Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MARTINHO CARDOSO | ||
| Descritores: | DECLARAÇOES DO CO-ARGUIDO | ||
| Data do Acordão: | 05/11/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | 1 - Não há qualquer impedimento do co-arguido a, nessa qualidade, prestar declarações contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente, de valoração da prova feita por um co-arguido contra os seus co-arguidos. 2 - Com uma limitação, porém. Nos termos do n.º 4 do art.º 345.º, do C.P.P. não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias deste outro co-arguido, o primeiro se recusar a responder no exercício do direito ao silêncio. Do que se trata, aqui, é de retirar valor probatório a declarações totalmente subtraídas ao contraditório. | ||
| Decisão Texto Integral: | I Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal colectivo acima identificados, da Instância Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, os arguidos (…) responderam, acusados de terem cometido um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22-1. Realizado o julgamento, foram os arguidos condenados por um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22-1, nas penas de: Ø O (…), 3 anos e 6 meses de prisão efectiva; e Ø O arguido (…), 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo mediante regime de prova. # Inconformado com o assim decidido, o arguido (...) interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:a) A única prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento contra o aqui recorrente foram as declarações do co-arguido, em violação do artigo 354, n.° 4 do CPP; até mesmo a leitura de que, tendo o arguido prestado declarações em sede de primeiro interrogatório, não será, portanto de aplicar o referido artigo é, ilegal, por violação do princípio da imediação da prova e inconstitucional, por violação do artigo 31.° da CRP, uma vez que retira qualquer garantia ao arguido durante a fase — bem posterior — da audiência de discussão e julgamento. b) A matéria dada corno não provada conflitua com a matéria dada como provada: naquela não se provou que o arguido tenha previamente contactado alguém em Setúbal, que tenha ido ter com determinada pessoa para adquirir produto estupefaciente, que o dinheiro que estava na sua posse se destinasse à aquisição de produto estupefaciente, que o carro do arguido tenha sido utilizado no transporte de produto estupefaciente e que os rendimentos do arguido provêm do tráfico de estupefacientes. c) Ficou, no entanto, provado que quem tinha o produto estupefaciente escondido na perna esquerda era o co-arguido. d) Assim, e existindo grave contradição entre a matéria dada como provada e a matéria dada como não provada, esta última deve comportar a absolvição do arguido Pelo exposto, deve o douto acórdão ser substituído por outro, que absolva do arguido, fazendo-se, assim, a costumada Justiça. # A Exma. Procuradora do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:1 - O arguido (...) foi condenado pela prática, em autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes diminuto, p. e p. pelos artºs 21º, nº1 e 25º, al.a), ambos do Dec.Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão. 2 - O arguido (...) insurge-se quanto a esta medida da pena, alegando, para tanto e em síntese, que existe uma flagrante contradição entre a matéria provada e não provada; Toda a matéria dada como provada teve apenas como fundamentação as declarações do co-arguido, existindo, e salvo o devido respeito, uma violação ao artigo 345.º, n.º 4 do Código de processo Penal dada como provada e a matéria dada como não provada; Foi o arguido (...) quem detinha estupefaciente; O arguido deve ser absolvido do crime que lhe vinha imputado. 3 - O recorrente afirma existir contradição entre os factos dados como assentes e a matéria não provada, parece-nos, do que se extrai da motivação, pelo facto de não se ter considerado provado que o arguido (...) tenha contactado ou se fosse encontrar com (…), para lhe adquirir estupefacientes; Que o dinheiro apreendido fosse proveniente da venda de estupefacientes e a viatura adquirida com dinheiro da venda dos referidas substâncias e ainda que o mesmo pretendesse, com as substâncias de corte apreendidas (fenacetina, cafeína e paracetamol), adulterar a cocaína e a heroína. 4º - Ora estes factos, em nada colidem com os que se deram como provados, os quais se referem à aquisição, transporte e detenção de estupefaciente e os factos supra afastam a venda a terceiros. Só esta e não aquelas actividades se deu como não provada. 5º - Não há qualquer impedimento legal a que as declarações dos arguidos ou dos co-arguidos sejam valoradas como meio de prova. Os arguidos podem prestar declarações no exercício do direito que lhes assiste de o fazerem em qualquer altura do processo, podendo as declarações ser prestadas sobre factos de que possuam conhecimento directo e que constituam objecto de prova, sejam eles factos que só digam directamente respeito ao declarante sejam eles factos que respeitem a outros co-arguidos. 6ª – Decisivo é decisivo que o arguido contra quem tais declarações sejam feitas não tenha sido impedido de submetê-las ao contraditório. 7ª - Ora, consultando a acta de julgamento de 5/5/2020, verifica-se que só o arguido (...) prestou declarações, recusando-se a fazê-lo o arguido (...), pelo que foram lidas em audiência, as suas declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial. 8ª - Não esteve o recorrente impedido de esclarecer o tribunal ou infirmar as declarações que haviam sido prestadas pelo co-arguido (...). Na verdade, o ora recorrente não solicitou ao Exmº juiz quaisquer esclarecimentos, na sequência das declarações do co-arguido nem no final do julgamento, quando lhe foi dada a palavra, sobre «se queria dizer alguma coisa que ainda não fosse dita e que tivesse interesse ou fosse útil para a sua defesa», tendo o arguido respondido que não queria – cfr. gravação da audiência, às 11.58. 9ª - Por consequência, não violou o tribunal de 1ª instância o princípio da livre apreciação da prova ou qualquer outro, designadamente princípio da imediação da prova e o inconstitucional, por violação do artigo 31.º da CRP, todos invocados pelo recorrente. 10ª - No aspecto objectivo. a contribuição de cada co-autor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional). 11ª - O STJ tem, de há muito, consagrado a tese de que, para a co-autoria, não é indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os actos para obtenção do resultado pretendido, bastando que a actuação de cada um seja elemento componente do todo indispensável à sua produção 12ª - A decisão conjunta pressupõe um acordo que pode ser tácito, pode bastar-se com a consciência e vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado tipo legal de crime. 13ª - As circunstâncias em que os arguidos actuaram nos momentos que antecederam o crime podem ser indício suficiente, segundo as regras da experiência comum, desse acordo tácito. 14ª - No caso, o arguido (...) adquiriu o estupefaciente e contratou o co-arguido (...) para o transportar na sua viatura, pelo que as tarefas foram divididas entre ambos, actuando, pois, como co-autor nos factos dados como provados. 15ª - Assim sendo, o arguido não podia deixar de ser condenado. 16ª - A qualificação jurídica e a pena mostram-se adequadas. 17ª - Não foram violadas quaisquer normas legais. Razão porque se pugna pela manutenção do decidido. # Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. II No acórdão recorrido e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:-- Factos provados: 1º O arguido (...) não tem carta de condução e por isso, pelas 9h30m do dia 3 de Julho, contactou o arguido (...) solicitando-lhe que viesse consigo a Setúbal e comprometendo-se a pagar-lhe €20 para o efeito. 2º O arguido (...) aceitou e conduziu o veículo com a matrícula (…) desde (…) até Setúbal. 3º No dia 3 de Julho de 2019, cerca das 12h44m, os arguidos chegaram à Alameda das Palmeiras, no referido veículo conduzido pelo arguido (...), onde estacionaram. 4º Após, os arguidos saíram do veículo e separaram-se. 5º O arguido (...) dirigiu-se a um quiosque onde aguardou pelo arguido (...) que se dirigiu a local não apurado. 6º O arguido (...) demorou entre 15 a 30m, regressou ao automóvel e colocou um pacote em cima do banco do passageiro fazendo sinal ao arguido (...) para entrar no mesmo. 7º O arguido (...) obedeceu e, ao ver o pacote em cima do banco, recolheu-o e escondeu-o. 8º Cerca das 13h16m, os arguidos iniciaram a viagem de regresso, no automóvel (…), conduzido pelo arguido (...). 9º O veículo foi interceptado pela autoridade policial na Rua (…), às 13h20m, encontrando-se ambos os arguidos no interior. 10º O arguido (...) tinha consigo, escondido nas calças que usava junto ao tornozelo esquerdo um embrulho contendo seis pacotes. 11º Dois dos referidos pacotes continham cloridrato de cocaína com o peso de 14,972g, correspondentes a 50 doses individuais, e outro deles continha 30,739g de heroína correspondentes a 70 doses individuais. 12º Outros dois dos pacotes continham fenacetina com o peso total de 10,779g e o último continha 42,661g de uma mistura de paracetamol e cafeína, substâncias que, não sendo proibidas, podem ser misturadas com a cocaína e/ou heroína, desse modo aumentando o número de doses individuais elaboradas a partir destas. 13º O arguido (...) tinha em seu poder €1.260 em dinheiro, composto por seis notas de €10 e vinte e quatro notas de €50. 14º O arguido (...) tinha ainda consigo um telefone com os IMEI (…), contendo inserido o cartão SIM a que corresponde o número (…). 15º O arguido (...) não exerce actividade profissional com carácter de regularidade. 16º À data dos factos o automóvel com a matrícula (…) era propriedade do arguido (...), tendo-o este adquirido em 7 de Junho de 2019. 17º O automóvel foi utilizado como forma de transporte para a aquisição do estupefaciente. 18º O produto estupefaciente, bem como as demais substâncias apreendidas, pertencia ao arguido (...) que as adquiriu e organizou a deslocação entre (…) e Setúbal, a fim de concretizar essa aquisição. 19º O arguido (...) quis adquirir os produtos apreendidos. 20º O arguido (...) quis guardar o embrulho apreendido em sua posse, suspeitando que o mesmo continha estupefacientes, embora desconhecesse a respectiva qualidade e quantidade, tendo aceite conduzir o automóvel para receber o dinheiro que o arguido (...) lhe prometeu pagar em troca. 21º O arguido (...) sabia que a aquisição, detenção e transacção de cocaína e heroína é legalmente proibida e, ainda assim, actuou do modo descrito. 22º O arguido (...) sabia que a posse e transporte de cocaína e heroína é legalmente proibida. * Mais se provou:Que o arguido (...), ao recolher e esconder o pacote, nos termos referidos no artigo 7º dos factos provados, fê-lo por indicação do arguido (...). Que o arguido (...) se conformou com a possibilidade de que o pacote que recolheu, guardou e detinha, contivesse cocaína e heroína, o que não o impediu de actuar do descrito modo. * Do relatório social do arguido (...), junto aos autos a fls. 323 e ss. cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os legais efeitos, consta designadamente:“(…) (...) é um indivíduo de Etnia Cigana com 47 anos de idade, cujo processo de desenvolvimento e socialização decorreu num dos bairros sociais limítrofes à cidade de (…), conotado pela elevada incidência de problemáticas sociais e criminais. Durante a sua infância e adolescência, (...)integrava um agregado familiar numeroso que residia numa habitação abarracada, com reduzidas condições de habitabilidade. O agregado do arguido subsistia do trabalho realizado pelos seus progenitores como negociadores de gado e de campanhas sazonais na área da agricultura. As bases educacionais do arguido basearam-se na transmissão de valores e costumes de acordo com a cultura cigana no entanto, não obstante a forte ligação do arguido à comunidade cigana, este estabeleceu uma integração social favorável com a comunidade envolvente. (...) frequentou a escola mas não adquiriu qualquer grau de escolaridade, não tendo adquirido competências básicas ao nível da escrita e da leitura. Aos 12 anos o arguido optou por abandonar o ensino escolar, permanecendo um longo período sem participar em actividades socioeducativas estruturadas, privilegiando a permanência junto de pares da mesma etnia. Aos dezanove anos uniu-se maritalmente a (…), com quem constitui família e teve cinco filhos. O agregado familiar do arguido alegadamente subsistia com os rendimentos provenientes da venda de gado equino, realizado pelo arguido e pela sua esposa, situação que, segundo o arguido, conferia uma boa estabilidade económica ao agregado familiar. No início do ano 2006 o agregado familiar do arguido foi abrangido por um plano de realojamento no Bairro das (…) onde, segundo as fontes, vivia ostentando sinais de riqueza significativa e exercia um forte domínio e influência sobre a maioria dos residentes do bairro, que receavam tecer comentários acerca do seu modo de vida. (…) À data dos factos, (...) residia no Bairro das (…), com a sua mãe e dois dos seus cinco filhos, sendo que a sua esposa encontrava-se detida no E.P de tires, a cumprir pena de prisão por tráfico de estupefacientes. De referir que a esposa do arguido reintegrou o seu agregado, desde 4/10/2018, após concessão de liberdade condicional, por cumprimento de pena de prisão no EP de Tires, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes. A dinâmica familiar do arguido, assente nos costumes e valores da etnia cigana, foi caracterizada por laços de afectividade, entreajuda e cumplicidade entre todos os elementos. Segundo o arguido e a sua companheira, antes do período de reclusão do arguido, o agregado familiar usufruía de uma situação financeira estável, proveniente do rendimento da actividade que o casal realizava na criação e venda de gado equestre e de campanhas sazonais na apanha de fruta e azeitona. (…) apesar de verbalizar que o seu agregado tinha uma situação financeira estável, recebia Rendimento Social de Inserção e abono de família de dois filhos sendo que a mãe do arguido recebia uma reforma. (...) assume que por vezes se embriagava, em momentos de lazer e de convívio, embora evitasse envolver em conflitos, referindo ainda que não se tornava agressivo sobre o efeito do álcool. A companheira do arguido corrobora a versão apresentada pelo arguido, referindo que nunca se sentiu ameaçada pelo estado de embriaguez do arguido. No plano das características pessoais, embora não reconheça a problemática de alcoolismo que lhe está associada, da análise dos dados recolhido percepciona-se que (...) é um individuo com tendência para se tornar conflituoso quando ingere bebidas alcoólicas de forma abusiva. Demonstrou ainda diminuta capacidade de auto-critica em relação à problemática aditiva e ao impacto dessa problemática no seu modo de vida nomeadamente na sua alteração comportamental. O arguido é descrito, pela família, como uma pessoa protectora e empenhada nas suas responsabilidades parentais. (...) esteve preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de Setúbal no hiato temporal compreendido entre 04/07/2019 a 24/04/2020 (…). Após ser colocado em liberdade o arguido reintegrou o seu agregado familiar de origem, que atualmente é constituído pela sua companheira e dois filhos menores. O agregado familiar subsiste de forma contida com o Rendimento Social de Reinserção, sendo que o arguido não realiza qualquer atividade laboral. (...) refere que futuramente pretende voltar a trabalhar na criação e venda de cavalos, a fim de apoiar na educação dos seus filhos e na subsistência do seu agregado familiar. (…) Perante a acusação do presente processo (…) o arguido apresenta(…) um discurso centrado num processo de vitimização, perante a intervenção do sistema de justiça para com a sua comunidade de pertença. No período no qual esteve detido no estabelecimento prisional de Setúbal, (...) manteve um comportamento adequado ao contexto prisional, evidenciando capacidade para avaliar os prejuízos que poderia obter pelo desrespeito às normas instituídas, assim como as vantagens que advinham da adoção de um comportamento adequado. Durante a permanência no E.P de Setúbal o arguido recebeu visitas regulares de familiares, nomeadamente, da companheira e dos seus filhos que sempre manifestara, total disponibilidade em apoiar o arguido (…)”. * Do relatório social do arguido (...), junto aos autos a fls. 260 e ss. cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os legais efeitos, consta designadamente:“(…) (...) tem 42 anos de idade, integrou um agregado familiar composto pelos pais e um irmão mais novo. O progenitor e o irmão já faleceram, vítimas de acidente de viação. Os pais foram emigrantes na Alemanha durante vários anos, país de onde o arguido é natural. Os pais regressam definitivamente a Portugal, tinha o arguido cerca de 4 anos e foram viver para a localidade de (…)l. O trajeto escolar do arguido foi marcado pela falta de investimento e motivação, concluindo apenas o 6º. Ano de escolaridade. Aos 14 anos começou a trabalhar com o pai no negócio de venda de peixe no mercado local. A dinâmica familiar foi-nos descrita como harmoniosa até aos 19 anos, altura do falecimento do irmão, descrevendo esta etapa da sua vida, como muito conturbada, afetando-o psicologicamente, bem como, a toda a família. Terá sido nesta fase em que refere o início de consumos de estupefacientes, inicialmente haxixe e, mais tarde, drogas fortes, heroína e cocaína, que manteve durante vários anos, sobretudo, a partir dos 26 anos de idade. Os pais separaram-se quando o arguido tinha 22/23 anos de idade, passando a residir com o pai, figura de referência deste, na morada de família em (…), situação que manteve até ao falecimento do progenitor. Aos 25 anos, altera a residência para (…) e passa a morar em quartos alugados, trabalhando na área da restauração e construção civil. Aos 28 anos vai para o (…) com um familiar, primo, na tentativa de obter melhores condições económicas. Ao longo dos anos (...) referiu algumas vivências amorosas, contudo, sem grande vínculo nem compromisso sério. Possui um filho, atualmente com 11 anos de idade e a viver com a mãe no (…), afirmando bom relacionamento com ambos, pagando pensão de alimentos sempre que pode, não regularizada judicialmente. Com os restantes familiares, progenitora, o arguido mantém um relacionamento amistoso, embora distante, contando com o apoio económico desta, sobretudo, em fases de maior dificuldade financeira. (…) À data dos factos de que está indiciado no presente processo residia sozinho em casa arrendada, sita em (…) e subsistia dos apoios estatais, nomeadamente, subsídio de desemprego, que interrompe por alguns períodos em que consegue trabalho e/ou integração em formações subsidiadas do IEFP, situação que ainda mantém. Atualmente (...) encontra-se em acompanhamento pelo CRI de (...) e segundo informação clínica disponibilizada pelo arguido, a mesma refere “Encontra-se em Programa Agonista com Buprenorfina (Subutex) e tem comparecido às consultas…tem revelado evolução satisfatória e irá manter programa farmacológico…mantém acompanhamento regular na equipa, revela motivação para a manutenção da abstinência e sua reorganização psicossocial”. (…) Detentor de juízo crítico e auto censura sobre o ilícito (…) revela capacidade para acatar e cumprir as decisões judiciais que vierem a ser tomadas (…)”. * No CRC do arguido (...), junto aos autos a fls. 278 e ss. mostram-se averbadas as seguintes condenações:Pela prática a 13.4.98 de um crime de condução sem carta, na pena de 30 dias de multa, por sentença datada de 15.4.98; Pela prática a 15.8.2001 de um crime de receptação, na pena de 90 dias de multa, por sentença transitada em julgado a 20.3.2001; Pela prática, desde Maio de 2006, a data não indicada de 2007, de um crime de condução sem habilitação legal, de três crimes de detenção de arma proibida, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93, na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão, por acórdão transitado em julgado a 23.2.2009; Pela prática a 23.4.2015 de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova, por sentença transitada em julgado a 2.11.2017. * No CRC do arguido (...), junto aos autos a fls. 274 e ss. mostram-se averbadas as seguintes condenações:Pela prática a 2.7.2000, de um crime de coacção grave e de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena única de 120 dias, por sentença transitada em julgado a 12.1.2005; Pela prática a 19.7.2004, de um crime de injúria agravada e de dois crimes de ameaça, na pena única de 280 dias de multa, por sentença transitada em julgado a 26.1.2009 (substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, por decisão transitada a 26.1.2009); Pela prática a 2012, de um crime de violência doméstica ou análogos agravado pelo resultado, na pena de 2 anos e 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova, e em pena acessória, por sentença transitada a 12.12.2014. # -- Factos não provados:Que no dia 2 de Julho de 2019, pelas 23h11m, o arguido (...), utilizando o telefone com o número (…), tenha contactado (…) utilizador do telefone com o número (…), residente em Setúbal, dizendo-lhe que no dia seguinte sairia de (...) pelas 10h e iria a Setúbal (artigo 1º da acusação). Que o arguido (...) pretendia encontrar-se com (...), no dia seguinte, para lhe adquirir estupefacientes (artigo 2º da acusação). Que cerca das 12h47m, (...) tenha contactado telefonicamente o arguido (...), dando a conhecer um ao outro que estavam no local onde se deveriam encontrar (artigo 6º da acusação). Que o arguido (...) tenha ido ao encontro de (...), dele tendo recebido os produtos estupefacientes que pretendia adquirir (artigo 8º da acusação). Que os rendimentos do arguido (...) e o dinheiro que lhe foi apreendido tenham origem na transacção de estupefacientes (artigo 18º da acusação). Que o automóvel utilizado no dia dos factos tenha sido adquirido com dinheiro proveniente da transacção de produto estupefaciente, nem que o arguido (...) não tenha outra fonte de rendimentos (artigo 20º da acusação). Que o arguido (...) pretendesse juntar a fenacetina, paracetamol e cafeína à cocaína e heroína e dividir o produto final assim obtido em doses individuais para posteriormente as vender aos consumidores na zona de (…) (artigo 22º da acusação). Que o arguido (...) soubesse que o embrulho apreendido na sua posse continha estupefacientes (artigo 23º da acusação – pois que neste conspecto se prova apenas o que se referiu no artigo 20º dos factos provados, ou seja, que o arguido (...) quis guardar o embrulho apreendido na sua posse, suspeitando que o mesmo continha estupefacientes embora desconhecesse a respectiva qualidade e quantidade). * Não se respondeu:Ao artigo 9º da acusação, na parte dele que se refere a “estupefacientes” (uma vez que tal vocábulo, sem concretização factual, atinente a um concreto tipo de produto estupefaciente, é juridicamente inócuo). # Fundamentação da decisão de facto: Em julgamento, o arguido (...) prestou declarações, no sentido confessório, integral e sem reservas, quanto ao acervo dos que resultaram demonstrados. Com efeito, referiu-nos conhecer o co-arguido (...) da cidade de (…), a quem “fez o favor” que este lhe pediu (conduzi-lo, porque o mesmo não tinha carta de condução, na sua viatura – trata-se da que é mencionada nos autos - até Setúbal), a troco do pagamento de uma quantia de €20,00. Aceitou fazê-lo, porque era dependente de heroína, ainda que à data estivesse em reabilitação, sem consumir, e estivesse a trabalhar, auferindo cerca de € 600,00 mensais. Sendo que não obstante aquele lhe ter dito que pretendia ir a Setúbal para negociar um carro, o arguido (...) terá admitido logo aquando da proposta que lhe foi feita, que (...) pudesse ir ali para ir buscar droga, ainda que não tenha conseguido explicitar de forma aprofundada (algo que foi perspectivado pelo tribunal pela limitação da sua capacidade de expressão) as razões pelas quais admitiu tal, sendo que o próprio associa essa sua percepção ao conhecimento que tinha de que o arguido (...) tinha estado preso por tráfico (algo que resulta abonado pelo averbamento da sua condenação pela prática, ademais, de um crime de tráfico de estupefacientes, como resulta do teor do seu CRC, acima indicado nas respectivas folhas). Tal percepção resultou comprovada quando o arguido (...) lhe disse, aquando da chegada a Setúbal, que se iriam dirigir ao bairro da Bela Vista, onde o arguido (...) sabia que se vendia droga. Quando chegaram ao local, indicado pelo arguido (...), estacionaram a viatura, tendo cada um dos arguidos saído da mesma, separando-se, não tendo o arguido (...) assistido a qualquer telefonema feito pelo co-arguido, já que se dirigiu a um quiosque existente no local, onde ficou à espera do arguido (...), que se dirigiu a outro local, que o primeiro arguido desconhece qual tenha sido, tendo permanecido nesse quiosque até à chegada de (...), que ocorreu cerca de 15, ou 30 minutos depois, o qual lhe fez sinal para entrar na viatura, o que este fez, tendo visto um pacote em cima do banco da viatura, que recolheu e escondeu, a “mando” do co-arguido (...). Instado para melhor explicitar como tal sucedeu, referiu que ao ver o pacote, logo pensou que contivesse droga (ainda que desconhecesse qual o tipo de droga em concreto), e que quando o co-arguido (...) lhe disse para guardar aquele pacote o fez, porque se sentiu “intimidado”. Intimidação que não conseguiu concretizar nas respectivas razões (sendo que o tribunal ficou convicto de que tal lacuna proveio uma vez mais, das dificuldades de expressão manifestadas pelo arguido), mas que se teve como verdadeira, resultando este juízo de verosimilhança da análise da dinâmica dos factos, da qual resulta que o domínio da situação é do arguido (...), e não do arguido (...), tudo nos levando a crer que este último actua nos moldes do que é típico nos toxicodependentes que, mesmo em recuperação, se deixam bastas vezes conduzir em actuações lideradas por outros, sem questionar as instruções recebidas (mais a mais, quando estas provêm de quem “já tem cadastro” neste tipo de crimes -, o que dentro de uma cultura da marginalidade, constitui, como é sabido, um factor de “estratificação” entre os intervenientes), como forma de receberem alguma contrapartida económica, ou uma dose de produto estupefaciente (algo que, sem embargo de não ter sido assumido pelo arguido (...), ficámos convictos que poderia fazer parte das suas expectativas, aquando do “acordo” firmado com (...)). Sendo que a circunstância do produto estupefaciente ser guardado pelo arguido (...) (como este o faz, já que o colocou no interior das calças, por debaixo da zona do cinto, sendo que com os movimentos da condução, este descaiu por uma das pernas até à zona do tornozelo esquerdo, onde vem a ser encontrado) serve perfeitamente ao arguido (...) (que, recorde-se, é quem tem o “domínio” na apurada actuação) numa lógica rudimentar que é bem conhecida nas situações relacionadas com o tráfico, em que os intervenientes “se desfazem” da droga, para não serem surpreendidos na posse da mesma, pois que no caso de serem interceptados (como aliás, veio a suceder), seria o arguido (...) e não o próprio a ser encontrado na posse da mesma, dando-lhe margem para elaborar uma versão dos factos que o excluísse da autoria na detenção daquele produto estupefaciente. Sendo que as declarações assim prestadas, têm uma dupla dimensão, que importa ter presente e destrinçar, pois, que de um lado respeitam aos factos assumidamente praticados pelo próprio (cuja valoração não assume particular constrangimento) e por outro, respeitam a factos que se reportam ao co-arguido (...) que, como já se referiu, exerceu o seu direito ao silêncio. Encontramo-nos assim, ante o que a Doutrina e Jurisprudência denomina por “co-arguição”. Para a qual vale a prescrição contida no nº 4 do artigo 345º do Código do Processo Penal, segundo o qual; “Não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando o declarante se recusar a responder às perguntas formuladas nos termos dos nºs 1 e 2”. Trata-se como é bom de ver, da proibição da valoração das declarações prestadas por um arguido, em prejuízo de um outro co-arguido (no caso daquele se recusar a responder às perguntas formuladas sobre os factos que lhe sejam imputados). Dispensamo-nos de aqui citar a imensa jurisprudência comum, e do Tribunal Constitucional, nesta matéria. Limitamo-nos apenas (pela sua actualidade e notável visão prospectiva, porque preconizado em momento em que ainda não existia o nº4, do art. 345º, do CPP, na sua versão actualmente em vigor) a referir o que já em 1998, a Profª Teresa Pizarro Beleza (em “Tão amigos que nós éramos”, O valor probatório do depoimento de co-arguido no Processo Penal Português”, Rev. Mº Pº, nº 74, ano 19, ABR/Jun, 1998, págs. 39 e segs.) concluía: «O depoimento de co-arguido, não sendo, em abstracto, uma prova proibida em Direito português, é no entanto um meio de prova particularmente frágil, que não deve ser considerado suficiente para basear uma pronúncia; muito menos para sustentar uma acusação. Não tendo esse depoimento sido controlado pela defesa do co-arguido atingido nem corroborado por outras provas, a sua credibilidade é nula. Na medida em que esteja totalmente subtraído ao contraditório, o depoimento do co-arguido não deve constituir prova atendível contra o (s) co-arguido (s) por ele afectado (s). A sua valoração seria ilegal e inconstitucional». Ou seja, sendo as declarações co-incriminatórias de um arguido, passíveis de valoração (ainda que reconhecendo a jurisprudência como necessária, uma cautela adicional na respectiva valoração), é mister que as mesmas possam ser contraditadas. Nesse sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 133/2010, de 14 de Abril, segundo o qual “seguramente que, submetidas a estas exigências de exame crítico e fundamentação acrescidas, as declarações de co-arguido são meio de prova idóneo de um processo penal de uma sociedade democrática. O processo penal destina-se à realização da justiça penal e seria comunitariamente insuportável negar valor probatório a declarações provindas de quem tem com os factos em discussão maior proximidade apenas pela circunstância de ser seu autor um dos arguidos quando essas declarações são emitidas livremente e, num escrutínio particularmente exigente, se conclui não haver razão para duvidar da sua correspondência à realidade”. Não deixando de acentuar que é decisivo que o arguido contra quem tais declarações sejam feitas não tenha sido impedido de submetê-las ao contraditório.” (sublinhado nosso). No mesmo sentido vai também a mais recente jurisprudência do STJ, como se extrai entre outros, do acórdão de 15.04.2015 (Relator: Srª Conselheira Isabel Pais Martins), disponível em www.dgsi.pt., e a maioria da jurisprudência das Relações. É o que nos autos sucede, na medida em que tendo o arguido (...) optado pelo silêncio, as declarações do co-arguido foram controladas por si, pois que lhe foi (como se impunha), facultado o contraditório quanto ao conteúdo e à forma das mesmas. E desse modo se não suscitando (como não se suscita) qualquer dúvida quanto à possibilidade de as declarações do arguido (...) serem valoradas, na parte dos factos que respeitam ao co-arguido não declarante, tendo aquelas o conteúdo que “supra” foi mencionado que, pelas aduzidas razões, revelou credibilidade intrínseca, esta última resultou reforçada no seu cotejo com as declarações que o arguido (...) prestou em sede de primeiro interrogatório judicial. Na verdade, porque reunidos os legais pressupostos (desde logo, o que consta do artigo 141º/4-b) do Código de Processo Penal, como resulta da respectiva acta, a fls. 59 e ss.), foi lida a transcrição das declarações prestadas pelo mesmo no mencionado acto processual (juntas aos autos a fls. 305 e ss.), onde em síntese, negando ter alguma coisa a ver com o produto estupefaciente apreendido, reconhece ter-se deslocado na sua viatura (trata-se da que se encontra identificada nos autos) com o co-arguido (...), nos moldes referidos nos autos (ou seja, tendo a viatura sido conduzida desde (...) até Setúbal, pelo arguido (...), uma vez que o próprio não possui carta de condução, a quem deu €20,00 para que o transportasse), com o intuito de vir comprar uma carrinha Ford Transit. Precisando, referiu ter vindo a Setúbal com o mencionado propósito, por o seu “moço” ter visto na net o anúncio da venda da mesma, pelo valor de € 1000,00, e ter por costume comprar carros baratos, quando sabe que eles existem. O facto de se ter dirigido à Bela Vista (local de onde terá ligado ao vendedor), justifica-o por ser um sítio que conhece em Setúbal, cidade onde tem familiares seus. Sendo que quando liga para o vendedor, dizendo-lhe que estava à entrada da Bela Vista para comprar a viatura, este, apercebendo-se de que o arguido era cigano, recusou-se a fazer a venda, altura em que o arguido aproveitou para ir a uma roulotte que vende café e água, situada a cerca de 500 metros abaixo da Bela Vista, onde esteve durante cerca de meia hora a conversar com dois ciganos, após o que se foi embora, e quando já estava no carro com o co-arguido, foram interceptados pela polícia. Os € 1 200,00 que lhe foram apreendidos faziam parte do dinheiro que tinha levado para a não concretizada compra da Ford Transit. Sendo que estas declarações, adiante-se desde já, não nos mereceram qualquer crédito. Com efeito, escassamente se entenderia que o arguido, tendo sabido do anúncio da venda da Ford Transit se tivesse dirigido de (...) a Setúbal, mais a mais pagando ao co-arguido para que o conduzisse, sem que antes tivesse contactado telefonicamente com o vendedor, pois que essa viagem (que teve decerto, custos associados), poderia ser em vão (bastando pensar que no entretanto, a viatura podia ser vendida). E como conclui o tribunal que o arguido não terá contactado previamente com o vendedor? Porque a fazer fé nas suas declarações, quando o arguido lhe telefona, estando já na Bela Vista, o vendedor se recusa a fazer o negócio, no momento em que na conversa se apercebe que o arguido é cigano. Donde que (e de novo, fazendo fé nas declarações do arguido), caso tivesse havido esse contacto prévio, o vendedor aperceber-se-ia decerto desse facto (do arguido ser de etnia cigana), e recusar-se-ia, pelas mesmas razões, a vender-lhe a viatura. Depois, porque de acordo com as declarações do próprio, o arguido não sabe ler nem escrever. Assim, sabendo-se como se sabe que quando existem anúncios para venda de viaturas, estes negócios não se concretizam verbalmente (e é o próprio arguido quem admite, ao dizer que levava consigo o dinheiro suficiente para comprar a viatura, que pretendia concretizar aquele negócio no imediato), antes se tratando de negócios formais, escassamente se poderia admitir que o arguido, que não sabe ler nem escrever, aceitasse celebrar esse negócio, sem coadjuvação de quem, sabendo ler e escrever, lhe confirmasse que os termos do dito negócio correspondiam ao do anúncio. Finalmente, porque a fazer fé nas declarações do arguido, segundo as quais se dirigiu ao bairro da Bela Vista, com o intuito de comprar de imediato a Ford Transit (pois que levou a quantia necessária “em dinheiro”, para fazê-lo),não se compreende como poderia transportar essa viatura para (...), uma vez que não tinha carta de condução, e o co-arguido (...) era o condutor da viatura do arguido (...), na qual ambos se haviam deslocado de (...) para Setúbal (não podendo por isso, conduzir a Ford Transit, em simultâneo). Ou seja, estas declarações não fazem qualquer sentido intrínseco, tendo-as perspectivado o tribunal na dimensão da sua finalidade utilitária, ou seja: de negação por parte do arguido da sua autoria na prática dos apurados factos, e da adução (sem qualquer êxito, diga-se) de razões que justificassem ter na sua posse os € 1 200,00 que lhe foram apreendidos, e nada mais. E por isso, foi no cotejo das declarações prestadas pelo arguido (...) em sede de julgamento, com as que tendo sido prestadas pelo arguido (...) em primeiro interrogatório judicial, foram reproduzidas em julgamento, que o tribunal fundou a sua convicção, a qual foi no sentido da versão que o primeiro trouxe a julgamento. Sendo que na formação da sua convicção, o tribunal ponderou ainda, no sentido do que apurado se teve, o depoimento prestado por (…), agente da PSP em desempenho funcional na esquadra de investigação criminal de Setúbal de há 15, 16 anos a esta parte, no âmbito do qual conheceu os arguidos, contra os quais nada revelou ter. Referiu-nos a testemunha que no âmbito da investigação criminal de outro processo, obtiveram a informação de que o arguido (...) se deslocaria a Setúbal, e na sequência dessa informação, foi montada uma operação de intercepção, no âmbito da qual os arguidos foram abordados na viatura mencionada nos autos, onde ambos seguiam (o (...) como condutor e o (...) no lugar do pendura). Encontraram o produto estupefaciente que foi apreendido no tornozelo esquerdo do condutor, não estando este estupefaciente acondicionado no interior de quaisquer meias que o mesmo usasse (o que se coaduna, conferindo-lhes credibilidade, com as declarações prestadas por (...), na parte delas que refere ter colocado o mencionado pacote no interior das calças, e este ter descaído até à zona do tornozelo onde foi encontrado, uma vez que se o mesmo fosse ali colocado “ab initio”, certamente tê-lo-ia sido no interior das meias que este usasse, pois que, estando o pacote solto na zona do tornozelo, este certamente incomodá-lo-ia nos movimentos da condução, e no caso de não usar meias, pela mesma razão – incómodo dos movimentos da condução – o arguido não o teria guardado “solto”, nesse local, e certamente noutro, que não gerasse esse incómodo). Ao arguido (...) foi apreendido dinheiro e o telemóvel que trazia. Mercê da respectiva reprodução, confirmou o teor do auto de detenção de fls. 4 e ss., e do auto de apreensão de fls. 11/12, reconhecendo a sua assinatura, em ambos aposta. Por uma questão de estratégia processual, autonomizaram o processo vertente daquele outro, em investigação, no âmbito do qual obtiveram a mencionada notícia. (…), agente da PSP na esquadra de investigação criminal de Setúbal, de há 17 anos a esta parte, que conheceu os arguidos no âmbito do seu desempenho profissional, prestou o seu depoimento no mesmo sentido daquele que foi prestado pela anterior testemunha (sendo que nenhum destes depoimentos nos suscitou quaisquer reservas, quando à fidedignidade do respectivo relato). Sendo que toda a prova declarativa mencionada foi analisada em conjugação com o teor dos autos de detenção e de apreensão já referidos, e com o teor do exame pericial de toxicologia, junto aos autos a fls. 172. * Quanto à situação pessoal e condições económicas dos arguidos, a nossa convicção fundou-se na análise dos respectivos relatórios sociais juntos aos autos, e acima parcialmente transcritos.* Quanto ao passado criminal dos arguidos, essa convicção firmou-se na análise dos seus CRC, acima indicados em folhas respectivas.* Quanto aos factos não apurados:A prova produzida em julgamento não revelou aptidão para a sua demonstração, não sendo os elementos juntos aos autos (o que releva, designadamente, quanto à certidão respeitante a outro processo e junta aos presentes autos, pois que o que a mesma titula relevará no âmbito daqueles de que foi extraída, e não em processos conexos, designadamente nos presentes) suficientes para de “per se” ou na sua conjugação com outros, nos levar a ajuizar em sentido distinto. III De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma do qual serão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de origem), o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.As conclusões destinam-se a habilitar o Tribunal Superior a conhecer das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito, pelo que são extraordinariamente importantes, exigindo muito cuidado (...), devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objecto da decisão - Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III-350. O Recorrente não pode alargar o objecto do recurso à matéria não tratada no texto da motivação, inserindo-as nas conclusões, já que estas têm de reflectir o que se tratou no texto da motivação: entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5-6-97, no Proc. 1388/96. Assim, a matéria tratada apenas nas conclusões, é totalmente irrelevante, tudo se passando como se ela não existisse, não havendo, pois, nessa parte, motivação: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-5-98, no Proc. 330/98. Vem isto a propósito de o recorrente no ponto a) das conclusões ter invocado que o tribunal "a quo" violou o art.º 31.º da Constituição da República Portuguesa, alegando que a leitura de que, tendo o arguido prestado declarações em sede de primeiro interrogatório, não será, portanto de aplicar o referido artigo [o 354.º, n.º 4] é, ilegal, por violação do princípio da imediação da prova e inconstitucional, por violação do artigo 31.° da CRP, uma vez que retira qualquer garantia ao arguido durante a fase — bem posterior — da audiência de discussão e julgamento. Na motivação e sobre o assunto, o arguido alegou apenas o seguinte: II Toda a matéria dada como provada teve apenas como fundamentação as declarações do co-arguido, existindo, e salvo o devido respeito, uma violação ao artigo 345.°, n.° 4 do Código de processo Penal.III Para além das declarações do co-arguido, em quem foi encontrado o produto estupefaciente escondido com cola na perna esquerda, não se produziu qualquer outra prova contra o recorrente.Por se tratar, assim, de assunto que não abordou na motivação, não será, pois, o mesmo conhecido por esta Relação[1]. De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes, postas pela ordem por que devem ser conhecidas: 1.ª – Que existe uma flagrante contradição entre a matéria de facto assente como provada e a matéria de facto assente como não provada do acórdão recorrido; e 2.ª – Que, tendo a matéria de facto assente como provada no tocante ao recorrente (...) tido apenas como fundamentação as declarações do co-arguido (...), violou o tribunal "a quo" o preceituado no art.º 345.º, n.º 4. Vejamos: No tocante à 1.ª das questões postas, a de que existe uma flagrante contradição entre a matéria de facto assente como provada e a matéria de facto assente como não provada do acórdão recorrido: Ao que o recorrente parece estar a querer referir-se é à existência de uma alegada contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício descrito no art.º 410.º, n.º 2 al.ª b): 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. O disposto neste art.º 410.º, n.º 2, refere-se aos vícios da matéria de facto fixada na sentença, o que não se deve confundir com os vícios do processo de formação da convicção do tribunal no apuramento e fixação da matéria de facto fixada na sentença. É por isso que esses vícios têm de resultar da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos à sentença, ainda que constem do processo. Existe vício de contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico baseado no texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre os factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova que fundamentaram a convicção do tribunal – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-10-99, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça,1999, III-184. Ora compulsada a decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos, como manda o corpo do n.º 2 do art.º 410.º, e não detectamos a existência de tal vício. Na verdade, o não ter ficado provado que o recorrente (...) se queria encontrar e encontrou efectivamente com um tal (...) para lhe adquirir estupefacientes e que foi a ele que adquiriu os que depois vieram a ser encontrados, em nada contende com o teor da matéria de facto assente como provada. Como também não se percebe – nem, de resto, o arguido o explica – em que é que a asserção de que se tenha dado como não provado Que os rendimentos do arguido (...) e o dinheiro que lhe foi apreendido tenham origem na transacção de estupefacientes (artigo 18º da acusação) possa colidir com o teor dos factos provados. E depois, o alegado pelo recorrente no ponto IX da motivação, de que Não se provou que o veículo automóvel propriedade do recorrente e onde este e o co-arguido foram detidos tivesse sido utilizado para transportar produto estupefaciente, peca por decisiva imprecisão de citação da matéria de facto assente como não provada, pois o que foi dado como não provado não foi bem isso, mas antes Que o automóvel utilizado no dia dos factos tenha sido adquirido com dinheiro proveniente da transacção de produto estupefaciente. Pelo que inexiste qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão no acórdão recorrido. # No tocante à 2.ª das questões postas, a de que, tendo a matéria de facto assente como provada no tocante ao recorrente (...) tido apenas como fundamentação as declarações do co-arguido (...), violou o tribunal "a quo" o preceituado no art.º 345.º, n.º 4:Estabelece este preceito legal o seguinte, sob a epígrafe de perguntas sobre os factos: 1 - Se o arguido se dispuser a prestar declarações, cada um dos juízes e dos jurados pode fazer-lhe perguntas sobre os factos que lhe sejam imputados e solicitar-lhe esclarecimentos sobre as declarações prestadas. O arguido pode, espontaneamente ou a recomendação do defensor, recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas, sem que isso o possa desfavorecer. 2 - O Ministério Público, o advogado do assistente e o defensor podem solicitar ao presidente que formule ao arguido perguntas, nos termos do número anterior. 3 - Podem ser mostrados ao arguido quaisquer pessoas, documentos ou objectos relacionados com o tema da prova, bem como peças anteriores do processo, sem prejuízo do disposto nos artigos 356.º e 357.º 4 - Não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando o declarante se recusar a responder às perguntas formuladas nos termos dos n.os 1 e 2. Este assunto tem merecido tratamento uniforme pela jurisprudência. Assim, no ac. STJ de 15-4-2015, proc. 213/05.9TCLSB.L1.S1, acessível, como os demais adiante citados, em www.dgsi.pt, considerou-se que o art.º 125.º estabelece o princípio de que em processo penal são admissíveis quaisquer provas que não sejam proibidas por lei. Por outro lado, do elenco constante do art.º 126.º (métodos proibidos de prova), não fazem parte as declarações dos co-arguidos. Não há qualquer impedimento legal a que as declarações dos arguidos ou dos co-arguidos sejam valoradas como meio de prova. Os arguidos podem prestar declarações no exercício do direito que lhes assiste de o fazerem em qualquer altura do processo, podendo as declarações ser prestadas sobre factos de que possuam conhecimento directo e que constituam objecto de prova, sejam eles factos que só digam directamente respeito ao declarante, sejam eles factos que respeitem a outros co-arguidos. Não há, pois, qualquer impedimento do co-arguido a, nessa qualidade, prestar declarações contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente, de valoração da prova feita por um co-arguido contra os seus co-arguidos. Com uma limitação, porém. Nos termos do n.º 4 do art.º 345.º, não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias deste outro co-arguido, o primeiro se recusar a responder no exercício do direito ao silêncio. Do que se trata, aqui, é de retirar valor probatório a declarações totalmente subtraídas ao contraditório. Como refere o ac. TC n.º 133/2010, de 14-4, “seguramente que, submetidas a estas exigências de exame crítico e fundamentação acrescidas, as declarações de co-arguido são meio de prova idóneo de um processo penal de uma sociedade democrática. O processo penal destina-se à realização da justiça penal e seria comunitariamente insuportável negar valor probatório a declarações provindas de quem tem com os factos em discussão maior proximidade apenas pela circunstância de ser seu autor um dos arguidos, quando essas declarações são emitidas livremente e, num escrutínio particularmente exigente, se conclui não haver razão para duvidar da sua correspondência à realidade”. Não deixando de acentuar que é decisivo que o arguido contra quem tais declarações sejam feitas não tenha sido impedido de submetê-las ao contraditório. O que foi o caso dos autos. Na verdade, não só o arguido (...) podia ele próprio ter contraposto e discutido energicamente a versão do co-arguido (...) – o que não fez por ter optado antes pela estratégia de usar do seu direito ao silêncio, – como tê-lo feito por intermédio de seu defensor, podendo, pois, ter feito as perguntas que entendesse por convenientes ao arguido (...), uma vez que não consta da acta que este se tenha recusado a responder ao que quer que fosse, proveniente de também qualquer que fosse o sujeito processual. Sendo que, como resulta do ac. STJ de 12-3-2008, proc. 08P694, se é verdade que o direito ao silêncio não pode ser valorado contra o arguido (...), essa proibição de valoração incide, porém, apenas sobre o silêncio que o arguido (...) adoptou como estratégia processual, não podendo repercutir-se na prova produzida por qualquer meio legal, designadamente a que venha a explicitar e demonstrar a responsabilidade criminal do mesmo, revelando a falência daquela estratégia – como acabou por ser o caso dos autos. Salienta o ac. STJ de 7-5-2009, proc. 08P1213, que uma parte da doutrina (Medina de Seiça [O conhecimento probatório do co-arguido]; Teresa Pizarro Beleza [Tão amigos que nós éramos …, Rev. do M.º P.º, n.º 74, pág. 39]; mas contra, Rodrigo Santiago [Reflexões sobre as declarações do arguido como meio de prova no código de processo penal de 1987, RPCC, 1994, pág. 27]) e a jurisprudência entendem que têm valor probatório as declarações de um dos arguidos relativas à comparticipação nos factos de alguns ou de todos os restantes arguidos. Como referem Simas Santos e Leal Henriques (Código de Processo Penal Anotado, I, pág. 847) “a interpretação correcta deverá repousar na consideração de que o arguido, só porque o é, não estará sem mais impedido de depor no próprio processo em que se encontra envolvido. O legislador pretendeu, em primeira linha, construir no Código a figura do arguido, assegurando-lhe todos os meios de defesa, mesmo através de si próprio, pelo que, se o entender necessário à sua defesa, poderá usar o amplo direito que lhe assiste a ser ouvido. E a defesa desta posição leva a que o arguido ou co-arguido não possam ser ouvidos no mesmo processo ou processos conexos como testemunhas, ou seja como intervenientes que não só são obrigados a prestar declarações, como a fazê-lo com verdade (art.º 91.º) por tal ser incompatível com a sua posição de interessados no desfecho do processo e com o seu direito ao silêncio.” E este é o entendimento que o STJ, bem como o Tribunal Constitucional, vêm seguindo, ao considerar a necessidade de se respeitar o estatuto do arguido e o seu direito ao silêncio, tal como agora ficou consagrado no n.º 4 do art. 345º do Código de Processo Penal. Mas considerando, tal como a Prof. Teresa Beleza, que se trata de uma prova frágil, pois a credibilidade do depoimento do co-arguido é susceptível de se revelar diminuída, o STJ acentua a necessidade de respeitar o princípio do contraditório e de observar cautelas especiais na valoração dessas declarações, que sempre devem ser corroboradas com outro(s) meio(s) de prova. Citando um parecer do Prof. Figueiredo Dias, escrevia-se no ac. do STJ de 12-07-2006, proc. 1698/06-3, (CJ – Acs S.TJ, ano ano XIV, tomo II, pág. 242): “Como nos dá conta Figueiredo Dias naquele Parecer, entre as soluções propostas para modular doutrinal e normativamente o particular regime das declarações do co-arguido, avulta a doutrina da corroboração, com o que se quer significar «a existência de elementos oriundos de fontes probatórias distintas da declaração que, embora não se reportem directamente ao mesmo facto narrado na declaração, permitem concluir pela veracidade desta. A regra da corroboração traduz de modo particular uma exigência acrescida de fundamentação, devendo a sua falta merecer a censura duma fundamentação insuficiente. Significa que as declarações do co-arguido só podem fundamentar a prova de um facto criminalmente relevante quando existe alguma prova adicional a tornar provável que a história do co-arguido é verdadeira e que é razoavelmente seguro decidir com base nas suas declarações” Também o ac. STJ de 25-3-2015, proc. 1504/12.8PHLRS.L1.S1, considerou que a admissibilidade do depoimento do arguido como meio de prova em relação aos demais co-arguidos não colide com o catálogo de direitos que integram o seu estatuto e mostra-se adequada à prossecução de legítimos e relevantes objectivos de política criminal. A credibilidade do depoimento incriminatório do co-arguido está na razão directa da ausência de motivos de incredibilidade subjectiva, o que, na maioria dos casos, se reconduz à inexistência de motivos espúrios e à existência de uma auto-inculpação. Igualmente assume uma real importância a concorrência de corroborações periféricas objectivas que demonstrem a verosimilhança da incriminação. No mesmo sentido, ac. STJ de 8-11-2007, proc. 07P3984: 4 – O art. 345º, n.º 4 do CPP, na redacção agora dada pela Lei n.º 48/2007, só afasta a validade das declarações de um co-arguido, como meio de prova, quando o declarante se recusar a responder às perguntas formuladas nos termos dos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, o que não foi o caso. E os acórdãos do STJ de 8-2-2007, proc. 07P028; e de 3-9-2008, proc. 08P2044. Ora, no caso dos autos, as declarações do co-arguido (...) aparecem com a sua fiabilidade reforçada pela circunstância de com as mesmas o arguido, além de incriminar o co-arguido (...), ter também confirmado os factos de que ele próprio, (...), vinha acusado – e foi condenado. De resto, como bem esclarece o tribunal "a quo" na fundamentação da decisão da matéria de facto, a credibilidade das declarações prestadas em julgamento pelo co-arguido (...) resultou reforçada no seu cotejo com as declarações que o arguido (...) prestou em sede de primeiro interrogatório judicial. Na verdade, porque reunidos os legais pressupostos (desde logo, o que consta do artigo 141º/4-b) do Código de Processo Penal, como resulta da respectiva acta, a fls. 59 e ss.), foi lida a transcrição das declarações prestadas pelo mesmo no mencionado acto processual (juntas aos autos a fls. 305 e ss.), onde em síntese, negando ter alguma coisa a ver com o produto estupefaciente apreendido, reconhece ter-se deslocado na sua viatura (trata-se da que se encontra identificada nos autos) com o co-arguido (...), nos moldes referidos nos autos (ou seja, tendo a viatura sido conduzida desde (...) até Setúbal, pelo arguido (...), uma vez que o próprio não possui carta de condução, a quem deu €20,00 para que o transportasse), com o intuito de vir comprar uma carrinha Ford Transit. Precisando, referiu ter vindo a Setúbal com o mencionado propósito, por o seu “moço” ter visto na net o anúncio da venda da mesma, pelo valor de € 1000,00, e ter por costume comprar carros baratos, quando sabe que eles existem. O facto de se ter dirigido à Bela Vista (local de onde terá ligado ao vendedor), justifica-o por ser um sítio que conhece em Setúbal, cidade onde tem familiares seus. Sendo que quando liga para o vendedor, dizendo-lhe que estava à entrada da Bela Vista para comprar a viatura, este, apercebendo-se de que o arguido era cigano, recusou-se a fazer a venda, altura em que o arguido aproveitou para ir a uma roulotte que vende café e água, situada a cerca de 500 metros abaixo da Bela Vista, onde esteve durante cerca de meia hora a conversar com dois ciganos, após o que se foi embora, e quando já estava no carro com o co-arguido, foram interceptados pela polícia. Os € 1 200,00 que lhe foram apreendidos faziam parte do dinheiro que tinha levado para a não concretizada compra da Ford Transit. Sendo que estas declarações, adiante-se desde já, não nos mereceram qualquer crédito. Com efeito, escassamente se entenderia que o arguido, tendo sabido do anúncio da venda da Ford Transit se tivesse dirigido de (...) a Setúbal, mais a mais pagando ao co-arguido para que o conduzisse, sem que antes tivesse contactado telefonicamente com o vendedor, pois que essa viagem (que teve decerto, custos associados), poderia ser em vão (bastando pensar que no entretanto, a viatura podia ser vendida). E como conclui o tribunal que o arguido não terá contactado previamente com o vendedor? Porque a fazer fé nas suas declarações, quando o arguido lhe telefona, estando já na Bela Vista, o vendedor se recusa a fazer o negócio, no momento em que na conversa se apercebe que o arguido é cigano. Donde que (e de novo, fazendo fé nas declarações do arguido), caso tivesse havido esse contacto prévio, o vendedor aperceber-se-ia decerto desse facto (do arguido ser de etnia cigana), e recusar-se-ia, pelas mesmas razões, a vender-lhe a viatura. Depois, porque de acordo com as declarações do próprio, o arguido não sabe ler nem escrever. Assim, sabendo-se como se sabe que quando existem anúncios para venda de viaturas, estes negócios não se concretizam verbalmente (e é o próprio arguido quem admite, ao dizer que levava consigo o dinheiro suficiente para comprar a viatura, que pretendia concretizar aquele negócio no imediato), antes se tratando de negócios formais, escassamente se poderia admitir que o arguido, que não sabe ler nem escrever, aceitasse celebrar esse negócio, sem coadjuvação de quem, sabendo ler e escrever, lhe confirmasse que os termos do dito negócio correspondiam ao do anúncio. Finalmente, porque a fazer fé nas declarações do arguido, segundo as quais se dirigiu ao bairro da Bela Vista, com o intuito de comprar de imediato a Ford Transit (pois que levou a quantia necessária “em dinheiro”, para fazê-lo),não se compreende como poderia transportar essa viatura para (...), uma vez que não tinha carta de condução, e o co-arguido (...) era o condutor da viatura do arguido (...), na qual ambos se haviam deslocado de (...) para Setúbal (não podendo por isso, conduzir a Ford Transit, em simultâneo). Ou seja, estas declarações não fazem qualquer sentido intrínseco, tendo-as perspectivado o tribunal na dimensão da sua finalidade utilitária, ou seja: de negação por parte do arguido da sua autoria na prática dos apurados factos, e da adução (sem qualquer êxito, diga-se) de razões que justificassem ter na sua posse os € 1 200,00 que lhe foram apreendidos, e nada mais. E por isso, foi no cotejo das declarações prestadas pelo arguido (...) em sede de julgamento, com as que tendo sido prestadas pelo arguido (...) em primeiro interrogatório judicial, foram reproduzidas em julgamento, que o tribunal fundou a sua convicção, a qual foi no sentido da versão que o primeiro trouxe a julgamento. Sendo que na formação da sua convicção, o tribunal ponderou ainda, no sentido do que apurado se teve, o depoimento prestado por (…), agente da PSP em desempenho funcional na esquadra de investigação criminal de Setúbal de há 15, 16 anos a esta parte, no âmbito do qual conheceu os arguidos, contra os quais nada revelou ter. Referiu-nos a testemunha que no âmbito da investigação criminal de outro processo, obtiveram a informação de que o arguido (...) se deslocaria a Setúbal, e na sequência dessa informação, foi montada uma operação de intercepção, no âmbito da qual os arguidos foram abordados na viatura mencionada nos autos, onde ambos seguiam (o (...) como condutor e o (...) no lugar do pendura). (…) (…), agente da PSP na esquadra de investigação criminal de Setúbal, de há 17 anos a esta parte, que conheceu os arguidos no âmbito do seu desempenho profissional, prestou o seu depoimento no mesmo sentido daquele que foi prestado pela anterior testemunha (sendo que nenhum destes depoimentos nos suscitou quaisquer reservas, quando à fidedignidade do respectivo relato). Não é, assim, correcta a asserção do recorrente de a sua condenação ter tido apenas como fundamentação as declarações do co-arguido (...). IV Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.Custas pelo recorrente (...), fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em cinco UC’s (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa). # __________________________________________________Évora, 11-5-2021 Martinho Cardoso, relator Maria Leonor Esteves, adjunta (assinaturas digitais) [1] Só o seria (e até de forma oficiosa) no caso de realmente existir a invocada (ou qualquer outra) inconstitucionalidade. |