Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ALBERTO BORGES | ||
Descritores: | PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO E DA ORALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 01/12/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | Ao recorrente que divirja da convicção que o tribunal formou não basta manifestar a sua divergência quanto ao decidido, concretamente, por discordar da credibilidade que mereceu (ou não) ao tribunal determinado meio de prova, como sejam, no caso concreto, as declarações do arguido, impondo-lhe a lei que concretize as provas que impõem - sim, impõem (art.º 412 n.º 3 do CPP), não que permitam - decisão diversa da recorrida, seja porque outras provas há (além daquelas em que o tribunal se baseou para formar a sua convicção) que não foram apreciadas e valoradas pelo tribunal (o que no caso, não acontece), seja porque o que é referido como fundamento da decisão não corresponde àquilo que as pessoas disseram (o que no caso também não se verifica), seja porque a convicção do tribunal não se mostra lógica, coerente e colide com as regras da experiência e os critérios da normalidade (o que no caso também não se verifica, pois que a versão dos factos acolhida pelo tribunal é possível, de acordo com as regras da experiência e os critérios da normalidade). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. No Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo Local Criminal de Évora, Juiz 2, correu termos o Proc. Comum Singular n.º 274/19.3T9EVR, no qual foi julgado o arguido F… - nascido a …, filho de J… e de I…, natural do …, solteiro, …, portador do bilhete de identidade n.º … e residente na rua …, … - pela prática, como autor material, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de falsificação de documento, previstos e puníveis pelo artigo 256 n.ºs 1 alínea e) e 3 do Código Penal, tendo – a final – sido absolvido. 2. Recorreu o Ministério Público dessa sentença, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões: 1 - Com base na prova produzida em audiência, deveriam ter sido julgados provados os factos dados como não provados na sentença recorrida, indicando-se como prova dos mesmos as declarações do arguido, a certidão de fls. 3 a 14, a informação da AT de fls. 33, a informação da Segurança Social de fls. 34 e, finalmente, o expediente remetido pela Câmara Municipal de Évora no dia 05 de março de 2020, de fls. 103 a 177. 2 - Isto porque das declarações do arguido resulta uma versão inverosímil dos factos, tendo o mesmo apresentado um discurso contraditório, focado na responsabilização de terceiro - que não consegue identificar corretamente ou localizar - pelos factos em causa. 3 - Por outro lado, dos elementos confessórios retirados das declarações do arguido e do teor dos mencionados documentos juntos aos autos, conjugados com as regras da experiência comum, é possível alcançar um juízo indiciário seguro e lógico que demonstra, para além da dúvida razoável, a autoria do arguido pelos factos que lhe foram imputados pela acusação pública, pois que, confessado pelo arguido o conhecimento de que não reunia as condições legais para participar nas feiras em causa e demonstrado, pela prova documental, que os requerimentos, acompanhados pela documentação falsificada, foram assinados pelo mesmo (e, provavelmente, preenchidos pelo mesmo), nenhuma outra explicação lógica e razoável pode ser alcançada que não a prática dolosa pelo mesmo dos crimes pelos quais vem acusado. 4 - Face ao exposto, mal andou o tribunal a quo em dar como não provados os factos supra elencados e ao não condenar o arguido pela prática de dois crimes de falsificação de documento, previstos e puníveis pelo artigo 256 n.ºs 1 alínea e) e 3 do Código Penal. --- 3. Respondeu o arguido ao recurso interposto pelo Ministério Público, concluindo a sua resposta nos seguintes termos: 1 - O arguido, aqui recorrido, foi absolvido, da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de falsificação de documento, previstos e puníveis pelo art.º 256 n.ºs 1 alínea e) e 3 do Código Penal. 2 - Os factos não provados nos pontos identificados como alíneas a) a e) não merecem qualquer censura, na medida em que as declarações do arguido, na ausência de outros meios de prova, levam a tal conclusão e não impõem decisão diversa. 3 - A Mm.ª Juiz formou a sua convicção valorizando essas mesmas declarações, mas de modo diverso do recorrente, o que fez ao abrigo da livre convicção. 4 - E fê-lo fundamentando de forma clara a factualidade não provada, invocando a prova documental e as declarações do arguido, naquilo em que a considerou relevante, explicando as razões da sua valoração. 5 - Não se vislumbra qualquer vício na formação dessa convicção, havendo, sim, discordância do recorrente quanto ao modo como o tribunal formou a sua livre convicção (necessariamente diferente daquela que o recorrente formou). 6 - Não pode o tribunal de recurso substituir a convicção do tribunal recorrido pela convicção do recorrente, uma vez que a primeira tem suporte na prova produzida na audiência, conjugada com as regras da experiência comum, conduzindo a mesma à convicção da absolvição do arguido, na sequência de um processo lógico que facilmente se extrai da motivação de facto da sentença absolutória. 7 - Da matéria de facto não provada só podia resultar a absolvição do arguido, nos termos em que a mesma consta, fundamentadamente, da douta decisão recorrida. 8 - Sem conceder, o presente processo foi instaurado com base na certidão extraída de toda a documentação remetida pela CM de Évora ao Proc. n.º 146/18.9T9EVVR, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora - Juízo Local Criminal de Évora – Juiz 2, de fls. 3 a 14. 9 - Da documentação junta pela CMÉ, em 05.03.2020, é possível constatar que os documentos de fls. 4 e 5 não foram juntos ao processo de inscrição/participação do arguido F… na feira de S. João, não constando dos mesmos qualquer certidão da Autoridade Tributária. 10 - A própria informação da AT (Autoridade Tributária) de fls. 33 dos autos refere: “relativamente ao doc. 4, corresponde a certidão de não dívida, em nome de J… com data de 18.06.2015”. 11 - Com base nesse documento foi o arguido F… acusado da prática do crime de falsificação de documento descrito nos factos constantes dos art.ºs. 4 e 5 da acusação, tendo os mesmos sido considerados provados nos pontos 4 e 5 da douta sentença. 12 - Não respeitando o documento de fls. 4 ao arguido, o mesmo terá necessariamente de ser absolvido da prática do crime de falsificação de documento a ele referente (certidão de não dívida às finanças com data de emissão de 18.06.2015 referente ao contribuinte J…). 13 - Quanto à certidão de não dívida à Segurança Social, com data de emissão de 19.04.2014, foi a matéria de facto provada incorretamente julgada na parte “nem o arguido reunia, nessa data, condições para a sua emissão”. 14 - Na informação da Segurança Social – fls. 34 - não se diz que o arguido, ora recorrido, à data não reunia pressupostos para a emissão de tal declaração, nem tal resultou de qualquer outro meio de prova. 15 - É elemento subjetivo do crime de falsificação de documentos a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo. 16 - Assim, face ao supra exposto, no seu conjunto, a prova produzida em audiência de julgamento só poderia levar à consideração dos factos referidos em 2 (na parte “o arguido entregou naqueles serviços camarários”), 3 (na parte “nem o arguido reunia nessa data, condições para a sua emissão”), 4 e 5 como não provados, factos esses que, em termos subjetivos e objetivos, e ao contrário do pretendido pelo recorrente, impõem a absolvição do arguido da prática dos crimes de falsificação de documentos. 17 - Deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a sentença absolutória --- 4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (parecer de 3.11.2020), dizendo, em síntese, que, embora a prova “assinalada consentisse uma versão diversa, ainda que coerente, da acolhida pelo tribunal”, exigir-se-ia que “tal versão alternativa se impusesse, àqueloutra”, o que no caso não acontece, pois que o depoimento do arguido “não é o bastante para colocar em crise a versão acolhida pelo tribunal… não impondo revogação da matéria dada como assente ou como não provada… a versão contrária, por pouco verosímil que seja – e é-o – não o é a tal ponto que, só por ela, se imponha a versão oposta”: 5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos, cumpre decidir em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP). --- 6. Foram dados como provados na 1.ª instância os seguintes factos: 1. O arguido F…, com a profissão de vendedor em mercados, em data não concretamente apurada, mas em abril ou maio de 2014, apresentou requerimento nos serviços competentes da Câmara Municipal de Évora para poder proceder à venda no âmbito da Feira de São João, que decorre anualmente em Évora, no mês de junho. 2. Juntamente com esse requerimento, e porque se encontra entre os documentos legalmente necessários para essa inscrição, o arguido entregou naqueles serviços camarários uma certidão de não dívida à Segurança Social, com data de emissão de 19/04/2014 e assinado pela funcionária do Núcleo de Gestão de Contribuições, de nome S…. 3. Sucede que a referida certidão não corresponde a qualquer certidão emitida pela Segurança Social nem o arguido reunia, nessa data, condições para a sua emissão, bem como a referida funcionária S…, à data da emissão da referida certidão, já não exercia funções naquele Núcleo. 4. Visando o mesmo propósito referido em 1, em data não apurada, mas nos meses de abril ou maio de 2015, o arguido entregou nos serviços da Câmara Municipal de Évora uma certidão de não dívida às Finanças, com data de emissão de 18/06/2015. 5. Sucede que a referida certidão não foi emitida pelos Serviços de Finanças de Évora, desde logo, porque o arguido não reunia, à data, condições para a sua emissão, em virtude de, pelo menos desde o ano de 2013, contra o mesmo estarem pendentes processos executivos. 6. As referidas certidões, entregues naqueles serviços camarários, são fotocópias adulteradas. 7. O arguido não trabalha há já alguns anos e recebe RSI no valor de € 370,00, vive com a mulher, que não trabalha, por doença, e com a filha, de 15 anos, que estuda. 8. Vivem em habitação social, pagando de renda o valor de € 18,00 mensais. 9. O arguido sabe assinar, mas não sabe ler ou escrever. 10. Do certificado de registo criminal constam as condenações que aqui se dão por reproduzidas. 7. E não se provou: a) Que, por referência a 6, … elaboradas pelo arguido, com a finalidade de conseguir que fosse admitido à venda na referida Feira de São João; b) Que o arguido agiu com o propósito de fazer crer àquela edilidade que reunia todas as condições legalmente exigidas para participar na referida feira; c) Que sabia o arguido que usava documentos falsificados, documentos que sabia só poderem ser emanados de autoridade competente, destinados à comprovação de não dívidas perante aquelas entidades, visando obter para si benefício ilegítimo, que logrou alcançar; d) Que agiu, ainda, o arguido com conhecimento de que a sua atuação punha em causa a confiança e a segurança que os documentos em causa merecem à generalidade das pessoas. e) Que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei e tendo a necessária capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação. --- 8. O tribunal formou a sua convicção – escreve-se na fundamentação – com base na análise, “de forma livre, crítica e conjugada”, da “prova produzida em audiência de discussão e julgamento, atendendo ao disposto no artigo 355 do CPP e de acordo com o artigo 127 do mesmo diploma, respeitando os critérios da experiência comum e da lógica. Deste modo, foram tidos em conta: - Certidão de fls. 3 a 14; - Informação da AT, de fls. 33; - Informação da Segurança Social, de fls.33; - Informações juntas pela CMÉ após inicio do julgamento; - Certificado de registo criminal. Desde logo dos autos resulta (fls. 33 e 34) que os documentos referidos na acusação não são verdadeiros, ambos por não terem sido emitidos pela AT e pela SS, o que não foi sequer contestado pelo arguido. Por outro lado, das declarações do arguido resultaram de forma convincente as suas condições pessoais, sendo certo que quanto aos factos o arguido assumiu os provados em 1 a 5 e negou integralmente os demais. Ou seja, o arguido admitiu que tinha solicitado à CMÉ autorização para proceder a vendas durante a Feira de São João, nos períodos indicados nos factos provados, mas alegou que a documentação lhe era preparada por um conhecido, "que tinha escola" e lhe "tratava dos papéis", sendo que este se limitava a assinar e a entregar os documentos tal como lhe eram apresentados. Sobre a autoria dos documentos falsos, nada se provou. E nada se provou, a nosso ver, sobre a consciência da falsidade aquando da utilização dos documentos por parte do arguido. Dir-se-á que se os entregou sabia o seu teor e não podia desconhecer a sua falsidade, uma vez que tinha dívidas/processos executivos perante a AT e, portanto, a "certidão de não dívida" não poderia ser emitida, ou que a certidão da SS nunca poderia ter sido emitida porque não havia pedido seu que a sustentasse. Mas, embora se admita que este raciocínio é lógico e possível, entendemos que em sede penal não é bastante, pois que não é acompanhado de qualquer outra prova, ainda que indireta, que o suporte. E mesmo a documentação da CMÉ entretanto junta nada demonstra para além da entrada do pedido, sendo certo que nem resulta quem efetivamente entregou os papéis, mas apenas que o pedido foi feito em nome do arguido. Por estas razões, entendemos que a prova produzida não é suficiente para imputar ao arguido nada mais do que os factos provados, pois que, mesmo provada a utilização pelo arguido dos documentos falsos, não ficou demonstrada minimamente a sua consciência da falsidade ou o intuito de prejudicar, ou seja, que tivesse agido com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa beneficio ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, pois que admite-se igualmente como possível que, não sabendo ler e escrever, pudesse simplesmente ter confiado na tal pessoa que o ajudava ... Face à prova produzida, não resta se não dar os factos por provados e não provados tal como consta supra”. --- 9. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido (art.º 412 do Código de Processo Penal). Tais conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no de direito – elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso (ver art.ºs 412 n.ºs 1 e 2 e 410 n.ºs 1 a 3, ambos do CPP, e, entre outros, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98). Feitas estas considerações, e tendo em conta as conclusões da motivação do recurso apresentado pelo Ministério Público, uma única questão vem colocada pelo recorrente à apreciação deste tribunal, que é de saber se o tribunal julgou erradamente como não provada a factualidade supra descrita como não provada. --- 1) O tribunal deu como não provado: a) Que as certidões entregues nos serviços camarários foram elaboradas pelo arguido, com a finalidade de conseguir que fosse admitido à venda na referida Feira de São João; b) Que o arguido agiu com o propósito de fazer crer àquela edilidade que reunia todas as condições legalmente exigidas para participar na referida feira; c) Que sabia o arguido que usava documentos falsificados, documentos que sabia só poderem ser emanados de autoridade competente, destinados à comprovação de não dívidas perante aquelas entidades, visando obter para si benefício ilegítimo, que logrou alcançar; d) Que agiu, ainda, o arguido com conhecimento de que a sua atuação punha em causa a confiança e a segurança que os documentos em causa merecem à generalidade das pessoas. e) Que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei e tendo a necessária capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação. --- 2) Entende o Ministério Público que o tribunal devia ter dado como provada aquela factualidade - que deu como não provada – pois que, para além da análise da certidão de fls. 3 a 14, da informação da AT de fls. 33, da informação da Segurança Social de fls. 34 e, finalmente, do expediente remetido pela Câmara Municipal de Évora no dia 05 de março de 2020, de fls. 103 a 177, foi ouvido o arguido F… que, tendo optado por prestar declarações, referiu sumariamente: - que trabalhou “em feiras, depois na Câmara Municipal de Évora começou-se a alterar documentações (…) eu não entendia isso e pronto pedi ajuda a alguém”; - depois, a instâncias da Mm.ª Juiz, referiu que "era o Sr. J…, que era uma pessoa de casa e da família, que me ajudava nas tarefas (…) e ele era de casa e ia-me pagar coisas e eu tinha confiança, ele dizia que sabia tratar e tinha letras, como eu não sabia e essa pessoa tratava-me”; - e novamente a instâncias da Mm.ª Juiz, quando lhe foi perguntado onde é que tinha ido buscar declarações às Finanças a dizer que não tinha dívidas, referiu que "desconhecia isso, eu entreguei-lhe umas fotocópias, ele dizia que queria isto e queria aquilo e ele agarrava-me nas coisas e tratava-me das coisas e ia entregar por meo”; - após, exibidos por ordem do tribunal os documentos de fls. 8 e 9, o arguido confirmou que a assinatura ali aposta era sua, tendo de seguida referido que "nessa altura não fui eu que entreguei, foi ele que foi entregar as coisas (…) ele pedia para eu assinar os papéis e eu assinava, como tinha pouco conhecimento disso, pensava que as coisas estavam certas"; - perguntado pelo tribunal se assinou os documentos sem ver, disse que "as minhas habilitações literárias são muito poucas, a minha senhora não sabe, eu também não, tive que pedir a alguém (…) eu tenho uma segunda classe e eu não entendo"; - depois, perguntado pelo tribunal o que é que era preciso para estar nas feiras, que documentos é que eram pedidos (à data dos factos), o arguido disse "só aqui em Évora é que começaram a pedir, para se fazer feiras, uma série de papéis (…) só aqui em Évora é que começaram a pedir esses papéis… eram uma série deles, muitos papéis, que eram não dívidas (…) exatamente" (confirmação após o tribunal lhe perguntar se o que disse era "de não dívidas"); - perguntado pelo tribunal se tinha ou não dívidas, o arguido disse "há uma vez que uma filha minha me tratou dos papéis e fizemos um contrato e a coisa, pronto, fiz a feira normal", tendo, após insistência, referido que afinal não se lembrava se tinha dívidas; - finalmente, perguntado quem é este Sr. J…, o arguido disse que "este Sr. J… esteve aqui muitos anos em Évora, tinha aqui uma casa na … (…) ele ajudava a família, não tinha um emprego certo (…) ajudava um e outro, os meus irmãos (…) ele tinha letras e dizia que me sabia fazer as coisas (…) ele pintava, era pintor, fazia de tudo um pouco, chegou a pintar-me a casa"; - ainda nesta temática, perguntado pelo tribunal como é que um pintor sabe tratar de assuntos relacionados com a Segurança Social, o arguido disse "ele disse que tinha uma pessoa que sabia mexer nos papéis e que levavam isso”; - perguntado pelo tribunal onde é que J… anda, o arguido disse que "abalou, foi trabalhar para Espanha há 3, 4 anos e nunca mais vi a pessoa". E conclui o recorrente que, dos elementos de prova supra indicados, concretamente, das declarações do arguido “resulta, para além da negação do conhecimento da falsidade dos documentos entregues, da entrega dos documentos e da intenção de defraudar a Câmara Municipal de Évora, a imputação da prática de tais factos a terceiro que, como habitualmente sucede na investigação/julgamento destes casos, e não obstante ser "pessoa de casa", de confiança, que ajudava o arguido nas tarefas, que ajudou os irmãos do arguido, etc., é pessoa cuja identidade o arguido quase que desconhece, cuja família desconhece e cujo paradeiro ou contacto igualmente desconhece, o que não só não faz grande sentido face à proximidade relatada pelo arguido como é de extrema conveniência para a defesa deste, pelo que se considera tal versão dos factos ser, desde logo, inverosímil. Por outro lado, a versão do arguido é igualmente pouco credível, porque este explica ter entregue a tramitação de todo o processo inerente à entrega de inscrição na Feira de S. João, em Évora, a este terceiro - um tal de J… - porque, em primeiro lugar, o arguido tem pouca instrução e não percebe bem estas coisas e porque este terceiro era pessoa "com letras", ou seja, com instrução, que lhe tratava de várias coisas e que disse que lhe tratava daquela papelada e, em segundo lugar, porque este terceiro era "pessoa de letras" e que "sabia fazer as coisas", sendo que, questionado pelo tribunal, o arguido veio dizer de seguida que este terceiro afinal era pintor, que lhe tinha inclusive pintado a casa, que ajudava aqui e ali. Estas afirmações, são, de acordo com as regras da experiência comum, contraditórias porque não é habitual pintores de construção civil possuírem instrução ou conhecimento técnico relacionado com a burocracia inerente aos serviços públicos da Segurança Social ou de Finanças. Nesta senda… veio logo o tribunal a quo questionar o arguido em relação a esta aparente contradição, tendo o mesmo então dado nova versão dos factos, referindo que afinal era uma quarta pessoa, do conhecimento deste J…, que ia tratar da papelada. … consideramos que a versão apresentada pelo arguido não possui também qualquer credibilidade porque este passou de asseverar que entregou a função de preparar e entregar o expediente para o inscrever na Feira de S. João em Évora a J…, porque este era instruído, para afirmar que - após ter dito que o mesmo era pintor de construção civil - afinal tinha entregue tal função a este indivíduo para o mesmo entregar a outra pessoa, essa então com os conhecimentos necessários à tarefa. Diga-se ainda que… a versão do arguido não merece qualquer credibilidade, porque, encontrando-se o mesmo acusado de por duas vezes entregar documentação falsa a atestar que não tinha dívidas junto da Segurança Social ou das Finanças, veio o mesmo dizer que, não obstante ter entregue a tarefa de recolher aquela documentação a terceiro, sabia que tinha que não ter dívidas junto de tais entidades por forma a poder vender naquela feira. Ora, tendo conhecimento de tal facto e tendo, seguramente conhecimento que tinha dívidas com tais entidades - tendo dito em primeiro lugar que tinha feito um "contrato" com aquelas entidades e depois que já não se lembrava - não é minimamente crível que este achasse que entregar a tarefa de recolher os documentos necessários a terceiro, lhe fosse permitir ultrapassar tal obstáculo à sua inscrição naquela feira e portanto que um terceiro lhe tivesse dito que lhe consegui fazer com que as dívidas aparecessem pagas ou que lhe emitissem, legalmente, certidão de "não dívida". Assim, face à completa ausência de credibilidade da versão apresentada pelo arguido, essencialmente desculpabilizante, contraditória entre si e ainda com as regras da experiência comum, restava ao tribunal olhar para a prova apresentada com a acusação e recolhida em sede de Julgamento. Desta - essencialmente de natureza documental, não obstante o depoimento testemunhal mas que, salvo melhor entendimento, pouco acrescentou de relevante ao juízo probatório - resulta que os requerimentos de inscrição na feira foram assinado pelo arguido (conforme expediente remetido pela Câmara Municipal de Évora) e que com tais requerimentos foram apresentados dois documentos a atestar a ausência de dívidas por parte do requerente ao Instituto da Segurança Social e à Autoridade Tributária, que, conforme informação remetida por estas entidades e constante de fls. 33 e fls., se tratavam de documentos falsos. Aqui chegados, importa então referir que diz o tribunal que a hipótese de atuação dolosa do arguido não é corroborada por qualquer outra prova, ainda que indireta, que a documentação dos autos não identifica quem entregou aqueles documentos e que portanto tal prova não é suficiente para demonstrar o dolo do arguido”. --- 3) Vejamos: O tribunal deu como não provada aquela factualidade – que o Ministério Público entende que deveria ter sido dada como provada – em síntese: - porque “o arguido admitiu que tinha solicitado à CMÉ autorização para proceder a vendas durante a Feira de São João, nos períodos indicados nos factos provados, mas… que a documentação lhe era preparada por um conhecido, "que tinha escola" e lhe "tratava dos papéis", sendo que este se limitava a assinar e a entregar os documentos tal como lhe eram apresentados”; - porque “nada se provou” sobre a autoria dos documentos falsos e “sobre a consciência da falsidade aquando da utilização dos documentos por parte do arguido”. - porque, embora se admita como possível o raciocínio de que “se os entregou sabia o seu teor e não podia desconhecer a sua falsidade, uma vez que tinha dívidas/processos executivos perante a AT e, portanto, a "certidão de não dívida" não poderia ser emitida, ou que a certidão da SS nunca poderia ter sido emitida porque não havia pedido seu que a sustentasse”, “este raciocínio… em sede penal não é bastante, pois que não é acompanhado de qualquer outra prova, ainda que indireta, que o suporte”, sendo que “a documentação da CMÉ entretanto junta nada demonstra para além da entrada do pedido, … nem resulta quem efetivamente entregou os papéis, mas apenas que o pedido foi feito em nome do arguido”; - e porque, em conclusão, “… mesmo provada a utilização pelo arguido dos documentos falsos, não ficou demonstrada… a sua consciência da falsidade ou o intuito de prejudicar, ou seja, que tivesse agido com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa beneficio ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, pois que admite-se igualmente como possível que, não sabendo ler e escrever, pudesse simplesmente ter confiado na tal pessoa que o ajudava ... Face à prova produzida, não resta se não dar os factos por provados e não provados tal como consta supra”. E esta justificação do tribunal – concorde-se ou não com o decidido – tem lógica, é coerente e é compatível com as regras da experiência, em suma, é possível que os factos assim se tenham passado, tal como relatados pelo arguido, embora, no campo das hipóteses, também o contrário seja possível. Por outro lado, como é sabido, mas não será demais recordar, ao recorrente que divirja da convicção que o tribunal formou não basta manifestar a sua divergência quanto ao decidido, concretamente, por discordar da credibilidade que mereceu (ou não) ao tribunal determinado meio de prova, como sejam, no caso concreto, as declarações do arguido, impondo-lhe a lei que concretize as provas que impõem - sim, impõem (art.º 412 n.º 3 do CPP), não que permitam - decisão diversa da recorrida, seja porque outras provas há (além daquelas em que o tribunal se baseou para formar a sua convicção) que não foram apreciadas e valoradas pelo tribunal (o que no caso, não acontece), seja porque o que é referido como fundamento da decisão não corresponde àquilo que as pessoas disseram (o que no caso também não se verifica), seja porque a convicção do tribunal não se mostra lógica, coerente e colide com as regras da experiência e os critérios da normalidade (o que no caso também não se verifica, pois que a versão dos factos acolhida pelo tribunal é possível, de acordo com as regras da experiência e os critérios da normalidade). A divergência do recorrente quanto ao decidido baseia-se, em síntese, na credibilidade que ao tribunal mereceram as declarações do arguido, por – no entender do recorrente – tais declarações, conjugadas com as regras da experiência comum, permitirem “um juízo indiciário seguro e lógico que demonstra… a autoria dos factos…”. Mas não. De facto, tais declarações – contrariamente ao defendido pelo recorrente – permitindo, embora, uma conclusão diversa (ou seja, é possível, no campo das hipóteses, que o arguido conhecesse o teor dos documentos e que os mesmos não correspondiam à verdade), não a impõem, pois que a inversa – a acolhida pelo tribunal, face às dúvidas que tais declarações lhe suscitaram - também é verdadeira (ou seja, é possível que o arguido, que não sabe ler nem escrever, tenha pedido a alguém para lhe tratar dos papéis – como declarou – e que, tendo-os assinado, não soubesse/tivesse conhecimento do seu conteúdo), o mesmo é dizer que, perante tais circunstâncias, as provas produzidas não permitem concluir, com segurança, elevada segurança, a segurança que exige para a condenação, que as certidões – falsificadas - “foram elaboradas pelo arguido” ou usadas pelo arguido sabendo que não haviam sido “emanadas por autoridade competente” para tal e que o seu conteúdo não correspondia à verdade. Por outro lado, vigorando entre nós o princípio da imediação e da oralidade – privilégio de que desfruta o tribunal da primeira instância, perante o qual a prova é produzida – e estando vedado a este tribunal o contacto direto com as provas produzidas em audiência de julgamento, vem a jurisprudência entendendo que a convicção assim formada, com base em tais princípios, só poderá ser afastada desde que se demonstre que ela é inadmissível em face das regras da experiência comum, ou seja, que, em face de tais regras, essa convicção não tem lógica, não é coerente, não é possível que os factos assim se tenham passado. Como se escreveu a este propósito no acórdão do STJ de 13.02.2003, in www.dgsi.pt, “… se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência comum, ele será inatacável, já que proferida em obediência à lei, que impõe que ele julgue de acordo com a sua convicção. Isto é mesmo assim quando... houver documentação da prova, de outra maneira seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação”. Do mesmo modo o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 30.03.2004, in DR, II Série, de 2.06.2004, onde se escreveu que “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode... assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na valoração de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente, os dados objetivos que se apontam na motivação... doutra forma seria uma inversão das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem julga pela convicção dos que esperam a decisão”. E, ainda, o acórdão da RC de 6.03.2002, Col. Jur., Ano XXVII, t. 2, 44, onde se conclui que o tribunal de recurso – quando a atribuição da credibilidade de uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade – “só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”. Consequentemente, perante as dúvidas suscitadas – dúvidas sérias, de acordo com os critérios da razoabilidade e da normalidade do acontecer – as razões da divergência do recorrente quanto ao decidido – que assentam essencialmente na credibilidade que ao tribunal mereceram as declarações do arguido – não são razão bastante para questionar a correção de raciocínio que levou o tribunal a dar como não provada aquela factualidade e, em obediência ao princípio in dubio pro reo, absolver o arguido da prática dos crime de que era acusado. Improcede, por isso, o recurso. 10. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em manter a decisão recorrida. Sem tributação. (Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado) Évora, 12/01/2021 (Alberto João Borges) (Maria Fernanda Pereira Palma) |