Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MARIA PERQUILHAS | ||
| Descritores: | DIFAMAÇÃO LIBERDADE DE EXPRESSÃO HONRA E CONSIDERAÇÃO | ||
| Data do Acordão: | 03/25/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | I - O direito à liberdade de expressão, muitas vezes, colide com o direito ao bom nome, devendo ser efetuada uma ponderação, caso a caso, para se verificar até onde chegam os limites de cada um desses direitos. II - Nessa ponderação têm de ser atendidas e sopesadas todas as circunstâncias relevantes na concreta situação em análise, e, além disso, devem ser seguidos critérios de razoabilidade: existem situações em que a liberdade de expressão, por mais que coloque em causa o bom nome do visado, precisa de prevalecer (por exemplo, porque estamos a discutir uma questão de relevante interesse público); e existem casos de pessoas que, não sendo figuras públicas, o seu direito ao bom nome deve prevalecer sobre o direito à liberdade de expressão. III - No caso dos autos, os arguidos foram longe demais na manifestação dos seus sentimentos, opiniões e julgamento sobre as pessoas dos assistentes, ultrapassando a fronteira do equilíbrio entre o direito à opinião/liberdade de se expressar e o direito ao bom nome e à honra dos assistentes, ao fazerem afirmações que, inequivocamente, constituem a imputação aos assistentes da prática de ilícitos (uma opinião negativa sobre uma pessoa com quem se tem um conflito, ainda que se acredite fundada, razoável e certa, é distinta da imputação da prática de ilícitos a essa mesma pessoa). | ||
| Decisão Texto Integral: | I - RELATÓRIO Nos presentes autos vieram os arguidos interpor recurso da sentença de 8 de outubro de 2024 que decidiu: 1) Condenar o Arguido M, pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de 4 (quatro) crimes de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, e 182.º, ambos do Código Penal, nas penas parcelares de 90 (noventa) dias de multa. 2) Condenar o Arguido A, pela prática, e na forma consumada, de 4 (quatro) crimes de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, e 182.º, ambos do Código Penal, nas penas parcelares de 100 (cem) dias de multa. 3) Condenar o Arguido C, pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de 2 (dois) crimes de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, e 182.º, ambos do Código Penal, nas penas parcelares de 60 (sessenta) dias de multa. 4) Condenar o Arguido N, pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de 4 (quatro) crimes de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, e 182.º, ambos do Código Penal, nas penas parcelares de 70 (setenta) dias de multa. 5) Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condenar o Arguido M na pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), o que perfaz o montante global de € 1.440,00 (mil quatrocentos e quarenta euros); 6) Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condenar o Arguido A na pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), o que perfaz o montante global de € 1.600,00 (mil e seiscentos euros); 7) Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condenar o Arguido C na pena única de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros); 8) Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condenar o Arguido N na pena única de 140 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 9,00 (nove euros), o que perfaz o montante global de € 1.260,00 (mil duzentos e sessenta euros). 9) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Demandante H, condenando os Demandados M, A e N no pagamento solidário da quantia de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros) a título de compensação pelos danos não patrimoniais, acrescida juros moratórios computados à taxa legal (atualmente 4% ao ano – cfr. artigo 559.º, n.º 1 do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 8 de abril), desde a data da presente decisão, até efetivo e integral pagamento da indemnização. 10) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Demandante E, condenando os Demandados M, A e N no pagamento solidário da quantia de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros) a título de compensação pelos danos não patrimoniais, acrescida juros moratórios computados à taxa legal (atualmente 4% ao ano – cfr. artigo 559.º, n.º 1 do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 8 de abril), desde a data da presente decisão, até efetivo e integral pagamento da indemnização. 11) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Demandante R, condenando os Demandados M, A, C e N no pagamento solidário da quantia de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros) a título de compensação pelos danos não patrimoniais, acrescida juros moratórios computados à taxa legal (atualmente 4% ao ano – cfr. artigo 559.º, n.º 1 do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 8 de abril), desde a data da presente decisão, até efetivo e integral pagamento da indemnização. 12) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Demandante H, condenando os Demandados M, A, C e N no pagamento solidário da quantia de € 350,010 (trezentos e cinquenta euros) a título de compensação pelos danos não patrimoniais, acrescida juros moratórios computados à taxa legal (atualmente 4% ao ano – cfr. artigo 559.º, n.º 1 do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 8 de abril), desde a data da presente decisão, até efetivo e integral pagamento da indemnização. 13) Condenar os Arguidos no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC – cfr. artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9 em conjugação com a Tabela III, ambos do Regulamentos das Custas Processuais. Para o efeito apresentaram as seguintes conclusões: O arguido M: 1- Os factos 19 e 20 dados como provados devem ser eliminados desse elenco de factos; 2- O arguido assumiu que as cartas foram solicitadas a familiares e amigos para auxiliar tão só na sua defesa; 3- As cartas foram-lhe entregues para este as fazer chegar ao seu Advogado não tendo conhecimento do teor das mesmas; 4- Não foi o arguido que sugeriu o conteúdo das cartas, não as ditou, não as minutou sendo que foram livremente escritas pelas pessoas a quem foram pedidas; 5- Nenhuma testemunha ou arguido confirmou que o arguido tivesse lido ou tivesse tido conhecimento do conteúdo das cartas; 6- As relações entre as partes (arguidos e assistentes) são inexistentes e existe um conflito familiar entre os mesmos com diversos processos entre as partes há anos; 7- Não existiu qualquer prova que o arguido quis ofender a honra e consideração dos assistentes; 8- As expressões contidas nas cartas não passam de meras convicções pessoais e familiares de quem as subscreveu sendo que o arguido C até conseguiu esclarecer as expressões que mencionou: “ser do contra”, “não falar para ninguém da família”, “serem mal-educados”; 9- As restantes expressões constantes das cartas não têm relevância suficiente para constituir um crime e devem ser analisadas no conteúdo geral das desavenças entre as partes; 10- Ainda que alguma censura se pudesse retirar das mencionadas cartas, a mesma não podia ser imputada ao arguido que apenas as solicitou e entregou ao seu Mandatário para juntar aos autos. 11- Termos em que a sentença proferida pelo Tribunal deve ser revogada e substituída por outra mostrando-se violado o artigo 180º do Código Penal, assim se fazendo JUSTIÇA! * O arguido A 1 – Os factos 22) e 23) devem ser eliminados do elenco de factos provados; 2 – Na realidade, no âmbito do julgamento realizado, não se provou que o Recorrente tivesse interferência no conteúdo das cartas juntas aos autos, que o tivesse sugerido de alguma forma, e muito menos que o tivesse ditado, sendo que nenhum dos arguidos referiu ou invocou tal circunstância, assim como nenhuma testemunha se pronunciou acerca dessa matéria; 3 – Considerando que o contexto familiar era de longo conflito, e que o Recorrente estava perante a possibilidade de agravamento de medidas de coação, o que este pretendeu foi defender-se e não ofender os Assistentes. 4 – Não se pode olvidar todo o histórico de queixas e contra-queixas entre os Assistentes e os Arguidos M e A expressas nos respectivos certificados de registo criminal, isto para dizer que já muito anteriormente à junção das ditas cartas existiam quezílias e processos-crime entre ambas as partes o que torna absolutamente natural a falta de consciência da ilicitude da junção de tais cartas. 5 – As relações entre as partes, conforme foi confirmado pelo Assistente H, são inexistentes desde 2002, sendo que, existiram diversos processos entre as partes, conforme resulta do registo criminal dos arguidos A e M; 6 - Deste modo, não existindo qualquer tipo de prova de que o Recorrente teve acesso prévio aos factos e juízos de valor constantes de tais missivas, e de que os mesmos eram atentatórios do bom nome, reputação e dignidade dos assistentes, o facto provado 22) deve cair e ser eliminado dos factos provados; 7 - Nessa sequência o facto provado nº 23 deve igualmente ser eliminado no que ao Recorrente diz respeito, dado que o mesmo agiu na no exercício do seu direito de defesa. 8 – Sendo que a alteração desta matéria de facto impõe-se ao abrigo do disposto no artigo 412º, nº 3, a) e b), do CPP; 9- Não foi o Recorrente que expressamente ditou o conteúdo das cartas, tendo-se limitado a entregar os documentos apresentados pelos constituintes, e que mais não eram do que as convicções de terceiros ligados à família em conflito; 10 – E foi nesse contexto que perante mais um litígio, este de natureza criminal, entre os Assistentes e o ora Recorrente, e perante a possibilidade de ser determinado o agravamento de medidas de coacção, o ora Recorrente juntou as cartas elaboradas e assinadas por terceiros, das quais resultava patente uma relação de conflitualidade entre as partes envolvidas, e das quais constavam factos abonatórios a favor dos Arguidos; 11 – O Recorrente considera que a decisão constitui um atropelo ao direito de defesa, ao acesso à Justiça e uma limitação grave e desproporcional ao livre exercício do mandato forense; 12 – Ora, a existência da censurabilidade e da violação dos bens jurídicos abstractamente considerados, neste contexto, é inexistente, e no que concerne à concreta situação do ora Recorrente, o qual como se referiu não tinha qualquer interesse em denegrir a imagem de quem quer que fosse, mas apenas de defender os seus interesses agindo na convicção de estar a contribuir para o não agravamento das medidas de coacção.; 13 - Sendo certo que a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo considerou que tais cartas não tinham a aptidão de influir com a determinação ou não de medidas de coacção mais graves, mas tal não significa que fossem totalmente despiciendas, dado que das mesmas podia ser abalada a credibilidade das declarações complementares eventualmente prestadas pelos ofendidos, a própria veracidade das acusações, e levar o Tribunal a considerar que, ponderado o tal circunstancialismo de contenda familiar, não se verificavam os requisitos para o agravamento, 14 - Ponderação essa que nem sequer era exigível ao Recorrente, na qualidade de arguido no processo em causa. 15 - Por fim, atendendo ao teor das cartas, entende-se que mais não passam do que meras convicções pessoais e familiares, que não assumem a relevância suficiente para constituir um crime, quanto muito um ilícito digno de tutela meramente civil; 16 - Além disso, por detrás de tudo está um longo processo de inventário, também ele sinuoso, sendo nesse âmbito que as desavenças se começaram a desenrolar expressões utilizadas nas cartas, no contexto em que estão inseridas, e perante a avidez com que alguns dos Recorridos imputam aos Arguidos juízos de natureza idêntica, sem reconhecerem qualquer desvalor a essa conduta, não colidem com o conteúdo ético da personalidade moral do assistente, nem atinge valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do Direito Penal, nem sequer afetando aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana, e tão pouco atinge conteúdo essencial do direito constitucional à honra e ao bom nome; 17 – A jurisprudência alude regularmente a que um processo encerra em si uma luta, quase sempre viva e apaixonada, de interesses ou sentimentos, o que ocorre no caso concreto; 18 – Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem valoriza e sobrepõe a liberdade de expressão em compaginação de valores como a honra, dando prevalência à primeira, só podendo esta ser sujeita a restrições nos termos do artigo 10º, nº 2 da Convenção; 19 – Além disso, o TEDH defende que o ordenamento jurídico português contém um remédio específico para a protecção da honra no artigo 70º do Código Civil, pelo que a penalização por difamação se deve entender como residual; 20 - À semelhança do que o TEDH tem decidido quanto ao contexto da política, também no exercicio do direito de defesa a importância e alcance da liberdade de expressão neste âmbito não anula tal distinção, como se o direito à honra deixasse de ser tutelado quando são visados agentes políticos, estando numa situação de fronteira, o que leva a concluir pela falta de prova da consciência da ilicitude por parte do arguido. 21 - Assim, a sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser revogada e substituída por outra, mostrando-se violado o disposto nos artigos 10º da CEDH, 18º, nº 2, 20º e 208º da CRP, 180º do CP. Espera, respeitosamente deferimento, * O arguido C1) Foi o Arguido doutamente condenado pela prática em autoria material da prática de dois crimes de difamação (artigo 180.º, n.º 1 e 182.º todos do Código Penal, doravante CP). Sendo factos integradores, ter o Arguido referindo-se aos Ofendidos H e R escrito: era exelente hoje em "dia" isto há cerca de vinte anos não falam para ninguém da família e são sempre do contra e mal educados em qualquer tipo de converça ou situação, tendo em conta uma situação de falecimento de uma tia nossa que deixou algo de herança até nisso são do contra. São essas as minhas informações breves ao qual beneficie os meus primos que bem o mereçam" 2) Com o devido respeito por opinião contrária, o Arguido não cometeu qualquer crime. 3) Diz-se "difamar" o acto de imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivo da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo. Sendo "injuriar alguém" o imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração. Assim, em qualquer dos casos, são elementos objectivos do crime, a imputação ou formulação de juízo ofensivo da honra ou consideração. 4) Sendo a honra tida como dignidade subjectiva, isto é, o elenco de valores éticos que cada pessoa tem, como património pessoal e interno; por «honra» deverá entender- se a integridade moral de cada um, a probidade de carácter, rectidão, lealdade e digni- dade subjectiva, fazendo parte da essência da personalidade humana, enquanto condição essencial e de natureza moral para que um indivíduo possa, com legitimidade, ter estima por si (AC. STJ de 2-10-1996, CJ, 1996, pág.147). Já a consideração é o merecimento que o indivíduo tem no meio social, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade, a forma como a pessoa é vista pela sociedade. 5) Pelo que, será necessário averiguar-se se os dizeres escritos do Arguido são ofensivos das citadas honras e consideração. E, a resposta terá de ser negativa. Dizer que os primos eram excelentes actualmente são mal educados por não falarem a ninguém da família e serem "do contra" não pode, sob pena de pôr em causa a liberdade de expressão, ser considerado ofensivo. São afirmações que não podem ser tidas como ofensivas, porque encerram apenas uma opinião, são objectivamente uma crítica, não uma ofensa. Ora, não cumprimentar quem se conhece sem razão e dificultar sistematicamente a convivência entre pessoas são fundamentos para uma crítica legítima, uma censura e tais considerações são meras opiniões em geral e que em nada visam, pretendem ou conseguem ofender quem quer que seja. 6) O Arguido apenas expressa uma mera opinião, acrescentando- aliás — "são essas as minhas informações breves." 7) Isto é, não imputada nenhuma característica negativa, nem positiva. Apenas expressa aquilo que pensa, partilha uma opinião pessoal, uma crença sua. Não se vislumbra onde esteja a prática pelo Arguido de qualquer crime ou a ofensa ou difamação. 8) As expressões usadas pelo Arguido, ainda que pudessem ser vistas como deselegantes, não têm caracter suficientemente ofensivo da honra e consideração que mereçam censura penal, neste sentido vd douto Ac TRC de 16/05/2012. 9) O art. 37.2, n.2 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) reconhece a todos o direito a exprimir e até a divulgar livremente o seu pensamento. A liberdade de expressão, enquanto espaço para se exprimir e divulgar livremente o pensamento próprio, é inerente à dignidade da pessoa humana, sendo corolário desta. O Artigo 37.2, n.2 1, da CRP consagra dois direitos de comunicação do pensamento, a saber:o direito de exprimir livremente o respetivo pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, sem impedimentos nem discriminações; e o direito de divulgar livremente o respetivo pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, sem impedimentos nem discriminações. 10) A liberdade de expressão consiste na faculdade de se revelar ou propagar o pensa- mento próprio e, quanto ao Estado, não deve apenas abster-se de impedir o seu exercício, mas antes deve assegurar e garantir tal possibilidade. Quando falamos em liberdade de expressar, na liberdade de expressar pensamentos, falamos na expressão de convicções, ideias, opiniões, perspetivas, apreciações de factos, juízos de valor, isto é, o pensamento. E, por se tratar de pensamento não depende de quaisquer requisitos, nem sequer pressupõe a inteligibilidade, a racionalidade, o interesse social ou a veracidade. 11) Tal liberdade não tutela apenas a manifestação de juízos valorativos inócuos, a liberdade de expressão permite inclusivamente, segundo a doutrina e jurisprudência dominantes também o exagero, agressividade e até provocação. 12) Liberdade de expressão tem longínquas raízes históricas, surpreendendo-se na Constituição dos EUA, o primeiro texto legal a referir-se claramente tal liberdade. São cada vez mais frequentes os conflitos entre o direito à honra, bom nome e reputação, por um lado, e o direito de expressão do pensamento, por outro. Numa sociedade democrática, a liberdade de expressão reveste a natureza de verdadeira garantia institucional, impondo por vezes, um recuo da tutela jurídico-penal da honra. Recuo, que tem que ser justificado por um correcto exercício da liberdade de expressão, aferido pelo interesse geral. Sendo inevitável o conflito entre a liberdade de expressão, na mais ampla acepção do termo e o direito à honra e consideração, a solução do caso concreto, há-de ser encontra- da através da «convivência democrática» desses mesmos direitos: i. é., consoante as situações, assim haverá uma compressão maior ou menor de um ou outro. 13) Costa Andrade defende que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto, esclarecendo, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar. Três observações formula Costa Andrade a propósito da referida atipicidade da crítica objectiva: Por um lado, a mesma não depende do acerto, da adequação material ou da verdade das apreciações subscritas. Os actos praticados serão atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material ou, inversamente, a sua impertinência; Em segundo lugar, o direito de crítica com este sentido e alcance não conhece limites quanto ao seu teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas. O seu de ironia e com os efeitos mais demolidores sobre a obra ou prestação em apreço; Em terceiro lugar, é hoje igualmente pacífico o entendimento que submete a actuação das instâncias públicas ao escrutínio do direito de crítica (objectiva) com o sentido, al- cance e estatuto jurídico- 14) Por outro lado, em qualquer dos crimes imputados ao Arguido, haverá que atender ao artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (doravante CEDH) - neste sentido vd. douto Ac TRE de 28/05/2013. "orientar-se para uma interpretação restritiva da defesa da honra e maximizadora da liberdade de expressão, realidade que é a expressa na ordem jurídica enformada pela Convenção Europeia - douto Ac TRE de 28/05/2013. 15) O direiro restritico à honra e expansivo da liberdade de expressão tem outras manifestações de cariz mais actual, a tendência para a extinção do tipo penal «difamação», já assumida na vertente «media» ou jornalística, através da Resolução 1003 (1993) sobre ética em jornalismo, da Recomendação 1589 (2003) sobre liberdade de expressão nos media na Europa, retomadas pela Resolução 1535 (2007) sobre ameaças á liberdade de expressão de jornalistas e Resolução 1577 (2007), para a descriminalização da difamação («Towards decriminalisa- se evitar os efeitos nefastos da existência de um vasto tipo penal de «difamação» que provoque o conhecido efeito de arrefecimento de condutas («chilling effect»), surgindo as ameaças de prossecução por difamação como uma «particularmente insidiosa forma de intimidação»[Resolução CE 1577 (2007)], que tem sido utilizada na sociedade portuguesa de forma abundante, seja por pessoas, seja por empresas e organismos públicos ou privados, como forma de calar a oposição, impedir o exercício de direitos e impor formas mais ou menos subtis de censura ou de dominância.Vl. Estes não são argumentos de interpretação do direito positivado em Portugal, mas são alertas confirmatórios no sentido da compreensão de uma interpretação restritiva do tipo penal «difamação» contido no artigo 180Q do Código Penal ? luz do artigo IOQ da Convenção. VII. Essa interpretação restritiva da defesa da honra e maximizadora da liberdade de expressão deve manter- AC. acima indicado. 16)"0 que é ofensivo da honra e consideração alheia não é aquilo que o é para o concreto ofendido, mas sim o que é considerado como tal pela generalidade das pessoas de bem de um certo país e no contexto sócio-cultural em que os factos se passaram, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse douto Ac. TRE de 20/05/2014.. 17) As expressões usadas pelo Arguido podendo, eventualmente, não primar pela cortesia ou dever de respeito para com os seus primos consubstancia apenas o exercício legítimo do direito à crítica, vd douto AC. TRE de 20/05/2014.. 18) Do texto da CRP, resulta que o direito à opinião goza de proteção independentemente da sua expressão ser valiosa ou sem interesse, certa ou errada, fundada ou sem fundamento, vd douto Ac TRG de 30/06/2014. 19) Na senda do muito douto AC. TRG de 19/10/2015, dir-se-ia e com clara aplicação aos falta de educação ou grosseria, com faltas de cortesia ou gentileza. Porque a sociedade em que vivemos não é habitada apenas por pessoas perfeitas, existe um espetro alargado de situações com as quais nos podemos ver confrontados, que po-dendo não ser as mais corretas, adequadas e ajustadas não têm de ser necessariamente criminosa (...) é o que sucede, no caso dos autos em que estão em causa juízos valorativos emitidos pelo arguido relativos á atuação de uma funcionária judicial, que mais não traduzem do que a mera expressão de uma opinião pessoal verbalizados em termos que se atêm claramente no direito á crítica que a todos assiste. 20) Aliás, criminalizar ou punir comportamentos como o do Arguido seria coartar o direito à sua liberdade de expressão, impedir o direito à crítica e fomentar uma sociedade de incapazes de assumir posições com medo das consequências, fazendo imperar a hipocrisia e falsidade. 21) O homem comum não retira das declarações do Arguido qualquer rebaixamento, achincalhamento ou menorização do ofendido. Razão pela qual, não é a conduta do Arguido bastante para merecer a censura penal, o que implicará o necessário despacho de não pronuncia. 22) Mas, ainda que as expressões do Arguido fossem aptas, o que não se admite, a integrar os ilícitos de que vem acusado, não são puníveis os atentados à honra e consideração perpetrados com vista a realizar um interesse legítimo, desde que o agente logre provar a verdade ou a veracidade da imputação, o que foi o caso. 23) O legislador confere superioridade à liberdade de expressão e de informação sobre o direito do cidadão à honra, bom nome e reputação. Assim, há causa de justificação especial, prevista no artigo 180.º, n.º 2 do CP, a prova da verdade, válida para afirmações de factos desonrosos. No caso dos autos, não são imputados factos concretos desonrosos. O Arguido limita-se a opinar sobre os ofendidos, e fá-lo dirigindo-se a estes, em forma de crítica. 24) Deverá prevalecer o direito à liberdade de expressão, que implica a não submissão do arguido a julgamento, por ausência de factos típicos e censuráveis do ponto de vista penal. 25) Ainda que tivesse feito a imputação de factos desonrosos, os mesmos a serem verdade (como se provará) fazem nascer causa de justificação, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 180.º do CP. 26) Não são puníveis os atentados à honra e consideração perpetrados .com vista a realizar um interesse legítimo) desde que o agente logre provar a verdade ou a veracidade da imputação. 27) O nosso ordenamento jurídico-penal confere superioridade à liberdade de expressão e de informação sobre o direito do cidadão à honra, bom nome e reputação. Assim, mostra-se necessário realizar uma ponderação circunstanciada dos interesses em jogo, que tome — designadamente — em consideração o contexto em que os juízos são proferidos e a qualidade do visado. Por outro lado, ao julgador cabe avaliar a existência para a emissão do juízo de valor. 28) Resulta do artigo 180.º, n.º 2 — a) do CP que a exclusão da ilicitude de uma imputação fáctica desonrosa depende de que esta tenha na sua base um interesse legítimo. É assente que a falsidade dos factos imputados ou reproduzidos não é elemento do tipo de ilícito da difamação e da injúria, mas antes pressuposto objectivo da dirimente sub judice. Por respeito ao exercício da liberdade de expressão, a possibilidade de prova da verdade é um factor de consolidação do estado de direito democrático, de cariz constitucional. A prova da verdade é pois um modo de permitir que, provando-se a razão do sujeito que em nada foi injusto para com a vítima seja considerado que o seu comportamento não perturbou a paz jurídica e por isso não é censurável. Pretendeu, assim, o legislador penal valorizar a transparência, a autenticidade e a frontalidade nas relações humanas. 29) Em alternativa à prova da verdade, admite a lei que as afirmações de factos ofensivas da honra e da consideração sejam justificadas mediante prova da veracidade, ou seja, o agente tão-pouco será punível se imputar a outrem um facto desonroso falso, desde que à sua conduta esteja subjacente um interesse público ou privado legítimo e, cumulativamente, prove que tinha 30) O Arguido não cometeu qualquer crime e a sua conduta não merece censura penal, mas antes merecer reconhecimento pelo facto de ter expressado a sua opinião, ainda que sabendo que o ofendido poderia não gostar, mas não se coibindo de o fazer por razões de lealdade e no exercício do seu legitimo direito à critica, o Arguido apenas disse a verdade. 31) É mal educado alguém que deixa muito a desejar no trato com as pessoas, desconsiderando-as, desrespeitando os outros, mostrando-se inconveniente, arrogante, petulante, grosseiro, descortês, inamável, deselegante. Ser mal educado não significa e não decorre da frase usada pelo Arguido como ofensivo, não se trata de chamar algo com o intuito de ofender ou magoar, nem tem capacidade para tanto, trata-se de uma afirmação que, do contexto da frase se retira do facto de os Ofendidos não falarem com a família, não serem simpáticos e agradáveis para com estes. Está em causa aquilo que o Arguido reputa como falta de polimento, de delicadeza, dos Ofendidos. Não se trata de serem burros, estúpidos, reles, imbecis, parvos. 32) Termos em que, se conclui que o arguido praticou os fcatos dados como provados em relação à sua pessoa, mas com isso não cometeu qualquer crime, ora, não resultou provado, que o Arguido pretendesse com o seu comportamento ofender quem quer que seja. Resulta provado, desde logo da leitura da sua carta que pretendia beneficiar os primos, mas em relação aos Assistentes deu o tribunal a quo como provada a conclusão de que pretendia ofender, não que tal resulte de qualquer facto dado como provado. NESTES TERMOS E nos melhores de direito, dado que seja por v.Exas. - Venerandos Desembargadores - o douto suprimento, deve o presente ser recebido e acolhidas que sejam as razões expostas, deve a douta sentença oura recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva o Arguido, com o que se fará a desejada JUSTIÇA. Espera, respeitosamente, deferimento. * O arguido N1 – Os factos 22) e 23) devem ser eliminados do elenco de factos provados; 2 – Na realidade, no âmbito do julgamento realizado, não se provou que o Recorrente tivesse interferência no conteúdo das cartas juntas aos autos, que o tivesse sugerido de alguma forma, e muito menos que o tivesse ditado, sendo que nenhum dos arguidos referiu ou invocou tal circunstância, assim como nenhuma testemunha se pronunciou acerca dessa matéria; 3 – O Recorrente negou que tivesse lido o conteúdo das cartas juntas aos autos, e nenhum arguido, ou testemunha, asseverou que tivesse visto o arguido a fazê-lo; 4 – Não se pode olvidar todo o histórico de queixas e contra-queixas entre os Assistentes e os Arguidos M e A expressas nos respectivos certificados de registo criminal, isto para dizer que já muito anteriormente à junção das ditas cartas existiam quezílias e processos-crime entre ambas as partes o que torna absolutamente natural a menção do Recorrente à conflitualidade dos Assistentes em relação aos acima mencionados Arguidos; 5 – As relações entre s partes, conforme foi confirmado pelo Assistente H, são inexistentes desde 2002, sendo que, existiram diversos processos entre as partes, conforme resulta do registo criminal dos arguidos A e M; 6 - Sendo tão longas tais divergências, em termos temporais, e sendo o Recorrente reconhecidamente Advogado da família H há mais de 20 anos, o que foi confirmado pelos ditos arguidos e testemunhas, é natural que o Recorrente tenha assumido de forma espontânea a expressão em causa de que os “queixosos são pessoas conflituosas”; 7 - Deste modo, não existindo qualquer tipo de prova de que o Recorrente teve acesso prévio aos factos e juízos de valor constantes de tais missivas, e de que os mesmos eram atentatórios do bom nome, reputação e dignidade dos assistentes, o facto provado 22) deve cair e ser eliminado dos factos provados; 8 - Nessa sequência o facto provado nº 23 deve igualmente ser eliminado no que ao Recorrente diz respeito, dado que o mesmo agiu na qualidade de Advogado ao abrigo das prerrogativa que lhe são concedidas pela Constituição da República Portuguesa e Código do Processo Civil, entre outros, nomeadamente nos artigos 208º da CRP; 150º, nº 2, do CPC; 9 – Sendo que a alteração desta matéria de facto impõe-se ao abrigo do disposto no artigo 412º, nº 3, a) e b), do CPP; 10 - Não foi o Recorrente que expressamente ditou o conteúdo das cartas, tendo-se limitado a juntar os documentos apresentados pelos constituintes, e que mais não eram do que as convicções de terceiros ligados à família em conflito; 11 – E foi nesse contexto que perante mais um litigio, este de natureza criminal, entre os Assistentes e os Arguidos, constituintes do ora Recorrente, e perante a possibilidade de ser determinado o agravamento de medidas de coacção, o ora Recorrente juntou as cartas elaboradas e assinadas por terceiros, das quais resultava patente uma relação de conflitualidade entre as partes envolvidas, e das quais constavam factos abonatórios a favor dos Arguidos; 12 – O Recorrente considera que a decisão constitui um atropelo ao direito de defesa, ao acesso à Justiça e uma limitação grave e desproporcional ao livre exercício do mandato forense; 13 – Ora, a existência da censurabilidade e da violação dos bens jurídicos abstractamente considerados, neste contexto, é inexistente, e no que concerne à concreta situação do ora Recorrente, o qual como se referiu não tinha qualquer interesse em denegrir a imagem de quem quer que fosse, mas apenas de defender os interesses dos seus constituintes, agindo na convicção de estar a contribuir para o não agravamento das medidas de coacção.; 14 - Sendo certo que a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo considerou que tais cartas não tinham a aptidão de influir com a determinação ou não de medidas de coacção mais graves, mas tal não significa que fossem totalmente despiciendas, dado que das mesmas podia ser abalada a credibilidade das declarações complementares eventualmente prestadas pelos ofendidos, a própria veracidade das acusações, e levar o Tribunal a considerar que, ponderado o tal circunstancialismo de contenda familiar, não se verificavam os requisitos para o agravamento; 15 - Por fim, atendendo ao teor das cartas, entende-se que mais não passam do que meras convicções pessoais e familiares, que não assumem a relevância suficiente para constituir um crime, quanto muito um ilícito digno de tutela meramente civil; 16 - Além disso, por detrás de tudo está um longo processo de inventário, também ele sinuoso, sendo nesse âmbito que as desavenças se começaram a desenrolar expressões utilizadas nas cartas, no contexto em que estão inseridas, e perante a avidez com que alguns dos Recorridos imputam aos Arguidos juízos de natureza idêntica, sem reconhecerem qualquer desvalor a essa conduta, não colidem com o conteúdo ético da personalidade moral do assistente, nem atinge valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do Direito Penal, nem sequer afetando aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana, e tão pouco atingem o conteúdo essencial do direito constitucional à honra e ao bom nome; 17 – A jurisprudência alude regularmente a que um processo encerra em si uma luta, quase sempre viva e apaixonada, de interesses ou sentimentos, o que ocorre no caso concreto; 18 – Nesse sentido veja-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa (processo nº 7123/07.3TDLSB.L1-5); do Tribunal da Relação de Évora, de 13-07-2017 (processo nº 1779/14.8TAPM.E1); 19 – Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem valoriza e sobrepõe a liberdade de expressão em compaginação de valores como a honra, dando prevalência à primeira, só podendo esta ser sujeita a restrições nos termos do artigo 10º, nº 2 da Convenção; 20 – Além disso, o THDE defende que o ordenamento jurídico português contém um remédio específico para a protecção da honra no artigo 70º do Código Civil, pelo que a penalização por difamação se deve entender como residual, como se menciona no Acórdão do tribunal da Relação de Évora, de 01-07-2014, no processo nº 53/11.6TAEZ.E2; 21 – Também o mesmo Tribunal, em Acórdão de 07-03-2017, refere que a CRP confere aos Advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz a qual não sendo total, possui grande abrangência, defendendo-se no mesmo que “a imunidade não está dependente de uma ponderação de valor de compatibilização que tenha em vista evitar a liberdade de expressão do advogado, de forma a que se possa afirmar que quando atinge a honra de alguém a imunidade já não opera”; 22 – Na decisão também não se teve em conta o posicionamento da Ordem dos Advogados, nos seus pareceres no que concerne a liberdade de expressão do Advogado, defendendo-se no Parecer de 17-06-3005 que nos termos do artigo 31º, nº 2 – b) do Código Penal, o facto não é punível quando a ilicitude for excluída, nomeadamente por tal facto ser praticado no exercício de um direito, como é o caso dos autos; 23 – Ora, na senda do que foi supra alegado, ainda que alguma censura pudesse ser retirar das referidas cartas, a mesma não pode ser imputada ao mandatário que fez a sua junção aos autos, cumprindo o direito de defesa dos seus constituintes, tendo em conta que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, parte da liberdade de expressão, enquanto um dos pilares basilares do Estado de Direito material e democrático, a coberto da qual sempre resultaria inadmissível qualquer condenação da ora Recorrente, nas particulares circunstâncias do caso, no seu papel de Advogado; 24 - Assim, a sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser revogada e substituída por outra, mostrando-se violado o disposto nos artigos 10º da CEDH, 18º, nº 2, 20º e 208º da CRP, 180º do CP. * Recebidos os recursos respondeu o MP em 1ª Instância, pugnando pelo não provimento dos recursos e a manutenção do decidido pela primeira instância.* * O assistente R respondeu igualmente aos recursos interpostos, pugnando pela manutenção do decidido.* II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - art.º 410º nº 2 CPP.No presente recurso cumpre conhecer das seguintes questões: - Erro de julgamento de facto. - Erro na qualificação jurídica dos factos. * III – Fundamentação:A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos: A- Factos Provados Com relevância para a boa decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade: Da pronúncia: 1. No processo 299/18.6T9ABT, H e E apresentaram queixa-crime contra M e A. 2. Concluído o inquérito, H e E deduziram acusação particular contra M e A pela prática do crime de Injúria, no que foram acompanhados pelo Ministério Público, e requereram a abertura de Instrução (que correu termos no Juízo de Instrução Criminal de Santarém), pedindo a pronúncia destes pela prática dos crimes de Ameaça Agravada e Introdução em Local Vedado ao Público. 3. Por despacho de 17 de maio de 2021 (com a ref.ª 86810833) foi determinada a conexão do processo 435/19.5T9ABT ao processo 299/18.6T9ABT. Naquele processo 435/19 os arguidos M e A eram arguidos e R Assistente e Ofendido. 4. Por despacho de 20 de maio de 2021 (com a ref.ª 86814008) proferido no processo 8/19.2T9ABT, foi determinada a conexão destes autos ao processo 299/18.6T9ABT. Naquele processo 8/19.2T9ABT os arguidos M e A eram arguidos e MH Assistente e Ofendido. 5. Por despacho proferido em ata, datado de 14-07-2020 (com a ref.ª 84352317) a Meritíssima Juiz de Instrução determinou que na data de 27 de julho de 2020, fossem os arguidos ouvidos com vista à reapreciação do seu estatuto coativo, tendo em vista o seu possível agravamento. 6. No dia 23-07-2020, o arguido N, na sua qualidade de Advogado e mandatário dos arguidos M e H, apresentou nesses autos um requerimento (com a ref.ª 6996809), remetido por correio eletrónico, onde juntou aos autos as seguintes cartas com o respetivo conteúdo (transcrito na parte aqui relevante): 7. Carta redigida e assinada por C, onde se afirma: “…completamente de inverço dos meus primos "M" e "R" que em pequenos era exelente hoje em "dia" isto há cerca de vinte anos não falam para ninguém da família e são sempre do contra e mal educados em qualquer tipo de converça ou situação, tendo em conta uma situação do falecimento de uma tia nossa que deixou ainda algo de herança até nisso são do contra. São essas as minhas informaçãos breves ao qual beneficie os meus primos que bem o mereçam;” 8. Carta redigida e assinada por CM onde se afirma: "H e sua esposa E e Filhos R e MH, que são meus primos!!! NÃO SE ESCOLHE A FAMÍLIA!!! Que vergonha, eu tenho de dizer que sou da mesma familia de essa gente. A vida deles consista simplesmente a fazer mal por qualquer parte onde passam. A visa deles é expreiiar os vizinhos, família e quem eles não gostam!! Muita gente, porque não gostam de ninguém. Educaram os filhos na mesma condição: ÓDIO e INVEJA. INVEJA, foi toda a vida deles pela família H e sua esposa E só estão felizes sabendo que alguém da família está doente ou a morer, é isso que os fazes crescer!!! H e sua esposa E deixaram morrer as suas maes, ele há mais de de dez anos que não visitava a sua e ela pois a mãe na rua!!! MH e R são iguais aos pais ou piorlt Cuidade H e E!! A mãe da E que era minha tia, um dia disse-me: Andei nove meses com um monstro dentro de mim, e esse monstro deu luz a dois monstros também”. 9. Carta redigida e assinada por D onde se afirma, "H, sua esposa E e seus filhos: R e MH que sempre fizeram mal à volta deles. Em 2009, quando tinha 15 anos fui agredido verbalmente por MH e R que me disseram "é hoje que agente te lixa, paneleiro num bar de São Miguel do Rio Torto, não fizeram nada porque havia muita gente no bar. Eu não apresentei queixa porque não sou como eles a irem à justiça para nada, eles só vivem de maldade, ciúmes, inveja e raiva, a vida deles consiste a fazer mal a tudo e a todos.”. 10. Carta redigida e assinada por J onde se afirma, “H e E nunca cuidaram de seus respectivos pais, E até expulsou sua mãe de 80 anos, ela morreu um ano após a tristeza. Eles não foram a nenhuma comemoração fúnebre. Então foram os filhos de H e E que agrediram M naquele dia. Nunca vi M ou A agredidos, seguidos ou insultados pelas outras partes. Posso atestar com honra que H, E, R e MH são egoístas, ciumentos e carecem de humanidade.”. 11. Nesse requerimento o arguido N mais escreve que “Os arguidos são pessoas sérias e responsáveis, como o demonstram as declarações que juntam - doc .3 a 7 - e se dão por integralmente reproduzidas, ao contrário dos "queixosos" que são pessoas conflituosas como o demonstram os documentos atrás referidos. 12. Conclui, no que aqui releva, pedindo que se mantenham as medidas de coação já aplicadas aos arguidos A e M. 13. Estas missivas passaram a fazer parte dos autos e foram lidas por Juízes, Magistrados do M.P., Advogados e possivelmente por funcionários judiciais que tiveram intervenção nesse processo. 14. O arguido C redigiu a carta supra referida, sabendo que os factos e juízos de valor que ali mencionava eram objetivamente atentatórios do bom nome, reputação e dignidade dos assistentes nelas mencionados. 15. Mais sabia o uso que iria ser dado a essas missivas pelos arguidos M e A, a quem as entregou. 16. Querendo desse modo ofender a honra e bom nome dos assistentes. 17. Os arguidos M e A solicitaram a C, CR, D e J que redigissem as respetivas cartas, com o propósito de as juntar ao supra referido processo. 18. Receberam essas cartas e entregaram-nas ao arguido N para esse efeito. 19. Sabendo que os factos e juízos de valor que mencionavam nas respetivas missivas eram objetivamente atentatórios do bom nome, reputação e dignidade dos assistentes nelas mencionados. 20. Querendo desse modo ofender a honra e bom nome dos assistentes. 21. O arguido N recebeu essas missivas dos arguidos M e A, seus constituintes, e na qualidade de seu mandatário forense, juntou-as aos autos como supra se descreveu. 22. Sabendo que os factos e juízos de valor que mencionavam nas respetivas missivas eram objetivamente atentatórios do bom nome, reputação e dignidade dos assistentes nelas mencionados. 23. Em todas as suas atuações, os arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei. Da situação pessoal, profissional e económica dos Arguidos: 24. O Arguido M trabalhou, desde os seus 21 anos, como motorista de veículos pesados para a empresa dos seus pais, situação que se manteve até há cerca de três anos, altura em que aquela unidade encerrou. Desde então não exerce qualquer atividade profissional. 25. O seu agregado familiar é composto pelo próprio, pela sua companheira e pelos dois filhos menores do casal, com 10 e 14 anos, e reside em habitação que é parte integrante de uma quinta pertencente à família, onde também habitam a sua mãe e o seu irmão. 26. O agregado familiar do Arguido M conta com rendimentos na ordem dos € 1.100,00 provindos da atividade profissional da companheira do Arguido, que trabalha no ramo dos seguros, tendo, por outro lado, despesas fixas mensais com água, eletricidade, serviços de telecomunicação e alimentação na ordem dos € 500,00. 27. O Arguido A trabalhou desde os seus 20 anos como motorista de veículos pesados para a empresa dos seus pais, situação que se manteve até há cerca de três anos, altura em que aquela unidade encerrou. Desde então não exerce qualquer atividade profissional. 28. O seu agregado familiar é composto pelo próprio, pela sua esposa e pelos dois filhos menores do casal, com 13 e 16 anos, e reside em habitação que é parte integrante de uma quinta pertencente à família, onde também habitam a sua mãe e o seu irmão. 29. O agregado familiar do Arguido A conta com rendimentos de € 800,00 provindos da atividade profissional da companheira do Arguido, que trabalha em empresa de informática, e de € 800,00 provenientes do arrendamento de um imóvel que detém em França. 30. O agregado familiar do Arguido A tem despesas fixas mensais com água, eletricidade, serviços de telecomunicação e alimentação na ordem dos € 400,00. 31. O Arguido C tem o 9.º ano de escolaridade, consolidou a sua vida laboral primeiro como militar, durante sete anos, e, posteriormente, como operário da construção civil, até ter passado a fazer biscates por conta própria e ingressado numa empresa de alumínios. 32. Atualmente, o Arguido C aufere mensalmente, em contrapartida do seu trabalho, a quantia média de € 900,00. 33. O agregado familiar do Arguido C é composto pelo próprio e pelo seu filho de 19 anos, tendo despesas fixas mensais com água, eletricidade, serviços de telecomunicação e alimentação que rondam os € 350,00, a que acresce a mensalidade de € 246,00 relativa a um crédito para aquisição de viatura automóvel. 34. O Arguido N exerce a atividade profissional de advogado, auferindo mensalmente, por conta da mesma, montante não concretamente apurado. 35. O agregado familiar do Arguido N é composto pelo próprio e pela sua esposa, atualmente reformada, e tem residência fixada em casa própria. 36. O Arguido N tem encargos mensais na ordem dos € 8.000,00. Mais se provou que: 37. O Arguido M não tem averbadas ao seu certificado de registo criminal quaisquer condenações. 38. O Arguido C não tem averbadas ao seu certificado de registo criminal quaisquer condenações. 39. O Arguido N não tem averbadas ao seu certificado de registo criminal quaisquer condenações. 40. O Arguido A foi condenado em 10-10-2019, por sentença proferida no processo n.º 59/18.4GDABT, transitada em julgado em 05-06-2020, pela prática, em 22-07-2018, de 1 (um) crime de dano simples, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (sete euros), que perfaz o total de € 400,00 (quatrocentos euros), a qual se extinguiu em 27-05-2021. 41. O Arguido A foi condenado em 13-02-2023, por sentença proferida no processo n.º 6/23.1GDABT, transitada em julgado em 15-03-2023, pela prática, em 29-01-2023, de 1 (um) crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 115 (cento e quinze) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), que perfaz o total de € 690,00 (seiscentos e noventa euros), a qual se extinguiu em 08-07-2023, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 6 (seis) meses, a qual se extinguiu em 15-09-2023. 42. O Arguido A foi condenado em 19-03-2024, por sentença proferida no processo n.º 30/22.1GBABT, transitada em julgado em 29-04-2024, pela prática, em 17-01-2022, de 1 (um) crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), que perfaz o total de € 1.000,00 (seiscentos e noventa euros), a qual se extinguiu em 10-05-2024. Do pedido de indemnização cível [para além dos factos do despacho de pronúncia dados como provados]: 43. Como consequência direta e necessária das condutas dos Arguidos, os Assistentes sentiram-se humilhados, vexados e diminuídos. 44. H encontra-se atualmente reformado da profissão de eletromecânico, e aufere rendimentos na ordem dos € 4.000,00, resultantes da sua reforma, que se computa em € 2.000,00, e de rendas com o arrendamento de imóveis, que rondam igualmente os € 2.000,00. 45. H habita em casa própria, com a sua esposa, E, a qual aufere € 1.000,00 a título de reforma. 46. O agregado familiar de H e de E tem despesas fixas mensais médias na ordem dos € 1.500,00. 47. R não exerce atualmente qualquer atividade profissional, mas tem rendimentos na ordem dos € 1.750,00, contando o seu agregado familiar, ainda, com a reforma da sua esposa no montante de € 1.000,00. 48. O agregado familiar de R é composto pelo próprio, pela sua esposa e pelos seus três filhos, com 16, 19 e 21 anos, e tem despesas fixas mensais na ordem dos € 1.000,00. 49. MH é militar e aufere em contrapartida do seu trabalho a quantia de € 2.000,00. 50. O agregado familiar de MH é composto pelo próprio, pela sua esposa e pelos dois filhos menores do casal. 51. O agregado familiar de MH conta, ainda, com os rendimentos do trabalho da sua esposa, na ordem dos € 2.000,00, e tem despesas fixais mensais, incluindo mensalidades relativas a crédito bancário, no montante de € 1.500,00. * B- Factos não provados Com relevância para a boa decisão da causa, não ficaram por provar quaisquer factos. * Consigna-se que não se levou à decisão sobre a matéria de facto a alegação de natureza conclusiva, de direito ou simplesmente irrelevante para a decisão da causa. *** IV. Motivação A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto estribou-se na análise crítica, global e articulada dos elementos de prova documental constantes dos autos e da prova produzida em audiência de julgamento, concatenada, ainda, com as regras da experiência comum e apreciada segundo a livre convicção do julgador (cfr. artigo 127.º, do Código de Processo Penal). No que respeita aos pontos 1. a 13. dos factos provados, a convicção do Tribunal resultou das declarações confessórias dos quatro Arguidos quanto a esta concreta materialidade fáctica, que concatenou, ainda, com o teor dos documentos constantes de fls. 12-13, 16, 18-19, 21-23 e com aqueles cuja junção foi determinada em sede de instrução (ref.ª citius 91785437). Com efeito, a matéria aí vertida não só não foi contrariada pelos Arguidos, como foi por eles confirmada, tendo estes apenas posto em causa a verificação da restante factualidade por que vêm pronunciados. Vejamos, então, em que assentou a prova dos factos insertos nos pontos 14. a 23. Ora, sendo estes do foro interno, psicológico e íntimo dos Arguidos, a sua prova há de resultar, não de prova direta, mas de prova indiciária. Com efeito, partindo da factualidade provada nos autos, e analisando, ponderando e relacionando-a sob a lente das regras da lógica, da normalidade do acontecer e da experiência comum, é de se concluir, com elevado grau de certeza e para além de qualquer dúvida razoável, que os Arguidos atuaram com a intenção ali descrita, uma vez que os demais factos (objetivos) aqui provados apenas se compreendem como sendo a exteriorização de uma total consciência, conhecimento e vontade finalisticamente dirigidos à sua prática, como explicitaremos. Ora, segundo relatou o Arguido N, tais cartas, solicitadas aquando da reapreciação do estatuto coativo dos Arguidos M e A no âmbito do processo n.º 299/18.6T9ABT, tendo em vista o seu possível agravamento, pretendiam valer como «testemunhos das pessoas» (Sic.) que conheciam os Arguidos e que podiam asseverar os alegados inconvenientes nesse agravamento e, ainda, como prova de que eles «não são nenhuns bandidos como queria a outra família mostrar aqui em Tribunal» (Sic.). Por seu turno, também C – admitindo que sabia que a missiva se destinava a ser utilizada em processo judicial – asseverou que não tinha intenção de prejudicar ninguém, e apenas de ajudar na defesa de M e A. Já M, assim como A, assumem que, efetivamente, a pedido do seu, à altura, advogado, e aqui Arguido N, as cartas foram solicitadas a familiares e amigos, para auxiliar na sua defesa. Não obstante tudo isto, querem os Arguidos (com exceção do Arguido C) convencer o Tribunal de que, no momento da junção das missivas ao referido processo, não tinham conhecimento do seu teor. Diremos, desde já, que tal versão não convence. Desde logo, porque nas palavras do Arguido M, aquilo que foi pedido aos familiares e amigos foi que se descrevesse «A relação que vocês têm com a gente e que vocês têm com a parte que está a meter a queixa» (Sic.). E note-se que o Arguido A foi perentório ao dizer que os autores das cartas e os ali queixosos «não se falavam». Nessa senda, aliás, questionado pelo Tribunal sobre se não seria expectável que as cartas não fossem dizer bem dos ali queixosos e aqui Assistentes [uma vez que os autores das mesmas não falavam com eles], A refere que «pela lógica, sim». Ora, logo por aqui se depreende que as cartas não visavam a simples defesa, mas também a referência expressa aos queixosos naquele processo, que assumem neste a qualidade de Assistentes. Por outro lado, questionado o Arguido M sobre se cogitou, sequer, que as cartas pudessem conter expressões ofensivas, disse perentoriamente que, independentemente de a carta dizer mal ou bem de si, juntá-la-ia de igual modo ao processo, pois «não está aqui para mentir» (Sic.). Digamos que se a versão de que não tinham lido as cartas já não convencia, tais declarações são agora demonstrativas de um discurso falacioso. É inverosímil que alguém que pretenda juntar testemunhos abonatórios, ainda que por meio de cartas, a um processo crime, e que tendo as missivas em sua posse não as confronte antes de as dirigir ao processo. E ainda menos crível é que as fosse juntar se as cartas não cumprissem esse propósito. No mais, resulta, ainda, das declarações dos Arguidos M e A que as cartas em questão lhes foram entregues para estes as fazerem chegar ao seu Advogado, pelo que é agora ainda menos plausível que aqueles não tenham tido conhecimento, nem tenha querido ter conhecimento do que ali estava contido. Tal como é inverosímil também que o Arguido N, que concebeu a ideia de juntar as cartas ao processo, não tenha tomado conhecimento das mesmas antes de formular o requerimento em questão, em obediência ao dever elementar de diligência que incumbe a qualquer advogado no exercício do patrocínio. E a expressão, contida no próprio corpo do requerimento, de que os «"queixosos" que são pessoas conflituosas» é reveladora disso mesmo e, bem assim, do conhecimento pelo próprio do teor dos documentos que seguiam para o processo. Por fim, e ainda que a qualificação como «ofensivas» das expressões insertas nas cartas seja matéria a analisar em momento próprio desta decisão, que não este, dir-se-á que, à luz do critério do homem médio, não podiam os Arguidos ignorar que tais expressões eram efetivamente de natureza ofensiva, pelo que, tendo em conta as relações de conflito que já existiam entre os Assistentes e os Arguidos – e que em julgamento ficaram também demonstradas –, ditam as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer que se conclua que os Arguidos quiseram, efetivamente, ofender a honra e a consideração dos assistentes. No caso particular do Arguido N que, segundo se perceciona, não tinha interesse nesta contenda familiar, dir-se-á que, não obstante, juntou as cartas ao processo, conhecendo o seu teor ofensivo, e contribuindo, por essa via, por que as cartas chegassem à esfera de conhecimento de terceiras pessoas. Cumpre ainda referir que os depoimentos das testemunhas de defesa do Arguido N em nada contribuíram para a formação da convicção do Tribunal quanto aos factos em discussão, tanto mais que se denotaram incoerências nos seus discursos [recordando-se apenas de certos e concretos acontecimentos apenas relevantes para a defesa], que, por isso, abalaram a sua credibilidade. A prova das condições pessoais, profissionais e económicas dos Arguidos constantes dos pontos 24. a 36. estribou-se essencialmente no teor das respetivas declarações, considerando-se ainda, na parte ainda atualizada, os relatórios da DGRSP juntos aos autos. Já que tange aos antecedentes criminais dos Arguidos, ou ausência deles (pontos 37. a 42.), valoraram-se os respetivos certificados do registo criminal juntos aos autos. Por fim, os factos vertidos nos pontos 43. a 51. referentes ao pedido de indemnização cível foram resultado das declarações tomadas aos Assistentes em julgamento. No que respeita, concretamente, ao facto inserto no ponto 43., dir-se-á, ademais, que, ponderando e concatenando a natureza das expressões que aqui resultaram provadas, com o modo e as circunstâncias em que as mesmas foram divulgadas, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, tomando como padrão o homem-médio colocado na concreta situação de cada um dos Assistentes, com facilidade se conclui que são, efetivamente, aptas a causar sentimentos como humilhação, tristeza, ofensa e vergonha. **** Analisando e decidindo:A - Da impugnação da matéria de facto provada – art.ºs 19, 20, 22 e 23. Os recorrentes M, A e N Timóteo invocam erro de julgamento porquanto sobre os factos julgados provados sob os números 22 e 23, porquanto defendem não foi produzida qualquer prova que permita julgar tal materialidade provada, pois nenhum deles teve qualquer interferência no conteúdo das cartas escritas pelos coarguidos e juntas aos autos (conclusão 1 e 2 de ambos recursos do arguido A). Analisada a prova produzida verificamos que efetivamente não foi produzida prova que demonstre minimamente que os arguidos tiveram interferência na escritura das cartas ou que tenham determinado, ditando, o seu conteúdo. Contudo, daqui não se pode concluir que os mesmos sejam alheios à prática dos factos em termos de relevância jurídico-criminal. Na verdade, o primeiro solicitou que as cartas fossem escritas, indicando um mínimo de conteúdo que as mesmas deveriam conter e o segundo procedeu à sua junção. Deste modo, a questão passa por saber se é legitimo concluir que os mesmos aderiram ao seu conteúdo, o que não temos dúvidas em concluir afirmativamente. Como sabemos, os factos resultam provados através da prova, a qual pode ser direta ou indireta, ou por presunções. E como é facilmente verificável da leitura da sentença recorrida, o tribunal justifica porque razão considerou provados os facos em causa, rejeitando a justificação apresentada pelos arguidos, partindo dos factos provados, interpretando-os de acordo com as regras da experiência e da lógica, deles inferindo os factos que em causa, não provados de forma direta. Assim, não podemos desse modo reconhecer razão aos arguidos quando afirmam que não existe prova que suporte tais factos. Podemos é analisar, discutir e até vir a concluir, o que não é o caso, como veremos, se a prova direta produzida permite as ilações delas retiradas com base nas regras da experiência, da lógica e do normal acontecer. Na formação da sua convicção o tribunal não se encontra limitado à prova direta que é produzida perante si. A prova produzida pode ser suficiente para, provando-se factos essenciais e outros não essenciais, em conjunto com as regras da experiência, da vida e da lógica se poder inferir outros factos. É o que se verifica no caso dos autos. O modo como os factos se desenrolaram faz-nos criar a convicção de que na verdade os arguidos fizeram suas as cartas que foram escritas pelos restantes coarguidos, aderindo ao seu conteúdo, conteúdo que não podiam deixar de conhecer como o tribunal a quo bem explicou. É uma realidade indesmentível a lógica resultante da experiência comum não pode valer só por si, sobretudo se conduz a um resultado que é desmentido por uma prova credível. A realidade do quotidiano desmente muitas vezes os padrões de normalidade, que não constituem regras absolutas; são apenas reacções, eventos ou comportamentos normais ou previsíveis, mas que contra razoáveis expectativas, podem não se verificar”. (…) No acórdão do STJ, de 06/10/2010, relatado por Henriques Gaspar, afirma-se que “a verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos. Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais.” A reconstrução que o tribunal deve fazer para procurar determinar a verdade de uma narrativa de factos passados irrepetíveis assenta essencialmente na utilização de raciocínios indutivos que, pela sua própria natureza, apenas propiciam conclusões prováveis. Mais ou menos prováveis, mas nunca conclusões necessárias como são as que resultam da utilização de raciocínios dedutivos, cujo campo de aplicação no domínio da prova é marginal. O cerne da prova penal assenta em juízos de probabilidade e a obtenção da verdade é, em rigor, um objectivo inalcançável, não tendo por isso o juiz fundamento racional para afirmar a certeza das suas convicções sobre os factos. A decisão de considerar provado um facto depende do grau de confirmação que esses juízos de probabilidade propiciem. Esta exigência de confirmação impõe a definição de um “standard” de prova de natureza objectiva, que seja controlável por terceiros e que respeite as valorações da sociedade quanto ao risco de erro judicial, ou seja, que satisfaça o princípio in dubio pro reo.” Santos Cabral, em estudo sobre a prova indiciária e a sua valoração[2], conclui: “As regras da experiência ou regras de vida como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou a reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte para efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes, a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa, ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária”. Ana Maria Barata Brito no estudo que já citamos acima, salienta que Na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos que realizam um tipo objectivo de crime, a prova do dolo terá de fazer-se por ilações, a partir de indícios, através de uma leitura do comportamento exterior e visível do agente. O julgador deve resolver a questão de facto decidindo que (ou se) o agente agiu internamente da forma como o revelou externamente. A tudo procedendo sempre de acordo com a explicação clara do acórdão do STJ de 06/10/2010, relatado por Henriques Gaspar, sem “descontinuidade ou incongruências”. Face a todo o exposto, e munidos que estamos dos ensinamentos da doutrina e jurisprudência, melhor habilitados estamos para concluir pela não procedência da questão suscitada. * B - Da qualificação jurídica dos factosTodos os arguidos defendem que os escritos em causa, materializados nos factos provados, não são suscetíveis de preencher o tipo legal de crime por cuja prática vêm condenados, antes se enquadrando no livre exercício de opinião ou liberdade de expressão sobre as pessoas dos assistentes. Analisemos a subsunção dos factos ao direito realizada pelo tribunal a quo vertida na sentença recorrida: V. Fundamentação de direito Enquadramento jurídico-criminal Sendo o crime uma ação típica, ilícita, culposa e punível, para que possa o agente ser jurídicopenalmente responsabilizado, é mister que as suas condutas preencham tais requisitos. Desde logo, o facto consubstanciará um ilícito típico quando a conduta do agente preencha objetiva e subjetivamente os elementos do tipo legal de crime, pelo que, ante a factualidade ora apurada, cumpre, primeiramente, verificar se estão preenchidos elementos do tipo legal de crime imputado aos Arguidos. * Dispõe o artigo 180.º, do Código Penal: «1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias. 2 - A conduta não é punível quando: a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira. 3- Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar. 4- A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.» O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a honra, numa «dupla conceção fácticonormativa», ou seja, «como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior» (cfr. neste sentido PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª Edição atualizada, 2015, p. 722, e JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, p. 607). No que respeita ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos e ao modo de afetação do objeto da ação, trata-se de um crime de dano e de mera atividade. Constitui elemento objetivo do tipo de crime em análise a imputação de um facto, mesmo sob a forma de suspeita, ou a prolação de palavras, em ambos os casos dirigidos a terceiro, ofensivos da honra ou consideração de outrem (elemento distintivo relativamente ao crime de injúria, porquanto, neste caso, a imputação do facto ou a prolação de palavras ofensivas da sua honra e consideração são dirigidas diretamente ao ofendido). O facto ou as palavras ofensivas da honra e consideração podem ser transmitidas ao terceiro por qualquer meio de expressão, designadamente, por escrito, como resulta da equiparação prevista no artigo 182.º, do Código Penal. Todavia, como é evidente, nem todos os comportamentos descorteses ou boçais ultrapassam a impertinência e grosseria, casos em que não chegam a ofender aquele mínimo de respeito a todos devido e tutelado penalmente. Ademais, não é apenas o significado de uma expressão que releva, mas sobretudo o sentido que se lhe dá e pretende dar em determinado contexto. Estão, pois, excluídas do âmbito de proteção do tipo as «ofensas às normas de convivência social ou (…) atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras» (Ac. do TRP, Proc. n.º 427/13.8GAARC.P1, de 27-04-2016), uma vez que, nesse caso, não está em causa a afetação do bem jurídico honra tal qual se enunciou supra. Neste âmbito importa referir que tanto o direito à liberdade de expressão como o direito à honra têm consagração constitucional (cfr. artigos 37.º e 26.º, da Constituição da República Portuguesa), sendo que nenhum se pode afirmar de forma absoluta sobre o outro. Verificado que seja um conflito entre tais direitos, deverá procurar-se uma solução que passará pela realização ótima de cada um deles, harmonizando-os segundo um princípio de concordância prática, para o que se deverá atender aos dados do caso concreto, usando-os segundo critérios de proporcionalidade, razoabilidade e adequação, nos termos do que dispõe o artigo 18.º, da Constituição da República Portuguesa. A conduta do agente deve, assim, ser percecionada num «horizonte de contextualização» (Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, p. 612.). Ou seja, é a análise da imagem global do facto, tendo em consideração o significado social da conduta, as circunstâncias (de ordem temporal, espacial e situacional) em que a mesma ocorre, bem como os concretos intervenientes, que imprime ilicitude ao facto (neste sentido, veja-se o acórdão do TRP, de 1801-2017, prolatado no âmbito do processo n.º 984/15.4T9VFR.P1, disponível em www.dgsi.pt). Como já vincou a jurisprudência do STJ, «é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a ida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social que é a sua função» (cfr. acórdão de 22-01-2015, prolatado no âmbito do processo n.º 168/12.TRPRT.S1) (sublinhado nosso). O tipo subjetivo de ilícito admite qualquer modalidade de dolo – cfr. artigo 14.º, do Código Penal. A culpa constitui um juízo de censura dirigido ao agente por ter atuado como atuou, isto é, por não ter adotado o comportamento lícito alternativo. Descendo ao caso dos autos constata-se que por meio de missivas que se fizeram juntar aos autos de instrução no âmbito do processo n.º 299/18.6T9ABT, foram imputados aos Assistentes as seguintes expressões: - «não falam para ninguém da família e são sempre do contra e mal educados em qualquer tipo de converça ou situação» - «A vida deles consista simplesmente a fazer mal por qualquer parte onde passam (…) Educaram os filhos na mesma condição: ÓDIO e INVEJA (…) H e sua esposa E só estão felizes sabendo que alguém da família está doente ou a morer, é isso que os fazes crescer (…) H e sua esposa E deixaram morrer as suas mães» - «eles só vivem de maldade, ciúmes, inveja e raiva, a vida deles consiste a fazer mal a tudo e a todos» - nunca cuidaram de seus respectivos pais, E até expulsou sua mãe de 80 anos, são egoístas, ciumentos e carecem de humanidade». Ora, começando pelas concretas expressões utilizadas pelo Arguido C, não vislumbramos como «ser do contra» e «não falar para ninguém da família» pode encerrar carga desvaliosa ao ponto de poderem ser considerados atentatórios dos valores essenciais que devem caracterizar a personalidade de um ser humano. Já a expressão «mal educado», trata-se de um juízo de valor que espelha uma pessoa grosseira, descortês, e que revela desrespeito no trato com os demais. O respeito é característica muito prezada na sociedade e universalmente aceite como sendo resultado da educação obtida durante a formação da personalidade. Assim, tal expressão ataca valores intrinsecamente ligados à consideração tida pelos demais membros da sociedade. Mas ainda que restassem dúvidas de que tais expressões preenchem o tipo de crime – e porque importa atentar ao caso concreto, como aflorado supra – lembramos que essas expressões não surgiram sequer no calor do momento ou no âmbito de uma acesa discussão entre as partes, em que, sem pensar, muitas vezes se diz mais do que se devia e/ou pretendia dizer. Ao invés, estamos perante uma expressão que deliberadamente foi reduzida a escrito, para uma carta, que posteriormente foi remetida para ser junta a um processo judicial e aí ser lida e todo o seu conteúdo valorado e considerado. Já as demais expressões ora citadas, essas, então, sem necessidade de maiores considerandos, são efetivamente atentatórias do bom nome, porque largamente ultrapassam a mera grosseria destituída de dignidade penal que permita puni-la, pois que, qualquer que seja o conceito de honra e consideração que se perfilhe, têm tais expressões um significado inequivocamente ofensivo da honra e consideração à luz dos padrões médios de valoração social, atingindo já o âmago daquele mínimo de respeito indispensável ao relacionamento em sociedade. No mais, a larga maioria destas expressões não são suscetíveis de prova de verdade, nos termos do artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal. Mas ainda que algumas delas sejam e tal prova até tivesse sido conseguida – que não foi – em todas as cartas existiam juízos de valor, esses, sim, insuscetíveis de prova em contrário, e que não se provou terem sido remetidas na prossecução de qualquer interesse legítimo. Por seu turno, resultou demonstrado que os arguidos A e M sabiam do teor das quatro cartas, resultando, ademais, provada a intenção que tiveram ao juntá-las, pelo que ativamente contribuíram para que o teor das mesmas saísse a público. Já no que respeita ao arguido N, este trouxe as cartas ao processo, conhecendo o teor das mesmas e tampouco logrou demonstrar que agiu ao abrigo de uma qualquer causa de justificação, como seja, o exercício de um direito (o de defesa dos arguidos que representava) – cfr. artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal. Na verdade, e remetendo para o que já aqui fizemos exarar em sede de motivação da matéria de facto, não se perceciona como é que cartas com este teor pudessem constituir meio necessário ao exercício do direito de defesa dos Arguidos. Admite-se, até, que pudessem entender útil a sua abonação para convencer o Tribunal de que as suas personalidades não eram compatíveis com o perigo de continuação da atividade criminosa que poderia ser fundamento do agravamento das medidas de coação, mas não se perceciona de que modo as afirmações e juízos de valor negativos expressos sobre os Assistentes, da forma que o foram e sem aparente conexão com o processo, pudessem ser vantajosas para os Arguidos. De outra banda, atendendo à redação do artigo 30.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, e uma vez que através da punição do crime de difamação se pretendem tutelar bens jurídicos eminentemente pessoais, para o preenchimento da norma incriminadora haverá que relevar-se cada ato concreto que afete o bem jurídico individualizado na pessoa de cada um dos seus titulares, pelo que haverá tantos crimes praticados quanto o número de ofendidos. Mas já não haverá tantos crimes quanto o número de cartas, porquanto cumpre atender à única resolução criminosa que aqui está em causa. Por fim, dir-se-á que não resultou provada factualidade reveladora de que os Arguidos atuaram ao abrigo de uma decisão conjunta, o que sempre se impunha para que pudessem ser condenados como coautores. Vejamos: Analisada a matéria e facto em causa nos autos, onde se mostram transcritas as expressões que constam das cartas escritas pelos arguidos, ou que não as tendo escrito ao seu teor aderiram e fizeram seu, como acima explicitado, não há dúvida que as mesmas são suscetíveis de ofender os seus visados, assistentes nos autos, preenchendo algumas delas o tipo de ilícito criminal pelo qual foram condenados. Como se escreveu no Ac. Rel. Porto de 22-02-2023, Proc. 1493/20.5T9VFR.P1, Rel. Vaz Patto: Porque há que conciliar o direito à honra e a liberdade de expressão, há que distinguir, a este respeito, entre a crítica da atuação de uma pessoa e a crítica que atinge a própria pessoa na sua dignidade, entre um juízo sobre essa atuação (que poderá até ser injusto, exagerado, formulado em termos agressivos, ou indelicados e descorteses) e um juízo sobre a pessoa. Está, assim, em causa, neste caso, saber se as expressões relativas ao ofendido e demandante, a ele dirigidas pelo arguido ora recorrente e acima transcritas configuram a prática desse crime de difamação, ou estão cobertas pela liberdade de expressão e crítica consagrada no artigo 37.º, n.º 1, da Constituição. Traçar a fronteira entre uma e outra dessas situações passa por distinguir entre a formulação de juízos ofensivos sobre a própria pessoa visada e a formulação de juízos críticos sobre a atuação ou conduta de uma pessoa. Manuel da Costa Andrade (in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal – Uma Perspectiva Jurídico-Criminal, Coimbra Editora, 1996, pgs. 232 a 240) é claro ao considerar atípica a crítica objetiva, ou seja, a crítica de obras, prestações, realizações e atuações. Essa crítica pode situar-se nos âmbitos político, artístico, desportivo, ou outros. Estaremos perante uma situação de atipicidade, e nem sequer perante uma justificação, nos termos do artigo 31.º, n.º 2, c), do Código Penal, de uma conduta típica pelo exercício de um direito (neste caso, o direito de crítica). Na verdade, da redação dos artigos 180.º, n. 1, e 181.º, n.º 1, do Código Penal resulta que os crimes de difamação e injúria supõem a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos, atuações, obras, prestações ou realizações. Estes juízos, que são cobertos pela liberdade de expressão e crítica, não configuram elemento constitutivo de algum desses dois tipos de crime. Esta distinção também vale, e vale especialmente, no âmbito da atuação política. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sobre a importância e alcance da liberdade de expressão neste âmbito não anula tal distinção, como se o direito à honra (também consagrado na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no n.º 2, do seu artigo 10.º, além de ser consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição) deixasse de ser tutelado quando são visados agentes políticos, Tal seria, além do mais, contrário ao princípio da igualdade (este também consagrado na Constituição, no seu artigo 13.º). E, como se salienta na douta sentença recorrida, se assim fosse, não teria sentido a agravação (decorrente dos artigos 184.º e 132.º. n.º 2, i), do Código Penal) dos crimes de injúria e difamação quando são ofendidos agentes políticos titulares de órgãos de soberania ou de autarquias locais. Compreende-se a relevância da distinção entre a crítica de atuações e comportamentos e a ofensa à pessoa a sua honra e dignidade. Às ideias e críticas (mesmo que sejam erróneas, injustas, chocantes ou absurdas) pode responder-se no plano do debate racional e da argumentação. Esse debate é sempre salutar numa sociedade aberta, livre e democrática. Outra coisa são os insultos. Aos insultos não pode responder-se no plano do debate de ideias. Aos insultos não pode responder-se senão com o silêncio ou com outro insulto e desse modo não se fortalece a sociedade livre, aberta e democrática. É de realçar que são as exigências de uma sociedade livre e democrática que, de acordo com o n.º 2 do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos que servem de critério para aferir a legitimidade das limitações à liberdade de expressão consagrada no nº 1 desse artigo. É verdade que, como vem acentuando a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, dos agentes políticos se exige uma maior tolerância à crítica (e à crítica eventualmente injusta, agressiva ou exagerada), do que a que é exigida ao cidadão comum. É algo que faz parte da missão que escolheram (são “ossos do ofício”). Mas daí não decorre que tenham que se ver integralmente privados de proteção à sua honra. Isso poderia levar a que, só por isso, muitas pessoas bem conceituadas e vocacionadas para o serviço do bem comum não optem pela atividade política. Estamos perante dois direitos fundamentais o direito de opinião e liberdade de expressão e o direito à honra. Quando analisamos o direito de opinião e liberdade de expressão exercido pelos media não temos dúvidas em concluir que deve ser dada prioridade ao primeiro, especialmente quando o que se noticia ou opina respeita a pessoas públicas ou que exercem cargos públicos, sujeitos, por isso, ao escrutínio do público que tem o direito de ser informado (direito aliás consagrado na CRP no art.º 37.º). O modo como este direito deve ser entendido e os seus limites encontra-se profundamente tratado em Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 01-07-2014, Proc. 53/11.6TAEZ.E2, Relator João Gomes de Sousa. Depois de enquadrado o direito de opinião/liberdade de expressão é analisada a possibilidade de punição por ofensa do direito à honra: «1 - É tarefa do tribunal assegurar que a liberdade de expressão é garantida através de um justo equilíbrio entre a liberdade de expressão consagrada como princípio no artigo 10.º e a reputação da pessoa em causa, enquanto direito decorrente da proteção da vida privada consagrado no artigo 8.º da Convenção. 2 - No seu número 2 o referido artigo 10.º da Convenção prevê, no entanto, condições, restrições ou sanções ou, genericamente, ingerências no direito de liberdade de expressão. 3 - Estas devem, no entanto, estar previstas na lei e mostrar-se necessárias numa sociedade democrática, entendidas estas como uma ingerência por necessidade social imperiosa, para, por referência ao caso concreto, a proteção da honra e dos direitos de outrem. Note-se que os acórdãos referidos respeitavam a situações distintas da que tratamos nos presentes autos, já que os visados pelas opiniões/liberdade de expressão ocupavam e exerciam cargos públicos, ao contrário dos aqui assistentes, discutindo-se o equilíbrio entre o direito de informação do qual faz parte integrante a liberdade de opinião e expressão e o direito ao bom nome e à honra. No caso, não nos encontramos perante qualquer notícia publicada em órgão de comunicação, nem opinião sobre atuação de qualquer figura pública ou pessoa que exerça cargo público. São cartas sobre a pessoa dos assistentes destinadas a serem juntas a processo judicial. Nas cartas os assistente não se limitaram a descrever a avaliação que fazem das pessoas dos assistentes, indo muito mais além, pois lhes imputam inclusivamente factos suscetíveis de integrar prática de crimes, invocando as relações que os mesmos tinham com os respetivos pais, o que na verdade constitui uma clara ofensa da honra, afirmações efetuadas de forma gratuita, não necessárias ao desfecho do processo a que se destinavam e ademais sem que tivesse sido junto suporte probatório. Na verdade, como se pode ler, entre outros, no facto 8, H e sua esposa E deixaram morrer as suas maes, ele há mais de de dez anos que não visitava a sua e ela pois a mãe na rua!!! MH e R são iguais aos pais ou piorlt Cuidade H e E!! A mãe da E que era minha tia, um dia disse-me: Andei nove meses com um monstro dentro de mim, e esse monstro deu luz a dois monstros também”. E Facto 10 (…) “H e E nunca cuidaram de seus respectivos pais, E até expulsou sua mãe de 80 anos, ela morreu um ano após a tristeza. Eles não foram a nenhuma comemoração fúnebre. Então foram os filhos de H e E que agrediram M naquele dia. Nunca vi M ou A agredidos, seguidos ou insultados pelas outras partes. Posso atestar com honra que H, E, R e MH são egoístas, ciumentos e carecem de humanidade”. Como se disse, estas afirmações traduzem imputações de factos graves, suscetíveis justificar a instauração de inquérito criminal, sendo que as restantes traduzem e apresentam os assistentes como pessoas sem quaisquer princípios éticos, familiares e sociais, imputando-lhes faltas de caráter graves que mancham e afetam indubitavelmente a honra dos mesmos. Ora, o direito à liberdade de expressão, muitas vezes, colide com o direito ao bom nome, devendo ser efetuada uma ponderação caso a caso para se verificar até onde chegam os limites de cada direito dada a sua geometria variável. Existem situações em que a liberdade de expressão, por mais que coloque em causa o bom nome do visado, precisa de prevalecer, porque estamos a discutir uma questão de relevante interesse público. Também existem casos de pessoas que não são figuras públicas, em que é evidente que o seu direito ao bom nome deverá prevalecer sobre o direito à informação ou à liberdade de expressão (Liberdade de Expressão — A Jurisprudência do TEDH e os Tribunais Portugueses – Francisco Teixeira da Mota, Revista Julgar n.º 32). Assim, não temos dúvidas que, no caso, os arguidos foram longe demais na manifestação dos seus sentimentos, opiniões e julgamento sobre as pessoas dos assistentes ultrapassando a fronteira do equilíbrio entre o direito à opinião/liberdade de se expressar e o direito ao bom nome e à honra do assistente, ao fazer tais afirmações. Não vale tudo. Uma opinião sobre uma pessoa com quem se tem um conflito, ainda que se acredite fundado, razoável e certo, é distinta da imputação da prática de ilícitos a uma pessoa. Termos em que improcede o recurso apresentado. * IV - Decisão:Pelo exposto, acorda-se nesta Relação de Évora: a) Julgar não provido o recurso interposto pelos arguidos M, A, C e N, mantendo-se integralmente o decidido em 1ª instância. b) Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3,5 UC. Processado e revisto pela relatora (art.º 94º, nº 2 do CPP). Évora, 25 de março de 2025 Maria Perquilhas Filipa Valentim Helena Bolieiro __________________________________________________ [1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263); SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335; RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363. [2] Prova indiciária e as novas formas de criminalidade, Julgar, N.º 17 – 2012. |