Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANTÓNIO MANUEL RIBEIRO CARDOSO | ||
Descritores: | APROPRIAÇÃO ILÍCITA BENS COMUNS DO CASAL | ||
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Data do Acordão: | 03/22/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recorrido: | COMARCA DO ALENTEJO LITORAL – JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL-JUIZO 2 - SANTIAGO DO CACÉM | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
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Sumário: | Tendo um dos cônjuges, imediatamente após a separação, sem conhecimento nem autorização do outro cônjuge, transferido as quantias monetárias propriedade de ambos, depositadas em conta comum para outra conta de que é exclusivo titular, comete um acto ilícito, ficando obrigado a indemnizar o outro cônjuge, pagando-lhe os juros de mora incidentes sobre metade dessa quantia, a partir da data da apropriação. Sumário do relator | ||
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Decisão Texto Integral: | [1]MARIA… intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra JÚLIO…, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 24.980,14 acrescida de juros vencidos e vincendos desde 18 de Agosto de 2000. Como fundamento alegou que casou com o réu em 16 de Fevereiro de 1969, sem convenção antenupcial, tendo-se divorciado por sentença proferida em 13 de Janeiro de 2005. Em 18 de Agosto de 2000, no dia seguinte ao da separação do casal, sem conhecimento e autorização da autora, o réu transferiu de duas contas bancárias, uma no Banco BPI, SA. e outra na Caixa Agrícola Mútuo de Santiago do Cacém, CRL., a quantia total de 10.016.135$00, para uma conta pessoal e fê-lo como retaliação pelo facto da autora ter saído de casa e para evitar ter de partilhar com ela estas quantias. Desde aquela data, apenas o réu teve acesso ao dinheiro referido, sendo que a autora tem direito a metade desse montante acrescido dos juros legais. Contestou o réu alegando que autora e réu se separaram em 17 de Agosto de 2000 mas a autora já andava a preparar a separação há vários meses e, com essa intenção, durante os anos de 1999 e 2000, sem o seu conhecimento e autorização, procedeu ao levantamento da maior parte do dinheiro que o casal tinha em contas bancárias em instituições financeiras na Bélgica. A totalidade do dinheiro levantado pela autora é superior ao dinheiro que o réu levantou daquelas duas instituições financeiras portuguesas, pelo que o direito da autora se extinguiu por compensação, sendo que o réu apenas pretendeu salvaguardar os seus interesses na partilha, evitando que a autora tivesse acesso a todo o dinheiro do casal. A autora nunca teria direito a juros pois a obrigação não tem prazo certo e o réu nunca foi interpelado para proceder a qualquer pagamento, não estando, por isso, em mora. Deduziu reconvenção pedindo a condenação da autora a pagar-lhe o montante correspondente a metade das quantias que levantou em instituições bancárias da Bélgica nos anos de 1999 e 2000 que eram património comum do casal, na parte que exceder a compensação efectuada com a quantia peticionada, a liquidar em execução de sentença. Replicou a autora alegando que todas as quantias por si levantadas na Bélgica se destinaram ao pagamento de despesas correntes do agregado familiar, pelo que não tem sentido a compensação nem a reconvenção. Saneado o processo, seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória, veio o réu liquidar o pedido reconvencional e requerer a ampliação da causa de pedir e do pedido a factos ocorridos antes de 1999, pedindo a compensação e a condenação da autora no pagamento da quantia de € 1.634,98. A liquidação foi admitida, aditando-se factos à base instrutória, mas a ampliação do pedido e da causa de pedir foi indeferida. Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença na qual se julgou a acção parcialmente procedente e totalmente improcedente a reconvenção e o R. condenado “a pagar à autora a quantia de vinte e quatro mil quatrocentos e vinte e um euros e doze cêntimos acrescido de juros legais desde 18 de Agosto de 2000 até integral pagamento”. Inconformado com esta decisão, interpôs o R. o presente recurso de apelação impetrando a revogação da sentença e a sua absolvição do pedido. A A. contra-alegou pugnando pela manutenção do julgado. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. Formulou o R./apelante, nas alegações de recurso as seguintes conclusões, que delimitam o seu objecto e o âmbito do conhecimento deste tribunal: “I– A Autora propôs a acção pedindo a condenação do ora recorrente ao pagamento da quantia de € 24.980,14, acrescida de juros vencidos e vincendos desde 18 de Agosto de 2000. Para tanto, alega que o recorrente procedeu ao levantamento de dinheiro sem o seu conhecimento e autorização a 18 de Agosto de 2000, tendo-se divorciado do recorrente por sentença proferida em 13 de Janeiro de 2005. II– Em sede de contestação, o recorrente alegou que a Autora já andava a preparar a separação há vários meses e, com essa intenção, durante os anos de 1999 e 2000 procedeu ao levantamento da maior parte do dinheiro que o casal tinha em contas bancárias em instituições financeiras na Bélgica, sem o conhecimento e autorização do Réu. Sendo a totalidade do dinheiro levantado superior ao que o Réu levantou daquelas duas instituições financeiras portuguesas. III- Assim o direito da Autora extinguiu-se por compensação, sendo que o Réu apenas pretendeu salvaguardar os seus interesses na partilha, evitando que a Autora tivesse acesso a todo o dinheiro do casal. IV- Acresce que a Autora nunca teria direito a juros pois a obrigação não tem prazo certo e o Réu nunca foi interpelado para proceder a qualquer pagamento e, por isso, não está em mora. V- No entanto, vem o Tribunal “a quo” julgar parcialmente procedente a acção, condenando-se o Réu a pagar à Autora a quantia de vinte e três mil oitocentos e sessenta e dois euros e dez cêntimos acrescido de juros legais desde 18 de Agosto de 2000 até integral pagamento. VI- Formou o Tribunal recorrido a sua convicção com base no depoimento de parte o Réu e nos depoimentos das testemunhas V…, A… e N…. Ora, quer no depoimento de parte, quer nos depoimentos das testemunhas não resulta demonstrados tais factos. VII- Ora, da prova testemunhal produzida, relativamente aos factos d) e e), resulta precisamente o oposto, isto é, devia o facto d) ser julgado não provados e ao contrário o facto e) ser julgado provado. VIII- Quanto ao depoimento de parte, em nenhum momento o Réu confessou ter agido intencionalmente em prejuízo da Autora, tendo antes explicado quais os motivos que o levaram a levantar o dinheiro e que o objectivo não era evitar que esse dinheiro fosse partilhado; tal não foi tido em conta pelo Tribunal recorrido e deveria ter sido. IX- O Tribunal “a quo”, ao dar como provado que com estas operações o Réu visou pelo menos, evitar que a Autora tivesse acesso a este dinheiro, não podia julgar como não provado que o Réu procedeu às operações bancárias já referidas relativamente a contas em Portugal para se salvaguardar e compensar o dinheiro que a autora tinha levantado de contas bancárias do casal na Bélgica, uma vez que foi esse o motivo que o Réu alegou para efectuar tais levantamentos. X- Quanto ao depoimento da testemunha V…, o mesmoo não pode ser considerado para formar a convicção do Tribunal “a quo”, uma vez que todos os factos por si relatados são do seu conhecimento por transmissão directa da Autora, não porque tenha conhecimento directo do assunto, conforme resulta da prova produzida e acima transcrita. XI- As testemunhas A… e N… não se pronunciaram sobre o referido assunto, pelo que não tendo conhecimento do mesmo os respectivos depoimentos não podem fundamentar a prova ou não prova de quaisquer factos, designadamente os sub judice. XII- Acresce que a sentença recorrida não fez uma correcta análise da matéria de Direito em face dos factos julgados como provados – quer considerando a alteração acima referida à matéria de facto, quer na hipótese cautelosa de tal alteração não se verificar. XIII- Com efeito, a Autora em momento algum fez prova de que os levantamentos efectuados pelo Réu o foram com intenção de prejudicá-la, sendo que tal prova lhe competia. XIV- Não estando demonstrado que o Réu levantou o dinheiro com intenção de prejudicar a Autora, como não está, não está preenchido o pressuposto de aplicação do n.º 1, do artigo 1681.º do Código Civil, pelo que o Réu não poderá ser condenado como foi. XV- Deve, pois, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva o Réu do pedido. XVI- Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou, nomeadamente, o disposto no artigo 1680.º e 1681.º do Código Civil.” As conclusões, como se sabe, delimitam o objecto do recurso [2] e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal. QUESTÕES A DECIDIR Face às conclusões formuladas, as questões submetidas à nossa apreciação consistem em saber: 1 – Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto; 2 – Se o direito da A. se extinguiu por compensação; 3 – Em caso negativo se a A. tem direito aos juros de mora; 4 – Se o R./recorrente deve ser absolvido do pedido. Uma vez que vem impugnada a decisão da matéria de facto, debrucemo-nos sobre esta questão antes de consignar a factualidade provada. 1 – Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto. QUESTÕES PRÉVIAS Consigne-se que procedemos à audição integral dos depoimentos das testemunhas e da A.. Já quanto ao depoimento do R., não procedemos à respectiva audição pelo facto do CD respectivo não ter sido remetido a este tribunal e termos entendido ser a mesma dispensável dado que o recorrente transcreveu, nas suas alegações, o trecho que entendia pertinente, para além de ter sido reduzido a escrito, na parte em que importou a confissão (assentada constante na acta da audiência de discussão e julgamento do dia 23.11.2010). A parte do depoimento não reduzida a escrito [3] e que, por isso, é de livre apreciação pelo tribunal (art. 358º, nº 4 do CC), não teve o apoio de qualquer outra prova produzida e, por isso, se nos afigurou dispensável proceder à audição da gravação (que exigiria a sua prévia solicitação ao tribunal “a quo”). Nas contra-alegações invoca a recorrida que não deve conhecer-se desta questão pelo facto do recorrente não ter cumprido cabalmente o disposto no art. 685º-B, nº 1, al. a) do Código de Processo Civil, já que «não indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, que deveria ter enunciado quer na motivação, quer nas conclusões, ou seja, os factos constantes da Base Instrutória que considera terem sido incorrectamente julgados, e debruçou-se logo sobre as respostas, ignorando os quesitos respectivos». Mas, com todo o respeito, não tem razão. O que o preceito visa é que o tribunal de recurso saiba exactamente quais as questões de facto que são submetidas à sua apreciação uma vez que o seu conhecimento é limitado pela vontade das partes positivada nas conclusões, sem prejuízo, é óbvio, das questões que sejam do conhecimento oficioso. É claro que, reportando-se ao quesito, aquela delimitação é mais objectiva. Porém entendemos que o recorrente ao referir-se à resposta ao quesito está, implicitamente, a reportar-se ao próprio quesito já que a decisão da matéria de facto é feita por referência a estes. O que o recorrente não pode é pedir, de uma forma genérica a reapreciação de toda a matéria de facto como se se tratasse de um segundo julgamento. Desde que a concretização seja feita de forma a que o tribunal ad quem saiba exactamente quais os factos visados, o referido ónus está cumprido. No caso, em face das alegações do recorrente não temos dúvida de quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados. Vejamos então. Alega o recorrente que o tribunal deu como provado que, «d) Com essas operações bancárias o Réu visou, pelo menos, evitar que a autora tivesse acesso a este dinheiro», mas julgou não provado que, «e) O Réu procedeu às operações bancárias relativamente a contas em Portugal para se salvaguardar e compensar o dinheiro que a Autora tinha levantado de contas bancárias do casal na Bélgica.» Porém «da prova testemunhal produzida, relativamente aos factos d) e e), resulta precisamente o oposto, isto é, devia o facto d) ser julgado não provados e ao contrário o facto e) ser julgado provado!» O facto consignado na al. d) é a resposta restritiva ao quesito 4, sendo a matéria indicada na alínea e) a que consta no quesito 9. O quesito 4, é do seguinte teor: “4. Com essas operações bancárias o réu visou fazer suas as referidas quantias como retaliação pelo facto da autora ter saído de casa e para evitar partilhar esse dinheiro?” A resposta foi, precisamente, a consignada pelo recorrente na transcrita alínea «d) Com essas operações bancárias o Réu visou, pelo menos, evitar que a autora tivesse acesso a este dinheiro», que o tribunal fundamentou da seguinte forma: «Bases 1.ª a 4.ª O próprio réu confessou que na manhã seguinte à noite em que a autora saiu de casa se deslocou à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Santiago do Cacém e levantou o dinheiro todo [cerca de 7.000.000$00] e ao balcão do BPI de Ermidas do Sado e mandou bloquear o dinheiro que lá tinha [cerca de 3.000.000$00]. Está assente que o dinheiro que estava no BPI foi levantado e não meramente bloqueado. Admitiu ainda que o fez sem consentimento ou autorização da autora. Daqui resulta desde logo a matéria de facto constante dos quesitos 1.ª a 3.ª, Para além disso, o réu confessou que o seu objectivo foi o de impedir que a autora levantasse o dinheiro. Para além da confissão do réu existem outros elementos. Desde logo, a testemunha V… declarou que tem conhecimento que o casal tinha contas bancárias na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Santiago do Cacém e no BPI pois já tinha acompanhado a irmã aos bancos, sabendo que tinham depósitos provenientes da venda de um terreno e de uma casa. No dia 18 o réu veio a sua casa e disse que tinha ido ao banco buscar os dinheiros e meter numa conta só dele e daquele ela já não ia ver nenhum, pelo que concluiu que a autora não sabia, foi sem o seu consentimento e depois em conversa confirmou isso com ela, sabendo ainda que ao todo foram cerca de € 50.000. Também a testemunha A… referiu que no dia 18 de madrugada o réu veio ver se a autora estava em sua casa, depois foi embora e regresso pelas 8 horas e 30 minutos ou 9 horas e disse que já tinha ido ao banco, passado o dinheiro para seu nome e que dali ela já não levava nada, sendo que a autora só soube destes levantamentos posteriormente e pelo que lhe disse eram cerca de 10.000 contos que estavam depositados na Caixa de Crédito e no BPI. Por fim, a testemunha N… referiu que estava a varrer a rua e o réu chegou e disse-lhe que a autora tinha ido embora mas que já tinha ido ao banco e que dali ela não levava nenhum e que ia embora tratar lá das coisas na Bélgica, tendo ficado com a ideia de que ele pretendia ficar com tudo. Dos documentos de folhas 40 a 47 e 125 a 129 resulta que foi o réu quem ordenou o levantamento do dinheiro existente nas duas contas em causa. A conjugação deste conjunto de elementos, coincidentes no levantamento das quantias pelo réu sem o consentimento e conhecimento da autora, permitem-nos a prova dos factos questionados, sendo que relativamente à finalidade visada apenas podemos considerar provado o que o réu referiu em consonância com o depoimento das testemunhas que entendemos poder condensar no facto de que o réu pretendia que a autora não tivesse acesso a este dinheiro.» Ora, o depoimento que aqui é referido ter o R. prestado, condiz exactamente com o consignado na assentada constante da acta de fls. 233, sendo certo que em tal acta não consta que o ora recorrente tenha apresentado qualquer reclamação (art. 563º/2 do Código de Processo Civil). Consta da assentada, depois de confessar os levantamentos, que “procedeu desta forma para evitar que a autora levantasse este dinheiro e, por isso, admite que actuou sem conhecimento e autorização desta”. Esta factualidade, que consta da assentada, corresponde à confissão do depoente (art. 563º/1) e tem força probatória plena contra si (art. 358º/1 do CC), motivo pelo qual o depoimento das testemunhas é, quanto a esta matéria, irrelevante. Por conseguinte, o tribunal ao julgar provado que com essas operações bancárias [os levantamentos efectuados pelo recorrente] o Réu visou, pelo menos, evitar que a autora tivesse acesso a este dinheiro, limitou-se a reproduzir, nesta parte, a confissão do R.. Acresce que nesta factualidade não consta que o R. procedeu aos levantamentos para evitar que o dinheiro fosse partilhado, pese embora a expressão evitar que a autora tivesse acesso a este dinheiro possa também ter esse sentido, mas também pode apenas significar que o R. pretendeu evitar que fosse a A. a proceder ao seu levantamento. É, porém, certo que o R., como está provado, não relacionou no inventário esses montantes e perante a reclamação da A., alegou em resposta que as quantias reclamadas, porventura corresponderiam às contas bancárias onde o casal tinha dinheiro depositado, mas que foram levantadas quase na totalidade pela ora autora quando saiu de casa, fazendo sua a metade que pertencia ao ora réu. Estes pretensos levantamentos efectuados pela A., com excepção da quantia de 1.118,05 €, não tiveram apoio na prova produzida nestes autos, com excepção do próprio depoimento do R., mas que, nesta parte não tem o valor de confissão já que se trata de matéria que lhe é favorável. Ora, não tendo relacionado no inventário tais quantias e alegado que foi a A. quem procedeu ao seu levantamento, é óbvio que a intenção era mesmo a de evitar que fossem partilhadas. Além disso as testemunhas inquiridas, V…, A… e N…, apesar das relações familiares com a A. e de “não falarem” com o R., depuseram precisamente como consta da fundamentação da decisão da matéria de facto, sendo que o relato que fizeram e ao contrário do que o recorrente alega, não foi por ouvir dizer à A., mas narrando o que o próprio recorrente lhes disse no dia da separação e logo após ter procedido ao levantamento das quantias depositadas. Por conseguinte e sem necessidade de outros considerandos, mantém-se a resposta do tribunal ao quesito 4º. Perguntava-se no quesito 9º: “9. O réu procedeu às operações bancárias já referidas relativamente a contas em Portugal para se salvaguardar e compensar o dinheiro que a autora tinha levantado de contras bancárias do casal na Bélgica?” O tribunal respondeu «não provado» pretendendo agora o recorrente que se altere a resposta para “provado” com base no seu depoimento. Como já referimos, as declarações, ainda que confessórias, feitas pelo recorrente no seu depoimento, porque não foram reduzidas a escrito, são apreciadas livremente pelo tribunal (art. 358º/4 do CC). È ainda, de presumir que não tenha confessado outros factos, pois se o fizesse teriam sido consignados na assentada, como o exige o citado art. 563º/1 e, como referido, não consta da acta que tenha sido pelos mandatários das partes apresentada qualquer reclamação (art. 563º/2). Ora, como atrás dissemos, as declarações do recorrente por si transcritas nas suas alegações não tiveram o apoio de qualquer outra prova. E, tratando-se de factos que lhe aproveitam, carecem, por si só, de suficiente valor probatório. Importa dizer que a referência feita pelo recorrente nas suas alegações de que “toda a prova produzida através destes depoimentos não foi de conhecimento directo do assunto mas sim de factos que as testemunhas apenas alegam conhecer por transmissão da Autora!” não é correcta. Na verdade o conhecimento das testemunhas por transmissão da Autora limitou-se aos montantes existentes nas contas e aos levantamentos realizados pela A. na Bélgica, quando vivia com o R. neste país (e apenas a mãe e a irmã conheciam, aproximadamente, o valor dos depósitos; quanto aos levantamentos na Bélgica tratou-se de meras suposições). Já quanto aos levantamentos efectuados no dia 18 de Agosto pelo R. das contas existentes no BPI e na CCA, transmitiram aquilo que o próprio R. lhes disse na manhã do dia 18/8 depois de os ter efectuado, altura em que estava “irritado”. Em suma, a resposta de «não provado» dada pelo tribunal “a quo” ao quesito 9º, está absolutamente correcta e em perfeita consonância com a prova produzida, sendo certo que a prova destes factos, porque proveitosa para o R., a ele competia e de forma a que não restassem quaisquer dúvidas ao tribunal. E não foi o que sucedeu. Por conseguinte, mantém-se inalterada esta resposta do tribunal. FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS Estão provados os seguintes factos: “Autora e réu casaram em 16 de Fevereiro de 1969, sem convenção antenupcial. Por petição inicial que deu entrada no extinto Tribunal da Comarca de Santiago do Cacém em 10 de Dezembro de 2003, a ora autora intentou acção de divórcio litigioso contra o ora réu, a que foi atribuído o n.º 1241/03.4TBSTC, que correu termos no 1º Juízo. E, por sentença proferida nos referidos autos em 13 de Janeiro de 2005, transitada em julgado, foi decretado o divórcio entre os aqui autora e réu. Por requerimento inicial de 21 de Fevereiro de 2006 a ora autora requereu, por apenso aos autos principais com o n.º 1241/03.4TBSTC inventário para partilha dos bens do seu dissolvido casal, o qual ainda se encontra pendente no Juízo de Trabalho Família e Menores de Sines, desta Comarca, com o n.º 1241/03.4TBSTC-A, no qual exerce o cargo de cabeça-de-casal o ora réu. Nesses autos de inventário, em 8 de Maio de 2006 foi a ora Autora notificada do teor da Relação de bens apresentada pelo ora réu que consta a folhas 24 a 27. E, por requerimento de 18 de Maio de 2006 que consta a folhas 28 a 30 a ora autora acusou a falta de diversos bens comuns do casal na relação de bens, designadamente das seguintes quantias em dinheiro: a) a quantia de trinta e quatro mil, novecentos e quinze euros e oitenta e cinco cêntimos, acrescida dos respectivos juros, depositada no depósito a prazo n.º…, constituído em 10 de Agosto de 1995, na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Santiago do Cacém, balcão de Ermidas Sado e juntou cópia do respectivo título; e b) a quantia de catorze mil, novecentos e sessenta e três euros e noventa e quatro cêntimos, acrescida dos respectivos juros, que o ex-casal tinha num depósito a prazo no banco BPI, balcão de Ermidas Sado. Em 6 de Julho de 2006, o ora réu, em resposta à reclamação à relação de bens que consta a folhas 32/33, alegou que as quantias reclamadas, porventura corresponderiam às contas bancárias onde o casal tinha dinheiro depositado, mas que foram levantadas quase na totalidade pela ora autora quando saiu de casa, fazendo sua a metade que pertencia ao ora réu. No decurso dos supra referidos autos de Inventário foram juntos diversos documentos e foram oficiadas as respectivas instituições financeiras para fornecerem várias informações, o que fizeram, tendo resultado que: a) Em 10 de Julho de 1995, o ora réu constituiu um depósito a prazo número… na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Santiago do Cacém, no montante de sete milhões de escudos; b) Em 18 de Agosto de 2000, foi liquidado o depósito a prazo n.º… da Caixa de Crédito Agrícola de Santiago do Cacém, no montante de 7.004.626$00, tendo essa quantia entrado na conta n.º… da mesma instituição, de que os ora autora e réu eram titulares; c) No mesmo dia, da conta n.º…, de que os ora autora e réu eram titulares, foi transferido o montante de 7.016135$00 para a conta bancária n.º… da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Santiago do Cacém de que a requerente não é titular mas sim o ora réu seu único titular; e d) No mesmo dia, ou seja, 18 de Agosto de 2000 o ora réu procedeu ao levantamento da quantia de 3.000.000$00 da conta bancária n.º… do BPI, cujos titulares eram os ora autora e réu, tendo a referida conta sido cancelada em 31 de Janeiro de 2002. Em 13 de Abril de 2009 foi proferida nos autos de inventário a decisão que consta a folhas 48 a 57, transitada em julgado, a indeferir parcialmente a reclamação uma vez que a quantia de 3.000.000$00 reclamada já não existia na conta bancária n.º… do BPI, cujos titulares eram os ora autora e réu, à data em que foi intentada a acção de divórcio e tal conta foi cancelada em 31 de Janeiro de 2002 e o montante do depósito a prazo referido anteriormente, foi levantado pelo ora réu antes da data em que foi intentada a acção de divórcio e transferido para uma conta bancária cujo único titular era o ora réu e, por isso, seria o saldo desta última conta na data em que foi intentada a acção de divórcio que deveria ser relacionado e não o montante reclamado, pelo que aqueles dois depósitos bancários não foram relacionados em sede de inventário. Autora e réu deixaram de viver na mesma casa e não mais houve entre ambos comunhão de leito, mesa e habitação desde o dia 17 de Agosto de 2000, quando se encontravam de férias na sua casa sita na Rua…. Em 18 de Agosto de 2000, a autora e o réu eram titulares, para além de outra ou de outras contas sedeadas na Bélgica, das seguintes contas bancárias: a) conta de depósito a prazo n.º… da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Santiago do Cacém, balcão de Ermidas-Sado, cujo saldo era de 7.004.626$00; b) conta de depósito à ordem n.º… da mesma instituição bancária acima referida, cujo saldo era de 11.509$00; e c) conta n.º… do ex-Banco Borges & Irmão, SA, que por força da fusão com o Banco BPI passou a ter o n.º…, cujo saldo era de 3.170.600$30. O dinheiro que autora e réu tinham depositado em contas conjuntas em Portugal e Bélgica provinha do trabalho de ambos e da venda de imóveis. Numa conta conjunta da autora e do réu no Aslk – CGER Bank existia em 17 de Agosto de 2000, pelo menos, a quantia de cerca de € 20.000. Antes dessa data a autora fazia levantamentos dessa conta bancária. A liquidação do depósito a prazo n.º… da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Santiago do Cacém e a transferência desse montante para a conta n.º… para a conta n.º… da mesma instituição foram feitas pelo réu. O levantamento da quantia de 7.051.500$00 da conta bancária n.º… da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Santiago do Cacém, de que o réu era único titular, correspondente à totalidade da quantia aí existente, foi feita sem conhecimento e sem autorização da autora. O levantamento da quantia de 3.000.000$00 da conta bancária n.º… do BPI foi feito sem conhecimento e sem autorização da autora. Com estas operações o réu visou, pelo menos, evitar que a autora tivesse acesso a este dinheiro. Durante os anos de 1999 e 2000 a autora fez levantamentos, pelo menos, de quantias até 10.000 francos belgas depositadas pelas partes em instituições financeiras belgas, em montante total não determinado. Imediatamente após a saída da autora de casa, entre 19 e 21 de Agosto de 2000, a autora levantou a quantia de € 1.118,04 através de seis levantamentos de € 186,34. Pelo menos alguns levantamentos feitos pela autora da conta bancária referida no Aslk – CGER Bank, de montantes até 10.000 francos belgas, destinavam-se ao pagamento de despesas do agregado familiar. ”. Vejamos as demais questões propostas. 2 – Se o direito da A. se extinguiu por compensação. Na tese do recorrente a compensação que pretende seja feita é com os levantamentos monetários efectuados pela A.. Mas sem fundamento quanto aos levantamentos referentes ao período de 1999 e 2000, efectuados na Bélgica. Não provou, desde logo, como devia, que a A. tenha utilizado tais montantes em seu proveito exclusivo, que, aliás, ocorreram quando ainda viviam juntos, sendo, por conseguinte, de presumir que se destinaram a fazer face às despesas comuns ou, pelo menos, efectuados ao abrigo do disposto nos arts. 1672º, 1674º, 1675º/1680º do CC.. Na douta sentença entendeu-se, e bem, que deveria a compensação ocorrer relativamente aos 1.118,04 € levantados pela A. já depois da separação, decisão com a qual esta se conformou. Não há, pelo referido, lugar a qualquer outra compensação para além da efectuada na sentença recorrida e para cujos fundamentos remetemos nesta parte. 3 – Em caso negativo se a A. tem direito aos juros de mora. Alega o R. que as transferências que fez das quantias comuns para contas de que é seu exclusivo titular, não visaram prejudicar a A. É certo que não vem provada, de forma expressa, essa intenção. É, porém, óbvia, como atrás já referimos. Até se compreenderia que o A. procedesse às aludidas transferências para evitar que a A. as fizesse e se locupletasse com o dinheiro que era propriedade de ambos, visando, assim, o seu acautelamento até ao momento em que deveria ser partilhado entre ambos. Mas não foi este o seu procedimento. Na verdade, como referido, omitiu na relação de bens esses valores e perante a respectiva reclamação da A. alegou que fora esta a efectuar esses levantamentos. Poder-se-ia dar o caso de, aquando da apresentação da relação de bens, se ter “esquecido” desse dinheiro. Mas o que já não se compreende, vindo da parte de quem não quer prejudicar, é que quando advertido desse “esquecimento” impute ao outro a apropriação por ele levada a cabo e, mesmo nesta acção, invoque a compensação com apropriações da A. que não provou. Não há dúvida que o R. transferiu da conta comum a parte do dinheiro que pertencia à A. e fê-lo, não no âmbito da normal administração dos bens comuns, mas para dele se apropriar como claramente resulta dos factos provados (art. 349º do CC). Tal apropriação, porque ilícita, constitui o recorrente, nos termos do art. 805º, nº 2 al. b) do CC, na obrigação de pagar os juros de mora, tal qual foi decidido na douta sentença recorrida. 4 – Se o R./recorrente deve ser absolvido do pedido. A resposta a esta questão resulta já do que atrás se referiu. Tratando-se de bens comuns tem a A. direito a metade do valor de que o R. se apropriou, deduzida a quantia de 1.118,04 € referente aos levantamentos que, por sua vez, também efectuou após a separação, nos precisos termos decididos na douta sentença recorrida e para cujos fundamentos, no mais se remete, ao abrigo do disposto no art. 713º/5 do Código de Processo Civil. O recurso não merece, pois, provimento. DECISÃO Termos em que se acorda, em conferência, nesta Relação: 1. Em negar provimento ao recurso; 2. Em confirmar a douta sentença recorrida; 3. Em condenar o recorrente nas custas. Évora, 22.03.2012 (António Manuel Ribeiro Cardoso) [1] Relatório elaborado tendo por base o constante na douta sentença recorrida.(Acácio Luís Jesus Neves) (José Manuel Bernardo Domingos) __________________________________________________ [2] Cfr. arts. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, o ac RE de 7/3/85, in BMJ, 347º/477, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111. [3] Seja a parte que o recorrente transcreveu sejam quaisquer outras declarações. |