Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO | ||
Descritores: | PLANO DE PAGAMENTO ACORDO DE CREDORES ABUSO DE DIREITO | ||
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Data do Acordão: | 06/06/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | - para efeitos de apreciação de conduta abusiva do direito não podem ser atendidos factos que apenas foram alegados ex novo em sede das alegações do recurso; - o processo especial para acordo de pagamento (PEAP) consiste num processo autónomo regulado pelos artigos 222.º-A a 222.º-J do CIRE no âmbito do qual não se aplica o regime previsto para o processo especial de revitalização (PER), designadamente o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 17.º-F do CIRE. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Évora I – As Partes e o Litígio Recorrentes / Requerentes: (…) e (…) Recorridos / Credores: Caixa Geral de Depósitos, SA e outro Os Requerentes instauraram o presente Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP) invocando encontrarem-se em situação económica difícil, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 222.º-A e do artigo 222.º-B do CIRE, requerendo seja dado início às negociações conducentes à elaboração de acordo de pagamento junto dos credores. Foi nomeado administrador judicial provisório, que se apresentou a juntar lista provisória de créditos, a qual foi não objeto de impugnações. O prazo de dois meses para conclusão das negociações foi prorrogado – artigo 222.º-D, n.º 5, do CIRE. Decorrido o prazo de negociações, foi junto plano que foi publicitado em 08/03/2024. Em 20/03/2024 foi junto o resultado da votação, mostrando-se reprovado o acordo. II – O Objeto do Recurso Foi proferido despacho determinando ao AJ o cumprimento do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 222.º-G do CIRE, dando por encerrado o processo negocial sem aprovação de qualquer acordo. Inconformados, os Requerentes apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que anule o despacho de encerramento do processo, substituindo esta decisão pelo despacho de convite aos Devedores para fazerem alterações ao Plano para ser submetido posteriormente a votação dos credores. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes: «A. No âmbito dos processos executivos movidos pela Credora Caixa Geral de Depósitos, S.A. foi requerida a suspensão dos processos executivos em 15 de Fevereiro de 2023. B. Em 20 de Junho de 2023 foi requerida nova suspensão da instância, pela Credora Caixa Geral de Depósitos, S.A.. C. Em face da inércia da Credora Caixa Geral de Depósitos, S.A., não foi possível chegar a um acordo entre as partes no prazo pelo qual foi requerida a suspensão dos processos. D. Posteriormente, a Credora Caixa Geral de Depósitos, S.A. vem requerer a venda dos bens penhorados cujo valor – caso viessem a ser vendidos – ascende a € 1.417.037,00. E. Os Devedores propuseram pagar à Caixa Geral de Depósitos, S.A., o montante de € 1.403.192,09, no âmbito do presente PEAP. F. Os Devedores propõem liquidar os valores de capital e parte de juros, contudo, ficou surpreendida com o voto negativo da Caixa Geral de Depósitos, S.A. sem qualquer justificação. G. O que frustrou por completo as expectativas dos Devedores. H. Caso a Caixa Geral de Depósitos, S.A. tivesse manifestado a sua intenção de não aprovar o plano nos termos nele exarados, certamente que os Devedores teriam apresentado proposta diferente, dentro das possibilidades que tivesse. I. Não é lícito que a Caixa Geral de Depósitos, S.A. num momento refira que pretende negociar, posteriormente pretenda alienar os imóveis penhorados e, posteriormente, sem nunca aceitar negociar os valores em dívida, mesmo depois de requerer a suspensão dos processos com o pretexto de negociar os mesmos, recusar o pagamento do montante de € 1.403.192,09, sendo esse valor superior ao valor superior ao valor da venda dos imóveis penhorados e superior ao valor devido a título de capital. J. Em face dos factos constantes das presentes alegações, verifica-se que a Caixa Geral de Depósitos, SA agiu em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, na medida em que, ao ter manifestado que pretendia negociar os créditos e que aceitava receber o valor de capital em dívida, criou a expectativa que aprovaria o plano proposto pelos Devedores, em função das declarações proferidas no âmbito dos processos executivos. K. Verifica-se que a Caixa Geral de Depósitos, S.A. agiu em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, na medida em que, ao ter manifestado que pretendia negociar os créditos e que aceitava receber o valor de capital em dívida, criou a expectativa que aprovaria o plano proposto pelos Devedores, em função das declarações proferidas no âmbito dos processos executivos. L. Os referidos comportamentos são imputáveis à Caixa Geral de Depósitos, S.A. e são contraditórios entre o que haviam declarado nos processos executivos antes da entrada do PEAP e o voto contra a aprovação do plano que foi nos termos negociados. M. Ademais, o encerramento do processo sem que a Caixa Geral de Depósitos, S.A., tenha manifestado as circunstâncias suscetíveis de levar à não homologação do plano, deveriam os Devedores terem sido informados desse facto para propor alterações ao plano. N. Aliás, o PEAP tem a mesma finalidade do PER. O. Assim, sendo as normas do PER aplicáveis ao PEAP com as devidas adaptações e, por conseguinte, foi negada a possibilidade de os Devedores proporem alterações ao plano, nos termos analogicamente aplicáveis do n.º 2 e 3 do artigo 17.º-F do CIRE. P. Face ao exposto, a decisão de encerramento do PER é precoce e viola dos direitos dos Devedores, motivo pelo qual deve a decisão de encerramento ser anulada e substituída por outra que conceda à Devedora o prazo previsto no n.º 3 do artigo 17.º-F do CIRE para propor alterações ao Plano para ser submetido novamente a votação.» A Recorrida CGD apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que carece de fundamento, mais salientando que: - os Devedores se encontram em situação de incumprimento há mais de 10 anos; - no âmbito dos processos executivos, viu a Credora os seus processos suspensos em virtude de embargos apresentados, e manobras dilatórias, com sucessivas apresentações de propostas que não eram viáveis de aceitação; - o plano de acordo de pagamento junto aos autos não foi aprovado, uma vez que a posição da credora assume 96,94% dos votos; - os Devedores não foram surpreendidos com a decisão de voto da Credora, atentas as reuniões que mantiveram com a mesma; - já foi anteriormente efetuado um perdão e que já tiveram um plano de insolvência que os Devedores não chegaram a cumprir; - inexiste fundamento para considerar a sua conduta abusiva, pois sempre atuou de boa-fé. Cumpre apreciar o desacerto da decisão de encerramento do processo negocial. III – Fundamentos A – Dados a considerar: os acima referidos. B – A questão do Recurso Os Recorrentes insurgem-se contra a decisão proferida em 1.ª Instância que deu por encerrado o processo negocial sem aprovação de qualquer acordo. Consideram que a Credora CGD atuou em abuso do direito e que o encerramento do processo é precoce, pois devia ter sido concedido prazo aos Devedores para proporem alterações ao plano, nos termos analogicamente aplicáveis dos n.ºs 2 e 3 do artigo 17.º-F do CIRE. Ora vejamos. O processo especial para acordo de pagamento (PEAP) encontra-se regulado nos artigos 222.º-A a 222.º-J do CIRE, destinando-se a devedores que não sejam empresas. Foi introduzido pelo DL n.º 79/2017, de 30/06, diploma que clarificou a aplicação do processo especial de revitalização (PER) às empresas. O PEAP é um processo aplicável à pré-insolvência de pessoas singulares ou de pessoas jurídicas não titulares de empresa que permite ao devedor, que comprovadamente se encontre em situação de insolvência meramente iminente ou em situação económica difícil, designadamente por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito, encetar negociações com os seus credores com vista a estabelecer com estes um acordo de pagamento (artigos 222.º-A, n.º 1 e 222.º-B do CIRE). O procedimento inicia-se a requerimento do devedor e de, pelo menos, um dos credores, cabendo ao juiz nomear administrador judicial provisório (artigo 222.º-C, n.ºs 1 e 4, do CIRE), segue-se a fase da reclamação de créditos (artigo 222.º-D, n.ºs 1 a 3, do CIRE), com vista designadamente a formação do quórum deliberativo para votação do acordo de pagamento (artigo 222.º-F do CIRE), as negociações destinadas à conclusão do acordo de pagamento, participadas, orientadas e fiscalizadas pelo administrador provisório (artigo 222.º-D, n.º 9, do CIRE) e concluídas estas com a aprovação do acordo de pagamento, este é submetido ao juiz que o homologa ou recusa a sua homologação, por aplicação, com as necessárias adaptações, das regras aplicáveis ao plano de insolvência (artigo 222.º-F do CIRE).[1] Não sendo aprovado o acordo de pagamento, concluindo-se antecipadamente não ser possível alcançar acordo ou ultrapassado que seja o prazo das negociações (o prazo é de dois meses, e pode ser prorrogado por uma só vez e por um mês nos termos definidos no artigo 222.º-D, n.º 5, do CIRE), o processo negocial é encerrado, devendo o administrador judicial provisório comunicar tal facto ao processo, se possível por meios eletrónicos, e publicá-lo no portal Citius (artigo 222.º-G, n.º 1, do CIRE). No caso em apreço, decorreu o prazo das negociações, tendo sido reprovado o plano de pagamento proposto pelos Devedores. Não estão demonstrados e provados no processo factos donde resulte ter sido abusivamente exercido o direito de voto por parte da Credora CGD. A alegação dos Recorrentes apontando circunstâncias fácticas que entendem relevantes para efeitos do exercício abusivo, por isso ilegal, do direito de voto não é apta a estabelecer o quadro factual sujeito a apreciação em sede do instituto do abuso do direito. Note-se que os recursos são meios de reapreciação de questões objeto de decisão pelo Tribunal recorrido, têm em vista a reponderação das questões submetidas a litígio, já apreciadas e decididas pelo tribunal recorrido, a quem compete definir o enquadramento factual ao qual há de aplicar-se o direito. É certo que as questões atinentes ao abuso do direito são de conhecimento oficioso e, por via disso, podem ser suscitadas ex novo em sede de recurso (artigo 608.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC). No entanto, não é na instância de recurso que se alegam e fixam, ex novo, os factos que permitam a apreciação de tal questão. Certo é não há notícia de que a votação por parte da Credora CGD tenha sido objeto de impugnação pelos Devedores ou de que a reprovação do plano de pagamentos tenha sido, de algum modo, colocada em causa pelos Devedores. Inexiste, pois, fundamento de facto para considerar abusivo o exercício do direito de voto por parte da Credora CGD. Relativamente à oposição dos Recorrentes ao encerramento do processo, cumpre notar que o que teve lugar foi o encerramento do processo negocial (cfr. artigo 222.º-G, n.º 1, do CIRE), e não já o encerramento do PEAP (cfr. artigo 222.º-J, n.º 1, do CIRE). Ora, o encerramento do processo negocial, ultrapassado que estava o prazo previsto no n.º 5 do artigo 222.º-D e reprovado que foi o plano de pagamentos, não é suscetível de qualquer censura. Antes se impunha, por determinação expressa e inequívoca do regime inserto no artigo 222.º-G, n.º 1, do CIRE. Não é de acolher a pretensão dos Recorrentes no sentido de lhes dever ser concedido prazo para alterar o plano de pagamentos em conformidade às objeções da Credora CGD, conforme previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 17.º-F do CIRE, pois tal regime, previsto no âmbito do PER, não tem aplicação no âmbito do PEAP. Neste sentido, cfr. Ac. TRE de 27/02/2020 (Emília Ramos Costa): «O processo especial para acordo de pagamento encontra-se especificamente regulado nos artigos 222.º-A a 222.º-J do CIRE, pelo que a tal processo não se aplicam as normas constantes dos artigos 17.º-A a 17.º-J do CIRE previstas para o processo especial de revitalização de empresas.» É manifesto que improcedem as conclusões da alegação do presente recurso, inexistindo fundamento para revogação da decisão recorrida. As custas recaem sobre os Recorrentes – artigo 527.º, n.º 1, do CPC. Sumário: (…) IV – DECISÃO Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida. Custas pelos Recorrentes. * Évora, 6 de junho de 2024 Isabel de Matos Peixoto Imaginário Rui Machado e Moura José Manuel Tomé de Carvalho __________________________________________________ [1] Regime assim sintetizado no Ac. TRE de 08/10/2020 (Francisco Matos). |