Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
36/24.6T8ACB-B.E1
Relator: MARIA ISABEL CALHEIROS
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
CULPA
NEXO DE CAUSALIDADE
INIBIÇÃO DO FALIDO
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – A insuficiência da matéria de facto não constitui nulidade de sentença por omissão de pronúncia, mas sim eventual erro de julgamento sobre a matéria de facto, situação que cabe no âmbito de previsão do artigo 662.º, n.º 2, do CPC.
II - As alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE tipificam situações que integram presunção iuris et de iure de insolvência culposa (isto é, de culpa grave/dolo e nexo de causalidade).
III - Não tendo o recorrente impugnado os concretos pontos de facto provados de que o tribunal se socorreu para integrar as alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, são irrelevantes os factos alegados pelo recorrente que visam infirmar a culpa e o nexo de causalidade entre a sua conduta e a insolvência.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação 36/24.6T8ACB-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo de Comércio de Santarém

SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora)
(…)
*
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
1.1. Em 17 de Janeiro de 2024, nos autos principais de insolvência (requerida) relativos a (…) – (…), Lda., foi proferida sentença, declarando a insolvência da dita Sociedade.
1.2. A Credora (…), Unipessoal, Lda. propôs a abertura do incidente de qualificação da insolvência, nos termos do artigo 188.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, defendendo que a insolvência deveria ser qualificada como culposa e indicando como pessoa a ser afectada o gerente (…) e o gerente de facto (…).
1.3. Foi proferido despacho a declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência.
1.4. O Ministério Público pronunciou-se, nos termos do artigo 188.º, n.º 7, do CIRE, pedindo que a insolvência de fosse considerada culposa e que fosse afectado por essa qualificação o seu gerente (…) e, caso se comprove a gerência de facto, de (…).
1.5. Os Requeridos deduziram oposição, pedindo que a insolvência fosse considerada fortuita.
1.6. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, qualificando a insolvência de (…) – (…), Lda. como culposa, afectando exclusivamente por ela o Recorrente (…) e absolvendo o 2.º Requerido do pedido, lendo-se no dispositivo da mesma:
«Pelo exposto, qualifica-se como culposa a insolvência de (…) – (…), Lda., declarando afetado pela mesma (…).
Em consequência:
a) Declara-se a inibição, pelo período de 3 anos e 6 meses, a contar do trânsito em julgado desta decisão, de (…), quer para administrar patrimónios de terceiros, quer para exercer o comércio bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.
b) Condena-se (…) a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, a efetuar em liquidação de sentença.
c) Absolve-se do peticionado (…)».

1.7. Inconformado com a sentença proferida, o 1.º Requerido (…) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que fosse provido e se revogasse a sentença recorrida, sendo a insolvência declarada fortuita. Caso assim se não entendesse, que a inibição decretada seja pelo período mínimo legal.
Concluiu as suas alegações da seguinte forma (que se reproduzem):
«1) A (…) – (…), Lda., em dezembro de 2023, por ter crédito e fundo de maneio suficiente, preparando as vendas de Natal e Ano Novo, comprou à Cave (…), Unip. Lda, vários vinhos, no montante de € 2.333,52, que pagou, em dinheiro, - em 14.12.2023 factura n.º (…), no valor de € 1.380,45 (IVA inc.), 14.12.2023, factura n.º (…), no valor de € 131,86 (IVA inc.), 21.21.2023, factura n.º (…), no valor de € 278,42 (IVA inc.) 21.12.2023, factura n.º (…), no valor de € 407,73 (IVA inc.), 28.12.2023, factura n.º (…), no valor de € 135,06 (IVA inc.) documentos juntos aos autos.
2) Na manhã do dia 22 de dezembro de 2023, uma Agente de execução, acompanhada da GNR da (…), e outros, apresentou-se nas instalações da (…) – (…), Lda., para executar o arresto dos bens móveis existentes na sede e estabelecimento comercial da requerida (…) – (…), Lda. – Facto provado n.º 17 – para garantia do crédito da requerente Cave (…), Unipessoal, Lda. que à data era de € 4.838,31.
3) O gerente (…), confrontado com o arresto, tentou negociar o pagamento da quantia exequenda oferecendo a pagar de imediato a quantia de mil euros e o remanescente em seis prestações, como consta do auto de arresto junto aos autos, o que foi recusado pela sra. AE e a sra. Mandatária do exequente, presentes.
4) O gerente (…) solicitou ao amigo (…) que se deslocasse ao estabelecimento para ajudar liquidar ou garantir o pagamento, efectuando eventualmente uma proposta de pagamento à Cave (…).
Depoimento gravado en CD áudio em 2025/06/13, (…), Diligência 36-24-6T8ACB-B, 9-53-01 (…), Duração 10:57-11:24.
04.36:
«Juíza – Então a situação de ajuda que o sr. forneceu ou tentou fornecer, foi o quê?
Testemunha – Primeiro tentei inteirar-me da situação o que me foi explicado por ambas as partes, depois de perceber a situação eles perguntaram-me se eu estava disposto a assumir a dívida total, eu disse que a isso não estava disponível, estou disposto a entrarmos aqui, eu não tenho essa capacidade e desconhecendo totalmente qual era a divida, mostraram-me e mostrei-me disponível para ajudar em alguma parte e tal não foi aceite, e na altura até me pediram o cartão de cidadão de imediato, fizeram uma análise à minha actividade e disseram.
Juíza – Portanto, o sr. ofereceu-se para emprestar dinheiro ao sr. (…), foi isso?
Testemunha – Exactamente, eu na altura disse que pagava directamente à Cave (…), só que depois só queriam a totalidade.
Juíza – E não foi aceite, é isso?
Testemunha – Não foi aceite.
Juíza – Estava-me a explicar o porquê.
Testemunha – Porque eles queriam ser ressarcidos da totalidade e eu disse que não podia».
5) Iniciado o arresto à mercadoria, levaram vinhos, whiskeys, vodkas, vinhos do Porto, licores em quantidade e preços que quiseram, mesas, bancos, e outro equipamento, (com excepção de 13 de bancos, 3 mesas de madeira de pinho, uma mesa de vidro, o balcão, dois televisores e uma máquina de café de saco).
6) E, para não levarem a fiambreira, exigiram € 400,00, pelo refrigerador de garrafas, € 120,00, o escadote, € 25,00 e 4 bancos de madeiras, € 160,00, no total de € 709,00, que foi pago em dinheiro.
Depoimento gravado em CD áudio em 2025/06/13, (…) – Diligência 36-24-6T8ACB-B, 9-53-01, Duração 10:26-10:55.
6’.20”:
«Juíza – Foram arrestadas bebidas alcoólicas?
Testemunha – Era o que havia, havia outros bens móveis, mas o sr. (…) mostrou-nos um auto de penhora que tinha ocorrido anteriormente onde estavam alguns bens móveis já penhorados, e por isso não podíamos incidir sobre eles – sobraram ali, os bens perecíveis, basicamente.
Juíza – Um escadote, quatro banco de madeira.
Testemunha – Foi o que sobrou do auto de penhora, digamos assim.
Juíza – Excepcionando o auto de penhora que o resto foi tudo móveis foi tudo arrestado. É isso?
Testemunha – Tirando a fiambreira que o sr. pediu-nos encarecidamente para não o fazer e depois deu € 400,00 para compensar porque realmente precisava da fiambreira para os petiscos, tirando isso foi praticamente tudo o que tinha algum valor».
7) A (…) – (…), Lda. ficou, como soi dizer-se “depenada” até última garrafa, ao último objecto, sem vassoura, bancos ou caixa de papelão e sem capacidade de responder à mais pequena solicitação da cliente de Natal e Ano Novo, sem facturar porque nada tinha para vender.
8) Em 05.02 2024, a (…) – (…), Lda. foi notificada da sentença que decretou o Arresto Ref.ª citius 95604427, distribuiu no Tribunal de Rio Maior, para exercer o contraditório, tendo tomado conhecimento de que no dia 09.12.2023, alguns dias antes das compras de mercadoria descritas supra, e pagas em dinheiro à Cave (…), distribuiu no Tribunal de Rio Maior, uma providência de Arresto, sob o n.º 421/23.0T8RMR , Ref.ª citius 1023108, para cobrança da quantia de € 4.838,31, juros de mora incluídos, sem audiência do arrestado, requerendo.
9) Era intenção da Cave (…), Unipessoal, Lda. levar toda a mercadoria e deixar as prateleiras vazias, como afirmou ao ser inquirido pela advogada da arrestante, o director comercial, que esteve presente no arresto.
Depoimento gravado en CD áudio em 2025/06/13, Diligência 36-24-6T8ACB-B,9-53-01 (…), Duração 09.53-10.15 0.50.15 00.08’.19”
«Adv. – Mas em termos de valor do que lá estava considera que em termos de mercadoria era muito ou pouco, como é que estava já na altura?
Testemunha – Sensivelmente não eram muitos porque eram produtos de baixo valor, mas ainda tinha alguma coisa tinha á volta de, se nós conseguíssemos fazer a avaliação da totalidade do que lá estava eu acho que conseguiríamos ir lá buscar grande parte da dívida, senão a totalidade, grande parte da dívida.
Adv. – Mas ficava o local vazio?
Testemunha – Sim.
Adv. – Mas ficava o espaço vazio, digamos assim?
Sim ficava o espaço vazio, provavelmente».
E,
Depoimento gravado em CD áudio em 2025/06/13, (…), Diligência 36-24-6T8ACB-B, 9-53-01 Duração 10:26-10:55.
22’.10”:
Juíza – O 2º arresto foi realizado? Na segunda vez realizaram o arresto?
Testemunha – Não.
Juíza – Foi para concretizarem o primeiro, não é isso?
Sim para concretizar os restantes valores, era para perfazer o restante valor da dívida.
10) Restou à (…) – (…), Lda. a apresentação à insolvência para preservar algum património sobrante.
11) O valor das largas dezenas de garrafas arrestadas constantes do Auto de Arresto junto pela Cave (…) aos autos, não teve por base as facturas de compra de cada marca, pelo simples facto de estarem na posse do gabinete de contabilidade e a que não tinham acesso, pelo deram às verbas 1 a 97 do Auto de Arresto o valor que entenderam, no total de € 2.515,98, valor que é muito abaixo de valor de mercado, inferior ao preço de compra na maioria dos casos;
Depoimento gravado em CD áudio em 2025/06/13, (…), Diligência 36-24-6T8ACB-B, 9-53-01, Duração 10:26-10:55.
27’55”
Juíza – O valor dos bens como é que foi atribuído? Com algumas facturas, foi indicação dos próprios, foi atribuído em comum? Foi atribuído por quem o valor?
Testemunha – Foi através de facturas dos valores a Cave (…) também tinham na tabela de preços fomo-nos regulando por aí, e alguns que nem eram conhecidos nem a Cave (…) conhecia aqueles nomes, fomos ver à internet, portanto fomos regulando pelas tabelas mais ou menos.
12) Aos vinhos, licores, vodkas, whiskeys, levados, a arrestante, atribuiu € 2.512,98, valor muito mais baixo do que o valor de compra.
13) Pela amostragem junta aos autos, o valor mínimo seria de € 3.515,00 (três mil e quinhentos e quinze euros) como consta da amostragem junta aos autos, e não os € 2.512,98, constantes do auto de arresto, pelo que a mercadoria arrestada mais do que cobria o valor total do débito á arrestante, se tivesse havido honestidade e ética comercial por parte da arrestante.
14) Não havia incumprimento generalizado de obrigações vencidas, como resulta da contabilidade, mas situações pontuais, sempre resolvidas por acordo.
15) A sentença que decretou o Arresto foi notificada à (…) – (…), Lda., em 05.02.2024, Ref.ª citius 95604427, para exercer o contraditório, quando o Arresto foi executado no dia 22.12.2023, e, entretanto, a Cave (…) já tinha executado o segundo arresto, em 16/01/ 2024.
16) A sentença do Tribunal a quo ignorou o Arresto levado a cabo pela Cave (…), Unipessoal, Lda. à mercadoria, móveis e utensílios existentes no estabelecimento da (…) – (…), Lda., sito na (…), a três dias no Natal, com encomendas de clientes, particulares e empresas, que ficaram por satisfazer no Natal e Ano Novo, por falta de mercadoria.
17) A (…) – (…), Lda. tinha crédito no mercado, não tinha incumprimentos generalizado de obrigações vencidas, como resulta da contabilidade, mas situações pontuais, sempre resolvidas por acordo.
18) A (…) – (…), Lda. comprou ao longo de vário equipamento necessário ao funcionamento – mesas, cadeiras, máquinas para a cozinha, prateleiras, expositores, frigoríficos, etc. – em segunda mão, bens adquiridos e pagos, não tendo sido emitida pelos vendedores qualquer factura.
19) Não tendo sido emitidas facturas no acto da compra não estavam contabilizados na contabilidade.
20) Referindo-se à concorrência o sr. Administrador judicial escreveu nos Relatórios dos artigos 155.º e 188.º do CIRE: «Da atividade da Insolvente e razões justificativas para a situação em que se encontra: Realça o facto de a pandemia ter implicado medidas de confinamento da população e de restrição e ao encerramento de vários espaços de restauração e todo o circunstancialismo associado criou instabilidade dos mercados financeiros mundiais, inflacionando o preço dos produtos e aumentando as taxas de juro, levando a que fosse muito difícil suportar os custos associados à prossecução da atividade. Por sua vez, a generalidade dos clientes retraiu as suas compras. Este cenário determinou a situação da insolvente, levando a uma liquidez negativa e difícil de recuperar apesar dos esforços encetados. Também a concorrência sobretudo das grandes superfícies comerciais afetou desfavoravelmente o negócio da empresa.
Toda a situação agudizou-se aquando o arresto de grande parte da mercadoria do estabelecimento, tendo sido levadas garrafas de todos os tipos e marcas e outros bens necessários ao funcionamento do estabelecimento, inviabilizando as vendas no período de natal e ano novo por falta de mercadoria.
A despesas mensais tornaram-se superiores ao seu rendimento, encontrando-se por isso incapaz de cumprir os compromissos assumidos.»
21) O tribunal a quo não se pronunciou sobre o arresto executado, a mercadoria arrestada, os equipamentos e materiais vendáveis levados, incapacitando a empresa de laborar, a dois dias do Natal e Ano Novo, sobre a matéria e conclusões constantes nos Relatórios dos artigos 155.º e 188.º do CIRE, nada disse.
22 ) Ou melhor, disse que não constavam dos temas de prova.
23) Para determinar a actuação do gerente, a forma como agiu, era essencial, analisar todo o circunstancialismo que determinou a apresentação da empresa à insolvência.
24) Não consta dos factos provados nem dos não provados se o apelante (…) foi gerente da sociedade (…) – (…), Lda. e durante quanto tempo, como alegado no n.º 24 da oposição ao Incidente de qualificação, e consta de documentação nos autos.
25) “(…) foi nomeado gerente da sociedade (…) – (…), Lda. por deliberação de 31 de outubro de 2022 – Insc. 3 Ap. (…) 15:37:25 UTC – Designação de Membros de Órgãos Sociais (on line) designados gerência”, certidão constante dos autos.
26) “(…) foi gerente da (…) – (…), Lda. durante quinze (15) meses (31.10.2022 a 17.01.2024).
27) Sobre os 15 meses de gerência de (…) explicados, pormenorizadamente, nos Relatórios dos artigos 155.º e 188.º do CIRE, o Tribunal a quo não se pronunciou.
28) Deve ser aditado aos factos provados que (…) foi gerente da (…) – (…), Lda. durante quinze meses.
29) Na fundamentação dos factos e sobretudo na aplicação da sanção o Tribunal a quo não valorou nem explicou criticamente a actuação do gerente, o grau de culpa, nos quinze meses de gerência de (…) explicados nos Relatórios dos artigos 155.º e 188.º do CIRE.
30) A (…) – (…), Lda. demonstrou capacidade de solver as dívidas, sendo as suas dívidas de curto prazo.
31) A insolvência da (…) – (…), Lda. não foi causada nem agravada pela actuação do seu gerente, como salientou o sr. AI, nos Relatórios dos artigos 155.º e 188.º do CIRE.
32) Em concreto, no caso dos autos, não houve destruição, dano, inutilização, ocultação ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, qualquer bem.
33) Nos Relatórios dos artigos 155.º e 188.º do CIRE está descrito, com toda a clareza, os vários equipamentos, comprados em 2ª mão e sem factura, com a expressa indicação: «Os bens não constavam na contabilidade da devedora», que a (…) – (…), Lda. facturou e vendeu, tendo o respectivo pagamento dado entrada em 12, 15 e 19/01/2024 na conta da insolvente no Banco (…).
34) Todas as faturas de equipamento e mercadoria vendida deram entrada na conta da insolvente no Banco (…).
35) Foi consultada a Leiloeira do (…) acerca do valor porque os bens móveis foram vendidos, a qual informou que o valor de venda “está adequado à realidade comercial dos bens”.
36) Quanto aos bens do stock, verificou-se que a generalidade dos mesmos foi vendida acima do valor de aquisição.
37) Sobre a forma e a intenção do arresto executado, a não aceitação das propostas de pagamento da quantia exequenda, do valor atribuído aos equipamentos e materiais vendáveis levados pela arrestante, incapacitando-a de laborar, a três dias do Natal e Ano Novo, bem como a matéria e as conclusões constantes dos Relatórios dos artigos 155.º e 188.º do CIRE, o Tribunal a quo nada disse. Ou melhor, que não constavam dos temas de prova.
38) A inibição de três anos e seis meses aplicada ao Apelante é uma sanção extraordinariamente pesada, que nada nos autos a justifica, é uma injustiça a todos os títulos, face aos factos, ao volume financeiro da própria insolvência, quando a sociedade estava tecnicamente insolvente, e que se deparou com o Arresto, intencionalmente levado a cabo com o intuito declarado de a incapacitar totalmente, impedindo-a de prosseguir a sua actividade por falta de mercadoria.
39) Mais injusta e inexplicável, a inibição de três anos e seis meses, quando comparada com as inibições decretadas nas situações dos acórdãos que o Tribunal a quo citou, face aos elevadíssimos valores em causa nesses casos.
40) A insolvente só deixou de liquidar o seu passivo após ter sido declarada insolvente.
41) Mal andou o Tribunal a quo ao proferir sentença decretando a qualificação de insolvência como culposa, quando segundo os Relatórios do sr. Administrador Judicial desde 2020 – quando o apelante nem sonhava ser gerente – estava em falência técnica.
42) Nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, não foi criada ou agravada a situação de insolvência técnica em que a (…) – (…), Lda. pelo Apelante não era gerente da sociedade até Novembro de 2022, (segundo o critério plasmado no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE) ou, ainda, se a situação é enquadrável em alguma das alíneas do n.º 2 daquele artigo.
43) A insolvente não dispôs de qualquer bem a favor de terceiros - vendeu-os acima do valor de mercado e facturou-os, apesar de não estarem contabilizados na empresa.
44) Nenhuma factualidade provada nos presentes autos permite concluir que o indicado agiu com culpa grave.
45) A sentença a quo não determina o grau de participação do apelante quanto á matéria provada.
46) A sentença é nula porquanto o Tribunal a quo não se pronunciou sobre questões que devesse apreciar (artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC).
47) Assim, fez o Tribunal a quo errada interpretação do artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), d) e f), do CIRE, pelo que deve ser revogada a douta sentença recorrida e consequentemente ser a insolvência qualificada como fortuita.
48) Assim se não entendendo, o que apenas por mera hipótese académica se enuncia, deverá a pena de inibição ser revista para o mínimo legal».
1.8. O Ministério Público pugnou pelo não provimento da apelação e pela consequente confirmação da sentença recorrida.
*
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II –OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do NCPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser as de conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do NCPC).
Tendo, então, em atenção as conclusões do Recorrente são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:
- nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia / vício da sentença por insuficiência do julgamento quanto à matéria de facto;
- erro de direito ao qualificar a insolvência como culposa;
- erro de direito quanto ao período de inibição aplicado ao recorrente.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal de 1ª Instância «com interesse para a decisão da causa», deu como provados os seguintes factos:
1. Em 04-01-2024 (…) – (…), Lda. apresentou-se à insolvência.
2. (…) – (…), Lda. foi declarada insolvente por sentença de 17-01-2024, transitada em julgado.
3. A insolvente tem como objeto social: Comércio por grosso, importação e exportação de bebidas alcoólicas. Comércio por grosso de azeite, óleos e gorduras alimentares. Comércio por grosso de combustíveis sólidos, líquidos e gasosos não derivados do petróleo, comércio a retalho de combustíveis para uso doméstico, em estabelecimentos especializados. Comércio a retalho em outros estabelecimentos, não especializados, com predominância de produtos alimentares, bebidas alcoólicas, e outras bebidas ou tabaco, e exploração de loja gourmet. Comércio a retalho de bebidas, em estabelecimentos especializados.
4. A insolvente tem a sua sede na Rua do (…), n.º 49, Venda da (…), (…).
5. A Insolvente, nos dias 26 de Dezembro e 30 de Dezembro de 2023, transmitiu todo o equipamento/material necessário à prossecução da sua atividade - a viatura utilizada na atividade comercial, todo o mobiliário existente nas suas instalações e todo o recheio – à sociedade denominada comercial (…), Unipessoal Lda., pelo valor de € 8.010,46.
6. A insolvente deliberou no dia 27 de dezembro de 2023 a sua apresentação à insolvência.
7. O valor referido em 5 deu entrada na conta da insolvente junto do Banco (…).
8. A (…), Unipessoal, Lda. foi constituída em 26 de Dezembro de 2023 e tem a sua sede na Av. (…), n.º 18, r/c, Dto., (…).
9. A sede da (…), Unipessoal, Lda. corresponde às instalações onde a Insolvente desenvolvia a sua atividade e onde a (…), Unipessoal, Lda. desenvolve também a sua atividade, sendo que em tais instalações ainda consta a publicidade da insolvente.
10. A (…), Unipessoal, Lda. tem como objeto social: Comércio por Grosso e a retalho de Bebidas Alcoólicas e não alcoólicas; Serviços de Refeições.
11. A (…), Unipessoal, Lda. trabalha com alguns dos mesmos clientes da Insolvente e com alguns dos mesmos fornecedores.
12. A (…), Unipessoal, Lda. tem apenas um sócio, (…), que é também o gerente.
13. (…) foi igualmente gerente e sócio da insolvente, tendo cessado funções de gerente a 31-10-2022 e deixado de ser sócio em 08-02-2023.
14. (…) é filho do gerente da insolvente, (…).
15. (…) ajudava o seu pai a servir os clientes e despachar encomendas no espaço comercial onde laborava a insolvente.
16. À credora reclamante foi reconhecido nos presentes autos um crédito no montante de € 3.320,91.
17. No âmbito do procedimento cautelar de arresto que correu termos no Juízo de competência genérica de Rio Maior sob o n.º 421/23.0T8RMR foi decretado o arresto dos bens móveis existentes na sede e estabelecimento comercial da requerida (…) – (…), Lda. para garantia do crédito da requerente Cave (…), Unipessoal, Lda. que à data era de € 4.838,31.
18. No dia 23 de Dezembro de 2023, a Requerente deslocou-se ao estabelecimento comercial da Insolvente sito na Av. (…), n.º 16, na (…) para efetivação do arresto.
19. Após a diligência referida em 18, a quantia em dívida passou a ser de € 2.325,33 relativamente à qual foi efetuado acordo de pagamento a prestações.
20. (…) é filho do gerente, com ele residindo, e sobrinho da única sócia da insolvente.
21. A faturação da insolvente entre 2020 e 2022 aumentou cerca de 39%, tendo em 2023 reduzido cerca de 28% em relação a 2022.
22. Nos períodos referidos em 21, a insolvente apresentou sempre prejuízos, não conseguindo libertar fundos suficientes para fazer face às responsabilidades do passivo e aos encargos mensais.
23. O referido em 22 deve-se em grande parte ao valor da faturação ser baixo e a margens de venda muito reduzidas.
24. Desde 2020, pelo menos, que apresentou EBITDA negativo.
25. O Fundo de Maneio e a Tesouraria Líquida apresentavam-se negativos.
26. A insolvente é uma microempresa, sem qualquer trabalhador assalariado, sendo operada apenas pelo gerente.
27. Nos períodos referidos em 21, a insolvente encontrava-se muito dependente de terceiros e apresentava reduzidos níveis de liquidez, tendo dificuldades para cumprir os seus compromissos para com os credores.
28. O Passivo aumentou cerca de 18,7% desde 31/12/2020, verificando-se em 31/12/2022 um valor de € 70.932,52.
29. O prazo de armazenagem foi reduzindo ao longo dos anos, sendo de 28 dias em 2022.
30. Desde 2020 que o crédito de fornecedores da insolvente não foi suficiente para o financiamento do ciclo de exploração da empresa.
31. O valor referido em 5 corresponde ao valor comercial dos bens transmitidos.
32. Desde 01 de Janeiro de 2024 foram realizados os seguintes levantamentos, no total de € 8.570,00:
- 2/1/2024 – Levantamento de € 200,00;
- 2/1/2024 – Levantamento de € 200,00;
- 3/1/2024 – Levantamento de € 180,00;
- 8/1/2024 – Levantamento de € 110,00;
- 9/1/2024 – Levantamento de € 160,00;
- 9/1/2024 – Levantamento de € 160,00;
- 10/1/2024 – Levantamento de € 200,00;
- 10/1/2024 – Levantamento de € 200,00;
- 11/1/2024 – Levantamento de € 200,00;
- 11/1/2024 – Levantamento de € 200,00;
- 12/1/2024 – Levantamento de € 140,00;
- 12/1/2024 – Cheque caixa de € 1.000,00;
- 15/1/2024 – Cheque caixa de € 1.400,00;
- 16/1/2024 – Cheque caixa de € 1.700,00;
- 19/1/2024 – Levantamento de € 780,00;
- 19/1/2024 – Levantamento de € 1.500,00;
- 22/1/2024 – Levantamento de € 200,00;
- 22/1/2024 – Levantamento de € 40,00.
33. Do montante total referido supra em 32, € 4.697,84 foram utilizados para pagamentos a credores.
34. Foram reconhecidos créditos no processo de insolvência no montante total de € 46.024,85.
35. Parte dos bens referidos supra em 5, no valor total de € 3.036,87, não constavam da contabilidade da insolvente.
36. A viatura de matrícula (…), marca Ford, que foi objeto da transmissão referida supra em 5 pelo valor de € 1.845,00, tinha reserva de propriedade a favor do credor (…), Instituição Financeira de Crédito, SA, tendo a (…), Unipessoal, Lda. pago à (…) o montante de € 2.569,97.
*
E considerou como não provados os seguintes factos:
«a) A insolvente faturou bens à sociedade (…), Unipessoal, Lda. que se encontravam penhorados ao abrigo de processo executivo n.º 101/23.7TACB, instaurado por (…), Lda..
b) (…) também representava a Insolvente nas suas relações com terceiros, mesmo após 31-10-2022.
c) Os clientes e fornecedores da (…), Unipessoal, Lda. são os mesmos da insolvente».
*

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. - Nulidade da Sentença recorrida por Omissão de Pronúncia – Erro de Julgamento da Matéria de Facto por Deficiência
Sustenta o Recorrente que:
. tribunal a quo não se pronunciou sobre o arresto executado, a mercadoria arrestada, os equipamentos e materiais vendáveis levados, incapacitando a empresa de laborar, a dois dias do Natal e Ano Novo, nem sobre a matéria e conclusões constantes nos Relatórios dos artigos 155.º e 188.º do CIRE, elencado para o efeito os factos n.º 1 a 15, 17 a 20 das suas conclusões
. foi nomeado gerente da sociedade (…) – (…), Lda., por deliberação de 31 de outubro de 2022 – Insc. 3, Ap. … UTC, conforme certidão constante dos autos, o que não consta da fundamentação (conclusões 24 a 28).
E imputa à sentença o vício de nulidade por omissão de pronúncia (artigo 615.º [certamente por lapso de escrita refere artigo 668.º], n.º 1, alínea d), do CPC) decorrente de nela não ter sido feita qualquer alusão aos factos que refere nos nºs. 1 a 20.
Dispõe, a propósito, o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, do C.P.C., que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Estamos, aqui, perante nulidade que decorre do disposto no artigo 608.º, n.º 2, do mesmo CPC, onde se impõe ao juiz o ónus de resolver na sentença todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras questões.
Sucede que «o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC» (Acórdão do S.T.J. de 23.3.2017, relator Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt).
Na verdade, neste caso «não se está perante uma nulidade da sentença, prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC (por omissão de pronúncia), nem perante uma nulidade de sentença por falta de fundamentação da matéria de facto (prevista na alínea b) do citado artigo 615.º), mas de uma eventual omissão de factos na descrição da matéria de facto, a demandar a sua ampliação em sede de recurso, nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 2, alínea c)» (Acórdão do TRG de 07.12.2023, disponível em www.dgsi.pt).
É que «factos não constituem, (…), a questão cujo conhecimento fosse imposto ao tribunal e, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência ou a improcedência da acção, o facto de não lhes fazer referência – eventualmente porque não considerou tais factos relevantes no tratamento da questão – não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia. Os factos que alegadamente foram desconsiderados na 1ª instância poderiam eventualmente relevar no âmbito da valoração e aplicação das regras de direito; a sua falta pode constituir errore in judicando ou erro judicial, mas não o indispensável errore in procedendo, próprio das nulidades da sentença» (Acórdão TRG de 24.11.2014, rel. Filipe Caroço, disponível em www.dgsi.pt).
Decidiu também o Ac. do TRG de 12.10.2023 (P. 605/21.6T8VCT-C.G1) que «saber se a prova produzida é insuficiente ou inidónea para fundamentar o juízo decisório da Tribunal a quo (permitindo a revogação da sua decisão, por errado julgamento efectuado), não constitui omissão de fundamentação mas sim eventual erro de julgamento sobre a matéria de facto julgada (…), e não questão relativa a eventual nulidade de sentença».
Temos, então, que o recorrente confunde o que são as causas de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, com aquilo que são os erros de julgamento da matéria de facto, na vertente, no que ao caso releva, da sua insuficiência, situação que cabe no âmbito do regime previsto no artigo 662.º, n.º 2, do CPC.
Consequentemente, o recurso improcede quanto à invocada nulidade por omissão de pronúncia quanto aos aludidos factos.
*
Passemos, agora, a apreciar os invocados erros de julgamento da matéria de facto, na vertente da sua deficiência, que, aliás, são de conhecimento oficioso, como decorre do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea b), do CPC.
A este respeito importa começar por referir que o juiz na sentença não tem de se pronunciar sobre todos os factos que foram alegados pelas partes, julgando-os provados ou não provados, mas tem apenas que considerar os factos essenciais que constituem a causa de pedir invocada pelo autor ou pelo réu reconvinte e das exceções invocadas, desde que esses factos tenham sido alegados (artigo 5.º, n.º 1, do CPC), e os factos que seja complemento ou concretização daqueles e resultem da instrução da causa desde que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar (artigo 5.º, n.º 2, alínea b), CPC).
Dito isto, constata-se que o Recorrente em parte alguma das suas alegações faz a necessária correspondência dos factos que invoca nas suas conclusões com o por si alegado no articulado de oposição.
De todo o modo, ao contrário do sustentado pelo Recorrente, e quanto às conclusões 1 a 15 e 17 a 20, verifica-se que o tribunal consignou nos n.ºs 16º a 19º dos factos provados a matéria relevante respeitante ao arresto executado pela Cave (…) e nos nºs 21º a 31º dos factos provados consignou também a matéria fáctica constante do relatório apresentado ao abrigo do artigo 188.º, n.º 6, do CIRE.
As conclusões 30 a 32 são juízos conclusivos e valorativos e as conclusões 33 a 36 reportam-se a matéria já contemplada nos factos provados sob nos n.º 7 e 31 da sentença recorrida.
Quanto ao mais (com excepção das conclusões 24, 25 e 28), a pretensão deduzida reporta-se a matéria que se mostra irrelevante para o incidente em causa, de acordo com as várias soluções plausíveis da questão de direito.
É que a sentença que qualificou como culposa a insolvência da sociedade Castas e Vinhos, considerou estarem preenchidas as alíneas a), d) e f) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
Ora, tem sido entendimento consensual da jurisprudência que «para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a actuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento», mas «verificada uma das situações do n.º 2 do art. 186.º do CIRE presume-se iuris et de iure a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa», ao contrário das situações previstas no n.º 3», em que «para a insolvência [possa] ser declarada culposa é necessário que se demonstre que a actuação com culpa grave criou ou agravou a situação de insolvência, presumindo-se a culpa grave mas facultando-se ao insolvente a faculdade de ilidir essa presunção iuris tantum» (v., entre outros, Ac. da RP de 07.12.2016, disponível em www.dgsi.pt).
Ou seja, nas diversas hipóteses previstas no citado artigo 186.º, n.º 2, o respectivo preenchimento determina que se considere sempre culposa a insolvência; o citado preceito “consagra presunções (absolutas) de insolvência culposa, isto é, de culpa grave /dolo e de nexo de causalidade” (Catarina Serra, Lições de direito da insolvência, 3.ª edição, pág. 384), não podendo, então, ser ilididas.
Para que as presunções previstas no aludido artigo 186.º, n.º 2, operem é apenas necessário que os factos ali elencados tenham sido praticados no período referido no n.º 1, ou seja, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Assim, desde que os factos previstos nas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º tenham sido praticados nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, a insolvência é sempre considerada culposa, por via da presunção inilidível ali estabelecida.
No caso vertente, não tendo o recorrente impugnado qualquer dos concretos pontos de facto dados como provados na sentença, designadamente aqueles de que o tribunal se socorreu para integrar as alíneas a), d) e f) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, é quanto basta (caso os comportamentos ali descritos nelas se integrem) para deixar demonstrada nos autos a culpa (grave) do gerente e o nexo de causalidade entre a sua conduta e a insolvência ou do seu agravamento. Por isso, são inócuos os factos alegados pelo recorrente que visam infirmar a culpa e o nexo de causalidade entre a sua conduta e a insolvência, pois que, em circunstância alguma permitiriam qualificar a insolvência como fortuita.
É que a única forma de afastar a qualificação da insolvência como culposa decorrente do preenchimento daqueles índices seria a prova de que não praticou aquele(s) concreto(s) facto(s) ou que ocorreu(ram) fora do período de três anos contemplado na norma.
Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o tribunal de recurso não deve reapreciar a matéria de facto «quando o facto concreto objecto de impugnação for insusceptível de, face às circunstâncias próprias de caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. do TRC de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Proc. n.º 1024/12.0T2AVR.C1).
O mesmo já não se pode dizer quanto à pretensão de ver incluída nos factos provados a matéria alegado no artigo 24º da Oposição [(…) foi nomeado gerente da sociedade (…) – (…), Lda., por deliberação de 31 de Outubro de 2022 – Insc. 3, Ap. …], tratando-se de facto essencial alegado pela parte e plenamente provado por documento junto aos autos de insolvência (certidão da CRC que consultei), impondo-se o seu aditamento à matéria de facto provada.
Pelo exposto, quanto ao invocado vício de deficiência do julgamento da matéria de facto, improcede o recurso.
*
A matéria de facto a ter em conta neste recurso é, então, a que supra se transcreveu em III., acrescentando-se à mesma o seguinte facto:
4.(a) (…) foi nomeado gerente da sociedade (…) – (…), Lda., por deliberação de 31 de Outubro de 2022 – Insc. 3, Ap. (…).
*
4.2. Erro de Julgamento quanto à Qualificação da Insolvência como Culposa
Veio, depois, o Recorrente sustentar que o Tribunal a quo fez errada interpretação do artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), d) e f), do CIRE, pugnando pela revogação da sentença e, consequentemente, que a insolvência seja qualificada como fortuita.
O tribunal a quo qualificou a insolvência da (…) – (…), Lda. como culposa, por considerar preenchidas as alíneas. a) e d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
Lê-se, no que ao caso vertente interessa, no artigo 186.º do CIRE:
«1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

(…)
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
(…)

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto».
Como se deixou referido em 4.1., no artigo 186.º, n.º 2, do CIRE tipificam-se um conjunto de situações que, quando se verifiquem, integram uma presunção iuris et de iure de que a insolvência é culposa. Provado o facto nelas enunciado fica estabelecido automaticamente o juízo normativo de culpa (grave) do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a conduta e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
Ou seja, ocorrendo alguma das condutas ali tipificadas há lugar à qualificação de insolvência como culposa.
Vejamos, então, cada uma das alíneas e se os factos provados as integram
Quanto à previsão da alínea a), o tribunal a quo deu, a esse respeito, argumentou que:
«Para efeito desta norma, a noção de património é a de património ilíquido ou bruto, ou seja, o ativo sem que se tenha em conta o passivo, sendo que este (o passivo), é objeto de atenção legislativa na alínea b) do mesmo preceito. Aliás as ações típicas previstas (destruir, danificar e inutilizar) apontam claramente no sentido de estarem em causa bens e direitos.
No caso vertente apurou-se que sociedade devedora no período temporal relevante, realizou a venda de todo o património (stock, viatura, recheio), sendo que é desconhecido o destino dado a parte do montante respeitante ao preço, concretizando, do total de € 8.010,46, desconhece-se o destino dado a € 3.312,62.
Como já decidido no acórdão do TRC de 28-05-2013, proferido, no processo n.º 102/12.0TBFAG-B.C1 e no acórdão do TRG de 05-06-2014, proferido no processo n.º 1243/12.80TBGMR-D.G1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt “A ocultação prevista no artigo 186.º, n.º 2, a), do CIRE basta-se com uma atuação que, alterando a situação jurídica do bem – por ex: retirando-o das instalações da insolvente e guardando-o em local desconhecido – impeça ou dificulte a sua identificação, acesso ou acionamento pelo credor”.
O processo de insolvência foi encerrado por insuficiência, constituindo, assim a venda referida em 5 a venda de todo o património da insolvente, sendo que se desconhece o destino dado a quase metade do valor de tal património (factos 5, 32 e 33).
Assim, tal montante constituía parte considerável do património da devedora, nos termos da referida alínea a).
Encontra-se, assim, preenchida a referida alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, uma vez que foi ocultado/feito desaparecer o montante acima indicado, face à jurisprudência acima citada».
Não se vê razão para alterar o decidido.
Como se expendeu no Ac. da RL de 19.12.2024, Relator Pedro Brighton, Proc. nº 1805/19.4T8SNT-B.L1-1 (acessível em www.dgsi.pt), «a interpretação deste preceito, designadamente no que se refere ao termo “ocultar”, não tem vindo a ser entendido de forma unânime. Como se pode ver, entre outros, nos Acórdãos da Relação de Guimarães de 09/07/2020 (Proc. n.º 2622/19.7T8VNF-B.G1, Relator José Alberto Moreira Dias) da Relação de Coimbra de 28/5/2013 (Proc. n.º 102/12.0TBFAG-B.C1, Relator Moreira do Carmo) e de 23/11/2010 (Proc. n.º 1088/06.6TBPMS-A.C1, Relator Carlos Querido), todos consultados na “internet” em www.dgsi.pt, em que se considerou que o termo ocultar “significa retirar os bens da esfera jurídica do devedor, um descaminho desses bens, que pode impedir ou dificultar, o acesso ao acionamento desses bens por parte do credor (…) não se exige ocultação no sentido físico, mas apenas no aspecto da situação jurídica do bem”.
Nessa Jurisprudência faz-se notar que se inclui em tal noção (de ocultação) a venda de bens a sociedade controlada pelo alienante, a familiares chegados ou em que o alienante faz desaparecer a quantia recebida pela venda.
Para outros, entende-se que está em causa o desconhecimento do paradeiro de bens. (…)
Como refere Pedro Caeiro (in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo II, 1999, págs. 412 e 413, estão em causa “condutas que provocam uma diminuição real do património (…) o devedor deprecia realmente o valor do seu património, causando por essa forma uma situação de insolvência. No que diz respeito à expressão “fazer desaparecer parte do seu património”, parece que ela servirá para atalhar aos casos em que não se descobre o paradeiro de bens que supostamente se deviam encontrar na titularidade do devedor. Não importa se eles foram objecto de uma alienação real ou tão-só fictícia importa tão-só que os credores não conseguem atingi-los para garantir a satisfação das suas dívidas, pelo que o valor ostensivo do património resulta, em qualquer caso diminuído».
Ora, perante os factos provados sob os n.º 5, 32 e 33, praticados entre Dezembro de 2023 e Janeiro de 2024, é patente que o gerente da insolvente vendeu todo o equipamento desta (viatura, mobiliário das instalações e recheio) necessário à prossecução do seu objecto, não se conhecendo o paradeiro de parte da quantia recebida pela respectiva venda.
Mostra-se, assim, preenchida a previsão desta alínea.
Quanto à previsão da alínea d), o tribunal a quo argumentou que:
«Na alínea d) do referido n.º 2 prevê-se de disposição de bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
Conforme se pode ler, entre outros, no ac. do TRG de 19-09-2019, proc. n.º 3144/18.9T8VNF-B.G1, disponível em www.dgsi.pt, “em sido considerado, quer na doutrina, quer na jurisprudência, a expressão utilizada na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE – disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiro – não se confunde, nem tem equivalência com a transferência do direito de propriedade dos bens do devedor. A transferência do direito de propriedade representa apenas uma forma pela qual o administrador pode dispor daqueles bens; mas há outras formas de actuação que implicam uma conduta equivalente a dispor dos bens com um alcance diferente.
(…) O ato é censurado na medida em que se retira do património do devedor (total ou parcialmente) um bem que devia ali ser mantido para pagamento dos credores em geral, segundo as regras consignadas no CIRE, e se beneficia com esse ato um determinado credor ou um terceiro em prejuízo dos demais.
Ou seja, sendo o processo de insolvência um processo de execução universal, todos os credores são chamados a reclamar os seus créditos, e todos se apresentam à insolvência para serem pagos, na medida do possível, pelos bens do devedor. Não faria por isso sentido que fosse o devedor a dispor do seu património, defraudando as expectativas daqueles credores – que podem muito bem ter concedido crédito ao devedor em face do seu património, com o qual contavam como garantia do seu crédito –, arrecadando para si o produto do mesmo, ou pagando, a seu bel prazer, a quem entendesse, beneficiando uns credores em detrimento de outros” – cfr. ainda o ac. do TRP de 11-02-2025, proc. n.º 380/24.2T8STS.P1, disponível em www.dgsi.pt.
Revertendo ao caso em apreço a devedora alienou património que existia na sua esfera jurídica e que poderia satisfazer, pelo menos em parte, as suas dívidas, sendo que, tendo obtido algum capital, dele se apoderou dando-lhe em parte destino alheio (porque desconhecido) à satisfação dos créditos verificados na insolvência.
Mais, mesmo quanto aos montantes que foram utilizados para pagamentos a credores, de notar que alguns levantamentos e pagamentos foram realizados após o início do processo de insolvência e alguns foram realizados após a sentença de declaração de insolvência e outros ainda após a elaboração do relatório pelo Sr. AI nos termos do artigo 155.º e ao requerimento de abertura do incidente de qualificação, pelo que, face à jurisprudência acima citada, não cabia à devedora escolher os credores a quem pagar, pelo que sempre estaria a dispor de bens do devedor em proveito de terceiros».
Também não se vê razão para alterar o decidido.
Novamente, remete-se para o citado Ac. da RL, segundo o qual «nesta alínea estão em causa (...), “comportamentos dos administradores do insolvente que, afectando a situação patrimonial deste, implicam concomitantemente benefício para o próprio administrador que os adopta ou para terceiros” (cfr. Carvalho Fernandes, in “Themis, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência”, 2005, pág. 95, nota 23). Tais comportamentos tanto são aqueles que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor (como sucede, por exemplo com a venda ou a doação dos bens), assim como os que, não implicando necessariamente a saída dos bens do património do devedor, lhe retiram, no entanto, a disponibilidade, colocando-os na disponibilidade de outrem.
Em qualquer uma das situações, o legislador formula, no entanto, a exigência adicional de que o acto de disposição seja feito em proveito pessoal ou de terceiros.
Destas considerações decorre, assim, que, no âmbito do artigo 186.º, n.º 2, alínea d), do C.I.R.E., ter-se-ão de apurar factos de onde decorra que os Administradores, de facto, ou de direito, da devedora insolvente realizaram
- Actos de disposição;
- De bens do devedor;
- Em proveito pessoal de terceiros».
Ora, como decorre da factualidade provada nos n.ºs 5, 33 e 34, o gerente da insolvente dispôs de parte do dinheiro obtido com a venda de todo o equipamento da insolvente, já depois de ter dado entrada do processo de insolvência, utilizando-o para efectuar pagamentos a credores à revelia do processo de insolvência, sem que resulte de que gozassem de preferência no pagamento.
Estamos, assim, perante um acto de disposição de bens a favor de terceiros, prejudicando os demais credores (vide neste sentido também o Ac. do STJ de 15/02/2018, citado no CIRE consultável no site da PGDL).
Quanto à previsão da alínea f), lê-se na decisão do tribunal a quo:
«Na alínea f) do referido n.º 2 está em causa a conduta do administrador que fez do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto.
Da factualidade apurada resulta que a insolvente alienou o seu imobilizado (incluindo um veículo automóvel) e existências nas vésperas da sua apresentação à insolvência, a empresa especialmente relacionada (…), Unipessoal, Lda.: especialmente relacionada quer relativamente aos seus sócios e gerentes – o gerente da insolvente, (…), é pai do gerente da adquirente dos bens, (…) – quer relativamente ao local das suas instalações – a nova empresa labora no mesmo local onde laborava a insolvente. Mais, a empresa (…), Unipessoal, Lda. foi constituída no próprio dia em que ocorreram as primeiras alienações dos bens da insolvente – 26.12.2023 – e um dia antes da deliberação dos sócios da devedora de apresentação da mesma à insolvência (27.12.2023).
Com este negócio realizado nas vésperas da sua apresentação à insolvência e após a deliberação da devedora de se apresentar à insolvência, a insolvente transferiu a totalidade do seu património para terceiro e em proveito de terceiro, a saber o seu filho que no mesmo local continua a exercer através de nova sociedade atividade análoga à da insolvente.
Assim, ao retirar o património da insolvente, pouco antes de se apresentar à insolvência e já depois de ter deliberado apresentar-se à insolvência, foram utilizados os bens da devedora de modo contrário ao interesse desta e em proveito da sociedade … (e indiretamente do filho do gerente da insolvente).
A factualidade provada preenche assim a alínea f) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas».
Face aos factos provados nos artigos 5, 7, 9, 12 a 14, mais uma vez, não se vê razão para discordar do entendimento vertido, mostrando-se plenamente preenchido este índice.
*
Em suma, atento o preenchimento, no caso vertente, das citadas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º, a insolvência terá de ser considerada culposa.
Improcede, assim, o recurso, também nesta parte.
*
4.3. Medida da Inibição Para o Exercício do Comércio
O recorrente discordou, por fim, a medida da inibição quer para administrar patrimónios de terceiros, quer para exercer o comércio bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, que a decisão recorrida fixou em 3 anos e 6 meses, defendendo apenas dois.
Lê-se no artigo 189.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CIRE que na «sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa;
b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos».
Tem sido pacificamente apontado pela jurisprudência, quanto à duração do período de inibição, que na sua fixação deve atender-se ao grau de culpa da pessoa afectada com a qualificação, bem como ao número de circunstâncias dos diversos índices previstos no artigo 186.º do CIRE que estão preenchidos.
Atendendo ao já analisado no ponto antecedente, verifica-se que a conduta do Requerente preencheu três das circunstâncias qualificadoras da insolvência como culposa previstas no n.º 2 do citado artigo 186.º, actuando com culpa grave (tomou opções que, conscientemente, sabia que iriam prejudicar a insolvente).
Por conseguinte, considerando que a inibição mínima é de 2 anos, para uma culpa menos intensa, ao contrário do que advoga, nunca seria adequado situar a inibição no mínimo legal.
Para além do acima referido, há também que ponderar que, conforme provado, a insolvente é uma microempresa, sem qualquer trabalhador assalariado, sendo operada apenas pelo gerente.
Entende-se, assim, que o respectivo grau de culpa e as particularidades do caso impõem que a inibição se situe acima do limite mínimo previsto na norma em causa, mas abaixo do seu limite médio, como o foi.
Tudo ponderado, considera-se ajustado ao caso o período de três anos e seis meses de inibição fixado pelo Tribunal a quo.
Assim sendo, o recurso improcede, também, nesta parte.
*
V – DECISÃO
Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, julga-se improcedente o recurso interposto e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
*
Custas da apelação pelo Recorrente (conforme artigo 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC, por nela ter decaído).
*
Évora, 02/10/2025
Maria Isabel Calheiros (Relatora)
Anabela Raimundo Fialho (1ª Adjunta)
Mário João Canelas Brás (2º Adjunto)