Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | PAULA DO PAÇO | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO TRABALHO | ||
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Data do Acordão: | 12/05/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I- A competência material do tribunal é um pressuposto processual que se afere pela relação jurídica configurada pelo autor. II- O Juízo do Trabalho é materialmente competente para conhecer do pedido de indemnização interposto pela ex-empregadora contra um ex-trabalhador, em virtude de danos ocorridos na viatura automóvel utilizada por este no desempenho das suas funções profissionais, danos esses decorrentes do incumprimento das obrigações estabelecidas na "Política de Frota Viatura de Função", bem como dos deveres laborais de obediência, boa conservação e adequada utilização dos bens vinculados ao trabalho que lhe foram confiados. (Sumário elaborado pela relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | P. 2465/24.6T8PTM.E1 Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora I. Relatório SPAST – Sociedade Portuguesa de Aluguer e Serviços Têxteis, S.A. apresentou petição inicial contra AA, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe uma indemnização no valor de € 195,03, mais IVA, acrescida de juros desde 07-05-2024 até integral pagamento. Para tanto, alegou, em breve síntese, que admitiu o réu ao seu serviço em 02-01-2024, para exercer as funções de Delegado Comercial, e que, em 17-01-2024, lhe atribuiu uma viatura automóvel para o desempenho da atividade profissional, tendo-lhe dado a conhecer a “Politica de Frota Viatura de Função” e as obrigações decorrentes da mesma. O contrato de trabalho cessou, porém, em 15-03-2024 e, nesta data, o réu devolveu a viatura à autora. Sucede que a viatura apresentava vários danos, devendo o réu responder pelo mesmos no âmbito da responsabilidade civil contratual, nos termos previstos pelos artigos 562.º a 566.º e 798.º, todos do Código Civil, uma vez os referidos danos resultaram do incumprimento de deveres laborais, designadamente o de executar o trabalho com zelo e diligência, o de obedecer às diretrizes da empregadora e o de velar pela conservação e boa utilização dos bens relacionados com o trabalho, consagrados no artigo 128.º, n.º 1, alíneas c), e) e g) e n.º 2, do Código do Trabalho). - Em 12-09-2024, a 1.ª instância proferiu a seguinte decisão:«1. A autora “SPAST – Sociedade Portuguesa de Aluguer e Serviços Têxteis, S.A.” instaurou neste Juízo de Trabalho de Portimão ação declarativa de condenação contra AA, pedindo a condenação deste no pagamento de «uma indemnização no valor de € 195,03, mais IVA, acrescida de juros de mora desde 07-05-2024 até integral pagamento». Muito sinteticamente, a autora alega que o réu esteve ao seu serviço entre 02-01-2024 e 15-03-2024, tendo-lhe sido atribuído uma viatura de serviço para o desempenho das suas funções (visitas a clientes, prospeção e angariação de clientes, divulgação de serviços e celebração de contractos) e que a mesma apresentava alguns danos aquando da sua devolução. Sustenta, também, a demandante que, tendo o veículo sido entregue para o desempenho das suas tarefas profissionais, o réu incumpriu as obrigações que havia assumido, típicas de um contrato de depósito e/ou comodato, sobre ele recaindo a obrigação de restituir a coisa no estado em que lhe foi entregue. Não o tendo feito, será responsável pela reparação dos danos, nos termos dos artigos 562.º a 566.º e 798.º do Código Civil. 2. Apreciando a competência deste Juízo de Trabalho para conhecer da ação. A competência visa repartir o «poder jurisdicional entre os diversos tribunais, dizendo, pois, respeito, à delimitação interna da atividade deles, quando confrontados entre si» (MONTALVÃO MACHADO/PAULO PIMENTA, O Novo Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra, 2000, p. 79). A incompetência, por sua vez, é a insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação (vide, neste sentido, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, p. 128). Importa, por isso, aferir da competência interna em razão da matéria deste Tribunal/Juízo do Trabalho Local 1, que constitui exceção dilatória, de conhecimento oficioso e pode conduzir à absolvição da instância (cfr. artigos 96.º, alínea a), 97.º, nºs 1 e 2, 98.º, 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a), todos do Código de Processo Civil). Em face da vastidão de certos sectores do Direito e à especificidade das normas que os integram, a Lei da Organização do Sistema Judiciário levou tão longe quanto possível o princípio da especialização, criando secções especializadas de acordo com as matérias submetidas a apreciação judicial, que no caso dos Juízos de Trabalho tem os seus contornos definidos pelo seu artigo 126.º. Analisadas as várias alíneas do n.º 1 do artigo 126.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a nosso ver, em nenhuma delas se pode enquadrar a ação de indemnização contra um antigo trabalhador, tal como foi configurada pela autora na sua petição inicial. Como se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 13-07-2022, relatado pelo Desembargador JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA, disponível em www.dgsi.pt, «estando em causa na ação – como decorre da configuração a ela dada pela demandante e atendendo, especialmente, ao pedido por esta formulado – um comportamento ilícito e culposo do réu, seu ex-trabalhador, não estamos perante uma questão emergente da relação de trabalho subordinado, para efeitos de atribuição de competência aos tribunais do trabalho, como exigido pela alínea b) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário». No caso concreto, a pretensão indemnizatória da autora emerge do dever geral de indemnizar, consagrado no artigo 562.º do Código Civil, ao invocar expressamente contratos de cariz exclusivamente civilista (depósito e/ou comodato), que o réu ilícita e culposamente terá incumprido e o valor reclamado decorre da orçamentação da reparação do veículo de serviço, tendo por referência os dias em que esteve atribuído ao réu. Com efeito, em causa não está qualquer questão emergente da relação de trabalho subordinado havida entre as partes, mas tão só um comportamento eventualmente gerador de responsabilidade civil, indemnizável nos termos gerais do Direito. Assim, a competência para conhecer da causa caberá ao Juízo Local Cível e não a este Juízo do Trabalho. Em conclusão, procede a exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria, com a consequente absolvição do réu da instância (cfr. artigos 96.º, alínea a), 97.º, nºs 1 e 2, 98.º, 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a), todos do Código de Processo Civil). 3. Em face ao exposto: a) Declara-se a incompetência absoluta, em razão da matéria, deste Juízo do Trabalho Local 1, para conhecer da presente ação declarativa, dela se absolvendo o réu da instância; b) Condena-se a autora nas custas do incidente, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) UC (artigo 7.º, n.ºs 4 e 8, conjugada com a Tabela II-A, anexa ao Regulamento das Custas Processuais. Notifique e registe.». - Inconformada, a autora interpôs recurso para esta Relação, concluindo:«(a) No caso dos autos, está em causa uma conduta do Réu que constituiu violação dos seus deveres laborais, em especial de trabalhar com zelo e diligência, de obediência e de velar pela conservação e boa utilização dos bens relacionados com o trabalho (art. 128 n.º 1 als. c), e) e g) e n.º 2 do Código do Trabalho) (b) E, por outro lado, os danos que essa conduta causaram à Autora no contexto do contrato de trabalho (art. 323 n.º 1 do CT), sendo que essa responsabilidade emerge exclusivamente da relação laboral que vigorou entre a Autora e o Réu. (c) A competência em razão da matéria determina-se pela causa de pedir e pelo pedido formulado pelo Autor e, nos presentes autos, os mesmos enquadram-se em questões emergentes de relações de trabalho subordinado. (d) Em face do exposto, ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou, em especial, o art. 126 n.º 1, alíneas b) e n), da LOSJ, devendo ser substituída por decisão que determine a competência do Juízo do Trabalho Local 1, Juiz ....». - A 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.- A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, propugnando pela procedência do recurso.Não foi oferecida resposta. Mantido o recurso, foi elaborado o projeto de acórdão e foram colhidos os vistos legais. Cumpre apreciar e decidir. * É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso. Em função destas premissas, a única questão que importa dilucidar e resolver é a respeitante à alegada competência material do Juízo do Trabalho. * A matéria de facto a atender é a que consta do relatório supra, para o qual remetemos, sem necessidade da sua repetição, bem como os demais elementos que constem dos autos que sejam relevantes para a apreciação da questão sub judice. * IV. Enquadramento jurídicoComo já referimos, em função do objeto do recurso, importa analisar se a decisão recorrida merece censura. Apreciemos. A competência do tribunal constitui um dos mais importantes pressupostos processuais, isto é, uma das condições essenciais de que depende o exercício da função jurisdicional (cf. “Direito Processual Civil Declaratório”, vol II, págs. 7 e segs, Anselmo de Castro, Almedina Coimbra, 1982). Para que um tribunal possa conhecer e decidir sobre o mérito de uma determinada ação, o mesmo tem de ser competente ou idóneo à luz da legislação vigente, designadamente das regras que distribuem o poder de julgar entre os diferentes tribunais – (cf. “Manual de Processo Civil”, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 195). Entre estas regras, encontram-se as que repartem, na ordem interna, as matérias das causas entre tribunais da mesma categoria e hierarquia. Trata-se, no fundo, de uma organização judiciária horizontal. De salientar ainda que a competência para o julgamento de uma causa, afere-se a partir da relação jurídica que se discute na ação, tal como é configurada pelo autor (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-05-2000, CJ,STJ, II, pág.39). Assim sendo, importa apreciar que litígio é apresentado pela autora/recorrente, pois só tal análise nos permitirá concluir se o mérito da causa se insere ou não na competência atribuída aos juízos do trabalho pela Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, com as sucessivas alterações). E da análise da petição inicial, infere-se que a autora demanda o réu para que este lhe pague os danos da viatura que lhe foi atribuída no âmbito da relação de trabalho que vigorou entre as partes processuais, e que foram originados pelo incumprimento, quer das obrigações previstas na “Politica de Frota Viatura de Função”, quer de alguns deveres laborais, nomeadamente o de obediência e o de velar pela boa conservação e boa utilização de bens relacionados com o trabalho que lhe foram confiados pelo empregador. Parece-nos resultar evidente que, atendendo à relação material controvertida apresentada, o que está em causa é um incumprimento contratual, que já não pode ser censurado em termos disciplinares (por a relação laboral ter cessado), mas que pode originar responsabilidade civil contratual. O direito reclamado, portanto, provém ou emerge de uma relação de trabalho subordinado e das obrigações assumidas nessa relação contratual. Ora, estipula o artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário): «1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível: (…) b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho; (…)». Destarte, afigura-se-nos que o Juízo do Trabalho Local 1 é materialmente competente para conhecer do litígio configurado pela demandante, nos termos previstos pelo artigo 126.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 62/2013. Neste sentido, o acórdão da Relação do Porto de 16-04-2012 (Proc. n.º 561/11.9TTPRT.P1), acessível em www.dgsi.pt, no qual se se escreveu: «É da competência do Tribunal do Trabalho a ação em que a entidade empregadora pede a condenação da ex-trabalhadora no pagamento de uma indemnização por prejuízos causados pela violação dos deveres de zelo e diligência, de cumprimento de ordens e instruções respeitantes à execução ou disciplina do trabalho e do dever de promover e executar atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa.». Face ao exposto, conclui-se que o recurso deve proceder. * Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, e, em consequência, revogam a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que respeite a normal tramitação processual. Custas pela parte vencida a final Notifique. Évora, 5 de dezembro de 2024 Paula do Paço João Luís Nunes Mário Branco Coelho __________________________________________________ [1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: João Luís Nunes; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho |