Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
749/14.0T8LLE-B.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
INTEMPESTIVIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
DECISÃO SURPRESA
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - A petição de embargos de terceiro deve ser liminarmente indeferida se não for apresentada em tempo, pelo que a exceção da caducidade do direito de ação é de conhecimento oficioso se os factos atinentes resultarem da petição inicial ou a intempestividade resultar de forma ostensiva dos autos.
II – Sendo os embargos recebidos, o ónus de alegação e prova de que o prazo de interposição, de 30 dias, já decorrera, incumbe ao embargado, em fase contraditória.
II – Nesta fase contraditória não pode o Tribunal conhecer oficiosamente da tempestividade dos embargos.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 749/14.0T8LLE-B.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que AA move a BB e Urbisotavento Imobiliária, Lda., veio CC deduzir os presentes embargos de terceiro, pedindo «que seja declarada a ilegalidade da penhora em causa, ordenando-se o seu imediato cancelamento e, em consequência, a cessação da apreensão jurídica do imóvel penhorado».
Alega, em síntese, que não teve conhecimento de qualquer diligência de penhora efetuada sobre a sua meação no dito imóvel, pois o exequente apenas converteu em penhora o arresto incidente sobre o direito à meação do executado BB no prédio urbano em causa, acrescendo que por contrato-promessa a ora embargante obrigou-se a outorgar contrato definitivo de aquisição do imóvel a favor de DD e EE, tendo realizado obras de conservação e manutenção no imóvel, sendo a embargante a legítima proprietária e possuidora do mesmo, o qual foi indevidamente penhorado – na parte em que o foi -, por o ter adquirido no âmbito de um processo judicial, sendo que desde a adjudicação e após ../../2011, data em que promoveu o registo da aquisição do imóvel, passou a agir como se de proprietária se tratasse, de forma pública, pacífica e de boa-fé, atuando a embargante sempre com vista à celebração do contrato definitivo para formalizar a transmissão jurídica da propriedade, e só agora tomou conhecimento da ofensa ao seu direito.
Os embargos foram liminarmente recebidos, determinando-se a suspensão da execução relativamente à meação no prédio urbano objeto dos embargos e a notificação das partes primitivas na ação executiva para, querendo, deduzirem contestação.
O exequente veio, por simples requerimento, pugnar pelo indeferimento liminar dos embargos, por a petição inicial ter sido apresentada fora de prazo.
Notificado para juntar aos autos o comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e da multa, esclareceu o exequente «que não apresentou qualquer contestação, tendo-se limitado a informar do óbvio face aos elementos constantes do processo, motivo pelo qual, não irá proceder a tal pagamento, devendo, caso seja esse o entendimento do Tribunal, ser desconsiderado o teor do requerimento apresentado em 06/06/2023 sob a Ref.ª “...24”»[1].
Por se haver considerado que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação do pedido, foi proferida decisão em cujo dispositivo se consignou:
«Nos termos expostos, o Tribunal decide:
a) Rejeitar, por ter caducado o exercício do direito de embargar, os presentes embargos de terceiro deduzidos por CC;
b) Condenar a Embargante no pagamento das custas e demais encargos com o processo, sem prejuízo da protecção jurídica que lhe foi concedida.»
Inconformada, a embargante apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«A. Está em causa nos presentes autos a Sentença que julgou procedente a exceção dilatória não invocada, da caducidade do direito por intempestividade de interposição da presente acção, com a consequente absolvição dos Embargados da instância.
B. Fundamentou o Tribunal a quo a decisão com a notificação/citação efetuada ao cônjuge da Embargante de uma certidão de registo.
C. Considerando que “(…) o auto de penhora lavrado nos autos de execução, do qual resulta que a senhora Agente de Execução converteu em penhora o arresto incidente sobre a meação que o executado BB detém no prédio urbano situado em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...16 e inscrito na matriz sob o artigo ...90, sendo que nesse auto consta a data de 24/10/2023, mas a mesma não está correcta,…”
D. Não pode, salvo melhor, o entendimento vertido na decisão permanecer na ordem Jurídica.
Pois,
E. Considerando o teor daquela notificação conforme com a Lei – por emanada do Tribunal –, ou seja, dentro dos 30 dias, a Recorrente apresentou ação por Apenso junto do Tribunal ....
F. Dos autos não resulta que se apura em que data a Recorrente tomou conhecimento/apreendeu que os seus direitos de posse e/ou propriedade estavam a ser questionados.
G. Porém, o M.º Juiz, assumiu ora posição totalmente diversa e contraditória com a dos Despachos antecedentes:
-Mas, a ser assim, de tal devia notificar as partes para, no exercício do contraditório, se pronunciarem sobre a – nova – posição do Tribunal quanto à apreciação da intempestividade.
H. Para além de ter preterido o principio do contraditório, na decisão recorrida, o Mº juiz não considerou o facto de uma Agente ao serviço da Administração Direta do Estado – AE – ter notificado/citado a Autora – aqui Recorrente – que devia adotar o procedimento apodado pelo Mº Juiz de Nulo “ (…) acordo com o disposto no nº 1, do artigo 195º, do Código de Processo Civil, a prática de um acto que a lei não admita produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa, dispondo o nº 1, do artigo 740º, do mesmo diploma legal …”
I. Ora, como determinado pelo Mº Juiz, a ora recorrente, podia munir-se dos meios legais à sua disposição, ou seja, através da interposição da presente ação.
J. Tudo o supra exposto foi desconsiderado na Sentença onde se invocou para fundamentar a decisão – unicamente – terem decorridos 30 dias da notificação/citação do seu cônjuge.
K. Tomando partido pela posição, dos Embargados, ainda que determinado o desentranhamento das suas peças (por falta do pagamento da taxa de justiça) concluindo pela verificação da caducidade do direito de interposição da ação em (“venire contra factum proprium”), o Tribunal a quo posterga princípios basilares da relação processual da confiança e da boa-fé.
L. A omissão de considerar que, no caso concreto, a Recorrente atuou de boa-fé e pautado pela confiança que depositou na atuação do Tribunal a quo remete para o domínio da irrelevância princípios fundamentais na relação entre estes e os Particulares, o que, a final, redunda na derrogação da garantia constitucional de tutela jurisdicional efetiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos.
M. Socorrendo-nos do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte n.º 00101/2002.TFPRT.21, de 10 de março de 2016, com vastas referências doutrinais, “Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 1ª ed. pp. 214/216), referem o seguinte: ″«O princípio da boa-fé está consagrado no art. 266°, 2 CRP e no art. 6°-A CPA, que alargou o seu âmbito subjetivo de aplicação, de modo a vincular não apenas a administração mas também os particulares que com ela se relacionem (…) o princípio da primazia da materialidade subjacente e o princípio da tutela da confiança (…) Já o princípio da tutela da confiança «visa salvaguardar os sujeitos jurídicos contra atuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem. É a isto que o artigo 6.º-A, n.º 2, alínea a) do CPA se refere quando afirma que se deve ponderar «a confiança suscitada na contraparte pela atuação em causa». (…) ″ In casu, este princípio da tutela da confiança assume especial relevância, dado que visa, precisamente e como se disse, salvaguardar os sujeitos jurídicos contra atuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem. E, por outro lado, atualmente, deve entender-se que princípios como o da justiça - e da boa-fé - são aplicáveis mesmo no exercício de poderes vinculados, sobrepondo-se a outros deveres legais (cfr., por todos, o Acórdão do STA, de 25/06/2008, recurso n.º 0291/08)” (sublinhado da Recorrente).
N. Ora, tendo o Tribunal a quo entendimento diverso, de tal devia a Mª Juiz notificar as partes para, no exercício do contraditório, se pronunciarem.
O. O princípio do contraditório, ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, proíbe a prolação de decisões surpresa, mesmo que de conhecimento oficioso, e garante a participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
P. Violando o princípio do contraditório, o Tribunal a quo proferiu decisão surpresa, que é ilegal, e cometeu uma nulidade, pois omitiu a prática de um ato a que lei obriga, com influência decisiva no sentido da decisão da causa.
Tanto mais que,
Q. O princípio do contraditório não se basta com a garantia de que as partes tenham a possibilidade de intervir no processo, tendo conhecimento e possibilidade de pronúncia quanto aos pedidos que deduzem ou contra si são deduzidos; implica ainda que as partes possam pronunciar-se quanto a questões determinantes para a decisão a proferir e que, constituindo novidade no processo, não tenham sido objecto de pronúncia no decurso do normal contraditório previsto na tramitação processual.
R. Pois, o princípio do contraditório assume-se como garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 12841/19.08T8LSB.L2-6 (ANA DE AZEREDO COELHO).
S. Foi, assim, violado o princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da Constituição, por ser inadmissível que um procedimento seja decidido ao arrepio do mais elementar direito à igualdade de armas, já de si comprometido, atenta a dimensão e desproporção dos intervenientes na lide: Estado Vs. Particulares;
T. A violação do princípio da tutela judicial efetiva é manifestamente injusta, pois tem como consequência a denegação do direito de interposição de acção judicial.
U. Violou o Tribunal garantias constitucionais da Embargante, ora recorrente, alheando-se da condução e tramitação dos autos em consonância com os procedimentos legalmente previstos.
V. Mais, o Tribunal a quo não só violou o n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, como incorreu na prática de uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 195.º do Código de Processo Civil e inconstitucionalidade por violação do artigo 20.º da CRP.
W. O entendimento do Tribunal a quo aniquila princípios basilares da relação entre a Administração da Justiça e os Particulares, em especial, os da confiança e da boa-fé.
X. Numa ótica processual, desvirtua cânones fundamentais do contencioso civil, o que, a final, redunda na derrogação da garantia constitucional de tutela jurisdicional efetiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos.
Y. Não estavam reunidas as condições, desde logo, em virtude da documentação carreada para os autos, para que se entendesse que a procedência da intempestividade/exceção dilatória de caducidade do direito de ação era clara.
Z. Portanto, foi omitida uma formalidade obrigatória que influenciou a decisão da causa, o que consubstancia uma nulidade processual, aqui arguida para todos os efeitos legais (cf. artigo 195.º, n.º 1, do CPC, aplicável por remissão do artigo 1.º do CPTA).
AA. Defender o contrário do que acabou de se referir significa, sem mais, desrespeitar a confiança e a boa-fé, ambos princípios modeladores da relação entre o Estado e os particulares, bem como o princípio da justiça e, derradeiramente, a garantia de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, que se converte em simples retórica e num direito sem possibilidade de exercício efetivo pelos particulares (cf. artigos 20.º, n.º 1, 266.º, n.º 2, e 268.º, n.º 4, da CRP).
BB. Em face do exposto, tendo em conta que o Tribunal criou na Recorrente não só a confiança legítima e fundada de que a decisão era suscetível de ser impugnada e que se apresentava como tempestiva no prazo – que aliás foi observado-, não podia o Tribunal a quo ter considerado verificada a exceção de caducidade do direito de ação.
CC. Por todas as razões supra expostas, não pode manter-se o entendimento vertido na aliás Douta Sentença, devendo ser revogado e substituído por outra decisão que se pronuncie sobre o mérito da causa ou, em alternativa, determine o prosseguimento normal dos autos com vista a uma pronúncia, a final, sobre a questão de fundo.
*****
Termos em que o presente recurso deve ser admitido e julgado totalmente procedente, por provado, e, em consequência, ser a decisão recorrida revogada e substituída por outra que, julgando improcedente a exceção dilatória de caducidade do direito de ação, se pronuncie sobre o mérito e conceda integral provimento dos Embargos de Terceiro, com todas as consequências legais que daí decorrem.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir consubstancia-se em saber se tendo os embargos de terceiro sido recebidos, podia o Tribunal oficiosamente, na fase contraditória, ter rejeitado os mesmos com fundamento na sua extemporaneidade.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na decisão recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. O exequente AA intentou em 14/03/2012 a execução contra os executados «Urbisotavento Imobiliária, Lda» e BB, a qual corre termos neste ... do Tribunal Judicial da Comarca ... sob o nº 749/14....;
2. Nos autos de execução referidos em 1), a senhora Agente de Execução lavrou o auto de penhora, no qual consta, além do mais “Bens penhorados. Verba: 1. Espécie: Imóvel. Descrição: Penhora (conversão do arresto) do direito à meação do executado BB no Prédio em Prop. Total sem andares nem div. Susc de utiliz independente (...) descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n ...31, na freguesia ..., com o artigo matricial ...90 e sito em ..., ... ..., com o valor patrimonial actual de 220.950,21 euros...”;
3. A conversão do arresto em penhora referido em 2) foi registada/inscrita pela Ap. ...98 de 2022/10/24;
4. A meação que BB detém no prédio urbano situado em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...16 e inscrito na matriz sob o artigo ...90 foi arrestado no âmbito dos autos nº 171/11...., arresto esse registado/inscrito pela Ap. ...90 de 2011/04/06, constando como sujeito activo AA, casado com FF no regime de comunhão de bens adquiridos, como sujeito passivo BB, casado com CC no regime de comunhão de bens adquiridos, sendo a quantia garantida de 810.288,26 €;
5. Em 11/01/2023 a senhora Agente de Execução remeteu a CC nota de citação, na qual, além do mais consta “Fica V. Exa citada, nos termos do artigo 740º do Código do Processo Civil (CPC), para o processo de execução à margem referenciado, tendo o prazo de 20 (vinte) dias para requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de serem penhorados os bens comuns...” e juntou a essa nota de citação o auto de penhora relativo à meação que o executado BB detém no prédio urbano situado em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...16 e inscrito na matriz sob o artigo ...90;
6. CC instaurou os presentes embargos de terceiro em 08/05/2023.

Mais se consignou que não foram considerados factos não provados por se entender que «estão provados todos os factos alegados pelos embargantes com interesse para a decisão».

Além dos factos elencados na decisão recorrida, importa, porém, considerar ainda a seguinte factualidade:
- Em 29.03.2023 foi proferido nos autos de execução o seguinte despacho:
«De acordo com o disposto no nº 1, do artigo 195º, do Código de Processo Civil, a prática de um acto que a lei não admita produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa, dispondo o nº 1, do artigo 740º, do mesmo diploma legal que “Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, é o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendencia de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns”.
Feito o enquadramento legal, revertendo agora ao caso dos autos, temos que em 21/09/2012, AA instaurou a presente execução contra “Urbisotavento, Imobiliária, Lda” e BB, indicando que a mesma era para apensar ao processo nº 310/11...., sendo-lhe atribuído o nº 310/11.....
No âmbito da presente execução, pela Ap. ...98 de 2022/10/24, foi convertido em penhora o arresto incidente sobre o direito à meação do Requerido BB no prédio urbano situado em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...16 e inscrito na matriz sob o artigo ...90.
Na sequencia dessa conversão do arresto em penhora, o senhor Agente de Execução, invocando o disposto no nº 1, do artigo 740º, do Código de Processo Civil, citou para a execução CC, constando na nota de citação “...Fica V. Exa citada, nos termos do artigo 740º do Código do Processo Civil (CPC), para o processo de execução à margem referenciado, tendo o prazo de 20 (vinte) dias para requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendencia de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de serem penhorados os bens comuns...”.
Ora, a citação a que alude o nº 1, do artigo 740º, do Código de Processo Civil apenas deve ter lugar após a concretização da penhora dos bens comuns do casal, o que não é caso, porquanto na nota de citação endereçada a CC é feita menção “sob pena de serem penhorados os bens comuns”. Acresce que no caso dos autos não foram penhorados quaisquer bens comuns do casal formado pelo executado BB e CC, porquanto o arresto efectuado nos autos nº 171/11.... incidiu não sobre a totalidade do prédio urbano, mas apenas sobre o direito à meação do requerido BB, e foi o arresto desse direito que agora foi convertido em penhora no âmbito da presente execução, pelo que nenhum fundamento legal existia para que o senhor Agente de Execução citasse para a execução o cônjuge do executado BB, no caso CC.
Por essa razão, e porque se trata da prática de um acto que a lei não admite e que pode influir no exame ou na decisão da causa, declara-se nula essa citação.
Notifique, sendo também o senhor Agente de Execução e a Interveniente CC, que, querendo, poderá deitar mãos dos meios processuais adequados ao seu dispor, porquanto, resulta da certidão registral do prédio urbano sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...16 e inscrito na matriz sob o artigo ...90, que o mesmo foi inscrito/registado a favor de CC pela Ap. ...7/25 e resulta dos documentos juntos aos autos que esse prédio foi adjudicado a CC no âmbito do processo de Inventário/Partilha de Bens em Casos Especiais que correu termos sob o nº 149/06.... no Tribunal Judicial da Comarca ..., cujo mapa de partilha foi homologado por sentença de 07/11/2008.»

O DIREITO
Nos termos do art. 342º, nº 1, do CPC, «[s]e a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro».
Dispõe, por sua vez, o art. 344º do citado diploma legal:
«1. Os embargos são processados por apenso à causa em que haja sido ordenado o ato ofensivo do direito do embargante.
2. O embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efetuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respetivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas.»
Por seu turno, prescreve o art. 345º do CPC, sob a epígrafe “Fase introdutória dos embargos”, que «[s]endo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pela embargante».
Ora tendo esta fase natureza liminar e cautelar, a mesma apenas assegura a possibilidade de prosseguimento dos embargos, razão pela qual e no que tange à mesma, alguns autores[2] e a jurisprudência dominante[3] defendem o conhecimento oficioso da intempestividade, e o ónus de alegação e de oferecimento de prova sumária pelo embargante da tempestividade dos embargos[4].
In casu e tendo sido proferido despacho liminar de prosseguimento em 02.06.2023 (ref.ª ...40), não está, manifestamente, em causa a apreciação e aplicação da referida norma do art. 345º do CPC.
Acresce que, admitidos os embargos segue-se a “fase contraditória” que tem início com a notificação dos embargados para contestar, nos termos do nº 1 do art.º 348º do CPC, seguindo-se os termos do processo comum.
No caso, notificadas as partes primitivas - exequente e executados -, não foi apresentada qualquer contestação[5], mas na decisão recorrida foi decidido no sentido da verificação da exceção perentória da caducidade para a dedução de embargos.
Ora, tendo sido recebidos os presentes embargos, não tendo o Sr. Juiz a quo visto razões na fase liminar para a sua rejeição, incumbia aos embargados o ónus de alegar e demonstrar a caducidade do direito da embargante, pelo decurso do respetivo prazo de exercício.
É este o ensinamento que se colhe de Salvador da Costa[6], para quem «[n]o regime actual, por força do disposto no artigo 354º, a petição de embargos de terceiro deve ser liminarmente indeferida se não for apresentada em tempo, pelo que a excepção da caducidade do direito de acção é de conhecimento oficioso, se os factos respectivos resultarem da petição inicial, configurando-se, assim, neste procedimento, mais uma excepção à regra constante do nº 2 do artº 333º, do Código Civil.
Tendo em conta o disposto no artº 333º, nº2, trata-se de uma solução que não se conforma com o disposto no artigo 496º, segundo o qual, o tribunal conhece oficiosamente das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torna dependente da vontade do interessado.
Tendo em conta o disposto no artº 342º, nº2, do Código Civil, é ao embargado que incumbe ónus de alegação e de prova da extemporaneidade dos embargos, e, não se provando a data do conhecimento do facto lesivo, devem considerar-se tempestivamente instaurados.
Assim, se apenas se verificar a extemporaneidade dos embargos de terceiro face à data do acto de penhora, ainda que o embargante não tenha alegado a data em que dela teve conhecimento, não pode o juiz rejeitá-los liminarmente, isto é, não pode conhecer oficiosamente, da excepção peremptória em causa antes de sobre isso ser exercido o contraditório, porque o ónus de demonstrar a efectiva extemporaneidade recai sobre o embargado».
Estava, assim, vedado ao Sr. Juiz conhecer no saneador-sentença da exceção perentória em causa, tanto mais que, quando foi proferido o despacho liminar de prosseguimento dos embargos, dispunha o Sr. Juiz a quo de todos os elementos em que assentou a decisão recorrida.
Seja como for, não tendo os embargantes alegado o momento do efetivo conhecimento, pela embargante, do facto (penhora) lesivo do seu direito, deverão os embargos de terceiro considerar-se tempestivamente propostos, exatamente porque recai sobre os embargados o ónus de alegação e prova sobre a extemporaneidade[7].

Sem prejuízo, sempre se dirá que não podia o Tribunal a quo ter proferido a decisão recorrida, considerando o teor do despacho proferido nos autos principais em 29.03.2023, acima transcrito no elenco dos factos provados.
Com efeito, nesse despacho o Sr. Juiz, porque entendeu que nenhum fundamento legal existia para que o senhor Agente de Execução citasse para a execução o cônjuge – ora embargante - do executado BB, e por se tratar da prática de um ato que a lei não admite e que pode influir no exame ou na decisão da causa, declarou nula essa citação[8].
Mais, nesse despacho foi ordenada a notificação da embargante/recorrente de «que, querendo, poderá deitar mãos dos meios processuais adequados ao seu dispor, porquanto, resulta da certidão registral do prédio urbano sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...16 e inscrito na matriz sob o artigo ...90, que o mesmo foi inscrito/registado a favor de CC pela Ap. ...7/25 e resulta dos documentos juntos aos autos que esse prédio foi adjudicado a CC no âmbito do processo de Inventário/Partilha de Bens em Casos Especiais que correu termos sob o nº 149/06.... no Tribunal Judicial da Comarca ..., cujo mapa de partilha foi homologado por sentença de 07/11/2008».
Ora, a recorrente veio deduzir os presentes embargos em 09.05.2023, ou seja, dentro do prazo de 30 dias subsequentes à prolação daquele despacho[9].
Admitindo-se que subjacente a tal despacho estaria a indicação irregular de um prazo superior ao legalmente permitido para a recorrente deduzir embargos de terceiro, estes deveriam ser admitidos, atento o disposto no nº 3 do art. 191º do CPC.
Ademais, o saneador-sentença recorrido, proferido ao arrepio daquele despacho, viola os princípios do contraditório e da tutela da confiança.
Começando pelo princípio do contraditório, o artigo 3º, nº 3, do CPC dispõe que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
E igualmente se prescreve no Preâmbulo do DL 329-A/95 de 12.12, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a proibição da prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Como refere Abílio Neto[10], o efeito surpresa é inadmissível porque apanha a parte desprevenida, atentando contra o dever de lealdade que deve informar a atividade judiciária.
Por sua vez, a respeito do princípio da tutela da confiança, escreveu-se no acórdão do STA de 21.09.2011[11]:
«(…) na densificação do referido princípio da actividade administrativa relevam sobretudo dois subprincípios concretizadores da boa fé: o princípio da primazia da materialidade subjacente e o princípio da tutela da confiança (vide, neste sentido, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª edição, pag. 221).
Dos dois subprincípios citados é o princípio da tutela da confiança, que adquire especial relevância no caso subjudice.
Visa o mesmo salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem (…). É a isto que o artº 6º A, 2 a) do CPA se refere quando afirma que se deve ponderar «a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa» - ob. citada, fls. 222.
Por outro lado a tutela da confiança pressupõe a verificação de diversas circunstâncias: «primeiro uma actuação de um sujeito de direito que crie a confiança, quer na manutenção de uma situação jurídica, quer na adopção de outra conduta; segunda, uma situação de confiança justificada do destinatário da actuação de outrem (…..); terceiro, a efectivação de um investimento de confiança, isto é, o desenvolvimento de acções ou omissões, que podem não ter tradução patrimonial, na base da situação de confiança; quarto o nexo de causalidade entre a actuação geradora de confiança e a situação de confiança, por um lado e entre a situação de confiança e o investimento de confiança, por outro; quinto a frustração da confiança por parte do sujeito jurídico que a criou»- cf. ob. citada, fls. 222 e 223.
É necessário que se verifiquem os pressupostos acima enunciados para que ocorra uma situação de tutela de confiança.»
Ora são essas circunstâncias que se entende verificarem-se, globalmente, no caso presente.
Na verdade, com a prolação do despacho de 29.03.2023, que considerou nula a citação da recorrente na qualidade de cônjuge do executado e determinou a notificação da mesma de que poderia «deitar mãos dos meios processuais adequados ao seu dispor», criou-se na recorrente a confiança justificada de que a mesma poderia lançar mão dos embargos de terceiro, que aquela veio deduzir dentro do prazo de 30 dias subsequente a tal despacho, o que constitui um efetivo investimento de confiança, sendo que foi esse despacho que gerou a confiança na prática do ato, tendo a decisão recorrida frustrado aquela confiança que a recorrente havia depositado no aludido despacho.
Em todo o caso, pelas razões acima expostas, os embargos sempre teriam de se considerar tempestivos, por não ser lícito ao Sr. Juiz a quo conhecer no saneador-sentença da caducidade do direito da embargante, pelo decurso do respetivo prazo de exercício.
O recurso merece, pois, provimento.
Vencidos no recurso, suportarão os recorridos (exequente e executado) as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).


IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam o saneador-sentença recorrido, devendo os autos prosseguir os seus regulares termos.
Custas pelos recorridos.
*
Évora, 9 de maio de 2024
Manuel Bargado
José António Moita
Ana Pessoa
(documento com assinaturas eletrónicas)
_________________________________________________
[1] O que veio efetivamente a ser desconsiderado pelo Tribunal a quo no saneador-sentença, sob: “I - Identificação das Partes e Objecto do Litigio”.
[2] Cfr., entre outros, Miguel Teixeira de Sousa, Ação Executiva Singular, Lisboa, Lex, p. 314 e Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição, p. 344.
[3] Cfr., inter alia, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 24.10.2023, proc. 684/12.7TBLRA-C.C1, da Relação do Porto de 14.04.2021, proc. 1736/18.5JAPRT-A.P1 e da Relação de Lisboa de 14.05.2015, proc. 8365/10.4YYLSB-B.L1-2, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª edição, Almedina, p. 681.
[5] Vimos já supra que o requerimento apresentado pelo exequente foi desconsiderado, no seguimento, aliás, do solicitado pelo próprio exequente/embargado.
[6] In Incidentes da Instância, 5ª Edição, Actualizada e Ampliada, Almedina, pp. 225-226.
[7] Cfr. inter alia, os acórdãos do STJ de 01.04.2008, proc. 08A046, da Relação de Lisboa de 14.05.2015, proc. 18365/10.4YYLSB-B.L1-2 e da Relação de Coimbra de 06.06.2019, proc. 1950/11.4YYLSB-C.L1-6, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] Curiosamente, segundo a decisão recorrida, seria a partir da data da citação que a embargante dispunha de 30 dias para deduzir os embargos de terceiro.
[9] As férias judicias da Páscoa decorreram de 2 de abril a 10 de abril.
[10] Código de Processo Civil Anotado, 22ª edição, p. 60.
[11] Proc. 0753/11, in www.dgsi.pt.