Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MÁRIO BRANCO COELHO | ||
| Descritores: | AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO VALOR DA CAUSA ESTAFETA PLATAFORMA DIGITAL PRESUNÇAO DE LABORALIDADE APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO INTERMEDIÁRIO | ||
| Data do Acordão: | 12/16/2025 | ||
| Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA | ||
| Área Temática: | SOCIAL | ||
| Sumário: | Sumário: 1. Na determinação do valor da acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, não tem lugar a aplicação do critério da imaterialidade dos interesses do art. 303.º n.º 1 do Código de Processo Civil, pois o interesse em apreciação é susceptível de expressão pecuniária. 2. O art. 186.º-Q n.º 1 do Código de Processo do Trabalho consagra um critério especial de fixação do valor da causa (€ 2.000,00), sempre que não for possível determinar outro valor da utilidade económica do pedido, garantindo, de todo o modo, a admissibilidade de recurso de apelação para a Relação – art. 186.º-P. 3. Embora o art. 12.º-A do Código do Trabalho, aditado pela Lei n.º 13/2023, não seja de aplicação retroactiva, aplica-se à relação existente a partir do momento da sua entrada em vigor, permitindo a sua análise de acordo com os indícios de laboralidade ali constantes. 4. Quanto às relações iniciadas em data anterior à entrada em vigor daquela Lei, já eram aplicáveis duas presunções de existência do contrato, previstas no art. 12.º n.º 1 als. a) e b) do Código do Trabalho – actividade realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado; e equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencentes ao beneficiário da actividade. 5. Quanto ao primeiro indício, há a assinalar que o estafeta procede à recolha e à entrega nos locais previamente indicados pela Ré, pelo que ocorre determinação do local de prestação da actividade. 6. E quanto ao segundo indício, a aplicação informática é o principal instrumento de trabalho do estafeta e é disponibilizada pela plataforma digital, e certo é que a Ré obriga à sua utilização, assim dirigindo toda a actividade do prestador. 7. Quanto ao período posterior a 01.05.2023, ocorrem pelo menos cinco das presunções previstas no art. 12.º-A n.º 1 do Código do Trabalho, nomeadamente as constantes das respectivas alíneas a), b), c), e) e f). 8. Tal decorre de a Ré fixar a retribuição dentro de limites máximos e mínimos, determinar os locais de recolha e entrega e fixar as regras específicas de desempenho da actividade, controlar e supervisionar a prestação da actividade, e verificar a sua qualidade, poder excluir o prestador e desactivar a sua conta, e ser proprietária do principal instrumento de trabalho utilizado pelo estafeta, i.e., a aplicação informática. 9. Não se demonstra que a actividade seja prestada a intermediário, se o estafeta está plenamente inserido na estrutura organizativa da Ré e não do intermediário; se não pode gerir sozinho a actividade, e se também não pode decidir as condições de prestação – tem de aceitar as condições que lhe são impostas pela Ré, que não pode negociar; e as cláusulas do contrato foram formuladas unilateralmente pela Ré, destinado a pessoas indeterminadas, que apenas se limitam a aderir, sem possibilidade de discussão ou de introdução de modificações. 10. Torna-se irrelevante que o estafeta exerça a actividade sem qualquer dever de exclusividade nem dependência económica em relação à Ré, pois tais elementos não são essenciais do contrato de trabalho. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
No Juízo do Trabalho de Setúbal, o Ministério Público intentou acção especial contra Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda., pedindo o reconhecimento da existência de contrato de trabalho por tempo indeterminado com AA. A acção foi contestada pela Ré, invocando a existência de mera prestação de serviços. O prestador da actividade não interveio nos autos. Após julgamento, a sentença julgou a acção procedente, reconhecendo a existência de contrato de trabalho com o prestador, com início de vigência reportado a 31.01.2021, e fixou o valor da causa em € 2.000,00. A Ré recorre e, nas suas conclusões, coloca as seguintes questões: • valor da causa; • impugnação da decisão de facto; • qualificação da relação contratual, que entende ser de mera prestação de serviços; • aplicação da lei no tempo, em relação ao art. 12.º-A do Código do Trabalho. A resposta sustenta a manutenção do decidido. Cumpre-nos decidir. Valor da causa A Recorrente pretende a alteração do valor da causa para o equivalente à alçada da Relação e mais € 0,01, argumentando com o disposto no art. 303.º n.º 1 do Código de Processo Civil. Acerca desta questão, importa notar que nos encontramos perante uma acção de simples apreciação positiva, tendente a colocar termo a uma situação de incerteza jurídica, não se visando a condenação em quantia certa em dinheiro, nem em retribuições vencidas ou vincendas. A Recorrente entende que está em causa um interesse imaterial. Porém, “versam especificamente sobre interesses imateriais as acções cujo objecto não tem valor pecuniário e que visam realizar um interesse não patrimonial, ou seja, cuja vantagem é insusceptível de se expressar em uma quantia monetária”, e “não versam, porém, sobre interesses imateriais, ao invés do que algumas vezes foi decidido, as acções em que esteja em causa a apreciação da nulidade do acto de despedimento de trabalhadores ou a sua reintegração na empresa, nem aqueles em que seja pedida a declaração de que um trabalhador tem direito a exercer determinada actividade profissional.”1 Também a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo, de forma consistente, não apenas que nas acções de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, em que como acessório do pedido principal de declaração de ilicitude do despedimento, se peticionam rendimentos já vencidos e vincendos, não tem lugar a aplicação do disposto no art. 300.º n.º 2, mas antes as regras gerais constantes do art. 297.º n.ºs 1 e 2, como ainda que, que no domínio do actual Código de Processo do Trabalho, tal como no de 1981, não há que atender, como direito subsidiário, ao critério da imaterialidade dos interesses do art. 303.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil.23 Estes critérios, apesar de utilizados a propósito do valor da acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, têm plena utilidade no caso da acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, pois não apenas não se formula um pedido acessório de pagamento de rendimentos vencidos e vincendos, como ainda o interesse em apreciação é susceptível de expressão pecuniária. Acresce que o art. 186.º-Q n.º 1 do Código de Processo do Trabalho consagra um critério especial de fixação do valor da causa, sempre que não for possível determinar outro valor da utilidade económica do pedido, garantindo, ainda, a admissibilidade de recurso de apelação para a Relação – art. 186.º-P. Se outra fosse a intenção do legislador, pretendendo aplicar a este tipo de acções a mesma solução que utilizou quanto aos interesses imateriais, outra redacção teria sido conferida à lei, como de resto se fez nos casos da atribuição da casa de morada de família, constituição ou transmissão do direito de arrendamento – art. 303.º n.º 2 do Código de Processo Civil. Tal não foi o caso, a que não terá sido estranha a celeridade que se pretendeu atribuir a esta espécie processual, pretendendo-se claramente não alongar a discussão do pleito e garantir a possibilidade de recurso em um grau. Apesar de se poder argumentar que, na espécie processual dos autos, também está em causa um interesse público, associado ao combate à precariedade laboral, daí não se poderá concluir que esse interesse não tem utilidade económica – de resto, o art. 186.º-Q n.º 2 do Código de Processo do Trabalho prevê expressamente a susceptibilidade de utilidade económica do pedido formulado nesta acção. Na verdade, do ponto de vista do Estado, também estão em causa interesses patrimoniais de natureza fiscal e para-fiscal; e quanto aos particulares com interesse na decisão da causa – quer o prestador quer o beneficiário da actividade – o reconhecimento da existência de contrato de trabalho tem consequências patrimoniais associadas à estabilidade do vínculo laboral. Não existindo elementos seguros para fixar a utilidade económica do pedido, nem fornecendo a Recorrente quaisquer elementos úteis a respeito desta questão nas suas alegações de recurso, e não sendo aplicável a regra do art. 303.º n.º 1 do Código de Processo Civil, resta confirmar a decisão recorrida na parte em que aplicou o critério supletivo do art. 186.º-Q n.º 1 do Código de Processo do Trabalho e fixou à causa o valor de € 2.000,00. Da impugnação da matéria de facto Ponderando que se encontram reunidos os pressupostos do art. 640.º n.º 1 do Código de Processo Civil para se conhecer da impugnação fáctica deduzida pela Recorrente, procedamos à respectiva análise. Consigna-se que se procedeu à audição da prova gravada. * No ponto 15 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado seguinte: “No processo de registo, a R. fez depender a conclusão do processo da circunstância de AA ter internet no seu telemóvel, transporte próprio e mala impermeável, térmica/isotérmica.” A Ré alega que este ponto deve ser eliminado, por o prestador não se lembrar desses factos. Porém, a sentença funda a sua convicção quer no depoimento do prestador, quer no próprio processo de registo, efectuado através de uma aplicação instalada em telemóvel, na qual se exige quer a descrição do meio de transporte, quer a apresentação da mochila – imagens 5, 10, 15, 20 e 21 do “certificado de facto” apresentado pela Ré em 16.05.2024. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * No ponto 17 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado que a “Ré disponibilizou-lhe vários vídeos e mensagens, demonstrando-lhe como deveria ser o seu procedimento no exercício da actividade de estafeta, nomeadamente: - limpeza do motociclo utilizado no transporte; - aparência estafeta perante o cliente; e - ética de recepção perante o cliente.” A Recorrente alega que não incidiu discussão sobre estes factos, tanto mais que o prestador não se referiu no seu depoimento a vídeos e/ou mensagens, nomeadamente no que concerne a limpeza, ética ou aparência. Porém, a sentença também funda a sua convicção quer no depoimento do prestador, quer no próprio processo de registo, efectuado através da aplicação, na qual se exibem vídeos e se exige a subscrição de termos e condições com regras sobre aqueles procedimentos de limpeza, apresentação e ética de recepção. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * No ponto 18 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “Sempre que inicia a actividade de estafeta, AA informa a R. através do seu login, que se traduz na introdução do endereço de correio electrónico …@gmail.com e da respectiva palavra-passe.” A Recorrente alega que não resultou provado que o prestador “informe” que inicia a actividade de estafeta, este nada disse sobre esta matéria. Embora haja um login (como em qualquer aplicação), tal não constitui uma informação de início da actividade, o que transmite uma ideia de obrigação, de organização da actividade e de disponibilidade de mão-de-obra. Para além disso, o prestador referiu que faz login apenas com o “número de telemóvel cadastrado”, sem referir qualquer email ou palavra-passe. Porém, o que está em causa neste facto é a necessidade de ser efectuado um login para início da actividade, e a aplicação estar associada a um endereço de correio electrónico, com acesso codificado. E tal é atestado através do próprio “certificado de facto” apresentado pela Ré e dos termos e condições por esta elaborados. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * No ponto 19 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “Periodicamente, AA tem de enviar à R., por solicitação desta, fotografia da mochila térmica, com vista a esta confirmar o estado de higiene e conservação da mesma.” A Recorrente alega que esta matéria não resultou provada, por não ter incidido qualquer discussão. Porém, resulta dos próprios termos e condições elaborados pela Ré a imposição de utilização de mochila térmica em boas condições de higiene e segurança alimentar e a possibilidade de esta verificar regularmente a satisfação de tais condições. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * Nos pontos 20, 21, 22 e 23 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “20. A R. informa sempre AA do procedimento a ter no caso de o cliente estar ausente no ponto de entrega. 21. Concretamente AA tem de comunicar à R. que o cliente não se encontra no ponto de entrega, depois tem de voltar a insistir e, caso não receba resposta, tem de aguardar 10 minutos no local; volvidos esses 10 minutos, aquele dá por concluído o pedido, recebendo, na mesma, a sua retribuição. 22. Em qualquer caso, é sempre a R. que determina se AA fica ou não com a mercadoria não entregue. 23. Também é a R. que lhe dá instruções na conduta a adoptar na entrega de bebidas alcoólicas; não pode entregar a pessoas menores de idade, nem aparentemente já alcoolizadas, sendo obrigado a confirmar à R. que observou as regras através da App.” A Ré alega que não ocorreu discussão sobre estes factos, e que o prestador não se referiu a esta matéria. Porém, resulta dos próprios termos e condições elaborados pela Ré a definição dos procedimentos referidos nestes pontos do elenco fáctico, e certo é que o prestador referiu no seu depoimento que durante a execução do serviço são dadas instruções, quer sobre defeitos da coisa, quer sobre não aceitação pelo cliente, quer sobre o descarte da encomenda. Nada nos impõe, pois, “decisão diversa” acerca desta matéria – e este é o critério de alteração previsto no art. 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil – pelo que esta parte da impugnação improcede. * No ponto 29 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “Se, por algum motivo, interromper o percurso determinado, a R. contacta-o através da App, solicitando-lhe esclarecimentos sobre o motivo da tal paragem.” A Recorrente alega que o prestador não confirmou esta matéria, pois disse que a Ré nunca fiscalizou e/ou controlou a sua actividade e nunca o contactou por estar parado em determinado lugar. Porém, o que está em causa é o procedimento que a Ré adopta quando há interrupção da entrega, e nesse caso há contactos que são estabelecidos, a começar pelos clientes, que reportam à plataforma e depois este contacta o estafeta. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * No ponto 32 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “A empresa “titular da frota” não organiza ou determina que entregas AA deve realizar; qual o valor corresponde àquela tarefa; não avalia a sua actividade, limitando-se a intermediar o recebimento da quantia a pagar pela R., com vista à aplicação de uma alegada redução do desconto tributário a aplicar.” A Recorrente alega que prestador não respondeu a qualquer questão sobre o parceiro de frota, para além do que respeita ao pagamento. Porém, foram efectivamente realizadas questões ao prestador acerca da intervenção do intermediário, relatando o prestador a retenção de 10% da taxa de entrega pelo intermediário, sem qualquer outra intervenção na actividade. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * No ponto 33 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “A taxa de recolha tem o valor de 1,15 €, os quilómetros percorridos têm o valor de 0,72 €/cada e a taxa de entrega tem o valor de 0,28 €.” A Recorrente alega que tal não tem sustentação na prova produzida, uma vez que nenhuma das testemunhas referiu tais componentes, nem os mesmos constam de qualquer documento junto aos autos. Analisando, este ponto revela-se contraditório com outros pontos também provados, nomeadamente a existência de uma taxa mínima por quilómetro de € 0,10, que os estafetas podem alterar – pontos 34 e 58. E porque não se vislumbra que estes valores tenham sido confirmados por qualquer testemunha, julga-se procedente esta parte da impugnação e elimina-se o ponto 33 dos factos provados. * No ponto 35 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “Confrontado com o valor indicado pela R., AA tem poucos segundos para confirmar se aceita ou recusa o pedido.” A Recorrente alega que não ocorreu qualquer prova acerca do tempo de aceitação do pedido, e que apenas se demonstrou que, tal como alegado no art. 246.º da contestação, o prestador é quem decide se realiza a entrega, podendo aceitar ou rejeitar as ofertas de entrega lhe surjam na aplicação, sem qualquer consequência. Apreciando, nenhuma testemunha referiu a definição de um período temporal curto, de “poucos segundos” para aceitação do pedido – o que pode suceder é o pedido ser aceite por outro estafeta, mas essa é questão diversa, pois o pedido pode permanecer disponível vários minutos se ninguém o aceitar. Como tal, o ponto 35 é alterado para a seguinte redacção: “Confrontado com o valor indicado pela R., AA pode confirmar se aceita ou recusa o pedido.” * Nos pontos 39, 40 e 54 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “39. AA era avaliado pelos pontos de recolha e de entrega que transmitem tal avaliação, por cada serviço por si prestado, à R., através da App. 40. Na posse daqueles dados avaliativos, a R. transmite-os a AA. 54. Os utilizadores clientes finais são convidados a dar feedback relativamente à forma como o estafeta realizou o seu trabalho, para além de que podem reportar problemas com os pedidos de entrega no caso de violações dos termos e condições.” A Recorrente alega que actualmente não existe qualquer avaliação e tal foi declarado pelo prestador. Alega ainda que os clientes apenas reportam se o prestador que fez a entrega não corresponde à fotografia. Porém, o prestador referiu que à data da inspecção, essa avaliação existia e podia ser consultada na aplicação, e ele estava classificado em 94, num máximo possível de 100. Se mais tarde esse procedimento foi abandonado pela Recorrente, tal não afasta a circunstância de existir na data da inspecção, nem é conclusivo sobre se já não existe, podendo é não ser divulgado ao prestador. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * No ponto 41 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “Quando pretende terminar a sua jornada de trabalho, AA apenas tem de fazer logout na App.” A Recorrente alega que, discutindo-se na acção a eventual natureza laboral do contrato, não pode dar-se como provado na matéria de facto que o prestador pretende terminar “a sua jornada de trabalho”, por tal envolver o thema decidendum. Analisando, o termo utilizado neste contexto não pretende atribuir uma qualificação jurídica, mas apenas reflectir um facto naturalístico, neste caso o termo do trabalho de entregas realizado pelo prestador – e tal não implica dizer se está em causa uma contrato de trabalho ou de prestação de serviços. A alteração pretendida reflecte apenas um preciosismo irrelevante, pelo que esta parte da impugnação improcede. * No ponto 43 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “AA em Janeiro de 2021 realizava actividade de estafeta para as Plataformas Glovo e Uber Eats.” A Recorrente alega que tal dá a entender que o prestador apenas realizou a actividade de estafeta para a Glovo e Uber Eats num período de tempo limitado, Janeiro de 2021 – mas o prestador referiu que ainda desempenha, actualmente, actividade para as duas plataformas, o que, aliás, é assinalado na motivação da sentença. Apreciando, o prestador declarou expressamente que realiza a actividade em simultâneo para as duas plataformas, desde Janeiro de 2021, e tal é referido expressamente na sentença, na motivação da decisão de facto, na sua página 18. Como tal, o ponto 43 é alterado para a seguinte redacção: “AA, desde Janeiro de 2021 e até à actualidade, realiza a actividade de estafeta para as plataformas Glovo e Uber Eats.” * No ponto 46 do elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “AA não dispunha de qualquer organização empresarial própria; não negoceia os preços ou condições com os titulares dos estabelecimentos que preparam as refeições/produtos a entregar, nem com os clientes finais, nem tão pouco tem o poder de escolher estes clientes finais ou os titulares dos estabelecimentos (embora os possa recusar).” A Ré alega que se trata de matéria genérica e conclusiva, sobre a qual não incidiu (nem podia incidir) qualquer discussão. Porém, a utilização da definição “organização empresarial própria” está aqui suficientemente concretizada, e reflecte a ausência da faculdade de negociar preços e condições, e a ausência do poder de escolher estabelecimentos comerciais de recolha e os clientes finais (em relação aos quais apenas detém o poder de recusa, mas não o de escolher outros que não os apresentados na aplicação). Como tal, esta parte da impugnação improcede. * Nos pontos 48 e 52 elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “48. A plataforma determina os procedimentos que o estafeta tem de seguir na recolha e entrega dos produtos, nomeadamente, como utilizar a aplicação UBER EATS dando-lhe instruções sobre o momento em que deve introduzir a informação sobre a recolha/entrega que está a realizar. 52. O estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido vão introduzindo dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega.” A Recorrente alega que o prestador não confirmou estes factos, quer quanto a procedimentos a seguir na recolha e na entrega dos produtos, nem instruções sobre o momento em que se deve introduzir a informação sobre a recolha/entrega, nem o propósito de tal introdução de dados. Porém, os próprios termos e condições impostos pela Recorrente definem procedimentos a adoptar pelo estafeta na recolha e entrega, com confirmação desses passos. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * No ponto 81 elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “Desde a data de início de actividade até à data da presente contestação, a Uber Eats pagou ao Prestador de Actividade mediante crédito feito em benefício do Parceiro de Frota, procedendo este à retenção de 10% do valor facturado e entregue pela R. e entregando o remanescente a AA.” A Recorrente alega que este facto não foi alegado e sobre o mesmo não incidiu qualquer discussão, nomeadamente no que respeita a um alegado pagamento através de um “crédito feito em benefício do Parceiro de Frota”, e ainda que está em oposição com a matéria constante dos pontos 78, 79, 82, 83 e 85. No seu entender, nunca pagou qualquer valor ao prestador nem tem qualquer visibilidade sobre o acordo celebrado entre o mesmo e o parceiro de frota. Porém, o facto reflecte a circunstância do “parceiro de frota” ser apenas um mero intermediário sem qualquer outra utilidade que não a mera intermediação dos pagamentos. Não organiza, não indica clientes, nem tem uma frota própria – apenas recebe da Ré e transfere para os estafetas, retendo 10%. E visto que esta realidade foi confirmada pelo prestador e está suficientemente descrita no ponto em causa, esta parte da impugnação improcede. * No ponto 84 elenco de factos provados, a sentença declarou provado o seguinte: “A UBER Eats, aquando do apuramento de contas e elaboração da factura, tem em consideração a taxa de entrega relativa às entregas realizadas pelo Prestador de Actividade, procedendo ao desconto respectivo do IVA.” A Recorrente alega que esta matéria não resultou provada, uma vez que a testemunha BB disse precisamente o contrário, isto é, que o parceiro de frota é pago com IVA, sendo que posteriormente não existe qualquer visibilidade da Recorrente das relações entre o parceiro e o estafeta. Porém, a testemunha BB revelou que a Recorrente é sujeito passivo de IVA junto da AT, e cobra IVA a 23% sobre as taxas de entrega e tal é reflectido nas facturas. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * A Ré pretende que se adite ao elenco fáctico o art. 111.º da contestação, com o seguinte teor: “Podem inclusivamente bloquear comerciantes e/ou clientes com quem não desejam contactar.” A Recorrente alega que tal resulta do certificado de facto junto aos autos e que esta matéria foi confirmada pela testemunha BB. Porém, a possibilidade de recusar certos estabelecimentos ou clientes já consta do ponto 46 dos factos provados, o que torna inútil o aditamento pretendido. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * A Ré pretende que se adite ao elenco fáctico o art. 112.º da contestação, com o seguinte teor: “A Plataforma não dá qualquer tipo de indicação aos prestadores de actividade sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas.” A Recorrente alega que esta matéria foi confirmada pelo prestador no seu depoimento. Porém, está provado, no ponto 24, que a Ré através da geolocalização em tempo real, distribui o serviço tendo em consideração a sua proximidade do local de recolha da mercadoria. Visto que as propostas de entrega têm em consideração a localização em tempo real dos estafetas, se estes não se encontrarem próximo dos locais de recolha não as recebem. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * A Ré pretende que se adite ao elenco fáctico o art. 113.º da contestação, com o seguinte teor: “Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados não pertencem à Ré.” A Recorrente alega que esta matéria foi confirmada pelo prestador no seu depoimento, nomeadamente no que concerne à mochila térmica, mota, capacete e telemóvel. Porém, a discussão sobre se a aplicação informática é também um instrumento de trabalho integra o thema decidendum da causa, e como tal o que a Recorrente pretende é a introdução na matéria fáctica de uma valoração jurídica essencial à decisão da causa de pedir. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * A Ré pretende que se adite ao elenco fáctico o art. 114.º da contestação, com o seguinte teor: “O Prestador de Actividade beneficia de um modelo de início de sessão livre, ou seja, não tem, nem nunca teve de reservar turnos, cumprir horários, indicar as horas em que prefere prestar a sua actividade ou informar previamente a Plataforma sobre quais os seus horários de preferência.” A Recorrente alega que esta matéria foi confirmada pelo prestador no seu depoimento. Porém, no ponto 65 já está provado que o prestador esteve períodos até 43 dias sem prestar actividade de estafeta através da aplicação da Uber, sem qualquer consequência negativa como a desactivação da conta. No ponto 30 também está provado que a Ré permite que o prestador exerça a actividade desde as 08h00m até às 03h00m, que corresponde ao horário alargado de alguns pontos de recolha. E no ponto 18 está provado que sempre que inicia a actividade, o prestador informa a Ré, através do seu login. Estes são os factos relevantes, demonstrando não só a liberdade de início de sessão, como a necessidade de informar o início da actividade, a ser exercida dentro de um determinado período temporal. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * A Ré pretende que se adite ao elenco fáctico o art. 220.º da contestação, com o seguinte teor: “A utilização de mochila térmica é uma regra de boas práticas de higiene e segurança alimentar, transversal a qualquer serviço de entrega, seja ele prestado através da Plataforma Uber Eats, ou de qualquer outra, de forma autónoma ou dependente.” A Recorrente alega que a utilização da mochila prende-se com exigências de segurança alimentar e decorre do manual de boas práticas da AHRESP junto aos autos. Porém, o que está em causa nos autos é a imposição do uso da mochila pela Recorrente, nos termos e condições que esta definiu. Ponderando, ainda, que no ponto 19 já consta o propósito da mochila – transporte higiénico de alimentos, em certas condições de protecção térmica – esta parte da impugnação improcede. * A Ré pretende que se adite ao elenco fáctico os arts. 283.º e 284.º da contestação, com o seguinte teor: “283.º O Uber Eats Pro é um programa de pontos voluntário de cariz comercial. 284.º De acordo com o qual os prestadores de actividade decidem livremente beneficiar desta oferta comercial para receber pontos que podem dar acesso a ofertas de parceiros.” A Recorrente alega que esta matéria foi confirmada pela testemunha BB. Porém, os propósitos do programa em causa já constam do ponto 55 dos factos provados: sistema de incentivos, assente no número de entregas efectuado através da plataforma, permitindo desbloquear algumas recompensas que entidades parceiras oferecem. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * Finalmente, a Ré pretende que se adite ao elenco fáctico o art. 371.º, al. f), da contestação, com o seguinte teor: “O prestador de actividade é livre na forma como se apresenta, nomeadamente a roupa e o equipamento que querem usar (incluindo utilizar a marca de concorrentes) e o veículo (mota ou bicicleta) que utilizam para efectuar as entregas.” A Recorrente alega que esta matéria foi confirmada pelo prestador no seu depoimento. Porém, a propósito da impugnação do ponto 19, já acima se referiu que a Recorrente estabeleceu regras estritas sobre procedimentos de limpeza, apresentação e ética de recepção, devendo também indicar na aplicação qual o seu meio de transporte. Como tal, esta parte da impugnação improcede. * Em resumo, a impugnação fáctica procede apenas nos seguintes termos: • o ponto 33 do elenco de factos provados é eliminado; • os pontos 35 e 43 do elenco de factos provados são alterados, nos termos supra expostos. Em consequência, a matéria de facto provada fica organizada nos seguintes termos: 1. A R. é uma sociedade por quotas e tem como objecto social a prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos; actividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com a restauração; consultoria, concepção e produção de publicidade e marketing; aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais. 2. Para a execução das referidas actividades, a R. explora uma aplicação tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet –, contrata serviços a estafetas que procedam à entrega dos produtos encomendados. 3. Para efectuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a R. utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito, a quem paga uma quantia pecuniária conforme a distância percorrida. 4. Assim, a R. actua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma: - os utilizadores parceiros, que podem ser os prestadores de serviços que partilham os activos, os recursos, a disponibilidade e/ou as competências (estafetas) ou os prestadores de serviços, no exercício da sua actividade profissional: estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo; - os utilizadores desses serviços que se traduzem nos clientes (consumidores finais); - a plataforma digital que liga os prestadores de serviços e os utilizadores desses mesmos serviços. 5. A actividade da R. inclui: - a intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; - a intermediação entre a venda dos produtos e a respectiva recolha; - transporte e entrega aos utilizadores que efectuaram as encomendas. 6. A “Uber Portier, B.V.” (com sede em Mr. Treublaan 7, 1097 DP, Amesterdão, Países Baixos), é a única sócia da Ré “Uber Eats Portugal Unipessoal, Lda.” e é a entidade que fornece o acesso à aplicação (App) UBER EATS e ao software, websites e aos vários serviços de suporte da plataforma UBER EATS. 7. No dia 25/08/2023, pelas 13h.07m, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) realizou uma acção inspectiva no Centro Comercial Alegro, sito em Avenida Antero de Quental, Setúbal, com vista a averiguar a existência de características de contrato de trabalho na relação entre os vários estafetas que ali se encontravam e a R., plataforma digital. 8. Naquele circunstancialismo de tempo e lugar, encontrava-se AA, nascido em …/…/1989, nacional do Brasil, portador da autorização de residência n.º …, do NIF … e do NISS …, residente em Rua …, com o contacto n.º … e com o endereço de correio electrónico …@gmail.com. 9. No dia 14/09/2023, cerca das 20h.00m., a ACT realizou uma acção inspectiva na Rua Velha Alfandega, em Setúbal, com vista a averiguar a existência de características de contrato de trabalho na relação entre os vários estafetas que ali se encontravam e a R., sendo que, nessa sequência, o inspector BB identificou novamente AA. 10. AA em ambas aquelas situações encontrava-se a desempenhar as funções de estafeta, concretamente recolhendo e entregando refeições, a clientes da R. 11. No circunstancialismo de tempo e lugar aludido em 7) e 9), AA encontrava-se a aguardar solicitação de recolha e entrega de mercadoria da R., através da aplicação digital (App) por esta explorada para proceder à entrega dos produtos alimentares e/ou bebidas. 12. AA começou a prestar aquela actividade para a R., nos moldes acima descritos, em Janeiro de 2021, através de um intermediário integrando a sua frota, mas apenas por questões que se prendem com a alegada redução do valor tributário a deduzir ao valor líquido que teria a receber. 13. Nunca assinou qualquer contrato de trabalho escrito com R., limitando-se a registar-se na plataforma digital e a seguir os demais passos exigidos. 14. Aquando do registo, AA facultou à R. vários documentos, concretamente o de identificação, a carta de condução, documentos do veículo que iria usar na distribuição, seguro, registo criminal, fotografia para o perfil e outras informações, nomeadamente o número do IBAN, o endereço de correio electrónico – …@gmail.com – e o n.º de telemóvel (…). 15. No processo de registo, a R. fez depender a conclusão do processo da circunstância de AA ter internet no seu telemóvel, transporte próprio e mala impermeável, térmica/isotérmica. 16. Em todo o processo de registo, AA teve de manifestar sempre a sua aceitação com os termos e condições propostos pela R. 17. R. disponibilizou-lhe vários vídeos e mensagens, demonstrando-lhe como deveria ser o seu procedimento no exercício da actividade de estafeta, nomeadamente: - limpeza do motociclo utilizado no transporte; - aparência estafeta perante o cliente; e - ética de recepção perante o cliente. 18. Sempre que inicia a actividade de estafeta, AA informa a R. através do seu login, que se traduz na introdução do endereço de correio electrónico …@gmail.com e da respectiva palavra-passe. 19. Periodicamente, AA tem de enviar à R., por solicitação desta, fotografia da mochila térmica, com vista a esta confirmar o estado de higiene e conservação da mesma. 20. A R. informa sempre AA do procedimento a ter no caso de o cliente estar ausente no ponto de entrega ou como e quando deve descartar a encomenda. 21. Concretamente, AA tem de comunicar à R. que o cliente não se encontra no ponto de entrega, depois tem de voltar a insistir e, caso não receba resposta, tem de aguardar 10 minutos no local; volvidos esses 10 minutos, aquele dá por concluído o pedido, recebendo, na mesma, a sua retribuição. 22. Em qualquer caso, é sempre a R. que determina se AA fica ou não com a mercadoria não entregue. 23. Também é a R. que lhe dá instruções na conduta a adoptar na entrega de bebidas alcoólicas; não pode entregar a pessoas menores de idade, nem aparentemente já alcoolizadas, sendo obrigado a confirmar à R. que observou as regras através da App. 24. A R., considerando a geolocalização em tempo real de AA, através da App, distribui-lhe serviço tendo em consideração a sua proximidade do local de recolha da mercadoria, mediante operação algorítmica. 25. Por opção, AA realiza aquela distribuição na área do concelho de Setúbal, onde habita. 26. A distribuição de serviço consiste em a R. indicar, sempre através da App, o ponto de recolha, o ponto de entrega e o valor a pagar por essa deslocação. 27. A R., através da geolocalização do equipamento do estafeta, pode acompanhar o percurso efectuado por AA, desde o ponto de recolha até ao ponto de entrega; a R. faculta ao cliente a possibilidade de também o fazer. 28. AA pode prestar a sua actividade sem ter o sistema de GPS ligado, após a aceitação do pedido. 29. Se, por algum motivo, interromper o percurso determinado, a R. contacta-o através da App, solicitando-lhe esclarecimentos sobre o motivo da tal paragem. 30. A R. permite que AA preste a sua actividade desde as 08h.00m, até às 03h.00m., que corresponde ao horário alargado de alguns pontos de recolha. 31. A R. sempre pagou e paga a prestação pecuniária referente às entregas feitas por AA, semanalmente, através de transferência bancária feita para o parceiro de frota, dependendo o valor recebido da quantidade de quilómetros despendidos no percurso para concretizar a entrega e do número de entregas; o parceiro de entrega, depois de ficar para si com a percentagem de 10%, acordada com AA, entrega-lhe o remanescente dessa quantia. 32. A empresa “titular da frota” não organiza ou determina que entregas AA deve realizar; qual o valor corresponde àquela tarefa; não avalia a sua actividade, limitando-se a intermediar o recebimento da quantia a pagar pela R., com vista à aplicação de uma alegada redução do desconto tributário a aplicar. 33. Eliminado. 34. AA pode alterar na aplicação o valor mínimo que pretende receber por quilómetro. 35. Confrontado com o valor indicado pela R., AA pode confirmar se aceita ou recusa o pedido. 36. Pelos pagamentos da actividade prestada através da plataforma UBER EATS, AA não emite recibos através do Portal das Finanças em nome da empresa “Uber Eats Portugal Unipessoal., Lda.” contribuinte fiscal n.º 516248022, pois as quantias a que tem direito são entregues pela R. à empresa Parceira de Frota, sendo a factura emitida em nome desta. 37. Todas as pessoas a quem AA fez e faz entregas de produtos alimentares e bebidas e produtos não alimentares, através da App da Uber Eats, são clientes da R. 38. AA não pode utilizar a App da R. para outros fornecedores que não estejam aprovados por esta, sendo, assim, exclusiva para os clientes da R. 39. AA era avaliado pelos pontos de recolha e de entrega que transmitem tal avaliação, por cada serviço por si prestado, à R., através da App. 40. Na posse daqueles dados avaliativos, a R. transmite-os a AA. 41. Quando pretende terminar a sua jornada de trabalho, AA apenas tem de fazer logout na App. 42. A R. atribuiu um seguro de danos pessoais, o qual é válido enquanto está em login. 43. AA desde Janeiro de 2021 e até à actualidade, realiza a actividade de estafeta para as plataformas Glovo e Uber Eats. 44. Na sequência da referida inspecção realizada pela ACT, e depois de ter sido elaborado o auto referido no n.º 1 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, a R. foi notificada de acordo com o mesmo preceito legal, no sentido de, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tivesse por conveniente. 45. Como a R. não regularizou a situação, a ACT comunicou a situação ao Ministério Público, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 15.º-A da referida Lei n.º 107/2009, tendo dado entrada no tribunal em 29/11/2023. 46. AA não dispunha de qualquer organização empresarial própria; não negoceia os preços ou condições com os titulares dos estabelecimentos que preparam as refeições/produtos a entregar, nem com os clientes finais, nem tão pouco tem o poder de escolher estes clientes finais ou os titulares dos estabelecimentos (embora os possa recusar). 47. AA pode indicar na Plataforma o valor quilómetro abaixo do qual não pretende lhe sejam feitas solicitações. 48. A plataforma determina os procedimentos que o estafeta tem de seguir na recolha e entrega dos produtos, nomeadamente, como utilizar a aplicação UBER EATS dando-lhe instruções sobre o momento em que deve introduzir a informação sobre a recolha/entrega que está a realizar. 49. A localização exacta do estafeta é conhecida pela plataforma UBER EATS através do sistema de geolocalização, quando o estafeta a mantém ligada. 50. O estafeta deve ter a localização activa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS para permitir a sua localização na aplicação, aquando do momento da atribuição do serviço. 51. O estafeta pode manter a localização activa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação UBER EATS para permitir a sua localização na aplicação, durante todo o período que vai desde a aceitação do pedido e até à sua conclusão, para uma conveniente prestação do serviço que compreende a prestação de informação actualizada ao cliente, que acompanha a sua encomenda, também através da aplicação (no modo cliente), e que entra em contacto consigo ou com o suporte quando entende que há uma anomalia como seja uma demora, paragem excessiva ou afastamento do lugar da entrega. 52. O estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido vão introduzindo dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega. 53. A atribuição/distribuição dos pedidos aos estafetas é determinada em função do critério da distância entre aquele, o estabelecimento e o consumidor. 54. Os utilizadores clientes finais são convidados a dar feedback relativamente à forma como o estafeta realizou o seu trabalho, para além de que podem reportar problemas com os pedidos de entrega no caso de violações dos termos e condições. 55. Para além disso, a R. mantém um sistema de incentivos à ligação do estafeta à plataforma e prestação efectiva de entregas, assente no número de entregas efectuado através da plataforma, classificando-os como parceiros “Green”, “Gold”, “Platinium” ou “Diamond”, o que lhes permite poderem participar no programa da “Uber Eats Pro” e, com base no número de pontos atingidos por mês, desbloquear algumas recompensas que entidades parceiras da UBER EATS oferecem (por exemplo, a Galp e a Wear Your Brand). 56. A Plataforma faz a ligação entre comerciantes, que desejam vender os seus produtos (não só alimentos), clientes, que desejam adquirir bens e que os mesmos lhes sejam entregues ou optem por eles próprios fazer a sua recolha, e contrata estafetas (como o Prestador de Actividade em causa na presente acção) que desejam fazer entregas aos clientes da R. 57. Na Plataforma, todos os estafetas são livres para decidir quando, como, onde, a que clientes, com que restaurantes e por que valor, face à proposta feita, querem prestar a sua actividade de entregas. 58. AA manteve sempre a Taxa Mínima por Quilómetro de € 0,10 (taxa mínima por defeito). 59. A R. não criou qualquer “multiplicador”. 60. Não existe nenhum “multiplicador” na Plataforma. 61. Na Plataforma, os prestadores de actividade dispõem de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e seleccioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens”. 62. Desta forma, os prestadores de actividade podem ajustar o seu preço por quilómetro sempre que quiserem, sem o baixar, e assim não perder qualquer oferta de entrega que possa surgir na Plataforma. 63. Os prestadores de actividade independentes escolhem quando são pagos, através da ferramenta "Flex Pay". 64. Apenas no caso de não optarem por recolher os rendimentos através do Flex Pay é que os mesmos são pagos semanalmente. 65. AA já esteve períodos até 43 dias sem prestar actividade de estafeta através da App da Uber, sem qualquer consequência negativa como a desactivação da conta. 66. A Plataforma não faz qualquer controlo sobre a rota que o Prestador de Actividade faz para concluir essa entrega. 67. Não há consequências por escolher uma rota livremente. 68. Existe um mecanismo de controlo de identidade dos estafetas na Plataforma, através do qual é pedido aos estafetas que tirem um selfie (auto-retrato) que é depois comparada com a fotografia registada na Plataforma, para detectar situações de partilha de contas, que não são permitidas na Plataforma, de acordo com condições aplicáveis. 69. Estas soluções de reconhecimento facial são automática e aleatoriamente despoletadas pela Plataforma. 70. Os estafetas que realizam a sua actividade para a Uber Eats também podem usar outras plataformas concorrentes, incluindo ao mesmo tempo que estão a prestar a sua actividade na APP da R.; podem realizar a actividade de estafetas sem recurso à App da Uber Eats. 71. Não estão adstritos a qualquer obrigação de exclusividade, podendo livremente escolher por prestar a sua actividade através de outras plataformas digitais ou qualquer outro meio que escolham, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats. 72. O estafeta independente pode substituir-se por outro estafeta no exercício da sua actividade de acordo com a sua livre discricionariedade, desde que o terceiro tenha conta activa na App como Parceiro de Entrega. 73. O Estafeta substituto tem também um registo de conta na Uber Eats. 74. A Plataforma não faz qualquer escrutínio sobre a sua experiência, qualificações académicas, ou ausência delas, bem como sobre as características pessoais e técnicas dos prestadores de actividade, para validar o seu registo na Plataforma. 75. Os estafetas que desenvolvem a sua actividade na Plataforma através de um intermediário são designados por “Parceiros de Entregas do Parceiro de Frota”. 76. Os intermediários são designados por “Parceiros de Frota”. 77. Nos casos dos Parceiros de Entregas do Parceiro de Frota, os termos estabelecidos com o Parceiro de Frota poderão limitar de alguma forma a flexibilidade da actividade dos estafetas na Plataforma. 78. A R. não tem qualquer visibilidade, nem influência, sobre os termos e condições acordados entre o Prestador de Actividade e o Parceiro de Frota. 79. A R. não teve, nem tem, qualquer tipo de intervenção e desconhece os termos acordados entre a referida sociedade e o Prestador de Actividade. 80. O Prestador de Actividade foi convidado pela Parceiro de Frota para se associar a si, através da Plataforma, e aceitou. 81. Desde a data de início de actividade até à data da presente contestação, a Uber Eats pagou ao Prestador de Actividade mediante crédito feito em benefício do Parceiro de Frota, procedendo este à retenção de 10% do valor facturado e entregue pela R. e entregando o remanescente a AA. 82. Aqueles 10% retidos pelo Parceiro de Frota não tinham relação em qualquer prestação realizada por este em benefício de estafeta, mas apenas a crença criada de que, por seu intermédio, o Estafeta apenas via deduzido ao seu preço aquela percentagem de 10%, contra os 23% se aquela quantia lhe fosse paga directamente pela UBER EATS. 83. A UBER Eats não teve qualquer participação ou influência neste acordo celebrado entre AA e a sociedade Parceira de Frota. 84. A UBER Eats, aquando do apuramento de contas e elaboração da factura, tem em consideração a taxa de entrega relativa às entregas realizadas pelo Prestador de Actividade, procedendo ao desconto respectivo do IVA. 85. AA não factura à R. pela sua actividade. 86. AA não factura ao Parceiro de Frota. 87. Dos termos e condições referentes a parceiros de entregas de parceiros de frota, consta: “(…) 5.c (…) Deve cumprir e atingir os requisitos dos presentes Termos. Se deixar de cumprir ou atingir os requisitos destes Termos, a Uber Eats reserva o direito, a qualquer momento restringir por qualquer forma o Seu acesso à App se não cumprir os deveres constantes destes Contrato. Se a Uber Eats restringir o Seu acesso à App, serão aplicadas as Cláusulas 9 e 14 do presente Contrato. (…) 14. b. (…) Podemos resolver o presente Contrato a qualquer momento, mediante notificação prévia, por escrito, com 30 (trinta) dias de antecedência,, salvo nas seguintes situações, nas quais, este período de aviso prévio não se aplica: (i) se estivermos sujeitos a uma obrigação legal ou regulamentar que nos obrigue a terminar a sua utilização da App ou dos nossos serviços em prazo inferior a 30 (trinta) dias; (ii) se o Parceiro de Entregas tiver infringido o presente Contrato; (iii) mediante denúncia de que o Parceiro de Entregas tenha agido de forma não segura ou violou estes Termos ou a legislação em conexão com a prestação de serviços de entrega; (iv) o Seu comportamento equivale a fraude (actividade fraudulenta pode incluir, mas não está limitada a, as seguintes acções: partilhar a sua conta com terceiros não autorizados; aceitar propostas sem intenção de entregá-las; induzir usuários a cancelar Seus pedidos; criar falsas contas para fins fraudulentos; solicitar reembolso de taxas não geradas; solicitar, executar ou confirmar intencionalmente a disponibilidade de propostas fraudulentas; interromper o funcionamento das aplicações e do GPS da Uber, como alterar as configurações do telefone; fazer uso indevido de promoções ou para fins diferentes dos pretendidos; contestar cobranças por motivos fraudulentos ou ilegítimos; criar contas duplicadas; fornecer informações falsas ou documentos falsificados); ou (iv) se estivermos a exercer um direito de resolução por um motivo imperativo nos termos da lei aplicável, que pode incluir situações em que o Parceiro de Entregas já não se qualifique, nos termos do presente Contrato, da legislação aplicável ou regulamentos, ou das normas e políticas da Uber Eats e das suas Afiliadas, o que pode incluir situações em que o Parceiro de Entregas não está em conformidade com a Seção 5 deste Contrato para prestar Serviços de Entrega ou para operar o Seu Meio de Transporte. (…)”. APLICANDO O DIREITO Da existência de contrato de trabalho A Recorrente alega que estando em causa uma relação jurídica cuja execução perdura ininterruptamente durante certo período, e não havendo mudança na configuração dessa relação, aplica-se, no que toca à sua qualificação, a lei laboral vigente à data do seu início, uma vez que as leis que regulam a constituição (ou processo formativo) duma situação jurídica não podem afectar as situações jurídicas anteriormente constituídas. Diremos, porém, que o art. 12.º-A do Código do Trabalho, aditado pela Lei n.º 13/2023, deve ser aplicado a relações jurídicas iniciadas antes da sua entrada em vigor (01.05.2023). O Supremo Tribunal de Justiça vem declarando de forma constante – desde o seu Acórdão de 15.05.2025 (Proc. 1980/23.3T8CTB.C2.S1), publicado em www.dgsi.pt – que “relativamente a relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor do art. 12.º-A, do Código do Trabalho, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu n.º 1 que, no âmbito dessas relações jurídicas, tenham sido praticados posteriormente àquele momento (01.05.2023).” A este propósito, temos a dizer que o art. 35.º n.º 1 da Lei n.º 13/2023 admite que as novas normas também se apliquem a contratos de trabalho celebrados previamente, ressalvando apenas as suas condições de validade e os efeitos de factos ocorridos anteriormente. Não determina, pois, que os contratos prévios não estão sujeitos à sua análise de acordo com as presunções de laboralidade consagradas no novo art. 12.º-A, e há a dizer que esta norma não é mais que o desenvolvimento do regime regra do art. 12.º do Código do Trabalho, adaptado ao contexto específico das plataformas digitais. Não se trata, pois, da aplicação de um novo método de qualificação – a utilização de presunções de laboralidade – onde anteriormente nada se previa a esse respeito. Trata-se, somente, de desenvolver um instituto já consagrado no Código do Trabalho, e adaptá-lo a um novo sector de actividade, nada mais. E daí que se possa dizer que, embora a nova lei não seja de aplicação retroactiva, aplica-se à relação existente a partir do momento da sua entrada em vigor, permitindo a sua análise de acordo com os indícios de laboralidade constantes do novo art. 12.º-A, pois estes são mero desenvolvimento dos já consagrados no art. 12.º. De resto, esta é a solução mais adequada na análise de relações contratuais duradouras, mantidas após a entrada em vigor da nova lei, em especial quando se trata da aplicação de presunções legais a um novo sector de actividade, e tal técnica é a que veio a ser consagrada no art. 5.º n.º 6 da Directiva (UE) n.º 2024/2831, de 23 de Outubro. Aliás, seria anómalo que os contratos anteriores à entrada em vigor da Lei n.º 13/2023 não estivessem sujeitos às regras previstas no novo art. 12.º-A, mas estivessem sujeitos às presunções legais estabelecidas naquela Directiva, acaso ainda se mantivessem na data da sua entrada em vigor. Em termos de coerência do ordenamento jurídico, se as presunções legais estabelecidas na Directiva são aplicáveis ao período do contrato iniciado após a sua entrada em vigor, o mesmo procedimento se deve adoptar quanto ao novo art. 12.º-A – tal não é excluído pelo art. 35.º n.º 1 da Lei n.º 13/2023, que ressalva apenas as condições de validade e os efeitos de factos ocorridos anteriormente, não ressalva a aplicação das novas presunções ao período do contrato decorrido após 01.05.2023. Deste modo, o novo art. 12.º-A também deve ser aplicado às relações estabelecidas entre a Ré e o prestador, em relação aos factos praticados posteriormente a 01.05.2023. De todo o modo, quanto ao período anterior a esta data, estão preenchidas, pelo menos, as presunções das als. a) e b) do n.º 1 do art. 12.º do Código do Trabalho – actividade realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado; e equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencentes ao beneficiário da actividade. Quanto ao primeiro indício, há a assinalar que o estafeta executa as entregas aos clientes, procedendo à recolha e entrega, nos locais previamente indicados pela Ré, pelo que ocorre determinação do local de prestação da actividade. E quanto ao segundo indício, a aplicação informática é o “principal instrumento de trabalho dos estafetas e é disponibilizada pela plataforma digital” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.2025 (Proc. 28891/23.0T8LSB.L1.S1), publicado em www.dgsi.pt – e certo é que a Ré obriga à sua utilização, assim dirigindo toda a actividade do prestador. E quanto ao período posterior a 01.05.2023, ocorrem pelo menos cinco das presunções previstas no art. 12.º-A n.º 1 do Código do Trabalho, nomeadamente as constantes das respectivas alíneas a), b), c), e) e f). Com efeito, os factos provados demonstram que a Ré fixa a retribuição dentro de limites máximos e mínimos, determina os locais de recolha e entrega e fixa as regras específicas de desempenho da actividade, controla e supervisiona a prestação da actividade, e verifica a sua qualidade, pode excluir o prestador e desactivar a sua conta, e é proprietária do principal instrumento de trabalho utilizado pelos estafetas, i.e., a aplicação informática. Note-se que a apreciação do caso impõe uma visão actualizada quanto às novas formas de prestar trabalho impostas por empresas tecnológicas que desenvolvem a sua actividade na área do consumo digital. Esta nova realidade de trabalho, com recurso a tecnologia digital que permite o pré-estabelecimento de ordens de comando para alcançar um determinado fim, traduz a existência de uma possibilidade de organização do trabalho muito distinta da tradicional, que era feita com a presença física de pessoas. Acresce que não tendo os estafetas horários de trabalho definidos pela Ré, tal não é incompatível com um contrato de trabalho, nomeadamente a tempo parcial. Há uma maior autonomia na esfera do trabalhador, mas não é total nem suficiente para afastar os índices de subordinação verificados supra, face às novas formas de trabalho na área do consumo digital. De acordo os n.ºs 5 e 6 do art. 12.º-A do Código do Trabalho, a plataforma digital pode invocar que a actividade é prestada perante pessoa singular ou colectiva que actue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respectivos trabalhadores, caso em que “aplica-se igualmente, com as necessárias adaptações, a presunção a que se refere o n.º 1, bem como o disposto no n.º 3, cabendo ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora.” A este respeito, temos a referir que os factos apurados demonstram que o estafeta exerce a sua actividade no quadro de uma organização produtiva estabelecida pela Ré e não pelo intermediário, e o facto de receber desta o pagamento das entregas (repassando o que recebeu da Ré e retendo uma percentagem) mostra-se irrelevante, visto que é a Ré quem define todos os aspectos relevantes e que caracterizam o trabalho executado por aquele. Note-se que os estafetas não dispõem de uma organização empresarial própria e autónoma, estando plenamente inseridos na estrutura organizativa da Ré e não do intermediário: não pode gerir sozinho a actividade, e também não pode decidir as condições fundamentais da sua prestação – tem de aceitar as que lhe são impostas pela Ré, que não pode negociar; e as cláusulas do contrato foram formuladas unilateralmente pela Ré, destinado a pessoas indeterminadas, que apenas se limitam a aderir, sem possibilidade de discussão ou de introdução de modificações. Havendo a notar que basta a demonstração de dois dos indícios previstos no art. 12.º n.º 1 e no art. 12.º-A n.º 1 do Código do Trabalho, diremos, ainda, que os autos demonstram a efectiva integração do prestador na estrutura e organização da Ré, com subordinação jurídica a esta, e tanto basta para se considerar confirmada a presunção legal de existência de contrato de trabalho. Maria do Rosário Palma Ramalho ensina que “o elemento organizacional do contrato de trabalho (…) pretende realçar o facto de o trabalhador subordinado (contrariamente ao que sucede com outros prestadores de um serviço ou actividade laborativa) se integrar no seio da organização do credor da sua prestação, com uma especial intensidade. Desta integração resulta, em primeiro lugar, a vinculação do trabalhador a deveres que apenas se justificam por esta componente organizacional (assim, deveres de produtividade ou deveres diversos de colaboração com os colegas de trabalho, mas também a sujeição a horários, ao regulamento empresarial, a códigos de conduta ou a deveres disciplinares); é também esta componente organizacional que explica a influência quotidiana da organização do empregador nos contratos de trabalho dos respectivos trabalhadores (evidenciada em múltiplos regimes laborais, que conformam os deveres dos trabalhadores em matéria de tempo e de local de trabalho, de alteração da prestação, de mudança do empregador ou de cessação do contrato por motivos de gestão); e é ainda a componente organizacional do vínculo laboral que explica o princípio da interdependência dos vínculos laborais da mesma organização (que se traduz em regras como a igualdade de tratamento entre os trabalhadores e em muitos aspectos da dinâmica colectiva dos contratos de trabalho).”4 No caso, para além do preenchimento de duas presunções de laboralidade do art. 12.º n.º 1, no período anterior a 01.05.2023, e de cinco das previstas no art. 12.º-A n.º 1 pelo período posterior a essa data, a existência de contrato de trabalho confirma-se pela efectiva integração do prestador na organização empresarial da Ré. Como se escreve no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.2025, importa “considerar a inserção do estafeta na organização empresarial da plataforma. Como já observou o Advogado-Geral SZPUNAR, os estafetas que operam no quadro da plataforma Uber (…) não exercem uma actividade própria que pudesse existir independentemente da mesma. Pelo contrário, a sua actividade só pode existir graças à plataforma, sem a qual ficaria desprovida de sentido. Se fossem considerados trabalhadores autónomos (ou até empresários) poderia questionar-se, como refere AGATHE GENTILHOMME, em que é que consistiria verdadeiramente a sua pretensa autonomia quando o estafeta não fixa o preço que cobra pelos seus serviços e não pode pretender constituir uma clientela própria à medida que vai realizando tais serviços? O estafeta não acede autonomamente ao mercado, mas integra o serviço proporcionado pela plataforma.” Por outro lado, torna-se irrelevante que o estafeta exercesse a actividade sem qualquer dever de exclusividade nem dependência económica em relação à Ré, pois tais elementos não são essenciais do contrato de trabalho. Mais uma vez citando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.2025, face à inserção do estafeta na organização empresarial da Ré, “indícios de aparente autonomia perdem boa parte do seu alcance: assim, a plataforma permite que o estafeta trabalhe para outras plataformas, mas para além das dificuldades práticas em que tal ocorra sem prejudicar a classificação do estafeta no âmbito de cada plataforma, o direito do trabalho português, à semelhança de muitos, não proíbe o pluriemprego e o contrato de trabalho não exige exclusividade; o estafeta pode ser proprietário de alguns instrumentos de trabalho, mas o principal em toda a operação, a aplicação informática, pertence à plataforma. O estafeta pode recusar algum serviço e conectar-se quando quiser, mas tal é possibilitado pelo modelo empresarial com um grande número de estafetas “concorrendo” entre si. Essa liberdade na escolha do tempo vem acompanhada de um controlo apertado na geolocalização e de aspectos económicos como a fixação da contrapartida no essencial pela plataforma e a circunstância de que a mesma emite os recibos.” Visto, pois, que a Ré não demonstrou a efectiva autonomia do estafeta, bem procedeu a sentença recorrida ao julgar a causa procedente. DECISÃO Destarte, nega-se provimento ao recurso, com confirmação da sentença recorrida, quer na parte em que reconheceu a existência do contrato de trabalho, quer na parte em que fixou à causa o valor de € 2.000,00. Custas pela Recorrente. Évora, 16 de Dezembro de 2025 Mário Branco Coelho (1.º Adjunto, que lavra o Acórdão por vencimento do Relator original – art. 663.º n.º 3 do Código de Processo Civil) Paula do Paço Filipe Aveiro Marques (vencido, apresentando a seguinte declaração de voto) Votei no sentido da revogação da sentença recorrida pelas seguintes razões: A) Continuo a não encontrar argumentos suficientes para considerar que a aplicação informática, depois de instalada no telemóvel do estafeta, possa ser considerada um instrumento ou equipamento para os efeitos de funcionamento da presunção. Não parece que seja um elemento físico, como será o telemóvel e, sobretudo, sem esta aplicação (que é apenas um meio de comunicação avançado) o estafeta poderá continuar a prestar a mesma actividade, designadamente para outras plataformas (ao contrário do que acontece com os verdadeiros equipamentos – mochila e veículo – sem os quais não é possível prestar qualquer actividade). Consequentemente, entendo não estar preenchida a alínea f), do n.º 1, do artigo 12.º-A, do Código do Trabalho. B) Apesar do preenchimento de algumas das características, sopesando toda a factualidade provada nos autos entendo que, no caso, se mostra ilidida a presunção de laboralidade. No sentido de se afastar a existência de trabalho subordinado existem importantes factores: - a remuneração (pontos 31, 32 e 34 dos factos provados) não atende à disponibilidade do estafeta que aguarda pela distribuição do serviço, mas apenas pelo resultado (recolha e entrega das encomendas), o que é típico de uma simples prestação de serviços; - a necessidade de registo na plataforma ou de uso da APP não distingue o estafeta dos outros clientes da ré (ver pontos 5, 38 e 56 dos factos provados); - a ausência de exclusividade, com especial enfoque na possibilidade de o estafeta prestar o mesmo serviço para as empresas que directamente concorrem no mercado com a ré (pontos 43, 70 e 71 dos factos provados), sendo certo que não faz parte do conceito de contrato de trabalho, permite aproximar a ligação das partes mais a uma simples prestação de serviços com a liberdade inerente a esta; - a possibilidade de total liberdade para o estafeta desenvolver a actividade em horário e local por si definidos e, mesmo, da total liberdade de escolher dias em que pretende prestar, ou não, a actividade (pontos 41, 57 e, especialmente, 65 dos factos provados), que normalmente não se encontra numa relação subordinada e que permite concluir que é o estafeta que organiza o seu tempo e é ele que, com total liberdade, gere a sua ligação à ré consoante a sua total conveniência pessoal; - a possibilidade de o estafeta poder designar outras pessoas para sua substituição no exercício da actividade (ponto 72 dos factos provados), bem demonstrativa de que o que interessa à ré não é a actividade em si mesma, elemento inerente a um contrato de trabalho que é celebrado intuitu personae, mas antes o resultado da sua actividade, característica do contrato de prestação de serviço; - a possibilidade de o estafeta poder escolher os comerciantes e/ou clientes com quem pretende, ou não, contactar, sem necessidade de justificar a sua opção (ponto 57 dos factos provados), o que afasta qualquer ideia de subordinação aos interesses da ré; - sobretudo e decisivamente, ficou provada a possibilidade de o estafeta recusar qualquer serviço proposto e sem qualquer consequência (pontos 35 e 57 dos factos provados) o que é, naturalmente, prova de um facto muito relevante que aponta para a inexistência de qualquer subordinação: não se vislumbra que relação laboral pode resistir baseada na possibilidade de o prestador da actividade se poder recusar a prestá‑la e, ainda assim, esperar remuneração (sem olvidar, naturalmente, o regime do artigo 273.º do Código do Trabalho e não se podendo falar, no caso, de trabalho intermitente previsto nos artigos 157.º e 158.º do Código do Trabalho por lhe faltar o mais relevante requisito formal); no limite, o entendimento que obteve vencimento pode levar ao reconhecimento de um contrato de trabalho a quem não faça um minuto de trabalho efectivo, bastando estar “disponível” com o telemóvel ligado à aplicação. Entendo, por isso e apesar do brilhantismo dos argumentos que fizeram vencimento, que no caso dos autos a independência do estafeta é real. Évora, 16 de Dezembro de 2025 Filipe Aveiro Marques
_________________________________________ 1. Salvador da Costa, in Os Incidentes da Instância, 2.ª ed., 1999, pág. 45.↩︎ 2. A título exemplificativo, cita-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.12.2017 (Proc. 519/14.6TTVFR.P1.S1), publicado na mesma base de dados, que elabora uma resenha da jurisprudência relevante sobre o tema.↩︎ 3. Ainda no mesmo sentido, cfr. o Acórdão da Relação de Lisboa de 19.12.2018 (Proc. 101/18.9T8BRR-A.L1-4), também em www.dgsi.pt.↩︎ 4. In “Delimitação do Contrato de Trabalho e Presunção de Laboralidade no Novo Código do Trabalho – Breves Notas”, publicado no e-book do CEJ “Trabalho Subordinado e Trabalho Autónomo: Presunção Legal e Método Indiciário”, 2.ª ed., Janeiro de 2016, pág. 70.↩︎ |