Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
247/19.6T8GDL-A.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: COLIGAÇÃO PASSIVA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO PASSIVO
Data do Acordão: 05/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Na coligação de autores e de réus, não é exigível que a causa de pedir seja a mesma e única.
2. A coligação deve ser admitida se, embora sejam diferentes as causas de pedir, a procedência dos pedidos depender essencialmente da apreciação dos mesmos factos e não ocorrer qualquer obstáculo.
3. Para o apuramento da legitimidade releva apenas o pedido e a causa de pedir, tal como configurada pelo autor, pois está em causa um mero pressuposto processual, irrelevando, para esse estrito efeito, a prova dos factos e a apreciação do mérito da causa.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
(…)


Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Local Cível de Grândola, (…) e (…), demandaram:
1.ª Ré: Herdade da (…) – Actividades Agro Silvícola e Turísticas, S.A.;
2.º R.: (…); e,
3.ª Ré: (…);
De acordo com a causa de pedir formulada na petição inicial, os AA. compraram à 1.ª Ré um lote de terreno – identificado na escritura de compra e venda de 18.12.2014, como prédio urbano, composto por terreno para construção, denominado Loteamento C11, lote 8, situado no (…), freguesia do (…), concelho de Grândola, e descrito na respectiva CRP sob o n.º (…) – tendo esta assumido a obrigação, aquando da venda, de demolir duas construções, uma de 12 m2 e outra de 43 m2, implantadas parcialmente no referido lote 8, e a parte restante no lote 9, que os AA. afirmam ser propriedade da 1.ª Ré.
Visto que os 2.º e 3.ª RR. se opõem à demolição de tais construções, afirmando que lhes pertencem, e a 1.ª Ré também não logrou proceder à referida demolição, os AA. formularam os seguintes pedidos:
a) “condenar o 2.º e a 3.ª RR. a reconhecerem os AA. como proprietários do prédio descrito na CRP de Grândola sob o n.º (…), com o artigo matricial n.º (…), incluindo as construções ilícitas que estejam edificadas no terreno dos AA.;
b) condenar o 2.º e a 3.ª RR. a se absterem de praticar actos que impeçam o exercício do direito de propriedade dos AA.;
c) condenar os 2.º e 3.ª RR. (…) e (…) a desocuparem o terreno dos AA., nos termos do artigo 1311.º do CC, restituindo o mesmo aos AA. livre de pessoas e bens, condenando ambos ao pagamento aos AA. a título de sanção pecuniária compulsória a quantia diária de € 100,00 (cem euros) desde a data de citação até à entrega do imóvel em questão livre de pessoas e bens; e,
d) condenar a Ré Herdade da (…) a cumprir o contrato e em consequência a demolir as construções de 12 m2 e de 43 m2 que ocupam parcialmente o terreno dos AA..”

Contestou a 1.ª Ré, afirmando ser proprietária do lote 9, e que os 2.ª e 3.ª RR. são meros detentores de edificações ilegalmente implantadas nesse lote e no lote 8, propriedade dos AA..

Por seu turno, os 2.º e 3.ª RR. contestaram, invocando a coligação ilegal de réus, pois a causa de pedir invocada contra a 1.ª Ré é o incumprimento do contrato, enquanto a invocada contra os 2.º e 3.ª RR. é a ilegalidade de construções realizadas em terreno alheio. Entendem estes RR. que inexiste assim a relação de prejudicialidade exigida pelo artigo 36.º, n.º 1, do Código de Processo Civil para a demanda de todos os RR., devendo ser dado cumprimento ao disposto no artigo 38.º, n.º 1, e notificados os AA. para indicar qual o pedido que pretendem ver apreciado no processo, sob cominação de, não o fazendo, os RR. serem absolvidos da instância. Em sede de pedido reconvencional, afirmam que as construções foram erigidas nos anos 50 do século passado, pela mãe do 2.º R., com autorização da proprietária do terreno, que lhe doou uma parcela de terreno, e que este R. se tornou dono das construções e respectivo logradouro por as ter adquirido por sucessão hereditária e usucapião, estando a dita aquisição registada pela ap. 21.05.2014 em relação ao prédio descrito na respectiva CRP sob o n.º (…).
Nesta sequência, formulam o seguinte pedido reconvencional: “reconhecer-se que os RR. são donos e legítimos possuidores do prédio urbano com a área de 532,28 m2, área coberta de 46,81 m2 e descoberta de 485,47 m2, edifício para habitação e logradouro, situado no (…), descrito sob o n.º (…), freguesia do (…), concelho de Grândola, inscrito na matriz sob o artigo (…) da respectiva freguesia, registado em nome dos RR. pela ap. (…) de 21 de Maio de 2014.”

Replicando, na parte que respeita à defesa dos 2.º e 3.ª RR., os AA. sustentaram que não ocorre a coligação ilegal de pedidos, pois as construções estão simultaneamente assentes em dois lotes, um deles pertencente a estes RR. e o outro pertencente à 1.ª Ré, não podendo as construções ser demolidas parcialmente, mas sim na sua totalidade.
Mais sustentam que o pedido reconvencional é inadmissível, pois as construções estão assentes em terrenos que nunca foram propriedade dos 2.º e 3.ª RR.. Visto que o lote 9 não é propriedade destes RR., mas sim da 1.ª Ré, e o pedido reconvencional não foi deduzido contra esta, mas apenas contra os AA. entendem ocorrer uma situação de ilegitimidade no que respeita à reconvenção.

O despacho saneador decidiu admitir liminarmente o pedido reconvencional deduzido pelos 2.º e 3.ª RR..
Porém, ponderou que uma parte do prédio que estes RR. pretendem ver reconhecido como seus proprietários está implementado no lote dos AA. e a outra faz parte de um outro lote de terreno, com o n.º 9, propriedade da 1.ª Ré, pelo que “não se vislumbra como possa a acção, se vier a ser julgada procedente produzir o seu efeito útil, sem que esteja definitivamente estabelecido o direito relativamente à 1.ª Ré, porquanto não é possível uma demolição parcial.” Assim, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, que os reconvintes não sanaram apesar da possibilidade que lhes foi concedida, foi julgada procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva e os AA. absolvidos da instância reconvencional.
Finalmente, o despacho saneador também decidiu julgar improcedente a excepção de coligação ilegal que os 2.º e 3.ª RR. haviam invocado na sua contestação.

É deste despacho que os 2.º e 3.ª RR. recorrem. Concluem como segue:
Coligação ilegal de Réus:
1. Os pedidos formulados pelos Autores contra os Réus (…) e mulher, (…), e a Herdade da (…) não são os mesmos.
2. As causas de pedir invocadas também são diferentes.
3. Não há prejudicialidade entre os pedidos.
4. A coligação de Réus é ilegal, porque desrespeita o artigo 36.º do C.P.C., o que determina que os Réus sejam absolvidos da instância se os Autores não optarem por um dos pedidos (artigo 33.º do C.P.C.);
Quanto ao pedido reconvencional:
5. Quer os Autores, quer os reconvintes pedem ao Tribunal o reconhecimento da propriedade de um imóvel;
6. Pelo facto de a construção, propriedade dos Réus, ocupar parte dos denominados lote 8 e lote 9, não tem de estar presentes nem na acção movida pelos Autores nem no pedido reconvencional deduzido pelos Réus, os proprietários dos Lotes 8 e 9, que aliás desconhecemos quem sejam.
7. Numa acção de reconhecimento de propriedade, não tem de estar todos os possíveis donos do lote de terreno (pois caso contrário, a acção teria de ser intentada contra incertos), mas só quem põe em causa o direito de outrem.
8. Só tem interesse legítimo em ser demandado quem pôs em causa a certeza do direito que se pretende obter.
9. Quem pôs em causa o direito dos Autores e pretende a definição pelo Tribunal foram os Autores e não a Herdade da (…).
10. Só aqueles Réus têm de ser demandados, sendo certo que numa acção de mera apreciação nunca se verifica uma situação de litisconsórcio necessário passivo.
11. O que se discute na acção intentada pelos Autores é a propriedade do solo ocupado no lote 8 pela construção dos Réus, nada tendo a ver com a propriedade do lote 9, cuja identidade do dono é controversa, pois que os Réus consideram seu parte do lote 9.
12. Foram violados por erro de interpretação os artigos 33.º e 36.º do Código de Processo Civil.

As respostas oferecidas pelos AA. e pela 1.ª Ré sustentam a manutenção do decidido.
Os 2.º e 3.ª RR. também deduziram recurso de despacho proferido nos autos, indeferindo um pedido de apensação de acções. Porém, esse recurso não foi admitido pela 1.ª instância, não tendo aqueles RR. reclamado desse despacho de não admissão, que assim se estabilizou.
Deste modo, nesta instância estão em apreciação, apenas, as questões de coligação ilegal de réus e de preterição de litisconsórcio necessário passivo quanto ao pedido reconvencional.

Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.
O relevo fáctico a ponderar na decisão é o que consta do relatório.

Aplicando o Direito.
Da coligação de réus
Argumentam os Recorrentes que diferentes são as causas de pedir e os pedidos formulados na petição inicial, e não existe prejudicialidade entre eles, pelo que a coligação de réus não preenche os requisitos do artigo 36.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Alberto dos Reis ensinava que na coligação combina-se a “pluralidade de litigantes com a cumulação de pedidos. Os pedidos são múltiplos, e por este lado a coligação assemelha-se à cumulação e distingue-se da simples pluralidade de litigantes; há mais do que um autor (coligação de autores), ou mais do que um réu (coligação de réus) ou simultaneamente mais do que um autor e mais do que um réu (coligação de autores e de réus), e por esta circunstância a coligação distingue-se da simples cumulação e assemelha-se à simples pluralidade de litigantes.”[1]
Por seu turno, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, comentando o artigo 36.º do actual Código de Processo Civil, ali se mantêm “os tipos de conexão material que, sendo os pedidos compatíveis, tornam admissível a coligação: mesma causa de pedir (exs.: o mesmo contrato, a mesma deliberação social); relação de dependência entre os pedidos (exs.: anulação do negócio de transmissão / nulidade da transmissão subsequente; validade de negócio incumprido / cumprimento da obrigação de garantia); identidade de factos essenciais integradores das causas de pedir (ex.: colisões de veículos em cadeia); mesmas normas legais ou cláusulas contratuais aplicáveis (exs.: várias vendas de bens defeituosos; idêntica cláusula de um contrato-tipo).”[2]
Face à norma do artigo 36.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, não é exigível que a causa de pedir seja a mesma e única. A causa de pedir pode ser diferente, se a procedência dos pedidos principais depender essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação das mesmas regras de direito ou de cláusulas de contratos perfeitamente análogas.
Analisando a petição inicial, verifica-se que os AA. argumentam que ambas as construções se encontram implantadas em dois lotes de terreno, um pertencente aos AA. e o outro pertencente à 1.ª Ré. Uma vez que os 2.º e 3.ª RR. afirmam a sua propriedade em relação a tais construções, a utilidade que os AA. pretendem retirar com a procedência dos pedidos é, não só, o reconhecimento do seu direito de propriedade, mas igualmente a demolição das construções, obra essa que, por não puder ser realizada parcialmente e apenas num dos lotes de terreno confrontantes, deverá ser realizada nos dois lotes e, segundo os AA., pela 1.ª Ré, quer porque se obrigou a isso, quer porque será ela a proprietária do lote confinante.
Nesta perspectiva, embora sejam diferentes as causas de pedir, a procedência dos pedidos depende essencialmente da apreciação dos mesmos factos.
E visto que nada obsta à coligação, nos termos do artigo 37.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – aos pedidos corresponde a mesma forma de processo, e não se vislumbra qualquer ofensa às regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia – bem procedeu a decisão recorrida ao admitir a coligação passiva.

Da preterição de litisconsórcio necessário passivo quanto ao pedido reconvencional
A decisão recorrida entendeu julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva e absolver os AA. da instância reconvencional, argumentando que o prédio que os 2.º e 3.ª RR. pretendem ver reconhecido como proprietários está implementado em parte no lote dos AA. e em parte no lote da 1.ª Ré, pelo que “não se vislumbra como possa a acção, se vier a ser julgada procedente produzir o seu efeito útil, sem que esteja definitivamente estabelecido o direito relativamente à 1.ª Ré, porquanto não é possível uma demolição parcial.”
Porém, na perspectiva destes RR. – ora Recorrentes – a 1.ª Ré não é proprietária de qualquer dos terrenos confinantes. Na perspectiva dos Recorrentes, são eles os proprietários do prédio urbano com a área de 532,28 m2, área coberta de 46,81 m2 e descoberta de 485,47 m2, edifício para habitação e logradouro, situado no (…), descrito sob o n.º (…), freguesia do (…), concelho de Grândola, e uma vez que são os AA. que discutem com eles a propriedade de parte das construções ali existentes, foi em relação a estes que deduziram o seu pedido reconvencional de reconhecimento da propriedade do dito prédio.
Ora, de acordo com o artigo 30.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Perfilha-se nesta norma a tese[3] segundo a qual, para o apuramento da legitimidade releva apenas o pedido e a causa de pedir, tal como configurada pelo autor. Na verdade, está em causa um mero pressuposto processual, irrelevando, para esse estrito efeito, a prova dos factos e a apreciação do mérito da causa.
Nesta perspectiva, afirmando os Recorrentes a sua propriedade, e negando em absoluto qualquer direito de propriedade da 1.ª Ré, e pretendendo apenas ver reconhecido esse direito no confronto com os AA., proprietários do prédio confinante, não eram obrigados a formular tal pedido também em relação à 1.ª Ré.
A decisão recorrida, para além de não justificar em que medida a discussão do direito de propriedade dos Recorrentes em relação ao prédio descrito sob o n.º (…) exigiria também a intervenção da 1.ª Ré, igualmente se equivoca quando afirma que o efeito útil da reconvenção também tem de ser “estabelecido o direito relativamente à 1.ª Ré, porquanto não é possível uma demolição parcial.”
Como é bom de ver, na reconvenção não está em causa qualquer pedido de demolição – esse é um dos pedidos formulados pelos AA.. O que os RR. pretendem, simplesmente, é o reconhecimento do seu direito de propriedade, em relação aos proprietários do terreno que com eles confina.
Em resumo, porque a relação controvertida, tal como foi configurada pelos Recorrentes na sua reconvenção, tinha como sujeitos passivos os AA., e não se vislumbrando qualquer norma que exigisse, também, a intervenção da 1.ª Ré nessa relação controvertida, para os fins do artigo 33.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, há que conceder provimento ao recurso, nesta parte.

Decisão.
Destarte, decide-se:
a) negar provimento ao recurso quanto à admissão da coligação passiva, nesta parte se confirmando a decisão recorrida;
b) conceder provimento ao recurso quanto à procedência da excepção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário passivo e consequente absolvição dos AA. da instância reconvencional, revogando-se nessa parte o despacho recorrido, julgando-se improcedente a dita excepção e determinando-se o regular prosseguimento da causa, para conhecimento da reconvenção.
Custas na proporção de ¼ pelos Recorrentes e ¾ pelos Recorridos.

Évora, 27 de Maio de 2021

Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

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[1] In Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 10.
[2] In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., pág. 84.
[3] A propósito da discussão clássica desta questão do direito processual civil, vide Lebre de Freitas, loc. cit., págs. 71-73, identificando os pontos essenciais das teses que foram defendidas, acerca desta questão, por Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães.