Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2185/23.9T8ENT-A.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
LEGITIMIDADE ACTIVA
DESPACHO SANEADOR
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Se o tribunal se propõe conhecer, julgando-a procedente e, com isso, pondo termo ao processo, a excepção dilatória da ilegitimidade activa no despacho saneador, e a mesma não foi debatida nos articulados, a audiência prévia não pode ser dispensada ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 593.º do CPC.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2185/23.9T8ENT-A.E1

*


Por apenso à acção executiva movida por Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), C.R.L., contra Sociedade (…), S.A., (…) e (…), (…) deduziu embargos de terceiro, pedindo o levantamento da penhora de bens que identificou.

Os embargos foram recebidos.

A embargada Caixa contestou, excepcionando a caducidade do direito de dedução de embargos de terceiro e a ilegitimidade da embargante para arguir a nulidade da citação e notificação dos embargados (…) e (…).

Os embargados (…) e (…) declararam não pretenderem contestar os embargos.

A embargante ofereceu articulado no qual se pronunciou acerca dos documentos juntos pela embargada Caixa e declarou o seguinte: «Embora a contestante se tenha defendido por excepção, como não é admissível a apresentação de articulado de resposta à contestação, a embargante (com muita pena) apenas poderá exercer o seu direito de resposta no momento processual definido para o efeito pelo artigo 3.º, n.º 4, do NCPC ou naquele em que o Douto Tribunal eventualmente o determinar, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, do NCPC.»

Na sequência da tramitação descrita, a 1ª instância proferiu a seguinte decisão:


«1.

Termos posteriores aos articulados



O presente processo segue os termos do processo comum declarativo (artigo 348.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Considerando que a audiência prévia apenas se destinaria aos fins indicados no artigo 591.º, n.º 1, alíneas d) a g), do CPCivil, não se mostrando necessária para os fins previstos nas demais alíneas na medida, dispensa-se, nos termos do artigo 593.º, n.º 1, do CPCivil, a realização da audiência prévia.


2.

Despacho saneador

(Artigo 595.º do Código de Processo Civil)



Estabelece o artigo 595.º, n.º 1, alínea a), do CPCivil, ex vi do artigo 732.º, n.º 2, do CPC, que ao juiz compete, no despacho saneador, “Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente”.

Afigura-se ser esse o caso, na medida em que os presentes autos já dispõem de elementos suficientes para conhecer da excepção dilatória de ilegitimidade activa, cujo conhecimento precede os demais fundamentos.

(…)

2.3. Da excepção dilatória de ilegitimidade activa da embargante

A embargada alega que a embargante carece de legitimidade activa para vir arguir nulidade na citação e notificação dos executados, (…) e (…).

Com isto, considera-se aberta a possibilidade de aferir da legitimidade activa da embargante para deduzir os presentes embargos, questão que, de todo o modo, é de conhecimento oficioso.

(…)

A ilegitimidade activa, sendo uma excepção dilatória (no caso insuprível), implica a absolvição da instância, tudo nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea e), 578.º e 278.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.

Assim sendo, os embargos de terceiro improcedem pela verificação da referida excepção de ilegitimidade activa.

2.4. Dispositivo

Face ao exposto, decide-se julgar o incidente de embargos de terceiro improcedentes por verificação da excepção dilatória de ilegitimidade activa da embargante com a consequente absolvição da embargada da instância, tudo nos termos dos artigos 342.º, n.º 1, a contrario, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea e), 578.º e 278.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.

(…)»

A embargante interpôs recurso de apelação deste despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. No dia 13-11-2016, faleceu o pai da embargante, ora recorrente, (…), cuja herança permanece indivisa.

2. São seus herdeiros, entre outros, a ora recorrente e os embargados (…) e (…), os quais são executados nos autos principais.

3. O AE promoveu a notificação nos autos principais da penhora dos quinhões hereditários detidos pelos executados/embargados (…) e (…) na referida «herança ilíquida e indivisa».

3. O AE, a requerimento da exequente, levou adicionalmente a cabo um conjunto de diligências que directamente incidem sobre bens que não pertencem, no todo ou em parte, aos executados, mas à herança indivisa do pai da recorrente, com o NIF (…).

4. Nomeadamente, o AE efectuou (no registo predial e comercial) registo de penhora sobre os pretensos direitos dos executados sobre os seguintes bens:

- Prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Novas com o n.º (…), da freguesia de (…), inscrito na matriz sob o artigo (…);

- Fracção B do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Novas com o n.º (…), da freguesia de (…), inscrito na matriz sob o artigo (…);

- Prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Novas com o n.º (…), da freguesia de (…), inscrito na matriz sob o artigo (…), anterior artigo (…);

- Quota no valor nominal de € 289.200,00 na sociedade (…) – Sociedade de (…), NIPC (…);

- Quotas no valor nominal de € 5.736,18 e € 1.496,39 na "(…) – Sociedade (…), Lda.", NIPC (…);

5. Todos os referidos bens integram o acervo patrimonial da herança indivisa do pai da recorrente, estando os prédios penhorados inscritos na matriz em nome de “(…) – Cabeça de Casal da Herança de”, com o NIF (…) e a respectiva propriedade inscrita no registo predial em nome do pai da recorrente.

6. A recorrente tem a qualidade de terceiro relativamente aos autos principais, onde não é parte.

E,

7. Os presentes embargos de terceiro foram deduzidos pela recorrente tendo por objecto essas penhoras, para defesa da posse e propriedade da herança sobre esses bens.

8. Na petição de embargos (artigos 51º a 71º) a recorrente suscitou também a nulidade dos aludidos registos de penhora, decorrente de irregularidades processuais que foram praticadas pelo AE geradoras de nulidades processuais.

9. Por douto despacho de 07-05-2024 com a Ref.ª 96410989, que aqui se dá por reproduzido, foi mui doutamente decidido receber liminarmente os presentes embargos de terceiro, tendo designadamente sido julgado que a embargante tem legitimidade activa para a sua dedução.

10. Apenas a exequente/embargada Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL deduziu contestação (Ref.ª10697306), com a qual juntou documentos.

11. Na sua contestação, a exequente/embargada não suscitou a excepção da alegada falta de ilegitimidade activa da embargante ora recorrente, para deduzir os presentes embargos.

12. Nessa contestação, a exequente/embargada defendeu-se por excepção, tendo designadamente suscitado uma alegada “Falta de Legitimidade da Embargante para vir arguir nulidade na citação e notificação dos Embargados, (…) e (…)” (artigos 7º a 9º).

13. Notificada dessa contestação, a embargante, ora recorrente, apresentou em 06-09-2024 o requerimento com a Ref.ª 10940040 para se pronunciar «quanto à requerida junção de documentos e sobre os mesmos, nos termos do disposto designadamente no artigo 415.º, n.º 1 e 2, do NCPC». E,

14. Nesse requerimento, a ora recorrente declarou (no ponto 1) que «embora a contestante se tenha defendido por excepção, como não é admissível a apresentação de articulado de resposta à contestação, a embargante apenas poderá exercer o seu direito de resposta no momento processual definido para o efeito pelo artigo 3.º, n.º 4, do NCPC ou naquele em que o Douto Tribunal eventualmente o determinar, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, do NCPC».

15. A recorrente atribuiu à causa, na petição inicial, o valor de € 30.000,01, o qual não foi impugnado na contestação, onde não foi tomado pela embargada contestante qualquer posição quanto ao mesmo.

16. O tribunal a quo não notificou a embargante, ora recorrente, para se pronunciar sobre as excepções deduzidas pela embargada na sua contestação, designadamente sobre a alegada “Falta de Legitimidade da Embargante para vir arguir nulidade na citação e notificação dos Embargados, (…) e (…)”.

17. O tribunal a quo também não notificou a embargante, ora recorrente, de que pretendia suscitar e conhecer oficiosamente da excepção dilatória de ilegitimidade activa da embargante para a dedução de embargos, nem lhe deu oportunidade para, previamente à decisão dessa questão, se pronunciar sobre a mesma.

18. O tribunal a quo também não notificou a recorrente de que estava a considerar proferir imediatamente despacho saneador e julgar improcedentes os embargos com fundamento na procedência das aludidas excepções nem lhe deu oportunidade para discutir o mérito da causa.

19. O tribunal a quo também não notificou a embargante, ora recorrente, de que estava a considerar fixar novo valor à causa.

20. O tribunal a quo nem sequer notificou a embargante, ora recorrente, para se pronunciar sobre a dispensa da audiência prévia.

21. Pelo douto despacho de 15-05-2025, ora recorrido, o tribunal a quo decidiu que «Considerando que a audiência prévia apenas se destinaria aos fins indicados no artigo 591.º, n.º 1, alíneas d) a g), do CPCivil, não se mostrando necessária para os fins previstos nas demais alíneas na medida, dispensa-se, nos termos do artigo 593.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a realização da audiência prévia.»

22. E, logo de seguida, o tribunal a quo proferiu imediatamente o despacho saneador recorrido, mediante o qual fixou novo valor á causa, julgou procedente a excepção deduzida pela embargada de Falta de Legitimidade da Embargante para vir arguir nulidade na citação e notificação dos Embargados, (…) e (…), suscitou oficiosamente e julgou verificada a excepção dilatória de ilegitimidade activa da embargante para a dedução dos embargos e julgou estes improcedentes.

23. Em consequência do atrás exposto, as doutas decisões recorridas são nulas, como melhor se desenvolveu no ponto 3 do corpo destas alegações que, com a devida vénia, aqui se dá por integralmente reproduzido. Nomeadamente porque,

24. Nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do CPC: O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

25. E o n.º 4 do mesmo artigo 3.º do CPC estabelece que «às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.»

26. Por seu lado, o artigo 591.º, n.º 1 e sua alínea b), do CPC estabelece que «concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia (…) destinada a (…) facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.» Assim,

27. «O conhecimento do pedido, em fase de saneamento dos autos obriga, de forma imperativa, o juiz à designação de audiência prévia, a realizar nos termos e para os efeitos do artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, facultando às partes a possibilidade de alegarem de facto e de direito sobre a matéria de que irá conhecer» – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-12-2021, cujo texto integral está disponível em https://juris.stj.pt

28. A realização da audiência prévia, no caso dos autos, era pois legalmente obrigatória, por força do artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do CPC. E,

29. Nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. Ora,

30. A omissão de realização da audiência prévia impossibilitou a recorrente de exercer o contraditório sobre a defesa exceptiva da contestante, nomeadamente sobre a excepção de “Falta de Legitimidade da Embargante para vir arguir nulidade na citação e notificação dos Embargados, (…) e (…)”, direito que a embargante aliás tinha já manifestado pretender exercer no seu requerimento de 06-09-2024.

31. O que foi tanto mais grave porquanto logo de seguida o tribunal recorrido apreciou e julgou procedente essa excepção no despacho saneador, sem audiência prévia da recorrente…

32. Por outro lado, a omissão da realização da audiência prévia privou também a recorrente do direito de se pronunciar nessa audiência sobre a excepção dilatória de ilegitimidade activa da embargante para a dedução de embargos que, como vimos, não tinha antes sido suscitada nos autos, nem pela embargada contestante, nem oficiosamente pelo tribunal!

33. Excepção que o tribunal recorrido de seguida oficiosamente suscitou, apreciou e julgou procedente no despacho saneador, sem audiência prévia da recorrente…

34. O tribunal recorrido não facultou pois à recorrente o exercício do contraditório sobre nenhuma das questões que decidiu no despacho saneador.

35. E o tribunal recorrido também não diligenciou de modo a, antes de decidir, “facultar às partes a discussão de facto e de direito”, nem oralmente (em audiência prévia, nos termos legais) e nem sequer por escrito.

36. Assim, no caso dos autos, a omissão de realização da audiência prévia, com imediata prolação de decisão que pôs termo aos embargos violou de forma chocante o direito da recorrente a contraditório, estabelecido no artigo 3.º, n.º 3 e 4, do CPCivil e até o direito fundamental da recorrente a processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da CRP.

37. E, só por si, “a inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa” – Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-04-2018 (www.dgsi.pt),

38. A omissão de realização dessa audiência que in casu era obrigatória constitui pois irregularidade processual manifestamente suscetível de influir no exame ou na decisão da causa pelo que gerou nulidade processual nos termos do artigo 195.º, n.º 1 e 2, do CPCivil, a qual afecta a decisão que a dispensou e todo o processado posterior, designadamente o próprio despacho saneador proferido subsequentemente.

39. Nulidade que fica expressamente arguida, sendo este recurso o meio processual próprio para o fazer, já que a nulidade “está a coberto de decisão judicial” (cfr. Ac. do STJ de 16-12-2021, disponível em www.dgsi.pt).

40. Por outro lado, as decisões recorridas constituem decisões-surpresa, proibidas por força do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, como melhor se desenvolveu no ponto 3.2 do corpo destas alegações que, com a devida vénia e para evitar repetições desnecessárias, aqui se dá por reproduzido.

41. Pois «existe decisão-surpresa quando embora a decisão tomada pelo tribunal fosse juridicamente possível, as partes não tinham obrigação de a prever e de, consequentemente, quanto a ela tomarem posição, porque essa questão não fora suscitada por nenhuma delas, sequer pelo tribunal, e coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que as partes o haviam feito.»

42. E mesmo «a dispensa pelo juiz da realização da audiência prévia, nos casos em que é obrigatória, nos termos do artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, como forma de proporcionar às partes o exercício de faculdades processuais concedidas por lei, está ela própria igualmente sujeita ao prévio contraditório, evitando-se assim decisões surpresa, expressamente vedadas pelo artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil» – Acórdão do STJ de 16-12-2021.

43. As decisões recorridas são por isso nulas por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, do CPC, pois constituem “decisão que decide o que não pode decidir sem audiência prévia das partes”.

44. Acresce que, como vimos, a questão da legitimidade activa da recorrente para deduzir estes embargos tinha já sido apreciada e decidida no douto despacho de 07-05-2024 com a Ref.ª 96410989, que admitiu liminarmente os embargos de terceiro, despacho que, com a devida vénia aqui se dá por reproduzido.

45. Pelo que, à data da prolacção do despacho saneador-sentença recorrido, havia tinha já sido proferida nos autos decisão inequívoca no sentido da legitimidade da embargante para a dedução dos embargos.

46. Por isso, o artigo 613.º, n.ºs 1 e 3, do NCPC obstava a que o tribunal a quo, no despacho saneador-sentença recorrido, se pronunciasse oficiosamente sobre a mesma questão, para mais, em sentido oposto àquele que havia determinado a admissão liminar dos embargos, julgando e declarando a recorrente como parte ilegítima.

47. Ao fazê-lo, a Mma. juíza a quo apreciou questão de que também por esse motivo não podia conhecer, pelo que, também por essa razão, o despacho saneador-sentença é nulo por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, do CPCivil, nulidade que fica também expressamente arguida pela recorrente, como melhor se desenvolveu no ponto 3.3 do corpo destas alegações que, com a devida vénia, para evitar repetições desnecessárias, aqui se dá por reproduzido.

48. As decisões recorridas são pois claramente ilegais, por violação do disposto nos artigos 3.º, n.º 3 e 4, 591.º, n.º 1, alínea b) e 613.º, n.ºs 1 e 3, do CPC e 2.º e 20.º, n.º 4, da CRP, constituem decisões surpresa e estão manifestamente viciadas de nulidade processual e de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos, respectivamente, dos artigos 195.º, n.º 1 e 2 e 615.º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, do CPC, como melhor se desenvolveu no ponto 3 do corpo destas alegações que, com a devida vénia e para evitar repetições desnecessárias, aqui se dá por reproduzido.

49. Nulidades que assim se requer sejam declaradas por esse alto tribunal, com todas as legais consequências, designadamente determinando-se a anulação das decisões recorridas e de todo o eventual processado que delas seja dependente, nomeadamente nos autos principais e que estes embargos prossigam os seus normais termos com a realização de audiência prévia.

50. Sem prejuízo das nulidades arguidas supra, não pode deixar de se salientar, subsidiariamente e por mero dever de patrocínio, que todas as decisões recorridas estão viciadas de graves erros de julgamento, o que naturalmente se diz sem quebra do devido respeito pela Mma. juíza a quo, que é muito.

51. Nomeadamente, ao considerar que a audiência prévia era dispensável porque «apenas se destinaria aos fins indicados no artigo 591.º, n.º 1, alíneas d) a g), do CPCivil» e que não era «necessária para os fins previstos nas demais alíneas», a Mma. juíza a quo cometeu um grave erro de julgamento e violou designadamente o disposto nos artigos 3.º, n.ºs 3 e 4, 591.º, n.º 1 e sua alínea b) e 593.º, n.º 1, do CPC, como melhor se desenvolveu no ponto 4.1 do corpo destas alegações que, com a devida vénia e para evitar repetições desnecessárias, aqui se dá por reproduzido.

52. Não obstante a decisão tomada sobre o valor da causa ser nula, quer por violação do contraditório quer, nos termos do artigo 195.º, n.º 2, do CPC, em consequência da nulidade do despacho que dispensou a audiência prévia e do despacho saneador no âmbito do qual foi proferida, a mesma encontra-se também afectada de erro de julgamento que à cautela e por dever de patrocínio não pode deixar também de se invocar.

53. Na verdade, como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24-04-2024 (disponível em www.dgsi.pt) «em sede de embargos de terceiro o valor processual tem por referência o valor do bem ou do direito sobre que incidem, e não o valor da acção ou execução principal.»

54. Pelo que, ao decidir como decidiu, e sem prejuízo das nulidades atrás invocadas, a Mma. juíza a quo cometeu um erro de julgamento e violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 296.º, 297.º, n.º 1, 299.º, n.ºs 1 e 2, 302.º, n.º 1, 304.º, n.º 1 e 306.º do CPC, conforme melhor se desenvolveu no ponto 4.2.1 do corpo destas alegações que, com a devida vénia e para evitar repetições desnecessárias, aqui se dá por reproduzido.

55. Também a decisão quanto à questão da legitimidade da embargante para deduzir estes embargos de terceiro se encontra afectada de grave erro de julgamento, como melhor se desenvolveu no ponto 4.2.2 do corpo destas alegações que, com a devida vénia e para evitar repetições desnecessárias, aqui se dá por reproduzido. Nomeadamente porque,

56. Como resulta claramente da petição inicial – e também do douto despacho de admissão liminar dos embargos – não está nestes autos em causa a penhora de bens pertencentes aos executados.

57. Por isso, é irrelevante para estes autos a penhora dos bens próprios dos executados que a Mma. juíza a quo considerou na sua decisão, nomeadamente as quotas e participações sociais que individualmente lhes pertencem nem os seus direitos à herança indivisa aberta por óbito do pai da recorrente.

58. Pois o objecto destes embargos são as penhoras que, a coberto (ou sob pretexto) das penhoras sobre esses quinhões hereditários, foram feitas e registadas sobre os pretensos direitos dos executados nos bens concretos que integram o acervo da própria herança indivisa.

59. Penhoras e registos que são totalmente ilegais e proibidos pelo artigo 743.º, n.º 1, do NCPC, que estabelece claramente que “na execução movida apenas contra algum ou alguns dos contitulares de património autónomo ou bem indiviso, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fração de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso.”

60. E os registos dessas penhoras violam também o que estabelece o artigo 781.º, n.º 1, do NCPC: “Se a penhora tiver por objeto quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, a diligência consiste unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens, se o houver, e aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efetuada.”

61. Como foi doutamente decidido por este Tribunal da Relação de Évora pelo acórdão de 11-07-2019, disponível em www.dgsi.pt: “a penhora do direito do executado a herança indivisa não está sujeita a registo, ainda que na herança se integrem bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, por não se concretizar em bens certos e determinados.” E,

62. «A penhora do direito a herança indivisa não está sujeita a registo, nem pode ser registada, porque o direito à herança não partilhada é um direito a uma parte indeterminada de bens, desconhecendo-se assim que bens virão a formar a parte do executado» (Acórdão da Relação do Porto de 01-07-2021, proferido no Proc. n.º 7083/09.6T2AGD-A.E1, que foi transcrito no citado Acórdão desta Relação de Évora de 10-02-2022).

63. A decisão que foi adoptada pela Mma. juíza a quo não apreciou pois os factos que efectivamente estão em causa nestes autos e que constituem a causa de pedir dos embargos, nem as normas legais aplicáveis.

64. E o acórdão desse alto tribunal da Relação de Évora que foi surpreendentemente invocado pelo tribunal recorrido – acórdão que não merece qualquer reparo – nada tem a ver com a situação dos autos, pois,

65. No caso dos autos, tendo sido ilegalmente penhorados, à sombra da penhora de quinhões hereditários, bens concretos que fazem parte do acervo patrimonial da herança indivisa, a questão é totalmente diferente e até inversa da que foi tratada naquele douto acórdão…

66. Como foi muito bem considerado no douto despacho que admitiu liminarmente os embargos, a eventual penhora, em si mesmos, de bens pertencentes à herança pode legitimar a dedução de embargos de terceiro. Pois,

67. «O direito de propriedade sobre determinado imóvel que faça parte de herança deixada pode ser legitimamente defendido, mediante embargos de terceiro, por parte do co-herdeiro desse bem, ex vi do artigo 1404.º do C.Civil» – (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-02-2002, in www.dgsi.pt ).

68. Como foi doutamente decidido pelo douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-10-1990 (in www.dgsi.pt), “Qualquer co-herdeiro ou condómino de herança tem legitimidade para deduzir embargos de terceiro contra a penhora de bens pertencentes à herança indivisa; não ocorre em tal situação o litisconsórcio necessário activo entre todos os herdeiros para a defesa da posse dos bens da herança.”

69. Deve pois entender-se que, no caso dos autos, a embargante tem legitimidade activa para deduzir embargos de terceiro contra a penhora dos bens da herança que foi efectuada e registada nos autos de execução.

70. Entendendo em contrário, a Mma. juíza a quo apreciou e valorou incorrectamente os factos e violou, por erro de interpretação e aplicação, designadamente o disposto nos artigos 30.º, 743.º, n.º 1 e 781.º, n.º 1, do NCPC.

71. Pelo que se, contrariamente ao que se espera, não for declarada a nulidade do douto despacho saneador-sentença recorrido, deverá o mesmo ser revogado por douto acórdão deste alto tribunal, que declare que a embargante, ora recorrente, é parte legítima para deduzir estes embargos, com as legais consequências. Por outro lado,

72. A embargante, ora recorrente, contrariamente ao que foi decidido, tinha também legitimidade para «arguir nulidade na citação e notificação dos Embargados, (…) e (…)», como melhor se desenvolveu no ponto 4.2.3 do corpo destas alegações que, com a devida vénia e para evitar repetições desnecessárias, aqui se dá por reproduzido. Na verdade,

73. Na petição de embargos, a embargante suscitou, nos artigos 51º a 71º da petição inicial, que aqui se dão por reproduzidos, várias irregularidades processuais que foram cometidas pelo AE nos autos principais e que geram nulidades processuais que viciam de nulidade o registo das penhoras sobre os bens da herança que os presentes embargos visam salvaguardar.

74. À excepção de ilegitimidade da recorrente para arguir essas nulidades, que a exequente/embargada suscitou na sua contestação, não foi, como vimos, dada à recorrente a oportunidade de responder antes da sua apreciação pelo tribunal recorrido, pelo que a mesma foi decidida sem audiência prévia da recorrente.

75. Sem prejuízo da arguição atrás feita da nulidade dessa decisão, não pode deixar de se dizer, com o devido respeito, que não assiste razão à Mma. juíza a quo, porquanto a mesma não teve em conta na sua decisão o concreto circunstancialismo dos autos.

76. Pois, como decorre do artigo 71º da petição inicial, a recorrente arguiu essas irregularidades e nulidades cometidas pelo AE de forma a suscitar a nulidade dos próprios actos de registo praticados pelo AE sobre os bens da herança que os presentes embargos visam salvaguardar.

77. Por isso, muito embora a embargante seja terceiro relativamente á execução, como bem reconheceu a Mma. juíza a quo, a mesma tem e manifestou um interesse juridicamente relevante na arguição desses vícios processuais, pelo que é parte legítima para tal efeito nos termos do artigo 30.º do CPC.

78. Ao decidir como decidiu, e sem prejuízo de todas as nulidades anteriormente invocadas, a Mma. juíza a quo cometeu, salvo o devido respeito, um erro de julgamento e violou, por erro de interpretação e aplicação, designadamente o disposto nos artigo 30.º do CPC.

79. Pelo que se, contrariamente ao que se espera, não for declarada a nulidade do douto despacho saneador, deverá ser o mesmo, também nessa parte, ser revogado por douto acórdão deste alto tribunal, que declare que a embargante tem legitimidade para arguir as aludidas nulidades, com as legais consequências.

80. As decisões recorridas são pois claramente ilegais, por violação do disposto nos artigos 3.º, n.º 3 e 4 e 591.º, n.º 1, alínea b), do CPC e 2.º e 20.º, n.º 4, da CRP, constituem decisões surpresa e estão manifestamente viciadas de nulidade processual e de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos, respectivamente, dos artigos 195.º, n.º 1 e 2 e 615.º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, do CPC, nulidades que assim se requer sejam declaradas por esse alto tribunal, com todas as legais consequências, designadamente determinando-se a anulação das decisões recorridas e de todo o eventual processado que delas seja dependente, nomeadamente nos autos principais e que estes embargos prossigam os seus normais termos com o cumprimento das formalidades omitidas, nomeadamente a realização de audiência prévia e a concessão à recorrente do direito a contraditório sobre as questões a decidir.

81. Todavia, se não for, contrariamente ao que legitimamente se espera, declarada a nulidade do douto despacho recorrido, deverá o mesmo ser revogado por douto acórdão desse alto tribunal que designadamente declare que a recorrente é parte legítima para deduzir estes embargos e para arguir as aludidas nulidades, com as legais consequências, designadamente a anulação de todo o processado dele dependente, nomeadamente do despacho saneador subsequentemente proferido e de todo o eventual processado nos autos principais e determinando-se que estes embargos prossigam os seus normais termos com a realização de audiência prévia.

O recurso foi admitido.

Os factos relevantes para o conhecimento do recurso são os que antecedem.


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A primeira questão que a recorrente suscita é a da admissibilidade da dispensa, pelo tribunal a quo, da realização da audiência prévia. Segundo a recorrente, não se verificavam os pressupostos de tal dispensa.

Atentemos no quadro legal relevante.

O n.º 1 do artigo 348.º do CPC (diploma ao qual pertencem todas as normas legais doravante referenciadas) estabelece que, recebidos os embargos, as partes primitivas são notificadas para contestar, seguindo-se os termos do processo comum.

O n.º 1 do artigo 591.º estabelece que, concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo 590.º, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:

a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º;

b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;

c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;

d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;

e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;

f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes;

g) Programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas.

A alínea b) do artigo 592.º estabelece que a audiência prévia não se realiza quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.

O n.º 1 do artigo 593.º estabelece que, nas acções que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º.

O n.º 3 do artigo 3.º estabelece que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. O n.º 4 do mesmo artigo dispõe que, às excepções deduzidas no último articulado admissível, pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.

Analisemos a decisão recorrida à luz deste quadro legal.

Não foi ao abrigo do disposto na alínea b) do artigo 592.º que a audiência prévia deixou de se realizar. Nem o tribunal a quo invocou esta norma legal, nem a excepção dilatória cuja procedência determinou que o processo tivesse findado no saneador foi debatida nos articulados.

O tribunal a quo dispensou a realização da audiência prévia ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 593.º, consignando que a mesma «apenas se destinaria aos fins indicados no artigo 591.º, n.º 1, alíneas d) a g), do Código de Processo Civil, não se mostrando necessária para os fins previstos nas demais alíneas na medida».

Porém, logo de seguida, o tribunal a quo entrou em contradição com este segmento da decisão recorrida, ao considerar, por um lado, que cumpria apreciar a excepção dilatória da ilegitimidade da recorrente para a dedução de embargos de terceiro, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 595.º, e, por outro, que o processo deveria findar no despacho saneador por via da procedência dessa excepção. Se assim era, a audiência prévia teria também a finalidade indicada na alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º, a saber, facultar, às partes, a discussão de facto e de direito, tendo em vista o conhecimento de uma excepção dilatória, e o destino da acção não seria prosseguir os seus termos.

Ora, a aplicabilidade do n.º 1 do artigo 593.º pressupõe, desde logo, que a acção haja de prosseguir os seus termos. Além disso, esta norma não permite a dispensa da audiência prévia quando esta tenha a finalidade indicada na alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º. Logo, ao dispensar a audiência prévia, o tribunal a quo violou o disposto nesta última norma legal, que impõe a realização dessa diligência. Violou, igualmente, o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 3.º, pois, ao dispensar indevidamente a realização da audiência prévia, não permitiu que a recorrente exercesse o contraditório.

A não realização da audiência prévia quando esta seja obrigatória traduz-se na omissão de um acto processual que a lei prescreve, omissão essa que, ao coarctar o direito das partes ao contraditório, pode influir no exame ou na decisão da causa. Logo, constitui uma nulidade processual, nos termos do n.º 1 do artigo 195.º.

Esta nulidade processual encontra-se coberta pela decisão recorrida, porquanto, nesta, se decidiu expressamente não realizar a audiência prévia, com fundamento na sua desnecessidade. Não se trata de uma decisão nula por excesso de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º, «porque de caso pensado, a 1ª instância dispensou a realização da audiência prévia. Uma situação é aquela em que o tribunal profere uma decisão sem que antes tenha ouvido as partes, outra completamente diferente é aquela em que o tribunal decide – erradamente – que não tem de ouvir as partes: no primeiro caso há uma decisão-surpresa, no segundo uma decisão ilegal.»[1]

Consequentemente, deverá ser revogada a decisão recorrida, por ter determinado a dispensa da audiência prévia sem que se verificassem os respectivos pressupostos legais, e ordenado que o tribunal a quo, cumprindo o disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b), convoque aquela diligência.

Fica, assim, prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela recorrente.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se que o tribunal a quo, cumprindo o disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do CPC, convoque audiência prévia.

Custas a cargo dos recorridos (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

Notifique.


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Sumário: (…)

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02.10.2025

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Ana Margarida Leite (1ª adjunta)

Mário João Canelas Brás (2º adjunto)

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[1] Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, mensagem com o seguinte endereço: https://blogippc.blogspot.com/2022/05/jurisprudencia-2021-188.html