Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
8/24.0T8MRA-A.E1
Relator: ANA PESSOA
Descritores: INVENTÁRIO
NOMEAÇÃO
CABEÇA DE CASAL
Data do Acordão: 05/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário1:
1. Consagrando o artigo 2080º, de modo hierarquizado, as pessoas que o legislador considerou assumirem, por ordem decrescente, as melhores capacidades para alcançar os fins pretendidos no inventário, não pode o aplicador da lei, efetuando uma interpretação extensiva, englobar no nº3, toda e qualquer situação de maior convivência entre um herdeiro e os inventariados.

2. Continuando a lei, no nº4, a hierarquia, pela mencionada “ordem decrescente”, respeitado deve ser o critério, objetivo, seguido pelo legislador não sendo de, através de interpretação extensiva, abrir portas a subjetivismos em matéria exaustivamente regulada pelo legislador.

3. O critério legal para a nomeação é o da vivência em comum com o de cujus por um período não inferior a um ano. Se porventura o legislador pretendesse que o critério radicasse no maior conhecimento das coisas referentes à administração do património hereditário ou na competência do candidato a cabeça de casal a previsão legal teria que ser construída de modo totalmente diverso. Acresce, mesmo, que a vivência em comum com o de cujus não constitui qualquer garantia de maior conhecimento das coisas atinentes à administração do património hereditário, pois se o de cujus fosse pessoa capaz ou desconfiada não tinha que transmitir tais conhecimentos a quem com ele vivesse.”

4. Temos, pois, que estão todos os herdeiros legais do falecido, seus filhos, em igualdade de circunstâncias, dado nenhum viver com o falecido, preferindo, pois, nos termos consagrados, imperativamente, na lei, o herdeiro mais velho.

Decisão Texto Integral: *

Acordam no Tribunal da Relação de Évora,


*


I. Relatório.


AA requereu que se proceda a inventário para partilha dos bens deixados por BB, colocando fim à comunhão hereditária.


Alegou que o autor da herança, seu progenitor, com última residência habitual na Rua 1, nº56, em Local 1, faleceu no dia ... de ... de 2023, no estado de viúvo de CC, tendo deixado como herdeiros legitimários o requerente e seus nove irmãos, filhos do autor da herança, que identificou, e cujos assentos de nascimento juntou e requereu que se nomeasse o aqui requerente como cabeça de casal.


Para justificar a sua nomeação como cabeça-de-casal, o Requerente invocou o disposto no artigo 2080º, n.º 3 do Código Civil e alegou que:


- Era o aqui requerente que cuidava, tratava e acompanhava o autor da herança diariamente e até à data do seu falecimento;


- Era e é o aqui requerente que também cuida e administra o património do autor da herança, nomeadamente efetuando pagamentos a funcionários, trata e alimenta e efetua pagamentos com as despesas relativas aos animais da Sociedade Unipessoal detida pelo autor da herança;


- Que sempre representou o autor da herança junto a entidades públicas e privadas, por então deter procuração para o efeito.


- Ser quem, por maioria dos herdeiros identificados e por proposta formulada pela Digna Magistrada do MP, seria no processo de maior acompanhado que correu termos neste Tribunal sob o nº 358/22.0..., o nomeado acompanhante do autor da herança.


*


Por despacho de 05.02.2024 foi o Requerente convidado a esclarecer as razões pelas quais requereu a sua nomeação como cabeça de casal, 21.09.2020, e após esclarecimento, foi proferida decisão que designou para as funções de cabeça de casal a herdeira “DD por ser a mais velha dos herdeiros.”


Inconformado, o Requerente interpôs recurso de apelação, apresentando, após alegações, a seguinte síntese conclusiva:


1 – A atribuição do cabeçalato, a um herdeiro mais velho, assume uma presunção abstrata e genérica, que admite prova em contrário.


2 – E, só é de atender, quando todos os herdeiros se encontram num mesmo pé de igualdade, o que não é seguramente o caso.


3 – Este critério residual do mais velho, sucumbe perante quem viva, e conviva com o de cujus de perto, tenha com ele uma grande proximidade, elevada intimidade e permanente cumplicidade diária na administração dos bens do acervo hereditário.


4 – A complexidade das operações, que um vasto património fundiário e exploração agro-pecuária impõem, não se compadece com um critério meramente formal, mecânico e aparente.


5 – Exige-se tino administrativo, experiência de vida, conhecimentos de uma realidade e especificidades que o mundo rural impõe, sendo o recorrente o filho que, estando mais próximo do pai, com ele convivendo dia a dia, e durante mais, muito mais que 5 anos à data do seu decesso, melhor responderia a tais exigências.


6 – Era o recorrente quem exercia, de facto, as funções de acompanhante do pai no processo de maior acompanhado, e que, correu termos por este Tribunal sob o nº 358/22.0..., que o Tribunal olvidou.


7 – Apesar do recorrente ter feito alusão a factos comprovados nesse processo, de enorme relevância para a apreciação, de quem seria o Cabeça de Casal, a verdade é que, o douto despacho desprezou tal matéria e elementos relevantes para fundamentar a decisão.


8 – E, poderia e deveria, com o devido respeito, ter-se socorrido de tal matéria, ao abrigo do disposto nos arts. 5º-2, c), 6º e 615º,1, d) do C.P.C.


9 – Como melhor resulta da cópia ora junta da promoção, que contém a posição expressa pela Digna Magistrada do Ministério Público, o recorrente foi apontado, de forma linear e substantiva, como acompanhante do seu pai, cujos fundamentos se encontram bem expressos, relevando a sua proximidade e convivência, a partilha de conhecimentos e intimidade na defesa dos bens, do património e administração.


10 – O critério escolhido, pelo douto despacho recorrido é meramente residual, formal e mecânico, sem cuidar, com o devido respeito, das razões aduzidas pelo recorrente em que se invocaram expressamente os factos substantivos de maior relevo.


11 – O que revela para a lei, no seu exacto sentido e alcance é essa mesma substância, e não a forma, é a comprovada vida em comum, aprofundada pela doença e provecta idade, na defesa do vasto património, como o processo judicial de maior acompanhado o pode comprovar.


12 – O Cabeça de Casal seria, por razões de oportunidade e conveniência, sempre o recorrente, dando assim continuidade ao esforço, dedicação e trabalho já iniciado há anos.


13 – O direito é a ciência de resolução de causas concretas, em que a conexão que existe entre o direito e a vida se exprimem na fundamentação da sentença.


14 – O objectivo prático que a lei se propõe atingir revela a ponderação dos diversos interesses que a disciplina.


15 – A douta sentença violou assim, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 2080º, 3 e 4, 2087º, 2089º, 2090º, 2092º, 2093º do C. Civil, mas ainda o disposto no art. 5º e 6º do C. P. C..


16 – O despacho recorrido não podia deixar de conhecer o que foi alegado quanto ao processo de maior acompanhado do de cujos com vasta prova para aquilatar da nomeação do Cabeça de Casal, 615º, 1, d) do C.P.C.


Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso, sempre com o douto suprimento e revogar-se o douto despacho, e nomeando-se o recorrente como Cabeça de Casal, nos termos do art. 2080º, 3 do Código Civil, com o que se fará, JUSTIÇA!!


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A nomeada cabeça de casal DD respondeu ao recurso, pugnando pela respetiva improcedência, concluindo da seguinte forma:


a) deve ser rejeitado o segmento do recurso referente à reapreciação da matéria de facto, por inobservância, pelos Apelantes, do ónus de impugnação da decisão quanto à consignada matéria de facto, em conformidade com o estatuído na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 640.º do CPC;


b) deve o recurso ser julgado improcedente, negando-se provimento à apelação e confirmando-se a decisão recorrida; assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!


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Citados para os termos da causa e do recurso, na sequência de despacho deste Tribunal da Relação, os Interessados EE, FF, GG, HH e II de igual modo responderam ao recurso, concluindo da seguinte forma:


1. Os ora herdeiros declaram aderir integralmente às alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente AA, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito e sem prejuízo do que se passa a expor.


2. Não podem os ora herdeiros concordar com o despacho recorrido, desde logo no que respeita à prevalência do critério da idade sobre o da residência, sendo certo que o Recorrente, ainda que não vivesse na mesma casa do falecido, tinha a sua residência a poucos metros da mesma, e mantinha com este uma convivência diária, quotidiana, normal e de natureza muito mais próxima e profunda do que a Recorrida que nasceu, trabalhou e sempre viveu em Local 2.


3. Acresce que os critérios legais invocados não assumem carácter imperativo, admitindo o art.º 2084.º do CC o seu afastamento mediante determinadas condições.


4. As funções de cabeça-de-casal de uma herança radicam, essencialmente, na gestão do património do falecido até ao momento da partilha de tal património pelos herdeiros, período durante o qual cumpre assegurar, em benefício do interesse de todos os herdeiros, uma cabal e adequada gestão de todo o património.


5. O Recorrente AA, de entre os 10 filhos do falecido, foi quem, mais do que acompanhar a gestão do património no fim de vida deste, nela interveio directamente e sempre com o conhecimento e acordo expresso dos ora Herdeiros, que nele confiam e o reputam como pessoa idónea, opinião que actualmente se mantém, não podendo ser desprezada aquilo que é a vontade da maioria dos Herdeiros e a confiança que depositam no Recorrente.


6. Ao invés, a Recorrida nunca apresentou uma especial ligação com a gestão do património do falecido que agora integra o acervo hereditário, desconhecendo o que à gestão diária das tarefas mais banais do quotidiano de uma exploração agro-pecuária.


7. Ao atender meramente ao critério da idade, ignorou o Tribunal recorrido que o cargo de cabeça-de-casal de uma herança, especialmente quando o património hereditário é desta natureza, deve radicar numa especial dose de confiança atribuída por todos os interessados a quem o vai ocupar, confiança essa que tem a sua origem no conhecimento profundo e experiência comprovada do que é a gestão diária de tal património.


8. A carência de conhecimento e experiência do que é a realidade rural onde se desenrola a gestão do património em causa colocará em risco a própria atividade, como aliás já se vem a verificar no que concerne à sociedade agrícola que integra a herança.


9. O supra exposto é confirmado pelo teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07.11.2023, proferido no âmbito do processo 46/20.2T8AGN.C1 e disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler:


I - A lei, com vista a um inventário célere e equitativo, pretende que seja nomeado cabeça de casal a pessoa que melhor conhecimento tenha do de cujus, do seu património e da organização/administração do mesmo, refletindo o artº 2080º do CPC uma hierarquia, por ordem decrescente, nesse sentido.


II - Assim, a parte final do nº3 de tal preceito deve ser objeto de uma interpretação declarativa lata ou até extensiva, no sentido de ele abarcar a pessoa, que mesmo não vivendo sob o mesmo teto com o falecido, tenha tido uma relação vivencial de proximidade com o mesmo que lhe confira os aludidos conhecimentos, tudo com vista à consecução dos mencionados fitos; e preferindo pois, nestas condições, ao parente do mesmo grau, mesmo que este seja mais velho, mas que não tem tais conhecimentos.


10. Idêntica decisão e idênticos fundamentos deverão ser adoptados pelo douto Tribunal ad quem, impondo-se a revogação do despacho que procede à nomeação da Recorrida como cabeça-de-casal da herança dos inventariados e a subsequente nomeação do Recorrente AA para o desempenho de tal cargo.


Termos em que se requer que seja julgado procedente o recurso, revogando-se o despacho que designou a Recorrida como cabeça-de-casal da herança de BB e substituindo-o por decisão que atribua tal função ao Recorrente AA.


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II. Questões a decidir.


Face às conclusões das alegações, o objecto do recurso - que é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil - circunscreve-se, no caso, à apreciação das questões seguintes:


- a invocada nulidade da decisão recorrida;


- se deve ser revogada a decisão recorrida e nomeado o Apelante como cabeça de casal.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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III. Fundamentação.


III.I. Fundamentação de facto.


Relevam para a decisão do recurso, as circunstâncias processuais constantes do relatório e ainda o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:

“(…)Para as funções de cabeça-de-casal designa-se, nos termos previstos nos artigos 1100.º n.º 1 al. b) do Código de Processo Civil e 2080.º, n.º 1 al. c) e 4, do Código Civil, a herdeira DD por ser a mais velha dos herdeiros.

E assim é, pois, pese embora o requerente invoque ser quem, em vida prestou maior auxílio ao inventariado, residindo numa casa próxima deste, certo é que os critérios legais para determinação do cabeça-de-casal são claros: existindo cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, desde que herdeiro ou detentor de meação nos bens do casal, é este quem deverá ocupar o referido cargo; inexistindo, será o testamenteiro; na sua falta, os parentes que sejam herdeiros legais; e, por fim, os herdeiros testamentários. Sendo de designar um herdeiro legal, atende-se, em primeiro lugar, à proximidade em grau; em segundo lugar à residência daquele com o falecido há pelo menos um ano; e, por fim, no caso de nenhum herdeiro residir com o inventariado, à idade.

Ora, inexistindo qualquer herdeiro legal residente com o falecido porquanto tal implica a ideia de “uma vida na mesma habitação, no mesmo espaço, no fundo uma situação de convivência diária, quotidiana, normal”2, o que inexiste nos autos, ter-se-á de recorrer ao critério da idade o que determina ser DD a cabeça-de-casal.

Neste sentido, proceda à citação da cabeça-de-casal, nos termos do artigo 1102.º, do Código de Processo Civil, para, em 30 dias, vir aos autos:

a. Confirmar, corrigir ou completar, o que consta do requerimento inicial e juntar os documentos que, por via disso, se mostrem necessários;

b. Apresentar a relação de todos os bens sujeitos a inventário, acompanhada dos documentos comprovativos da sua situação no registo respetivo e, se for o caso, da respetiva matriz; e

c. Apresentar o compromisso de honra do fiel exercício das suas funções.

Notifique.(…)”

III.2. Da nulidade da decisão recorrida.


Vem arguida a nulidade da decisão recorrida por se entender que “o despacho recorrido não podia deixar de apreciar a questão suscitada pelo requerente do inventário, e alegados factos de que o Tribunal tem conhecimento por virtude das suas funções, invocando-se o disposto nos artigos 5º, n.º 2, al. c) e 615º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil.


Mas não lhe assiste razão.


Como é sabido, as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo deverão ser sempre fundamentadas (n.º 1 do art.º 154.º do Código de Processo Civil) o que, de resto, consubstancia um imperativo constitucional (art.º 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).


O dever de fundamentação, no que respeita à sentença e à decisão de facto, impõe a indicação do processo lógico – racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes, conforme dispõe o artigo 607º, nº 4 do Código de Processo Civil.


A decisão, como ato jurisdicional, pode atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada, e então torna-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615º do Código de Processo Civil.


A este respeito, estipula-se no apontado normativo, sob a epígrafe de “Causas de nulidade da sentença” que:


“1 - É nula a sentença quando:


a) (…);


b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;


c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;


d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;


e) (…)” .


O vício previsto na alínea b) é um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença que não se confunde motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.


Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.


A nulidade da sentença contemplada na al. c) pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la.


Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.


Por seu turno, a nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC reconduz-se a um vício de conteúdo , ou seja, vício que enferma a própria decisão judicial em si, nos fundamentos, na decisão, ou nos raciocínios lógicos que os ligam, verificando-se quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento e terá de ser aferida, tendo em consideração o disposto no artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.


A causa da nulidade a que se refere este preceito relaciona-se com a inobservância do disposto na segunda parte do referido n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma e visa sancionar o desrespeito, pelo julgador, do comando contido na parte final deste normativo, nos termos da qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, com exceção daquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.


Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido.


Por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 664.º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”.


In casu, como decorre da decisão recorrida, o Tribunal Recorrido não deixou de enunciar os fundamentos de facto em que fundamentou a decisão de nomeação de cabeça de casal.


Ponderando as alegações do Requerente do inventário, o ora Apelante, o Tribunal Recorrido entendeu que os factos alegados, mesmo a demonstrarem-se, não eram suficientes para que se considerasse que se mostrava verificada a situação a que alude o artigo 2080º, n.º 3 do Código Civil, razão pela qual, atendendo então ao critério da idade previsto no n.º 4 do mesmo diploma, e ao facto de a interessada DD ser a mais velha, para proceder à respetiva nomeação, nos termos do disposto no artigo 1100º, ns.º 1 e 2, al. b) do Código de Processo Civil.


Enunciou pois, os fundamentos de facto e de direito em que baseou a decisão, e entre todos os fundamentos, de facto e de direito e tal decisão, nenhuma contradição se surpreende, antes se verifica total coerência e harmonia entre a fundamentação e a decisão.


A decisão recorrida não está inquinada de qualquer nulidade.


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III.3. Reapreciação da decisão – se se verificam os pressupostos para a nomeação do Requerente como cabeça de casal.


O cargo de cabeça-de-casal é deferido por lei às pessoas elencadas no artigo 2080.º, n.º 1 do Código Civil pela ordem seguinte:


“a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal;


b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário;


c) Aos parentes que sejam herdeiros legais;


d) Aos herdeiros testamentários.


2. De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau.


3. De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte.


4.Em igualdade de circunstâncias prefere o herdeiro mais velho.”


O preceito estabelece uma escala hierarquizada segundo a qual se defere, “ex lege” e sem necessidade de um ato jurídico de aceitação, o cargo de cabeça-de-casal, sendo que, em caso de igualdade de grau de parentesco entre os herdeiros legais, como se verifica na situação em apreço, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte e o herdeiro mais velho, em igualdade de circunstâncias.


O Recorrente alegou, para justificar a sua nomeação para exercer o cabeçalato, fundamentalmente, as seguintes circunstâncias:


- o histórico recente de o seu pai no fim da vida, ter indicado o próprio recorrente como pessoa que estava mais perto, de sua confiança e que se estendia aos demais irmãos, que em larga maioria, o reconheciam como pessoa idónea.


- a circunstância de a nomeada irmã mais velha, DD, ter nascido e trabalhado e sempre vivido em Local 2;


- o recorrente vivia a poucos metros da residência do seu pai, diariamente, com ele privava, adquirindo a sua confiança, no que era correspondido, ao ponto de ter dele duas procurações, quer pessoal, quer da sociedade;


- até à hora da morte acompanhou o pai, gerindo todo o património, que era constituído por imóveis, mas sobretudo, por uma exploração agrícola agro-pecuária, que exigia uma complexa e melindrosa ocupação, no cumprimento de obrigações junto dos fornecedores, trabalhadores, tratamento de animais, compras e vendas, acompanhamento das receitas, despesas e representação junto do fisco e das autoridades sanitárias e serviços do Ministério da Agricultura;


- Era, ainda, o recorrente que até à hora da morte estava todos os dias e várias vezes ao dia, a prestar cuidados de saúde, com a toma de medicação atempada, para o seu bem-estar;


- Só não dormia em casa com o pai, mas ali estava diariamente, com o apoio de uma empregada doméstica, da sua confiança e por si contratada, levando-o ao médico para consultas e exames, sendo o único que o fazia, com o conhecimento de todos os irmãos.


- A nomeada DD, como Cabeça de Casal, não tinha qualquer relação de proximidade com o inventariado, ignorando totalmente qual a situação patrimonial da herança, vivendo a mais de 300 quilómetros de distância da exploração agropecuária, onde se impõe um contínuo, permanente e dedicado esforço na administração dos bens.


O recorrente fez ainda apelo aos “factos notórios”, de que o Tribunal não podia ter deixado de socorrer-se no processo de maior acompanhado – nº358/22.0... – de onde, no seu entender, resultam um conjunto de factos relevantes para aquilatar da bondade da decisão na nomeação do Cabeça de Casal, designadamente, quer as declarações de todos os irmãos, quer a promoção da Digna Magistrada do Ministério Público apontariam para que o próprio recorrente continuasse a exercer as funções, que, como acompanhante lhe foram confiadas e eram confiadas, sendo que ao ter sido nomeado como tal, foi porque o Tribunal reconheceu que era o recorrente quem tinha melhores condições para proteger o património: atribuindo-lhe poderes de representação de Administração total dos bens – art- 145º, 2, c) do Códifo Civil, sendo que do Conselho de Família não constava sequer, a filha mais velha, mas sim, JJ e como pro-tutora, II.


Sustenta, por isso, que a razão de ser da preferência legal (residência com o inventariado) deve ser extensível a estas situações de convivência e prestação de cuidados de saúde que aquele carecia.


A Mma. Juíza que proferiu a decisão recorrida não aderiu a este entendimento uma vez que considerou não se verificar o critério legal consistente no facto do interessado ter vivido com o inventariado há pelo menos um ano à data do seu decesso.


A interpretação adotada pelo tribunal a quo do normativo em análise não nos merece o mínimo reparo, bem pelo contrário.


Na verdade, a prestação de cuidados e assistência aos pais idosos e doentes constitui um imperativo (moral) de qualquer filho, e que terá sido cumprido pelo Recorrente.


Porém, o próprio reconhece que não vivia com o pai no mesmo espaço físico.


O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15-12-2021, proferido no processo n.º 959/21.4T8VNG-A.P1, acessível em www.dgsi.pt, deu, a respeito da interpretação dos preceitos citados, o seguinte contributo:

“(…) Claramente a razão de que o herdeiro que viva com o inventariado há pelo menos um ano terá, em princípio, mais conhecimento da vida financeira e patrimonial do inventariado e, portanto, estará em melhores condições para exercer o cabeçalato. Se assim é na prática ou não é algo que pode variar de caso para caso, mas esse é o critério eleito pela norma legal.

Não se trata, de modo algum, de presumir que se o inventariado vivia com aquele herdeiro a sua vontade conjeturável seria a de este herdeiro viesse a exercer as funções de cabeça de casal no futuro inventário para partilha do seu património. Se assim fosse então fazia sentido que a primeira regra estabelecida no artigo 2080.º fosse a da atribuição do cargo ao herdeiro designado, expressa ou tacitamente pelo inventariado, o que não sucede de todo. (…)

O critério é apenas o de haver entre o inventariado e o herdeiro uma relação de vida em comum. Não é necessário, porque a norma não o exige, que estejamos perante uma vida em economia comum, basta que estejamos perante uma vida na mesma habitação, no mesmo espaço, no fundo uma situação de convivência diária, quotidiana, normal, na medida em que essa convivência permite a partilha de informações que agilizarão o exercício do cargo.

(…) são estes os critérios eleitos pela disposição legal e que devem ser observados, sendo inclusive irrelevante a vontade dos inventariados (…).”

Para os efeitos previstos no artigo 2080.º do Código Civil, o conceito de residência não se confunde com a morada indicada para efeitos fiscais ou com a morada de determinado imóvel que seja da propriedade do falecido. O que significa que, para preenchimento do n.º 3 do artigo 2080.º do Código Civil, é irrelevante a morada fiscal do falecida, a morada indicada junto da autoridade tributária como sendo a habitação própria permanente ou a morada dos imóveis que são da sua propriedade. O legislador não prevê o conceito de residência, no entanto, é comummente aceite que tal conceito implica a existência de um local físico onde o residente ali pernoita, faz as suas refeições diárias, guarda os seus objetos pessoais, recebe amigos e familiares. Ou seja, uma permanência estável e duradoura num local que está logística e economicamente organizado para ser o centro de vida do próprio e do seu agregado familiar.

O que releva no caso, é saber de entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, existirá ou não algum deles que vivesse com a falecida no período correspondente ao ano anterior ao seu falecimento, assim preferindo na atribuição do cargo de cabeça-de-casal.

Viver com alguém expressa a ideia de identidade de domicílio, lugar da sua residência habitual (CCiv., art. 82.º-1), pressupõe, por assim dizer, o viver em comum, posto que em economia separada, ou em quartos separados do mesmo hotel ou pensão – Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, volume I, 5.ª edição, Almedina, 2006, página 324.

(…) nenhum dos herdeiros legais residia com a falecida (…). Assim sendo, torna-se inaplicável o critério previsto no n.º 3 do artigo 2080.º do Código Civil.(…)”

Não se desconhece que o Apelante alega ser o filho mais próximo do falecido pai e aquele que melhor conhece o património hereditário do mesmo.


Porém, o legislador não relevou a vontade hipotética ou presumida dos inventariados quanto ao exercício de tal cargo por um ou outro herdeiro, nem a lei atribui relevância à circunstância de um dos herdeiros estar em melhor condições do que outro para assegurar o cabeçalato – pressupõe essa circunstância se o herdeiro viver com o falecido há pelo menos um ano à data da morte, mas não prescinde dessa vivência em comum (que, como vimos, não se verifica no caso dos autos, como resulta da alegação do Apelante.


Não se ignora que no Acórdão da Relação de Coimbra de 7/11/2023, proferido no âmbito do proc. 46/20.2T8AGN.C1 se entendeu, como consta do sumário, que “A lei, com vista a um inventário célere e equitativo, pretende que seja nomeado cabeça de casal a pessoa que melhor conhecimento tenha do de cujus, do seu património e da organização/administração do mesmo, refletindo o artº 2080º do CPC uma hierarquia, por ordem decrescente, nesse sentido” e “Assim, a parte final do nº3 de tal preceito deve ser objeto de uma interpretação declarativa lata ou até extensiva, no sentido de ele abarcar a pessoa, que mesmo não vivendo sob o mesmo teto com o falecido, tenha tido uma relação vivencial de proximidade com o mesmo que lhe confira os aludidos conhecimentos, tudo com vista à consecução dos mencionados fitos; e preferindo pois, nestas condições, ao parente do mesmo grau, mesmo que este seja mais velho, mas que não tem tais conhecimentos”.


Contudo, e como se entendeu no Acórdão da Relação do Porto de 08.04.2024, proferido no processo 17415/20.0T8LSB-C.P1, “consagrando o artigo 2080º, de modo hierarquizado, as pessoas que o legislador considerou assumirem, por ordem decrescente, as melhores capacidades para alcançar os fins pretendidos no inventário, não pode o aplicador da lei, efetuando uma interpretação extensiva, englobar no nº3, toda e qualquer situação de maior convivência entre um herdeiro e os inventariados. (…)


Continuando a lei, no nº4, a hierarquia, pela mencionada “ordem decrescente”, respeitado deve ser o critério, objetivo, seguido pelo legislador não sendo de, através de interpretação extensiva, abrir portas a subjetivismos em matéria exaustivamente regulada pelo legislador.


O critério legal para a nomeação é o da vivência em comum com o de cujus por um período não inferior a um ano. Se porventura o legislador pretendesse que o critério radicasse no maior conhecimento das coisas referentes à administração do património hereditário ou na competência do candidato a cabeça de casal a previsão legal teria que ser construída de modo totalmente diverso. Acresce, mesmo, que a vivência em comum com o de cujus não constitui qualquer garantia de maior conhecimento das coisas atinentes à administração do património hereditário, pois se o de cujus fosse pessoa capaz ou desconfiada não tinha que transmitir tais conhecimentos a quem com ele vivesse.”


Temos, pois, que estão todos os herdeiros legais do falecido, seus filhos, em igualdade de circunstâncias, dado nenhum viver com a falecida, preferindo, pois, nos termos consagrados, imperativamente, na lei, o herdeiro mais velho.


Por conseguinte, o acompanhamento e assistência ao Inventariado, alegado pelo Recorrente, não tem relevância para efeitos de nomeação para exercer o cargo de cabeça-de-casal, não carecendo, por isso, de prova, por inútil.


Por todos os motivos aduzidos, impõe-se a confirmação da decisão impugnada que nomeou a Interessada mais velha para o cargo.


*


IV.DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, e em consequência, em confirmar a decisão recorrida.


Custas pelo Recorrente.


Notifique.


Évora, 22.05.2025


Ana Pessoa


Manuel Bargado


Maria João Sousa e Faro

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1. Da exclusiva responsabilidade da relatora↩︎

2. Acórdão Tribunal da Relação de Évora de 28/04/2022, relatado por Ana Margarida Leite, proc. n.º 4674/20.8T8STB-A.E1, in www.dgsi.pt.↩︎