apanágio do Tribunal ad quem e se impõe como imperativo da JUSTIÇA!

2.Não houve contra-alegações.

3. O objecto do recurso – delimitado pelas conclusões da apelante- circunscreve-se à questão de apreciação da (in) existência de título executivo.

II. FUNDAMENTAÇÃO

4. É o seguinte o teor da decisão recorrida:
A presente execução refere-se a alimentos alegadamente devidos à filha da Exequente e do Executado.
O título executivo apresentado é o acordo de regulação das responsabilidades parentais no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento na Conservatória.
O Regime Geral do Processo Tutelar Cível estabelece os meios próprios para se obter decisão judicial que reconheça o incumprimento do que foi estabelecido em matéria de regulação de responsabilidades parentais, designadamente quanto a alimentos, prevendo expressa e especificamente a tramitação de um «incidente de incumprimento» – cf. artigo 41.º, daquele diploma legal.
É certo que o Código de Processo Civil, no artigo 933.º, permite a possibilidade de execução por alimentos como meio autónomo para a cobrança de alimentos devidos a crianças/jovens. Não obstante, trata-se apenas de um meio alternativo de cobrança coerciva dos alimentos cuja dívida tenha sido já reconhecida, mas a alternativa é apenas quanto ao modo de cobrança ou através do desconto previsto no artigo 48.º, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível ou através de execução autónoma.
Dito de outro modo, entende-se que não basta como título executivo a decisão judicial que fixa ou homologue a pensão de alimentos, é ainda necessário e exigível que esteja judicialmente reconhecido o incumprimento da pensão fixada. Só assim se consegue encontrar no sistema alguma coerência, pois que não faria sentido a lei estabelecer um incidente próprio sujeito a contraditório prévio destinado ao reconhecimento judicial do incumprimento, permitindo ao mesmo tempo que, sem citação prévia do executado, fosse determinada penhora para pagamento de pensões fixadas, mas não comprovadamente em dívida. Basta pensar no caso paradoxal que seria aceitar a execução de sentenças de regulação proferidas quando a Criança em causa teria apenas 1 ou 2 anos de idade, em execução apresentada passados 15, 16 ou 17 anos, sem que alguma vez tivesse sido reconhecido o incumprimento da pensão antes fixada.
Retomando ao caso dos autos, parece resultar que há uma regulação em que é fixada uma pensão de alimentos em 2019 e uma execução em 2021 sem qualquer reconhecimento judicial de incumprimento.
De resto, entendimento diverso, salvo melhor opinião, levaria a uma situação de julgamento simultâneo (e porventura contraditório) entre incidentes de incumprimento em que é possível a condenação em multa e indemnização (não havendo, portanto, identidade total de pedidos) e execução, eventualmente com embargos discutindo a mesma questão, i.e., saber se houve ou não incumprimento.
Acresce que, salvo melhor opinião, a sentença que se limite a fixar alimentos ou a homologar acordo sobre a regulação do exercício das responsabilidades parentais não configura, nesse sentido, título executivo, pois que não profere qualquer condenação no valor correspondente à quantia exequenda, sendo certo que a sentença, quando se traduza em condenação genérica, depende de prévia liquidação em processo declarativo – cf. artigo 704.º, n.º 6, do Código de Processo Civil – liquidação que, nos alimentos devidos a crianças/jovens, se consubstancia precisamente no atrás referido incidente de incumprimento previsto no artigo 41.º, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
Em suma é de concluir, salvo melhor opinião, que na presente execução não há título executivo.
Face ao exposto, indefere-se liminarmente o requerimento executivo por insuficiência do título executivo apresentado – cf. artigo 726.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.


5. Do mérito do recurso

Foi dada à presente execução, com processo especial, por alimentos um Acordo de Regulação das Responsabilidades Parentais, homologado em 08.05.2019, em Processo de Divórcio por Mútuo Consentimento que correu termos na Conservatória do Registo Civil de Lisboa.
Entendeu-se na decisão recorrida que não há titulo executivo pois é necessário e exigível que esteja judicialmente reconhecido o incumprimento da pensão fixada e que, para o efeito, deve ser trilhado o procedimento estabelecido no art.º41º do Regime do Processo Tutelar Cível.
Não sufragamos tal entendimento.
É certo que este normativo versa situações em que ocorre o desrespeito pela decisão judicial ou acordo de regulação do exercício de responsabilidades parentais.
Como bem salienta Tomé Ramião[1] :“Trata-se de um incidente de incumprimento do acordado ou decidido relativamente a qualquer questão do regime de regulação das responsabilidades parentais. Porém tratando-se apenas de incumprimento quanto à prestação de alimentos, importa considerar o disposto no art.º48º que prevê o modo de cobrança coerciva dos alimentos vencidos e vincendos, através do desconto no vencimento ou outros rendimentos do devedor. Por isso, estando em causa apenas essa questão, é directamente aplicável esse preceito, não o processamento do presente incidente.” (sublinhado nosso).

E assim sendo, cumpre questionar se será aplicável ao caso o art.º 48º do RGPTC que assim dispõe no seu nº1: “Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte: (…)”.

Como emerge da sua redacção, a utilização deste procedimento de cobrança coerciva de alimentos pressupõe que a prestação tenha sido fixada judicialmente.

Aliás, “este procedimento coercivo, na ausência de norma expressa em sentido próprio, deve ser suscitado em incidente, por apenso ao processo que fixou a prestação de alimentos, competindo ao tribunal que decretou os alimentos conhecer o incidente, não tendo aplicação a regra geral prevista no art.º 9º - art.º 16º, segunda parte”.[2]

Não tendo a prestação de alimentos aqui em causa sido fixada judicialmente cremos que o processo adequado à sua cobrança coerciva é precisamente a execução especial por alimentos regulada nos artigos 933º e seguintes do CPC, servindo como título executivo o acordo homologado pela conservadora donde emerge a obrigação do seu pagamento.

Aliás, tal acordo insere-se na categoria de títulos executivos contemplada na alínea b) do nº1 do art.º 703º do CPC: “documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação”.

Não se vê, pois, qualquer justificação para se exigir, como na decisão recorrida se afirma, que previamente à acção executiva seja judicialmente reconhecido o incumprimento da pensão fixada.

Como não se vê, também, qualquer motivo para se afirmar que ter-se-ia de proceder à sua “prévia liquidação em processo declarativo”.

O incidente de liquidação previsto no nº2 do art.º 358º do CPC nunca seria adequado ao caso porquanto, como é sabido, apenas serve para tornar líquidos os pedidos genéricos a que se reportam as alíneas a) e b) do nº1 do artº 556º ou seja, quando o objecto da prestação seja uma universalidade de facto ou de direito (salvo no caso da alínea a) quando o autor não tenha elementos que lhe permitam aquela concretização, caso em que deverá observar o disposto no nº7 do artº 716º- cfr. 556º nº2) ou quando ainda não seja possível determinar de modo definitivo as consequências do facto ilícito ou o lesado pretenda usar da faculdade a que alude o art.º 569º do Cód.Civil : nestes casos o pedido genérico deve ser liquidado no âmbito da acção declarativa, na sentença final, e a liquidação da condenação genérica deve operar necessariamente no processo declarativo depois da referida sentença, antes da instauração da acção executiva – cfr. artº 556º nº2 do CPC .

A liquidação, no caso, depende de simples cálculo aritmético e, por isso, teria lugar em todo o caso, como teve, no requerimento executivo.

Em suma: Não havia, como não há, qualquer motivo para indeferir liminarmente o requerimento executivo.

III.DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação totalmente procedente e, revogando-se a decisão recorrida, determina-se que a execução prossiga os seus ulteriores termos.
Sem custas.
Évora, 26 de Maio de 2022
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente
_______________________________
[1] Regime do Processo Tutelar Cível anotado e comentado, Quid Juris, pag. 145.
[2] Autor e ob. cit. Pag. 177.