Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
413/21.4T9SSB.E2
Relator: MAFALDA SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: CRIME DE BURLA
CRIME DE DANO
MATERIAL OU DE RESULTADO
CRIME DE EXECUÇÃO VINCULADA
Data do Acordão: 09/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Refere o artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal que “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. A pena é agravada nas situações previstas no art. 218.º, do Código Penal, que tipifica a forma qualificada do crime.

No crime de burla o bem jurídico protegido é o património de terceiro, entendido este quer numa conceção jurídica, quer económica.

Estamos perante um crime de dano, material ou de resultado, que se consuma com a ocorrência de um efetivo prejuízo patrimonial, o qual tanto pode revestir a forma de diminuição patrimonial, aumento do passivo ou frustração de receitas legitimamente devidas.

É, por outro lado, um crime de execução vinculada, exigindo, para que se preencha o tipo objetivo, que alguém, induzindo em erro ou engano outrem, através de factos que astuciosamente provocou, determine esse outrem a praticar atos que lhe causem a si, ou a terceiro, prejuízo patrimonial.

Para que se esteja perante a um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efetiva da situação de erro em que se encontra a vítima. Ou seja, o estado de erro tem que derivar do processo astucioso empreendido pelo agente, isto é, da utilização, por este, de meios adequados a provocar astuciosamente um estado de erro ou engano na vítima.

Decisão Texto Integral: Acórdão deliberado em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
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I – RELATÓRIO

Em 9/01/2025, no Juízo de Instrução Criminal de … (J…), foi proferido despacho de não pronúncia dos arguidos AA e BB por não existirem indícios suficientes da prática pelos mesmos de um crime de burla qualificada previsto e punível pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

Esta decisão foi proferida após anulação, por este Tribunal, em 21/10/2024, do despacho de não pronúncia então proferido nos autos.

Discordando da decisão de não pronúncia, o assistente CC, interpôs recurso da mesma, pugnando pela pronúncia dos arguidos, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

«A) Vem o presente recurso interposto da Douta Decisão Instrutória proferida nos presentes autos, que determinou a não pronúncia dos Arguidos AA e BB, com fundamento na inexistência de indícios essenciais ao preenchimento do elemento subjetivo do tipo de ilícito criminal a que aludem os artigos 217.º, nº 1 e 218.º, n.º 1.º ambos do Código Penal - crime de burla qualificada.

B) Conforme resulta da Queixa apresentada pelo Assistente/Recorrente e também do Requerimento de Abertura de Instrução que apresentou, pelos Arguidos foi omitida a existência de reserva de propriedade constituída a favor do Banco …, sobre o veículo automóvel da marca … com a matrícula …, de modo propositado e com o fito de conduzir o Assistente/Recorrente à convicção errónea que tal veículo se encontrava livre de ónus e encargos, condição essencial à compra do mesmo (pelo Assistente/Recorrente à sociedade Arguida).

C) A convicção de que tal bem se encontrava livre de quaisquer ónus ou encargos, foi a condição essencial para que o Assistente/Recorrente se determinasse a celebrar o negócio e realizasse o pagamento imediato da quantia de € 17.900,00 (dezassete mil e novecentos euros) à sociedade Arguida.

D) Decorridos seis meses da data da celebração do negócio (30 de Julho de 2019), e após várias interpelações do Assistente/Recorrente, a sociedade Arguida, na pessoa do Arguido BB, entregou o Documento Único Automóvel àquele, acompanhado do Requerimento de Registo Automóvel (vulgarmente conhecida como declaração de venda) assinado, deles constando o registo da reserva de propriedade constituída a favor do Banco ….

E) O primeiro dos enganos astuciosos de que os Arguidos se socorreram, traduziu-se na informação atinente à inexistência de quaisquer ónus ou encargos constituídos sobre o veículo automóvel alvo do negócio (a vender pela sociedade Arguida ao Assistente/Recorrente), que a sociedade Arguida, na pessoa do seu legal representante, transmitiu ao Assistente, em conjunto com a omissão de que tal bem contava com reserva de propriedade constituída a favor do Banco. Conduta essa que visou – como não podia deixar de ser – induzir o Assistente/Recorrente em erro.

F) Acaso o Assistente/Recorrente houvesse tido conhecimento de que tal ónus impedia sobre o bem que pretendia adquirir, não teria aceitado prosseguir com o negócio.

G) E tanto assim foi, que apenas assim se concebe o hiato temporal decorrido e a necessidade de insistência do Assistente/Recorrente para que os Arguidos lhe fornecessem o Documento Único Automóvel do veículo e o Requerimento de Registo Automóvel, posto que destes resultava inequívoca a constituição do indicado ónus.

H) Os Arguidos, cientes que a existência da reserva da propriedade obstaria à celebração do negócio, agiram com habilidade e engano necessários a induzir em erro, e a determinar a vontade do Assistente com o propósito de obter um enriquecimento ilegítimo.

I) Atente-se, para tanto, nas declarações prestadas pelo Arguido BB, em sede de instrução (Sessão de 20.09.2023, Ficheiro: 20230920142117_3714978_2871782, minutos 00:03:42 a 00:05:36) referindo não “se recordar” se teria informado o Assistente/Recorrente da existência do ónus constituído sobre o veículo.

J) O que fez, como bem se vê, com o fito de não admitir o óbvio: que omitiu tal circunstância. Acaso assim não fosse, como poderia admitir por possível não haver informado o Assistente/Recorrente do motivo subjacente à necessidade de 60 (sessenta) dias para a entrega dos documentos?!

K) Admissão essa que, evidentemente, resulta, desde logo, da circunstância do Arguido BB não haver declarado – de forma inequívoca e como se impunha – haver transmitido tal informação ao Assistente/Recorrente. Veja-se que é o próprio Arguido BB que admite, em sede das declarações prestadas em Instrução, que à data do negócio bem sabia que a existência daquela reserva de propriedade impedia o Assistente/Recorrente de dispor da propriedade do bem que lhe adquiria e cujo preço lhe entregou (sessão de 20.09.2023, Ficheiro: 20230920142117_3714978_2871782, minutos 00:05:37).

L) A prática costumeira adoptada no contexto da atividade comercial exercida pelos Arguidos não se coaduna com a omissão de existência de reservas de propriedade, penhoras ou outros ónus ou encargos, como meio de realização do negócio, e consequente recebimento do preço, de bens que validamente não podem ser transmitidos.

M) Os problemas na obtenção de financiamentos bancários e dificuldades económicas dos Arguidos, traduzidos à colação pelo Arguido BB, enquanto putativa causa do desenrolar dos acontecimentos, não podiam ser fundamento bastante para a primitiva omissão, que viciou – propositadamente – a vontade de contratar do Assistente/Recorrente. Desde logo, em virtude de ser factualidade verificada não apenas no decurso do negócio e/ou já depois de pago o preço, mas antes da celebração do mesmo (Sessão de 20.09.2023, Ficheiro: 20230920142117_3714978_2871782, minutos 00:01:54)

N) Havendo de ponderar a prova documental junta aos autos em sede de instrução, designadamente a informação prestada por BANCO …, e que, SMO, parece o Tribunal “a quo” haver ignorado

O) Da qual resulta, de forma inequívoca, que em 29.08.2019, ou seja, um mês após a data da concretização do negócio com o Assistente/Recorrente, os Arguidos já se encontravam em incumprimento com os pagamentos devidos pelo contrato de crédito n.º …, celebrado com aquele mesmo banco em 11.07.2018 para a aquisição de viaturas automóveis para a revenda, dentre elas, a que “vendeu” ao Assistente/Recorrente.

P) Assim, embora tendo recebido o preço pago pelo Assistente/Recorrente em 30.07.2019, os Arguidos não cumpriram com a obrigação decorrente do contrato celebrado com BANCO …. que, não tendo sido pago pelo Arguidos, manteve a reserva de propriedade constituída sobre o veículo.

Q) Como resulta da referenciada prova documental, apenas em 29.08.2019 vieram os Arguidos a solicitar junto daquela instituição o pagamento prestacional, com termo dois anos e meio depois.

R) Extraindo-se das interpelações dirigidas por aquele Banco aos Arguidos, datadas de 22.09.2020, das quais resulta a data de 29.08.2019 como data do vencimento do crédito por incumprimento, incluindo no que concerne ao veículo automóvel “vendido” ao Assistente/Recorrente, mais sendo contabilizados juros de mora no montante de € 1.325,00 (mil, trezentos e vinte e cinco euros), referentes a mais de um ano de incumprimento.

S) É, portanto, evidente que se acaso houvessem os Arguidos pretendido cumprir com as obrigações decorrentes do crédito bancário celebrado com o Banco …, com recurso ao valor pago pelo Assistente/Recorrente, poderiam tê-lo feito (!) mas não o fizeram.

T) O valor em incumprimento junto do BANCO …, à data, cifrava-se na quantia de € 12.800,00 (doze mil e oitocentos euros), conforme resulta da prova documental produzida em Instrução, sendo inferior ao valor pago pelo Assistente/Recorrente, no montante de € 17.900,00 (dezassete mil e novecentos euros).

U) Em detrimento da versão apresentada pelo Arguido BB, resultou indiciariamente demonstrado, em sede de Instrução que:

- Aquando da celebração do negócio entre a sociedade Arguida e o Assistente/Recorrente, o Arguido BB não informou aquele que sobre o veículo automóvel objecto do negócio impendia Reserva de Propriedade constituída a favor de BANCO ….,

- Que tal Reserva constituía garantia do pagamento da quantia que pelo BANCO …. havia sido mutuada à sociedade Arguida, para aquisição daquele mesmo veículos;

- Que tal circunstância impedia que o Assistente/Recorrente registasse a seu favor e se constituísse, sem limitações, como proprietário do veículo, mesmo após o pagamento do preço devido;

- À data da celebração do contrato (30.07.2019), a sociedade Arguida já se encontrava em incumprimento perante o BANCO ….;

- Que tal incumprimento remontava a, pelo menos, 10.07.2019, relativamente a 02 (dois) veículos, um dos quais o visado no negócio celebrado com o Assistente/Recorrente;

- Os Arguidos não fizeram uso do preço pago pelo Assistente/Recorrente para a pronta regularização da obrigação constituída junto do BANCO … e cancelamento da Reserva de Propriedade que sobre o veículo transacionado impendida, nem mesmo o fizeram após citação em Acção Executiva destinada à cobrança (movida por BANCO …)

- Tal regularização permanece sem ter tido lugar até à presente data;

V) Sobretudo, e tal como antes se disse, em virtude da prova documental produzida em sede de Instrução, mas que, salvo o devido respeito, parece o Tribunal “a quo” haver simplesmente ignorado.

W) E de tal factualidade, demonstrada indiciariamente de modo que se entende ser manifestamente suficiente, não poderia resultar o entendimento sufragado pelo Tribunal “a quo”. Antes pelo contrário.

X) Pois que a mesma contraria, desde logo, as explicações apresentadas pelo Arguido BB. Em concreto, aquelas nas quais atento o Tribunal “a quo” e que resultam identificadas na Decisão recorrida:

“O arguido explicitou, com detalhe, as dificuldades do negócio que vieram a ser exponenciadas por inspeção da autoridade tributária (a já decorrer aquando do negócio em apreço) e pelas obrigações que entretanto daí decorreram (já posteriores a tal negócio).”

Y) Ou seja, o Mm. Juiz “a quo”, ao dizer que “Decorre da experiência comum – ao contrário do suscitado pelo assistente – que muitos negócios (de muitas diversas naturezas e também na venda de veículos automóveis) passam por vicissitudes ou dificuldades de diversa índole, que tem a ver, nomeadamente, com flutuações de mercado e gestão das múltiplas vicissitudes próprias mas também inesperadas da atividade.”, entendeu que a actuação dos Arguidos se coaduna com os riscos inerentes ao exercício da sua atividade. O que, claramente, não é o caso dos autos.

Z) A actuação concreta e que se indiciariamente se demonstrou – como antes se disse – evidencia o inverso. Evidencia a astucia com que agiram e o propósito: levar o Assistente/Recorrente a, sob engano, celebrar o negócio de aquisição do veículo, pagando o preço, no desconhecimento de que tal veículo se encontrava onerando, fazendo os Arguidos sua a quantia paga (porque não entregue para a regularização de quaisquer obrigações), assim obtendo evidente vantagem patrimonial indevida, à custa do prejuízo do Assistente/Recorrente.

AA) Os Arguidos agiram com dolo, cientes que a sua conduta era adequada a criar a convicção no Assistente/Recorrente que o negócio de compra e venda da viatura automóvel era efetivo, e que pelo pagamento do preço passaria a ser de imediato o legítimo proprietário do bem.

BB) Se os Arguidos não tivessem a intenção de obter um benefício patrimonial ilegítimo, não teriam usado subterfúgios para ocultar a existência da Reserva de Propriedade antes da realização do negócio.

CC) Os artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1 do Código Penal dispõem que: “quem por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.” E “Quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.”

DD) Nos termos do art.286.º, n.º1, do CPP “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

EE) Dispondo o art.308.º, n.º 1, do CPP que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

FF) Por expressa remissão do n.º 2 do art.308.º - «É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto no artigo 283.º, n.ºs 2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.». -, para o n.º 2 do art.283.º, este respeitante ao despacho de acusação, ambos do Código de Processo Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”.

GG) Tendo presente tudo antes se disse, em especial no que respeita à prova documental produzida e carreada para os autos em sede de Instrução, forçoso será concluir pela suficiência de indícios demonstrada, havendo de considerar como razoavelmente provável a futura condenação dos Arguidos/Recorridos em sede de julgamento penal pelos factos que lhe são imputados no Requerimento de Abertura de Instrução.

Destarte,

HH) Deve a Decisão Instrutória recorrida, de Não Pronúncia, proferida pelo Tribunal “a quo”, ser revogada e substituída por outra que determine a pronúncia dos Arguidos nos precisos e exactos termos indicados no Requerimento de Abertura de Instrução, pela prática do crime de Burla Qualificada, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 217º e n.º 1 do artigo 218.º do CP, a que se refere o Requerimento de Abertura de Instrução.»

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O recurso foi admitido a subir imediatamente e nos próprios autos, tendo o mesmo efeito meramente devolutivo.

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O Ministério Público, junto do Tribunal de primeira instância, respondeu ao recurso interposto pelo assistente, pugnando pela respetiva improcedência e consequente manutenção da decisão proferida, concluindo:

« l. Interpôs o assistente CC recurso da douta decisão instrutória proferida a fls. 375 v.º-376 v.º dos autos supra epigrafados, que determinou (ao abrigo do disposto no art.º 308.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal) a não pronúncia dos arguidos AA e BB pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos art.ºs 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do Código Penal, que lhes havia sido imputado pelo primeiro no requerimento de abertura de instrução de fls. 140-155 (159-174) dos mesmos autos; pugna o ora recorrente, a final, no sentido de dever aquela decisão ser revogada e, consequentemente, substituída por outra que pronuncie os mencionados arguidos pelo cometimento de semelhante ilícito criminal;

2. Ora em causa no presente recurso estará aquilatar da existência nos autos de indícios suficientes da prática dos aludidos factos consubstanciadores de tal crime de burla qualificada, pelo qual devessem os arguidos AA e BB ter sido pronunciados, sendo que, refira-se, desde já, afigura-se-nos ser de sufragar in totum o entendimento perfilhado pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal;

3. Apreciando semelhante questão, havíamos tomado já posição no sentido ora sufragado aquando da prolação do despacho de encerramento do inquérito e, posteriormente, na fase de instrução, a saber, em sede de debate instrutório, sendo que logo naquele despacho enfatizámos que «foi o Assistente que se deslocou ao Stand para adquirir a viatura melhor identificada nos autos, que foi acordado e pago o preço de € 17.900,00, que o Assistente tinha conhecimento de que não era possível proceder ao registo imediato em seu nome e que a sociedade vendedora, através do seu legal representante, assumiu a resolução das "questões" pendentes que obstavam ao registo da propriedade da viatura, de imediato, em nome Assistente. Todavia, na versão do Assistente, o que lhe foi transmitido foi que apenas se encontrava pendente a questão da legalização da viatura por ser importada, enquanto que na versão apresentada pelo legal representante da sociedade AA o Assistente teria conhecimento, desde o início, da existência da reserva de propriedade em beneficio da entidade financeira. Mais referiu o arguido que era a forma de trabalhar da sociedade e que apenas não resolveu a situação mercê das dificuldades financeiras que enfrentou, o que acaba por encontrar arrimo, quer nos e-mails trocados com a entidade financeira, quer no acordo de pagamento em prestações celebrado quer, ainda, das pesquisas efectuadas nas bases de dados da Conservatória do Registo Automóvel por referência a outras viaturas vendidas pela sociedade arguida. Com efeito, é possível verificar o registo de propriedade em nome da sociedade, o registo da reserva em nome da entidade financeira e, após, o registo em nome do comprador»;

4. Efectivamente, sendo certo que «[t]udo parece indicar que a situação da viatura do Assistente apenas não foi resolvida em virtude das dificuldades financeiras da empresa e que ficará resolvida no dia 20/02/2023, sendo cumprido o plano firmado com o Banco» e que «[o] próprio Assistente acaba por dizer que na sua opinião o BB não resolveu a situação porque não conseguia, por razões económicas», concluímos então, naquele despacho de arquivamento, no sentido de que «quedamo-nos perante um estado de dúvida inultrapassável, primeiro, relativamente à existência de um erro, de um engano, astuciosamente provocado pelo legal representante da sociedade vendedora que conduzisse o Assistente à realização do negócio e, depois, relativamente à intenção de obter um enriquecimento ilegítimo, sendo certo que em caso de dúvida a mesma sempre será decidida em beneficio do arguido»;

5. Ora, sem prejuízo de não ter o arguido BB logrado confirmar, em sede de instrução, que, como havia referido quando interrogado durante o inquérito, «pelo depoente foi informado que o veículo se encontrava com a reserva de propriedade no Banco …, pois para a empresa adquirir os veículos, celebrava esses contratos com a financiadora, chamando contratos de crédito de Stok [f]oi ainda dada a informação ao lesado, que essa mesma reserva seria resolvida num prazo máximo de três meses» (sendo que cerca de um ano se passou desde a prestação dessas anteriores declarações) e de não ter sido possível "resolver" entretanto «a situação da viatura do Assistente», certo é que foi na fase de instrução junta informação do Banco …. (vide expediente de fls. 202-255 v.º) que temos como muito relevante para o cabal apuramento da verdade;

6. Informou o Banco …., no mais, que, tendo celebrado com a arguida AA um acordo de colaboração para financiamento de veículos automóveis e motociclos, foi em 11.07.2018 disponibilizada uma linha de financiamento concedendo àquela sociedade crédito no valor de € 100.000,00, que possibilitou a aquisição de «muitas (. . .) viaturas» que «foram pagas», e em 07.09.2020 registada "mora no pagamento por conta do sobredito contrato" com reporte aos veículos com as matrículas … (sendo este o do assistente CC), … e …, sucedendo que, após vicissitudes várias, «o valor actualmente em dívida cifra-se em 6.013,05€»;

7. Mais tendo então sido esclarecido pelo Banco …. que relativamente «às reservas de propriedade, registadas após como forma de garantia do bom cumprimento contratual, e a pedido da sociedade aqui Arguida e com a autorização do Banco, dado que os valores pagos no âmbito do acordo celebrado eram já avultados, foram libertadas, em momentos distintos, as reservas de propriedade que impendiam sobre as viaturas … (Dez. 2020) e … (Nov. 2021)» e que «to] mesmo não sucedeu com o veículo …, porquanto, analisado o risco do pedido foi possível enquadrar que a viatura …, com um valor Eurotax de 11.400,00€, era passível de garantir o montante ainda em dívida, motivo pelo qual o Banco recusou cancelar a reserva»;

8. Sendo certo que, conforme doutamente salientado pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, «[o] arguido explicitou, com detalhe, as dificuldades do negócio que vieram a ser exponenciadas por inspeção da autoridade tributária (a já decorrer aquando do negócio em apreço) e pelas obrigações que entretanto daí decorreram (já posteriores a tal negócio)» e que os «esclarecimentos» do Banco …. «acabam por reforçar (. . .) o suscitado pelo arguido em sede de declarações: as dificuldades que tinha e que acabaram por se tornarem insustentáveis sem incumprimento das suas obrigações», declarou o próprio assistente CC em sede de inquérito, no mesmo sentido, que «julga que o BB não resolveu a situação porque não conseguia, por razões económicas»;

9. Ora, tendo o assistente CC contraposto igualmente o argumento de que, «sabendo o arguido, à data da celebração do negócio, da inspeção da autoridade tributária e do incumprimento que se iniciara cerca de um mês antes do negócio, não poderia o arguido deixar de saber estar aquele votado às dificuldades e prejuízos que depois se materializaram», também nessa parte acompanhamos, antes, e ao invés, o entendimento explanado na douta decisão instrutória aqui recorrida de que «[p]oder-se-á, mais razoavelmente, imputar ao arguido pouco cuidado (ou mesmo negligência) na gestão das expectativas e dos legítimos interesses dos seus clientes. Mas tal nunca será suficiente para preencher parte essencial do elemento subjetivo do tipo de ilícito criminal imputado aos arguidos: a "astúcia". Que não se vislumbra, de forma alguma, conforme supra explicitado, no comportamento dos arguidos»;

10. Efectivamente, conforme, a título meramente exemplificativo, se refere, de modo lapidar, no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18.05.2022, Processo n.º 613/15.6T9SJM.Pl, Relatora: Liliana de Páris Dias, acessível in www.dgsi.pt: «V — Em sede de imputação objetiva do evento à conduta do agente o crime de burla comporta, segundo alguns autores, um "triplo nexo de causalidade" ou, segundo outros, pelo menos, um "duplo nexo de causalidade" entre a astúcia e o aparecimento, na vítima, de um estado de erro ou engano, e entre esse estado de erro ou engano e a prática, pela vítima, de atos lesivos do património. VI - Relativamente ao tipo subjetivo, o crime de burla caracteriza-se por o agente atuar com dolo, a que acresce um elemento subjetivo especial — o chamado "dolo específico". Assim, o agente deverá atuar com conhecimento e vontade de realização da globalidade dos elementos do tipo objetivo e, ainda, com a específica intenção de obter para si, ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo»;

11. Sendo, desde logo, certo que sempre terá o arguido BB, agindo em representação da arguida AA, diligenciado ou, pelo menos, procurado diligenciar no sentido de, em conformidade com o seu desígnio inicial, proceder ao(s) pagamento(s) devido(s) com vista ao cancelamento da reserva de propriedade que impendia sobre o veículo com a matrícula …, o qual sempre o recorrente CC teve na sua posse, não nos resta senão concluir, como já se havia feito em sede de inquérito, no sentido de que «não caberá ao direito penal dirimir» os prejuízos decorrentes do facto de não poder o mesmo assistente «dispor da viatura que adquiriu nos termos que entendesse», devendo este último sujeito processual, desse modo, «recorrer aos meios civis adequados» — tendo aqui pleno cabimento explicitar que segundo o princípio da intervenção mínima, o Estado de Direito só deve utilizar-se da lei penal como último recurso (ultima ratio) de resolução de questões, ou seja, havendo extrema necessidade ou quando estão envolvidos bens jurídicos mais importantes;

12. Sempre se deverá entender não ser in casu, de todo, bastante a prova do cometimento dos supra aludidos factos consubstanciadores do crime de burla qualificada imputado aos arguidos AA e BB, sucedendo, assim, que, mostrando-se esse ilícito criminal, de modo manifesto, insuficientemente indiciado nos autos, é de sufragar semelhante juízo indiciário do Meritíssimo Juiz a quo subjacente à decisão de, consequentemente, não pronunciar em conformidade tais sujeitos processuais;

13. Como refere o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.10.2015, Processo n. 0 202/13.0GAVLC.Pl, Relator: Neto de Moura (vide o site http://www.pgdlisboa.pt/, em anotação ao art.º 308.º do Código de Processo Penal), indícios suficientes para submissão do arguido a julgamento devem ser particularmente qualificados, permitindo concluir que existe uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento».

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Os arguidos não responderam ao recurso interposto pelo assistente.

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Nesta Relação, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso na medida em que, apenas ressalta dos autos dificuldades na concretização do negócio e, já não, a existência de erro ou astúcia de que o arguido tenha lançado mão para levar o assistente à realização daquele.

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Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Cód. de Processo Penal.

A arguida AA, respondeu ao parecer, que corrobora, pugnando pela manutenção da decisão.

Também o assistente respondeu ao parecer, reiterando as razões já expostas no recurso, pelas quais sustenta o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime de burla.

Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.

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II. QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância (artigos 379.º, 403.º, 410.º e 412.º, n.º 1, do Cód. Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (AUJ de 19/10/1995, D.R. 28/12/1995) pelo que no presente caso cumpre apreciar e decidir se se mostram reunidos nos autos indícios suficientes da prática pelos arguidos do crime de burla qualificada.

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III. FUNDAMENTAÇÃO

Decisão recorrida:

«CC, assistente, notificado do despacho de arquivamento proferido a folhas 128 e seguintes, veio requerer a abertura de instrução nos termos e com os fundamentos constantes do requerimento de folhas 159 seguintes, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

O assistente veio, fundamentalmente e em síntese, suscitar a discordância com a conclusão do Ministério Público da inexistência de suficientes indícios da prática pelo arguido de ilícito de natureza criminal por terem os arguidos garantido “ao Assistente que o veículo seria vendido livre de quaisquer ónus ou encargos”, o que terá constituído “condição essencial do negócio” (sic). Conclui o assistente ter ocorrido a existência de um engano astuciosamente provocado e, assim, conjugado com os demais requisitos do tipo igualmente verificados, terem os arguidos praticado um crime de um crime de burla qualificada previsto e punível nos termos do artigo pelos artigos 217.º n.º 1 e 218 n.º 1, ambos do Código Penal.

O assistente requereu a audição do arguido BB e do assistente, o que foi deferido e concretizado.

Foi requerida pelo assistente, na sequências das diligências supra mencionadas, a solicitação ao Banco … a prestações das informações elencadas na ata de folhas 199 e seguintes, o que — conforme a mesma ata — foi deferido.

O banco respondeu ao solicitado.

Realizou-se debate instrutório.

Cumpre apreciar.

Da FACTUALIDADE

Expurgadas as redundâncias, considerações, conceitos de direito e conclusões constantes do requerimento de abertura de instrução, cumpre, da conjugação dos atos de instrução realizados nesta sede com os elementos probatórios resultantes do inquérito, dar como suficientemente indiciados os factos elencados nos pontos 1 a 5, 8 a 17 e 19 do artigo 60.º do requerimento de abertura de instrução.

Não resultaram indiciados quaisquer outros factos relevantes para a presente decisão, nomeadamente os elencados nos pontos 6, 7 e 18 do artigo 60.º requerimento de abertura de instrução.

Da CONVICÇÃO

Os factos dados como indiciariamente provados são os que, no contexto da prova produzida em sede de inquérito e nesta própria de instrução, se têm como pacíficos.

Com efeito, as declarações prestadas pelo arguido BB e assistente são fundamentalmente coincidentes sobre a forma como o negócio em questão foi realizado — que não se distingue, sublinha-se, dos comuns e habitualmente realizados nos mesmos contextos e realidades socioeconómicas.

Melhor concretizando.

Arguido e assistente esclareceram — ambos de forma aparentemente convicta e convincente, sem quaisquer subterfúgios às perguntas ou sem disfarçarem as naturais dúvidas sobre as concretas perguntas entre ambos encetadas aquando da celebração da venda — ter o negócio sido acordado e concretizado sem qualquer especial menção — ou perguntas — referentes a reservas de propriedade, dificuldades ou vicissitudes que pudessem, de alguma forma, obstaculizar àquele.

O arguido explicitou, com detalhe, as dificuldades do negócio que vieram a ser exponenciadas por inspeção da autoridade tributária (a já decorrer aquando do negócio em apreço) e pelas obrigações que entretanto daí decorreram (já posteriores a tal negócio).

O assistente requereu a prestações de esclarecimentos ao Banco …, o que — como supra se adiantou — foi deferido. Tais informações acabam por reforçar — não integralmente mas no que nos se afigura mais importar — o suscitado pelo arguido em sede de declarações: as dificuldades que tinha e que acabaram por se tornarem insustentáveis sem incumprimento das suas obrigações.

Alegou o assistente — já em sede de debate instrutório — que, sabendo o arguido, à data da celebração do negócio, da inspeção da autoridade tributária e do incumprimento que se iniciara cerca de um mês antes do negócio, não poderia o arguido deixar de saber estar aquele votado às dificuldades e prejuízos que depois se materializaram.

Discordamos.

Decorre da experiência comum — ao contrário do suscitado pelo assistente — que muitos negócios (de muitas diversas naturezas e também na venda de veículos automóveis) passam por vicissitudes ou dificuldades de diversa índole, que tem a ver, nomeadamente, com flutuações de mercado e gestão das múltiplas vicissitudes próprias mas também inesperadas da atividade. Tem-se que nenhuma empresa ou sociedade terá por definitivo ou irreversível a sua fortuna depois de um incumprimento de um ou mesmo alguns poucos meses, porquanto poderão (como regularmente acontece) melhores ventos (e competências) soprarem e consequente inversão de tendências e fortuna.

Poder-se-á, mais razoavelmente, imputar ao arguido pouco cuidado (ou mesmo negligência) na gestão das expectativas e dos legítimos interesses dos seus clientes. Mas tal nunca será suficiente para preencher parte essencial do elemento subjetivo do tipo de ilícito criminal imputado aos arguidos: a “astúcia”. Que não se vislumbra, de forma alguma, conforme supra explicitado, no comportamento dos arguidos.

Por todo o exposto, impõe-se a não pronúncia dos arguidos pelos factos supra elencados e como autores materiais do ilícito que lhes é imputado e o oportuno arquivamento dos autos.»

Do RAI apresentado pelo assistente, após arquivamento por parte do M.º P.º, vem imputada, para além do mais, a prática dos seguintes factos, relativamente aos quais, por remissão, foi proferido juízo de suficiente indiciação:

- A sociedade AA, com sede na Rua …, …, tem por objeto a atividade de compra e venda de veículos automóveis, com fins lucrativos.

- BB, é sócio gerente da Arguida sociedade AA, atuando em representação da mesma junto do Assistente.

- No dia 30 do mês de Julho de 2019, o Assistente CC dirigiu-se ao Stand da referida sociedade e, após ver vários veículos automóveis que aí se encontravam em exposição para venda, interessou-se pelo veículo automóvel ligeiro, de marca …, modelo …, matricula …, que também aí se encontrava exposto para venda.

- O Assistente CC, decidiu encetar o contacto com o representante da sociedade no sentido de concretizar o negócio, confiando que se tratava de uma venda efectiva e legítima.

- O vendedor da sociedade informou o Assistente do preço do referido veículo e, bem assim, e que tudo estava bem com a documentação do veículo.

- A Arguida, na pessoa do Arguido BB, comprometeu-se a tratar da documentação do veículo automóvel ligeiro, de marca …, modelo …, matrícula … e da transferência da sua propriedade para o Assistente, no prazo de 06 (seis) meses, em virtude do veículo ter sido importado.

- Nesse mesmo dia 30.07.2019, a Arguida AA emitiu a declaração de circulação, que entregue pelo Arguido BB ao Assistente para este poder fazer uso do veículo, durante o período da legalização do mesmo.

- Decorridos seis meses sobre o negócio de venda do veículo, e só após várias insistências do Assistente na pessoa do Arguido BB, foi-lhe entregue, por este, o DUA e a declaração de venda assinada por si na qualidade de gerente, com o reconhecimento da assinatura.

- Verificou, então, o Assistente que existia uma reserva de propriedade averbada ao DUA, a favor do Banco …, da qual não fora informado pelos Arguidos.

- Munido dessa informação, o Assistente contactou de imediato a Arguida AA na pessoa do seu gerente o Arguido BB e solicitou que procedesse ao cancelamento da reserva de propriedade, a fim de poder efectuar o registo do veículo em seu nome.

- Face ao que, os Arguidos se desculpabilizaram, alegando que iriam resolver o assunto rapidamente, o que não fizeram.

- Porquanto, à data, a Arguida AA, por intermédio do seu legal representante, o Arguido BB, já havia apresentado uma proposta de pagamento faseado da dívida ao Banco …, mais concretamente em 29.08.2019, dívida que se comprometeu a pagar até 20.02.2023, num prazo superior a 02 (dois) anos, sem disso darem conhecimento ao Assistente.

- Porém, apesar do Assistente ter interpelado, por inúmeras vezes a Arguida AA na pessoa do Arguido BB, para resolver a situação, dado necessitar de usar o veículo, tal, nunca sucedeu.

-O Assistente insistiu junto dos Arguidos, por diversas vezes para que fosse resolvida a situação ou lhe fosse devolvido o valor entregue por si, ou, ainda, em alternativa, que fosse substituído o veículo por outro veículo idêntico, o que os Arguidos recusaram, apesar de o poderem fazer e de saberem que o Assistente se encontrava numa situação difícil, privado das suas economias e do uso do veículo que, supostamente havia comprado.

- Os Arguidos sabiam que a situação não iria ser resolvida, pelo que deixaram de contactar com o Assistente, de lhe atender as chamadas telefónicas e de responder às suas mensagens e, assim, de lhe dar qualquer informação sobre o assunto, até ao presente.

- O Assistente, ao entregar aquele valor aos Arguidos nas condições descritas, sofreu um prejuízo patrimonial nesse mesmo valor de € 17.900,00 (dezassete mil e novecentos euros) do qual ainda hoje se encontra privado, sendo que, igualmente se encontra privado do uso do veículo, o qual também não pode registar e que desvaloriza dia para dia.

E considerou-se como não suficientemente indiciado que:

- O Arguido BB garantiu ao Assistente que o veículo lhe seria vendido livre de quaisquer ônus ou encargos.

- Situação que constituiu a condição essencial do negócio que levou o Assistente a decidir adquirir o veículo em causa, pelo preço de € 17.900,00 (dezassete mil e novecentos euros), que pagou de imediato.

- Ao agir da forma descrita, planeada e astuciosa, os Arguidos AA e BB induziram conscientemente em erro o Assistente fazendo-o acreditar, que mediante a entrega do montante € 17.900,00 (dezassete mil e novecentos euros), equivalente ao preço do veículo, estava a concretizar um negócio sério e efetivo, por se tratar de uma empresa e com aquele objeto específico de compra e venda de automóveis.

Da (in)suficiência indiciária:

A instrução é uma fase processual autónoma, facultativa, que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286.º, n.º 1 do Cód. de Processo Penal).

A respetiva direção compete a um juiz de instrução (art. 288.º, n.º 1 do mesmo diploma legal), diverso do juiz de julgamento.

Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia” (art. 308.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal).

Haverá, assim, lugar à prolação de despacho de não pronúncia quando os indícios se revelarem insuficientes ou quando se conheçam de nulidades ou outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da acusa.

Para sabermos quando os indícios da prática de um crime se revelam suficientes, há que convocar o n.º 2 do artigo 283.º do Cód. Processo Penal, que estatuí que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Acolheu-se, aqui, a posição doutrinária «há muito estabilizada»1 segundo a qual os indícios são suficientes para acusar ou pronunciar alguém sempre que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição. Neste sentido, FIGUEIREDO DIAS2 refere que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição. Tem razão Castanheira NEVES quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a «mesma exigência de ´verdade´ requerida pelo julgamento final – só que a instrução (…) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação».

Critério da “possibilidade razoável” também seguido pela jurisprudência, como podemos ler no Acórdão do STJ de 8.10.2008, onde se refere, «No juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, não se exige a prova, entendida esta como sinónimo da demonstração da existência do crime, bastam indícios da ocorrência de um crime, donde se possa formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.

Possibilidade razoável essa que se baseia num juízo de probabilidade, uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha.

Pretende-se com isto acentuar que, no termo da instrução, compete ao juiz aferir, num juízo de indiciação é certo, mas ainda assim, e desde logo, objectivado e filtrado pela valoração crítica dos dados probatórios até então recolhidos, se se justifica que o arguido seja submetido a julgamento.

Concluindo em sentido negativo, profere decisão instrutória de não pronúncia; esta, porque não incide sobre o mérito da causa, configura uma decisão estritamente processual ou adjectiva, no sentido que declara não estarem reunidos os pressupostos para prosseguir para a fase seguinte, a do julgamento» (sublinhados nossos).

E também no Acórdão do STJ de 16.06.20053, onde se refere que «a simples sujeição de alguém julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame.

Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art.º 3.º daquela Declaração e 27.º da Constituição da República).

E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição (...)».

Assim, os indícios serão suficientes quando, das diligências efetuadas durante o inquérito e instrução, resultarem vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e que este é imputável ao arguido4.

“A instrução e inquérito devem pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação”5, funcionando a suficiência indiciária «como garantia de que o cidadão não será sujeito a julgamento por mero capricho do titular da ação penal; a lei não se basta, porém, com um mero juízo subjetivo, mas antes exige um juízo objetivo fundamentado nas provas dos autos»6.

E, seguindo também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15/11/20117 ,“Como sustenta Carlos Adérito Teixeira, no conceito de indícios suficientes “liga-se o referente retrospectivo da prova indiciária coligida ao referente prospectivo da condenação, no ponto de convergência da “possibilidade razoável desta, por força daqueles indícios e não de outros - Indícios suficientes: parâmetros de racionalidade e instância de legitimação” (…) Revista do CEJ, 2º semestre 2004, nº 1, pag. 189.

Assim, os indícios qualificam-se de suficientes quando justificam a realização de um julgamento; tal ocorre quando a possibilidade de condenação, em função dos indícios, for razoável.

No que concerne à dedução de acusação ou de pronúncia, constitui uma garantia fundamental de defesa, manifestação do princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado, que ninguém seja submetido a julgamento penal senão havendo indícios suficientes de que praticou um crime. E o conteúdo normativo a conferir a esse conceito de indícios suficientes não pode alhear-se do mencionado princípio da presunção de inocência.

No desenvolvimento deste entendimento, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 439/2002, de 23 de Outubro, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, considerou que (…) a interpretação normativa dos artigos citados [286º nº 1, 298º e 308º nº1, do CPP] que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32º nº 2, da Constituição.

Face ao que, o juízo sobre a suficiência dos indícios, no contexto probatório em que se afirma, deverá passar pela fasquia da probabilidade elevada ou particularmente qualificada, correspondente à formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de condenação, que será aquela que, num juízo de prognose, manifestar a potencialidade de vir a ultrapassar a barreira do in dubio pro reo na fase do julgamento.

Em todo o caso, o referente da condenação respeita ao crime que é imputado e em relação ao qual o juízo de indiciação suficiente se reporta.”

Importa, assim, ponderar se, em face dos indícios existentes e recolhidos nos autos, é altamente provável a condenação dos arguidos pela prática do crime imputado pelo assistente no requerimento de abertura de instrução.

Defende o assistente que a conduta dos arguidos preenche o crime de burla qualificada p. p. nos arts. 217.º e 218.º, do Código Penal.

Debruçando-nos sobre o tipo legal imputado, refere o artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal que “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. A pena é agravada nas situações previstas no art. 218.º, do Código Penal, que tipifica a forma qualificada do crime.

O bem jurídico protegido é o património de terceiro, entendido este quer numa conceção jurídica, quer económica.

Estamos perante um crime de dano, material ou de resultado, que se consuma com a ocorrência de um efetivo prejuízo patrimonial, o qual tanto pode revestir a forma de diminuição patrimonial, aumento do passivo ou frustração de receitas legitimamente devidas.

É, por outro lado, um crime de execução vinculada, exigindo, para que se preencha o tipo objetivo, que alguém, induzindo em erro ou engano outrem, através de factos que astuciosamente provocou, determine esse outrem a praticar atos que lhe causem a si, ou a terceiro, prejuízo patrimonial.

Para que se esteja perante a um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra a vítima8. Ou seja, o estado de erro tem que derivar do processo astucioso empreendido pelo agente, isto é, da utilização, por este, de meios adequados a provocar astuciosamente um estado de erro ou engano na vítima.

Dificuldades se colocam para integrar o conceito de “astúcia”, com a definição da atuação necessária para o preenchimento do ilícito.

Vulgarmente, podemos definir astúcia como a habilidade para o mal, a sagacidade, a habilidade para enganar, a subtileza para defraudar, o ardil, a intrujice, o estratagema, o embuste, a maquinação. Para que haja “astúcia” não basta a mera declaração desconforme com a verdade, a simples mentira do agente, antes se exige “...uma actuação engenhosa da parte do agente do crime, algo ao nível do estratagema ardiloso, da encenação orientada a ludibriar” 9.

Menos exigente, refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE10 que a astúcia «consiste no aproveitamento de uma vantagem cognitiva do agente sobre o burlado, que lhe permite manipular a vontade do burlado», vantagem esta que se presume, em particular, em profissionais de ramos especializados de comércio, com grau de especialização inalcançável para o cidadão médio.

O preenchimento típico carece, ainda, duma relação causal entre a astúcia empregue pelo agente e o erro ou engano em que a vítima é induzida.

Impõe-se que o agente manipule a vontade da vítima e que esta pratique determinados atos de disposição ou de administração relativamente ao seu património ou ao alheio.

A burla exige, assim, para a sua consumação, a participação necessária da vítima.

Subjetivamente, é um crime doloso em que, além do dolo genérico, exige-se ainda um dolo específico - a especial intenção, por parte do agente, de obter um enriquecimento à custa do património alheio.

Posto isto, analisando os factos em discussão nos autos temos que concordar com a decisão recorrida, quando refere não se encontrar indiciado que o assistente tenha concluído o negócio determinado por erro ou engano sobre facto que, astuciosamente, tenha sido criado pelos arguidos.

Está em causa a venda de veículo por parte dos arguidos, ao assistente, sem que este, na sua versão, tenha sido informado que sobre o mesmo incidia reserva de propriedade a favor de terceiro.

Mas, desde logo, da matéria alegada pelo assistente nenhum dos atos que este imputa aos arguidos é idóneo a configurar, por parte destes, a dita atuação astuciosa, necessária ao preenchimento do ilícito em questão.

De facto, o assistente dirigiu-se ao local onde os arguidos exerciam a respetiva atividade e, aí, selecionou uma das viaturas expostas para venda, combinando o respetivo preço.

Não sendo inequívoco, na versão do arguido BB, se no momento da aquisição, este deu a conhecer ao assistente a pendência de reserva de propriedade a favor do Banco que lhe havia concedido a linha de financiamento para aquisição desta (e de outras) viatura, a verdade é que o próprio assistente admite não ter expressamente questionado a existência de ónus que pudessem obstaculizar o negócio. E referiu estar ciente que os arguidos não terão regularizado a situação por conta das dificuldades económicas, nenhum artifício apontando à atuação dos mesmos.

Admitiu que, à data, referiu o vendedor necessitar de prazo (de cerca de 60 dias) para regularizar a propriedade da viatura, pelo que, quanto muito, aquilo que, desde logo, sobreleva é a imprevidência do assistente na celebração do contrato. Se, para si, era essencial a inexistência de ónus no momento da entrega da viatura e pagamento do respetivo preço, teria de o referir expressamente e solicitar a exibição da documentação comprovativa.

A existência deste ónus, decorrente de contrato celebrado com entidade bancária para aquisição da mesma viatura, desde que cumprido integralmente aquele contrato, em nada obstaculizaria a transferência da propriedade para o comprador, uma vez cancelado o respetivo registo.

O óbice à transferência da propriedade ocorre, precisamente, por força do incumprimento contratual e da resolução do contrato com a entidade bancária que, para além da viatura dos autos, englobava dois outros veículos relativamente aos quais já foi cancelada a reserva de propriedade. De acordo com a informação prestada pelo Banco …, em sede de instrução, a mora vem a ocorrer em 7/9/2020 e a resolução contratual em 22/09/2020, após a celebração do contrato aqui em causa.

Não vislumbramos, assim, qualquer ato dos arguidos, qualquer ardil ou encenação engenhosa que estes tenham criado, apto a induzir astuciosamente o assistente a concretizar o negócio, isto sem prejuízo da relevância que os factos alegados pelo assistente possam ter no âmbito do direito civil.

A venda das viaturas oneradas, com intuito de se proceder ao posterior cancelamento dos ónus na fase de regularização da documentação (única intenção que pode ser extraída das próprias declarações do assistente), constitui prática comercial e não meio astucioso adequado ao preenchimento da conduta típica imputada.

Inexistem, pois, indícios da prática pelos arguidos do imputado crime de burla qualificada, como refere o Tribunal a quo.

Nestes termos, resta confirmar a decisão de não pronúncia, assim se concluindo pela improcedência do recurso interposto.

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IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo assistente CC, mantendo-se na íntegra a decisão de não pronúncia.

Custa pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

Notifique.

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Évora, 16 de setembro de 2025

Mafalda Sequinho dos Santos

Artur Vargues

Laura Goulart Maurício

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1 MAIA COSTA, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 4.ª ed. revista, p. 960.

2 in Direito Processual Penal, I, 1984, p. 133.

3 Proc. n.º 05P1938, Relator PEREIRA MADEIRA, www.dgsi.pt, citando acórdão da Relação do Porto de 20/10/93, do mesmo relator.

4Código Processo Penal, Comentários e notas práticas, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, pág. 715.

5NORONHA DA SILVEIRA, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, p. 171.

6Ac. do STJ de 20/06/2012, Proc. n.º 36/10.3TREVR.S1, Relator ARMINDO MONTEIRO, disponível em www.dgsi.pt.

7Proc. n.º 504/04.6JFLSB.L1-5, Relator ARTUR VARGUES, www.dgsi.pt.

8 ALMEIDA COSTA, Comentário Conimbricense do Cód. Penal”, t. II, pág. 293.

9 JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS, “Dos Crimes Contra o Património”, 1996, pág. 165

10Comentário do Código Penal, 5.ª ed. P. 943.