Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1907/23.2T8STB-A.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO
CONTRA-ORDENAÇÕES LABORAIS
ADMISSÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 11/20/2024
Votação: RELATOR
Texto Integral: S
Sumário: 1 – No processo de contra-ordenação laboral, o valor da coima superior a 25 UC’s, ou equivalente, para efeitos de recorribilidade da decisão para a Relação, afere-se em função da coima aplicada a cada infracção e não da coima única.
2 – Salvo em processo penal, não pode afirmar-se a vigência de um direito ao recurso de toda e qualquer decisão jurisdicional, podendo o legislador restringir esse direito, para garantia de outros valores constitucionais, designadamente no âmbito do processo de contra-ordenação laboral.
3 – No direito das contraordenações rege o príncípio da irrecorribilidade das decisões, sendo estas recorríveis apenas nos casos previstos na lei.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1907/23.2T8STB-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo do Trabalho de Setúbal – J2
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I – Relatório:
“(…), Segurança e Saúde do Trabalho, S.A.” veio reclamar do despacho de não admissão do recurso por si interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do n.º 4 do artigo 50.º da Lei n.º 107/2009, de 14/09.
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Por sentença datada de 20/02/2024, a arguida foi condenada pela prática de cinco contraordenações graves negligente previstas no artigo 73º-B, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 102/2009, de 10/09, nas coimas parcelares de 15 UC, para cada uma, e na coima única de 55 UC.
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Foi interposto recurso dessa decisão.
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O recurso não foi admitido, fundamentando o Tribunal a quo a sua posição na circunstância de ser «legalmente inadmissível o recurso apresentado, atenta a irrecorribilidade da sentença face ao valor das coimas parcelares aplicadas à arguida (todas de 15 UC e, por isso, inferiores às 25 UC legalmente previstas)».
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Foi apresentada a presente reclamação, que sustenta que «será sempre o valor da coima única aplicada à Arguida ora Reclamante a ser tida em conta para a determinação da admissibilidade do recurso e não qualquer outra».
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II – Dos factos com interesse para a decisão:
Os factos com interesse para a justa decisão do litígio são os que constam do relatório inicial.
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III – Enquadramento jurídico:
Estamos num domínio onde é aplicável quer o Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, quer o Regime Processual Aplicável às Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, e depois actualizado pelas Leis n.ºs 63/2013, de 27 de Agosto e 55/2017, de 17 de Julho.
Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do Tribunal a que o recurso se dirige, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º[1] do Código de Processo Penal, por força do disposto nos artigos 60.º[2] do Regime Processual Aplicável às Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social e 32.º[3] do Regime Geral das Contra-Ordenações.
A matéria da recorribilidade é prevista no artigo 49.º[4] do Regime Processual aplicável às Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social, que apenas admite recurso quando for aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente, tal como resulta da alínea a) do n.º 1 do preceito em análise.
Porém, tal como ressalta do n.º 3, se a sentença ou o despacho recorrido forem relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites.
Isto significa que no processo de contra-ordenação laboral, o valor da coima superior a 25 UC’s, ou equivalente, para efeitos de recorribilidade da decisão para a Relação, afere-se em função da coima aplicada a cada infracção e não da coima única[5].
Ou seja, a coima relevante para aferir da admissibilidade do recurso ao abrigo da referida alínea é a coima aplicada pelo Tribunal recorrido e não o cúmulo jurídico efectuado[6].
Para além disso, in casu, de forma a superar a limitação decorrente do valor, o recorrente não invocou no recurso a existência de fundamento relacionado com a necessidade da melhoria da aplicação do direito ou da promoção da uniformidade da jurisprudência, tal como resultava da cláusula de salvaguarda presente no n.º 2 do aludido preceito.
A admissibilidade de recurso por ser “manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito” (n.º 2 do referido artigo 49.º) apenas se justificará quando o juiz incorre em erro grosseiro, juridicamente insustentável na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, não se destinando a corrigir eventuais erros de julgamento[7].
Tal entendimento de irrecorribilidade não coarta o direito de defesa do arguido, não violando o disposto no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa ou a CEDH, designadamente o artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à CEDH que estabelece o «direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal», bastando, para tanto, atentar que tais preceitos normativos não se reportam ao ilícito de mera ordenação social, não contemplando, portanto, a situação dos autos.
Na verdade, de forma reiterada, o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar que a garantia do acesso ao direito e aos tribunais não significa a imposição constitucional da generalização do duplo grau de jurisdição, fora do contexto do processo penal.
Assim, salvo em processo penal, não pode afirmar-se a vigência de um direito ao recurso de toda e qualquer decisão jurisdicional, podendo o legislador restringir esse direito, para garantia de outros valores constitucionais.
Nessa medida, não se pode considerar que o referenciado artigo 49.º do Regime Processual aplicável às Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social viola o disposto nos artigos 32.º, n.ºs 1, 2 e 10 e 20.º, n.ºs 1 e 4, todos da Constituição da República Portuguesa, não se declarando assim a inconstitucionalidade da norma em análise.
Efectivamente, no direito das contraordenações rege o princípio da irrecorribilidade das decisões, sendo estas recorríveis apenas nos casos previstos na lei, podendo afirmar-se que as normas em apreço assumem a natureza jurídica das normas excepcionais.
Por conseguinte, mantém-se o despacho reclamado, indeferindo-se a reclamação apresentada.
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IV – Sumário: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, mantém-se o despacho reclamado, não se admitindo o recurso interposto.
Custas a cargo da arguida, fixando a taxa de justiça em 2 Uc´s.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 20/11/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho


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[1] Artigo 405.º (Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso):
1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.
[2] Artigo 60.º (Direito subsidiário):
Sempre que o contrário não resulte da presente lei, são aplicáveis, com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contra-ordenação previstos no regime geral das contra-ordenações.
[3] Artigo 32.º (Do direito subsidiário):
Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal.
[4] Artigo 49.º (Decisões judiciais que admitem recurso):
1 - Admite-se recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 39.º, quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa competente tenha aplicado uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente, ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 39.º.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites.
[5] Decisão singular do Tribunal da Relação de Évora de 06/04/2021, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Este Tribunal da Relação de Évora tem repetidamente afirmado – vejam-se os acórdãos de 08/11/2017, de 06/12/2017 e de 28/04/2022, encontrando-se os dois primeiros disponíveis em www.dgsi.pt –, a admissibilidade de recurso para a Relação deve aferir-se em função da coima concretamente aplicada a cada infração, e não em função do montante da coima única aplicada em cúmulo jurídico.
[7] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/10/2024, pesquisável em www.dgsi.pt.