Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | FERNANDO PINA | ||
Descritores: | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA PRISÃO PREVENTIVA PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ACTIVIDADE CRIMINOSA | ||
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Data do Acordão: | 06/28/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. O estado de liberdade é o estado natural de todo o ser humano, sendo essa a razão pela qual o direito fundamental à liberdade se mostra reconhecido e protegido pela Constituição da República (artigo 27.º). II. Não obstante, tal direito fundamental admite exceções, entre as quais se contam a possibilidade de prisão preventiva daqueles sobre os quais haja fortes indícios da prática de um crime grave (artigo 202.º CPP), em que se verifique algum dos perigos elencados no artigo 204.º CPP, quando as demais medidas de coação previstas na lei se mostrem insuficientes em termos da sua necessidade, adequação e proporcionalidade (artigo 193.º CPP). III. O crime de violência doméstica admite a prisão preventiva, nos termos previstos nos artigos 1.º/1-f), 191.º, 193.º, 202.º/1-b) e 204.º/1-c) CPP e 152.º CP. IV. Há perigo de continuação da atividade criminosa quando o arguido, depois de praticar atos integradores do crime de violência doméstica, que levaram ao rompimento da relação de namoro, continua, em razão da sua personalidade problemática e descontrolo emocional, a perseguir e constantemente assediar a ofendida, sendo a prisão preventiva a medida necessária, adequada e proporcional à contenção do aludido perigo. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA: I. RELATÓRIO A – Nos presentes autos de Processo Comum Singular, com o nº 642/21.0GBSSB-A, correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Competência Genérica de Sesimbra - Juiz 2, por decisão judicial datada de 10 de Março de 2023, foi decidido alterar a medida de coacção aplicada para prisão preventiva ao arguido AA, filho (…) Azeitão e, actualmente em prisão preventiva à ordem dos presentes autos, desde 10-03-2023. Inconformado com esta decisão, que determinou a sua sujeição à medida de coacção de prisão preventiva, dela recorreu, o arguido aa, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes (transcritas) conclusões: 1. O tribunal “a quo” proferiu despacho decretando ao arguido a medida de coação de prisão preventiva e proibição de contactos com a vítima. 2. O tribunal “a quo” fundamentou a sua decisão, com o perigo da continuação da actividade criminosa, face ao seu descontrolo emocional e que o facto de ter dado entrada numa clínica de reabilitação não altera esse perigo, ademais foi expulso da mesma por comportamento agressivo. 3. Mais refere que os familiares não autorizaram o cumprimento da obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica e que esta medida de coação não pode ser cumprida em instituição por não configurar uma habitação e que o mesmo não padece de anomalia psíquica. 4. O arguido consome drogas desde os 17 anos de idade. 5. Consumo que conduziu a uma anomalia psíquica, conforme consta da perícia forense realizada ao arguido e junta aos autos. 6. Pese embora o arguido seja toxicodependente e padeça de anomalia psíquica, tal não torna o arguido inimputável, mas diminui a sua culpa. 7. O arguido adoptou estes comportamentos não conformes ao direito por estar sobre o efeito das drogas, caso contrário jamais o teria feito. 8. Foi a toxicodependência que esteve na base de todo este seu comportamento, uma vez que estando sob o efeito de drogas o arguido estava mais impulsivo, frágil emocionalmente, mais vulnerável psicologicamente, com falta de controle mental e sobretudo o seu problema psiquiátrico. 9. O arguido tem feito um esforço para se tratar, embora com muitas recaídas e retrocessos, este não é um caminho fácil. 10. O arguido iniciou um programa terapêutico de recuperação na associação vale da Acôr em 1 de Fevereiro de 2023, com previsão terapêutica entre 12 a 18 meses. 11. O arguido foi expulso ao fim de 27 dias porque se envolveu numa altercação com outro utente, mas cujos pormenores se desconhecem. 12. No dia 8 de Março o arguido ingressou noutro centro terapêutico em Abrantes, “Projecto Homem” e onde estava aquando da aplicação da medida da qual se recorre, o que demonstra o seu interesse em ser tratado. 13. O arguido foi retirado desse centro para ir para o Estabelecimento Prisional de Setúbal. 14. Ao aplicar a prisão preventiva, o tribunal “a quo” não teve em conta o problema de adição do arguido e o seu problema psiquiátrico, impedindo-o de fazer o tratamento que tanto necessita. 15. Ao aplicar esta medida de coação, o tribunal “a quo” não teve em conta a necessidade, adequação e proporcionalidade que esta medida de coação requer. 16. Ademais, subsumindo os factos ao crime em causa, não é aplicada ao mesmo uma pena de prisão superior a 5 anos, pelo que não estava verificado este requisito, nem tampouco se encontram preenchidas as restantes alíneas do artigo 202º do CPP. 17. Mas ainda assim sempre se dirá que, de entre o leque das medidas de coação existentes, existe também o tratamento médico, em regime fechado, que se encontra previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 200º e 201º nº 1 segunda parte, ambos do CPP. 18. O artigo 201º nº 1 do CPP estabelece a obrigação de permanência na habitação ou em instituição adequada a prestar apoio social e de saúde, com a utilização de meios técnicos de controlo à distância. 19. O artigo 200º alínea f) do CPP também estabelece como proibição e imposição de condutas, o tratamento da dependência de que o arguido padeça e haja favorecido a prática do crime, em instituição adequada. 20. Ambos os artigos preveem a possibilidade de aplicar ao arguido uma medida de coação de internamento com tratamento, que acautela também a proibição de contactos com a vítima. 21. Com esse tratamento o arguido vai ser melhor reintegrado na sociedade, o que atenua as necessidades de prevenção especial, pois vai fazer com que o arguido se liberte da toxicodependência ou consiga de algum modo atenuar a presença da mesma na sua vida, assim iniciando ou retomando o caminho dos valores do direito e da vida em sociedade. 22. No estabelecimento prisional o arguido não consegue a sua cura nem a sua integração na sociedade, até porque não é feito ao arguido qualquer tratamento para a toxicodependência, assim como também não é acautelada a toma da medicação adequada ao seu quadro clínico. 23. Desde que entrou no estabelecimento prisional o arguido ainda não foi visto por um médico psiquiatra nem ministrada a medicação de que necessita. 24. O arguido necessita urgentemente de tratamento e só numa instituição vocacionada para o efeito consegue a desejada cura. 25. Assim, e por tudo quanto supra se expendeu, deve ser revogado o despacho que aplicou a prisão preventiva ao arguido, com substituição desta por medida menos gravosa, designadamente, permanência na instituição de reabilitação, sujeita a controlo eletrónico. Com tais fundamentos e demais de Direito, contando-se com o douto suprimento de V. Exas, deve ser dado provimento ao presente recurso e, assim, far-se-á a costumada Justiça. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal, o Ministério Público, pronunciou-se no sentido da improcedência, concluindo por seu turno, (transcrição): 1. Por sentença proferida em 10-02-2023, ainda não transitada em julgado, foi o arguido condenado pela prática, além do mais, de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), 4 e 5 do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão efetiva e, ainda, nas penas acessórias de proibição de contactos com a vítima pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses (cfr. artigo 152º, nº 4 do Código Penal) e na pena acessória de frequência de um programa de violência doméstica, a indicar pela DGRSP (cfr. artigo 152º, nº 4 do Código Penal). 2. Na sequência da emissão de mandados de detenção pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo foi o arguido submetido a interrogatório judicial no pretérito dia 10-03-2023. 3. Na sequência da realização do interrogatório judicial o Tribunal a quo, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 191º a 196º, 200º, nº 1, alínea a), 202º, nº 1, alínea a) e 204º, alínea c) todos do Código de Processo Penal, determinou que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes de coacção: - Termo de identidade e residência já prestado nos autos; - Prisão preventiva; e - Proibição de contactos com a vítima, vedando-se qualquer comunicação com aquela, seja direta ou por interposta pessoa, e independentemente do meio utilizado (presencial ou à distância, verbal ou escrito, englobando, naturalmente, o envio de mensagens, públicas ou privadas, através de qualquer rede social e, bem assim, a realização de publicações que visem a transmissão de informação à Ofendida). 4. Inconformado com a decisão do tribunal a quo que lhe aplicou a medida de coacção mais gravosa, o arguido veio recorrer da mesma alegando que o crime de violência doméstica não admite a aplicação de prisão preventiva e pugnou pela aplicação, em sua substituição, de uma medida de coação menos gravosa, designadamente, permanência na instituição de reabilitação, sujeita a controlo electrónico. 5. O arguido, ora recorrente, não contesta a existência de um concreto perigo de continuação da actividade criminosa verificado pelo Tribunal a quo que justificou o agravamento do seu estatuto coactivo. 6. Diversamente do que alega o recorrente, não é verdade que o crime pelo qual o foi condenado não admite a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva. 7. Com efeito, o crime de violência doméstica, p. e p. nos termos do artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal com pena de prisão de 1 a 5 anos integra o conceito de criminalidade violenta, nos termos do artigo 202º nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal e artigo 1º, alínea j) do mesmo diploma. Da leitura último preceito normativo convocado, retira-se que cabem no conceito de criminalidade violenta as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos. Em consequência, é forçoso concluir que o tipo legal em causa, admite a aplicação da medida de coacção mais gravosa, devendo, em consequência, improceder a posição do recorrente. 8. Acresce que após a prolação da sentença, conforme resulta da factualidade contida no despacho de aplicação da medida de coacção, o arguido contactou não só a ofendida, mas também, com outras testemunhas que depuseram em audiência de julgamento, culpabilizando-as da pena que lhe foi aplicada nos presentes autos e até dirigindo-lhes ameaças de morte. 9. Andou bem o Tribunal a quo quando refere os factos ora elencados consubstanciam, sem margens para dúvidas, a continuação das perseguições que caraterizaram o ilícito de violência doméstica praticado pelo Arguido na pessoa de BB. Sinalizam, portanto, a efetiva continuação da atividade criminosa cometida no decurso do trânsito em julgado da sentença proferida nestes autos e denunciam a ineficácia da medida de coação de termo de identidade e residência aplicado em sede de sentença. Ora, o descontrolo emocional evidenciado pela multiplicidade de telefonemas efetuados a vítimas diferentes, aliado à constante responsabilização daquelas pela pena de prisão efetiva aqui aplicada e à eminência de início do período de reclusão, a que acresce o facto de, numa dessas ocasiões, o Arguido ter tentado saltar o muro da casa da Ofendida sinalizam um agravamento significativo do perigo de continuação da atividade criminosa, consubstanciada na prática de factos idênticos ou mais graves. 10. Em consequência, perante os factos ocorridos após a prolação da sentença, entendemos que o Tribunal a quo decidiu bem ao considerar que a medida de coacção adequada a evitá-los, só poderia ser uma medida de coacção privativa da liberdade, acompanhada da proibição de contactos com a vítima e não qualquer outra menos restritiva, sendo proporcional às molduras penais do crime imputado e à pena que que lhe foi aplicada. 11. De acordo com o artigo 193º nº 3 do Código de Processo Penal “quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade (…) deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para garantir as exigências cautelares.” 12. No cumprimento deste comando, ponderou o Tribunal a aplicação da OPHVE. A este propósito, conforme se lê no despacho recorrido: “(…) face à ausência dos consentimentos dos familiares com quem o arguido poderia viver, para eventual cumprimento de obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância eletrónica, impossibilita a aplicação desta medida de coação. Mais se refira que é entendimento do Tribunal que tal medida de coação não pode ser cumprida em instituição particular de cura para problemas aditivos, uma vez que tais instituições não configuram uma habitação e a quantidade de utentes que estão em constante entrada e saída inviabiliza a prestação dos consentimentos necessários à execução da medida. 13. A substituição da medida de coacção de prisão preventiva por obrigação de permanência em instituição de reabilitação, sujeita a controlo electrónico, tal como é configurada pelo arguido não tem suporte legal. 14. Finalmente, sempre se dirá que não se mostra possível a substituição da prisão preventiva, por internamento preventivo em hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado, permitida pelo artigo 202º nº 2 do Código de Processo Penal, porquanto, para além dos problemas aditivos do arguido nada se apurou quanto a uma eventual anomalia psíquica. 15. Pelas razões acima elencadas, concordamos com a decisão tomada pelo tribunal a quo que aplicou, para além da proibição de contactos com a ofendida, a medida de coacção mais agravosa, a prisão preventiva prevista no artigo 202º do Código de Processo Penal. 16. Apenas esta se demonstra necessária, em face das identificadas exigências cautelares; adequada, por ser a única idónea a afastar todos os perigos identificados; e proporcional perante o crime pelo qual o arguido foi condenado e à pena que lhe foi aplicada por sentença proferida nestes autos, ainda não transitada em julgado. 17. Desta feita, a argumentação apresentada pelo recorrente da não verificação dos pressupostos e condições de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva não pode proceder. 18. Encontrando-se bem fundamentado o despacho recorrido e correcta a decisão de aplicação da medida de coacção, deve ser negado provimento à pretensão do recorrente. Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso e, em consequência, ser confirmada a decisão recorrida, nos seus exactos termos. V. Exas., porém, com mais elevada prudência, decidirão conforme for de Direito e Justiça. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, tendo sido apresentada resposta pugnando no sentido do recurso interposto. Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. B - No despacho de 10-03-2023, ora recorrido e da respectiva fundamentação, consta o seguinte relativamente ao arguido AA: Além dos factos dados como provados em sede de sentença (para os quais se remete passando a integrar a presente decisão, bem como a respetiva fundamentação de facto), resulta dos autos: 1. Por sentença proferida em 10-02-2023, o Arguido foi condenado pela prática, em autoria e na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica, na pessoa de BB, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão efetiva e, ainda, nas penas acessórias de proibição de contactos com a vítima pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses e de frequência de um programa de violência doméstica, a indicar pela D.G.R.S.P. 2. À data da prolação da sentença, o Arguido e a vítima não falavam há largos meses, razão pela qual o Tribunal julgou suficiente que o Arguido aguardasse o trânsito em julgado da sentença em liberdade, sujeito à medida de coação de termo de identidade e residência. 3. No passado dia 01 de fevereiro de 2023, o Arguido iniciou o Programa Terapêutico-Educativo de Recuperação de Toxicodependentes da Associação Vale de Acor, em Comunidade Terapêutica, em regime de internamento com previsão de 12 a 18 meses; 4. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 28-02-2023, o Arguido foi expulso do referido programa por ter mantido conduta agressiva para com outro utente da instituição; 5. No passado dia 03-03-2023, após consumir cocaína, o Arguido contactou telefonicamente a Vítima, aos gritos, para agradecer a pena aqui aplicada, o que a levou a desligar a chamada, com receio; 6. No passado dia 03-03-2023, o Arguido contactou telefonicamente uma das testemunhas ouvida nestes autos (Sra. CC) e culpabilizou-a pela pena aqui aplicada. Nesse contacto, informou-a que a mataria assim que a encontrasse, ainda que em data posterior ao cumprimento da pena; 7. No passado dia 03-03-2023, o Arguido contactou telefonicamente a Sra. DD, ofendida no processo nº 440/22.4GBSSB, onde o aqui arguido foi acusado também pelo crime de violência doméstica, sendo que, nessa chamada o Arguido referiu que ela e a BB tinham conseguido com que ele fosse preso; 8. No passado dia 04-03-2023, o Arguido saltou o portão de uma casa de habitação de Sandra Rodrigues, tendo fugido quando interpelado por um vizinho; 9. No passado dia 08-03-2023, pelas 17:00 horas, o Arguido deu entrada numa clínica de reabilitação em Santarém; 10. O Arguido continua a adotar uma conduta de vitimização e de ausência de espirito critico. * Os factos descritos em 1 e 2 resultaram da leitura da sentença proferida nestes autos.Os factos elencados em 3 decorreram do teor declaração emitida pela instituição e junta aos autos pelo arguido a ref. elec. 7052901, tendo sido confirmado pelo arguido quando ouvido em sede de interrogatório. Os factos descritos em 4 advieram do relatório da DGRSP junto aos autos a ref. elec. 7106201, e cujo teor foi confirmado pelo Arguido quando ouvido em sede de interrogatório. Os factos descritos em 5 e 10 resultaram da queixa crime apresentada pela ofendida e do requerimento dirigido pela própria a estes autos com ref. elec. 7098666, sendo certo que não se vislumbram motivos para duvidar da sua veracidade, atenta a posição de proteção em relação ao Arguido que adotou em Tribunal. Ademais, o Arguido admitiu que, em desespero, contactou telefonicamente a Ofendida, para lhe agradecer a pena aplicada, simplesmente negou o tom exaltado com que o fez. Certo é que o estado de desespero que em confessa ter sentido corrobora a descrição da vítima. Os factos descritos em 6 emergiram da queixa crime apresentada por CC do requerimento dirigido pela própria a estes autos com ref. elec.7098674, sendo certo que o Arguido confirmou ter efetuado o telefonema e ter iniciado uma discussão com aquela. Os factos descritos em 7 resultaram do teor do requerimento com ref. elec. 7100929, e que foi apresentado no proc. 440/22.4GBSSSB e, bem assim, da acusação aí deduzida e despacho de recebimento da acusação. Por fim, o facto elencado em 9 e 10 decorreu das declarações prestadas pelo Arguido e das justificações que sempre apresentou para cada um dos seus comportamentos injustificáveis. * Os factos ora elencados consubstanciam, sem margens para dúvidas, a continuação das perseguições que caraterizaram o ilícito de violência doméstica praticado pelo Arguido na pessoa de BB. Sinalizam, portanto, a efetiva continuação da atividade criminosa cometida no decurso do trânsito em julgado da sentença proferida nestes autos e denunciam a ineficácia da medida de coação de termo de identidade e residência aplicado em sede de sentença.Ora, o descontrolo emocional evidenciado pela multiplicidade de telefonemas efetuados a vítimas diferentes, aliado à constante responsabilização daquelas pela pena de prisão efetiva aqui aplicada e à eminência de início do período de reclusão, a que acresce o facto de, numa dessas ocasiões, o Arguido ter tentado saltar o muro da casa da Ofendida sinalizam um agravamento significativo do perigo de continuação da atividade criminosa, consubstanciada na prática de factos idênticos ou mais graves. Por outro lado, o facto de ter dado entrada em clínica de reabilitação em nada altera os perigos que aqui se fazem sentir, uma vez que, já foi expulso de outra instituição similar, nada permitindo concluir que, até ao inicio do cumprimento da pena de prisão, não voltará a sair do local. Por fim refira-se que, face à ausência dos consentimentos dos familiares com quem o arguido poderia viver, para eventual cumprimento de obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância eletrónica, impossibilita a aplicação desta medida de coação. Mais se refira que é entendimento do Tribunal que tal medida de coação não pode ser cumprida em instituição particular de cura para problemas aditivos, uma vez que tais instituições não configuram uma habitação e a quantidade de utentes que estão em constante entrada e saída inviabiliza a prestação dos consentimentos necessários à execução da medida. Por fim, refira-se que, além dos problemas de toxicodependência do Arguido, nada mais se apurou quanto a uma eventual anomalia psíquica, pressuposto essencial à medida prevista no artigo 202º, nº 2 do C.P.P. Tendo em consideração os elementos probatórios constantes dos autos, entende este Tribunal que as únicas medidas adequadas e suficientes para responder às preditas exigências cautelares e proporcionais à gravidade do crime e à pena aplicada são: 1. Prisão preventiva, prevista no artigo 202º do C.P.P. 2. Proibição de contactos com a vítima, vedando-se qualquer comunicação com aquela, seja direta ou por interposta pessoa, e independentemente do meio utilizado (presencial ou à distância, verbal ou escrito, englobando, naturalmente, o envio de mensagens, públicas ou privadas, através de qualquer rede social e, bem assim, a realização de publicações que visem a transmissão de informação à Ofendida) – artigo 200º, nº 1, alínea a) do C.P.P.; Face ao supra exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 191º a 196º, 200º, nº 1, alínea a), 202º, nº 1 alínea a) e 204º, alínea c) todos do C.P.P., determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coação: - Termo de identidade e residência já prestado nos autos; - Prisão preventiva; - Proibição de contactos com a vítima, vedando-se qualquer comunicação com aquela, seja direta ou por interposta pessoa, e independentemente do meio utilizado (presencial ou à distância, verbal ou escrito, englobando, naturalmente, o envio de mensagens, públicas ou privadas, através de qualquer rede social e, bem assim, a realização de publicações que visem a transmissão de informação à Ofendida); (…) Na sentença proferida nos presentes autos, não transitada em julgado, consta o seguinte: Factos provados: Com relevância para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos: 1. O arguido AA e a ofendida BB mantiveram uma relação de namoro, entre maio de 2021 e o dia 09 de agosto de 2021. 2. No decorrer dessa relação de namoro, e decorrente do passado de toxicodependência do arguido AA, sempre que o mesmo era contrariado, tinha mudanças de humor e alterava o tom de voz, razão pela qual a ofendida pôs termo à relação de namoro. 3. O arguido não aceitou o fim da relação e, nos meses que se seguiram, ligou, diariamente, dezenas de vezes por dia, à ofendida e tanto era amoroso como lhe dirigia as seguintes expressões e frases: “se te vejo com alguém, eu mato-te a ti e a ele…”, “puta, vaca, já deves ter outro”, “andas a foder com outro, tu e as tuas amigas são umas putas”, “andas a dar a cona a todos”. 4. No dia 25 de agosto de 2021, cerca das 17,00 horas, o arguido AA dirigiu-se à Academia “EE, um dos locais onde a ofendida Sandra trabalha e pediu-lhe para falarem e sentou-se. 5. Como o Arguido estava bastante exaltado e a ofendida não queria manter o contacto, pediu-lhe que abandonasse o local. 6. O Arguido começou a discutir com a ofendida, dizendo, aos gritos, “andas a gozar comigo”, “andas a brincar com a minha cara”. 7. A ofendida voltou a solicitar que o Arguido fosse embora. 8. Nesse momento, o Arguido agarrou no telemóvel da ofendida, sem a sua autorização e consentimento, e abandonou o local, levando-o consigo. 9. No mesmo dia, o arguido AA efetuou cerca de 80 chamadas para a ofendida BB, que nunca as atendeu. 10. No dia 25 de setembro de 2021, o Arguido estacionou a sua viatura no parque de merendas, do Parque Ambiental do Alambre, Quinta do Conde (outro dos locais de trabalho da ofendida) e aguardou a passagem da Ofendida, escondido, dentro do seu carro. 11. Pelas 13:00 horas, ao avistar a viatura da ofendida a circular na faixa de rodagem, o arguido atravessou, de repente, o veículo por si conduzido no meio da estrada, de molde a impedir a ofendida BB de passar. 12. Acto contínuo, o arguido saiu do seu carro e correu na direção do automóvel da ofendida Sandra. 13. Ao ver o Arguido atravessar a viatura na faixa de rodagem, a Ofendida ficou com receio, fez marcha atrás, e abandonou o local. 14. Ato contínuo, o arguido correu para o interior do carro, e começou a perseguir a ofendida, alcançando-a perto da Aldeia de Oleiros. 15. Nesse local, atravessou o carro na estrada para impedir a passagem da ofendida, saiu do veículo e correu em direção ao carro daquela. 16. O Arguido só não alcançou a ofendida porque esta fugiu, passando pelo lado direito do carro do arguido, e seguindo em direcção à esquadra da Guarda Nacional Republicana de Vila Nogueira de Azeitão, onde se refugiou. 17. No dia 02 de outubro de 2021, cerca das 08,00 horas, o arguido AA ligou por diversas vezes e de forma insistente para a ofendida. 18. A Ofendida não atendeu as chamadas e colocou o telemóvel em modo de voo para não ser incomodada. 19. Nesse mesmo dia, cerca das 13,30 horas, o arguido AA deslocou-se outra vez ao local de trabalho da ofendida, e procurou-a, interrompendo atividades que estavam a decorrer no local. 20. Nesse mesmo dia, cerca das 17,30 horas, o arguido AA deslocou-se ao alojamento local propriedade da ofendida BB, e contíguo à sua residência, e voltou a tocar insistentemente à campainha, tendo a ofendida sido alertada de tal facto por uma vizinha e pelos hóspedes que ali se encontravam. 21. Como não encontrou a ofendida, cerca das 20,00 horas, o arguido voltou ao local de trabalho daquela, e do lado de fora do gradeamento, começou aos gritos a chamá-la, dizendo que “só se queria despedir porque ia embora e não a chateava mais”. 22. A Ofendida dirigiu-se ao gradeamento, e manteve-se do lado de dentro. 23. Aí chegada, o Arguido continuou aos gritos e a dizer que “tinha tido uma recaída e voltado a consumir por causa dela”, e pediu-lhe dinheiro para fazer um tratamento. 24. Como a ofendida se negou a dar-lhe dinheiro, o arguido agarrou o braço daquela, puxou-o com força e cuspiu-lhe para a cara. 25. No dia 25 de novembro de 2021, a hora não concretamente apurada, a ofendida foi deixar uma amiga, FF, ao café (…) Quinta do Conde. 26. O Arguido avistou a Ofendida, parou o seu carro junto à sua viatura daquela e gritou “abre o vidro sua puta, filha da puta”. 27. Ao ver o arguido, a ofendida arrancou com o seu carro. 28. O Arguido iniciou a marcha, posicionou a sua viatura ao lado da viatura da ofendida e seguiu o mesmo trajeto até à rotunda do supermercado Modelo. 29. Simultaneamente, o Arguido ia chamando a Ofendida de «puta, vaca». 30. Ao chegar à rotunda do supermercado Modelo, o Arguido virou para a direita, no sentido de Azeitão, e a ofendida virou para a esquerda. 31. Frequentemente o arguido AA desloca-se a casa da ofendida, ou dos pais daquela, e fica a vigiá-la e a buzinar repetidamente para que aquela apareça à janela. 32. Tal comportamento intimida e causa transtorno emocional e psicológico à Ofendida. 33. A Ofendida sentiu medo e receio pela sua integridade física e pela do seu filho, razão pela qual deixou a casa onde residia e foi viver para casa dos seus pais. 34. No dia 11 de abril de 2022, cerca das 16,15 horas, a ofendida deslocou-se ao exterior da loja onde trabalha na (…) para ir ao seu carro. 35. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o Arguido abordou-a e disse-lhe “quero falar contigo”. 36. A ofendida respondeu que não tinham nada para falar, ao que o arguido respondeu “o teu filho viu-me e fugiu”. 37. De imediato, a ofendida Sandra fugiu para o interior da loja, local onde tinha o botão de pânico, do equipamento de teleassistência. 38. O arguido AA foi atrás da Ofendida, e ao vê-la acionar a teleassistência, disse-lhe “foste chamar a polícia?”. 39. Acto contínuo, o Arguido puxou os cabelos da Ofendida. 40. Após, abandonou o local. 41. O arguido AA quis dirigir à ofendida BB, sua ex-namorada, as palavras acima descritas, estando ciente que as mesmas atingiam a sua honra e consideração, e com as ameaças que proferiu, quis causar-lhe receio pela sua integridade física, limitando-lhe a sua liberdade de agir, o que conseguiu. 42. Ao agir nos moldes supra descritos, bem sabia o arguido AA que ao agredir a ofendida BB da forma que o fez, a atingiria, como atingiu e a molestaria fisicamente, conforme molestou, o que quis e conseguiu. 43. Com estas condutas que reiteradamente produziu, o arguido AA, quis maltratar, torturar e humilhar a ofendida BB, sua ex-namorada, o que quis e conseguiu. 44. O arguido AA quis fazer seu aquele telemóvel, conforme fez, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do respectivo proprietário, a ofendida BB. 45. Com as condutas supra descritas agiu sempre o arguido AA de forma livre, deliberada e consciente de serem as mesmas proibidas e proibidas por lei. Mais se provou que: 46. O Arguido prestou o seu consentimento a, sendo esse o entendimento do Tribunal, cumprir a pena em regime de permanência na habitação. 47. O Arguido prestou o seu consentimento, a, sendo esse o entendimento do Tribunal, submeter-se a tratamento para cura de problemas aditivos. 48. O Arguido trabalha por conta própria. 49. Faz trabalhos de pintura, na área da construção civil. 50. Aufere, mensalmente, rendimentos no valor de €600,00. 51. Reside em casa dos avós, na companhia destes. 52. Suporta despesas de água, luz, gás, alimentação no valor total de €400,00. 53. Paga uma prestação bancária no valor de €250,00, para pagamento de um crédito pessoal, contraído para a aquisição de um veículo. 54. Não tem filhos. 55. Estudou até ao 6º ano de escolaridade. 56. Consome cocaína desde os 17 anos de idade. 57. O último consumo ocorreu em novembro de 2022. 58. É seguido no CAT de Setúbal. 59. É seguido em consultas de psicologia. 60. Frequenta os narcóticos anónimos. 61. GG (mãe de AA, residente na …) e HH (avó materna do arguido, residente na …), declararam não prestar consentimento ao eventual cumprimento de pena de prisão na habitação por AA nas suas residências. 62. O Arguido apresenta os seguintes antecedentes criminais registados. Por sentença proferida no âmbito do processo nº 143/01.3GESTB, transitada em julgado em 22-05-2001, o Arguido foi condenado pela prática, em 03-05-2001, de um crime de desobediência, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de 800&00, o que perfaz o total de 80.000$00. Por sentença proferida no âmbito do processo nº 318/03.0GTSR, transitada em julgado em 28.10.2003, o Arguido foi condenado pela prática, 21-09-2003, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa, à razão diária de €6,00, o que perfaz o total de €360,00. Por sentença proferida no âmbito do processo nº 256/01.1GESTB, transitada em julgado em 28-04-2004, o Arguido foi condenado pela prática, em 25-03-2004, de um crime de violação de domicilio, na pena de 140 de multa, à razão diária de €4,50, num total de €630,00. Por sentença proferida no âmbito do processo nº 75/10.4GFSTB, transitada em julgado em 17-01-2012, o Arguido foi condenado pela prática, em 16-01-2010, de um crime de violência doméstica, na pena de 2 anos e seis meses de prisão suspensa, na sua execução por igual período de tempo, subordinada a regime de prova, assente num plano de reinserção social e na pena acessória de 2 anos de proibição de contato com a vitima. Por sentença proferida no âmbito do processo nº 827/10.5PKLSB, transitada em julgado em 19-03-2012, o Arguido foi condenado pela prática, em 11-01-2011 e em 03-04-2011, de um crime de violência doméstica e de um crime de ameaça agravada, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão suspensa, na sua execução por igual período de tempo, subordinada a regime de prova, assente num plano de reinserção social e na pena acessória de proibição de contato com a vitima e de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica. Por sentença proferida no âmbito do processo nº 405/18.0T9STB, transitada em julgado em 02-07-2020, o Arguido foi condenado pela prática, em 27-01-2018, de um crime de ofensa à integridade física por negligência e crime de furto de uso de veículo, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €5,00, num, total de €500,00. Por sentença proferida no âmbito do processo nº 2997/19.8T9STB, transitada em julgado em 31-01-2022, o Arguido foi condenado pela prática, em 2019, de um crime de importunação sexual e um crime de perseguição, numa pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo. (…) Entendendo que nos presentes autos não se verificam nenhum dos perigos previstos no art. 204º do CPP, deverá o Arguido ficar sujeito à obrigação decorrente do termo de identidade e residência já prestado nos autos, até à extinção da pena, considerando-se tal medida suficiente e adequada às exigências cautelares que o caso requer (artigos 191º, 193º, 196º e 213º nº 4 todos do Código do Processo Penal). * - Dispositivo:Face ao supra exposto JULGO a acusação pública totalmente procedente e, em conformidade: a) Condeno o Arguido pela prática, em autoria, e na forma consumada de 1 (um) crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), 4 e 5 do Código Penal nas seguintes penas: Pena principal de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão efetiva; Pena acessória de proibição de contactos com a vítima pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses (cfr. artigo 152º, nº 4 do Código Penal); Pena acessória de frequência de um programa de violência doméstica, a indicar pela DGRSP (cfr. artigo 152º, nº 4 do Código Penal); b) Condeno o Arguido pela prática, em autoria, e na forma consumada de 1 (um) crime de furto, p.p. pelo artigo 203º, nº 1 do Código Penal na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária, €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), tudo num total de €1.170,00 (mil, cento e setenta euros). c) Consigno que atenta a diferente natureza jurídica das penas aplicadas não há lugar a cúmulo jurídico. (…) II – FUNDAMENTAÇÃO 1 - Âmbito do Recurso De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação. No caso em apreço, atendendo às conclusões, as questões que se suscitam são as seguintes: - Impugnação do despacho judicial que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, por desproporcional, violando o disposto no artigo 193º do Código de Processo Penal, face às concretas circunstâncias objetivas e subjetivas que envolvem os presentes autos. B. Decidindo. Da impugnação do despacho judicial que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, por desproporcional, violando o disposto no artigo 193º do Código de Processo Penal, face às concretas circunstâncias objetivas e subjetivas que envolvem os presentes autos. Como é sabido o estado de liberdade é o estado natural de todo o ser humano (Simas Santos e Leal-Henriques em “Código de Processo Penal Anotado”, vol. I, Rei dos Livros, 2ª Ed., pág. 993, em anotação ao artigo 202º afirmam “A liberdade individual é, a seguir à vida, um dos mais relevantes bens do Homem”) e é, por isso, que o direito à liberdade vem consagrado como um direito fundamental no artigo 27º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, definindo logo o texto constitucional as excepções a esse direito, entre as quais (cfr. nº 3, alínea b), do citado preceito) a possibilidade de prisão preventiva por fortes indícios da prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a cinco anos, pelo tempo e nas condições que a lei determinar. Para que ficasse bem vincada a excepcionalidade da prisão preventiva, o artigo 28º, nº 2, do texto constitucional assim o consagra expressamente, mais estipulando que não pode ser decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei. Assim, da Constituição logo resultam os princípios fundamentais a observar em matéria de aplicação de medidas de coacção e, particularmente, no que concerne à privação da liberdade, a sua natureza excepcional e, portanto, residual e subsidiária relativamente a outras medidas de coacção. No desenvolvimento do texto constitucional a lei processual penal estabelece diversos requisitos substantivos de cuja verificação depende a aplicação de medidas de coacção, alguns deles traduzidos em princípios que directamente derivam daquele texto. Assim, o artigo 191º, nº 1, do Código de Processo Penal estipula que “A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei” - princípio da legalidade das medidas de coacção. Consiste este princípio em que só pode ser aplicada medida de coacção ou de garantia patrimonial prevista na lei e para os fins de natureza cautelar, na mesma, previstos. O artigo 192º, nº 2, do mesmo diploma estipula que “Nenhuma medida de coacção (…) é aplicada quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal”, princípio da necessidade na aplicação de medidas de coacção, que consiste em que o fim visado pela concreta medida de coacção decretada não pode ser obtido por outro meio menos oneroso para os direitos do arguido. O artigo 193º, nº 1, do citado diploma preceitua que “As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas” - princípios da adequação e proporcionalidade na aplicação das medidas de coacção. Destes princípios decorre, por um lado, que as medidas de coacção e de garantia patrimonial devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e, por outro, proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas ao arguido. O nº 2 do mesmo preceito, importando o próprio texto constitucional, determina que a prisão preventiva bem como a permanência na habitação, só possam ser decretadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção, princípio da subsidiariedade na aplicação da medida de coacção privativa da liberdade, a que alguns autores se referem como critério de última “ratio”. O artigo 202º, nº 1, do Código de Processo Penal, reforçando os princípios da adequação e subsidiariedade, estipula novos requisitos substantivos agora relativos ao crime imputado e grau de indiciação da sua prática, ponto de partida para o equacionar da aplicação deste tipo de privação da liberdade. E para que tal possa ser equacionado, à luz dos princípios antes referidos, necessário é que, primeira regra, existam fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos - cfr. alínea a) do citado preceito. Ou seja, nos termos do preceituado no artigo 202º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, a prisão preventiva apenas pode ser aplicada se estiver em causa crime doloso, desde que punível com pena de prisão de limite superior a cinco anos e desde que fortemente indiciada a sua prática pelo respectivo agente e destinatário da medida. Note-se, novamente, a este nível ainda se exige que, num juízo de prognose, seja proporcional à sanção previsivelmente venha a ser aplicada, devendo-se impedir a aplicação quando seja muito provável a condenação em pena de multa cominada alternativamente na norma incriminadora, ou em pena de prisão substituível por multa ou por outra pena não privativa da liberdade ou de duração inferior à da privação da liberdade ou, ainda, cuja execução venha a ser suspensa. Por último, a lei processual penal fornece-nos o quadro das exigências cautelares que justificam a aplicação de medidas de coacção, que não o termo de identidade e residência, sob a designação de requisitos gerais da aplicação das medidas de coacção (o termo de identidade e residência – terá de ser sempre aplicado independentemente da existência ou não das exigências cautelares que a seguir se referem) – cfr. artigo 204º, do Código de Processo Penal. Preceitua o artigo 204º, do Código de Processo Penal que “Nenhuma medida de coacção à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.”. Ou seja, relativamente a medidas privativas da liberdade, as referidas exigências cautelares terão de ser de tal modo intensas que se possa concluir que não podem ser devidamente acauteladas com a aplicação de qualquer outra medida de coacção não privativa da liberdade, isolada ou cumulativamente, nos casos em que a cumulação é permitida. Concluindo, a prisão preventiva constitui a medida de natureza cautelar mais gravosa, pelo que a sua imposição tem de obedecer a determinados pressupostos legais, uns de carácter geral (artigo 204º, do Código de Processo Penal), outros de carácter específico (artigo 202º, nº 1, alínea a), do mesmo Código de Processo Penal). Como pressupostos de carácter geral, não cumulativos, temos: - Fuga ou perigo de fuga; - Perigo de perturbação da investigação; - Perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa. Quanto aos pressupostos de carácter específico, os quais são cumulativos, temos: - A existência de fortes indícios da prática de crime; - Que o crime indiciado seja doloso; - Que o crime indiciado seja punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos, ou, tratando-se de crime de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, de máximo superior a 3 anos. Para além destes pressupostos, a lei faz depender a aplicação desta medida de coacção da verificação das seguintes condições: - A inadequação ou insuficiência das outras medidas de coacção - artigo 202º, nº 1, do Código de Processo Penal. Da necessidade, adequação e proporcionalidade da medida – artigo 193º, nº 1, parte final, do mesmo Código de Processo Penal. O recorrente, na sua motivação de recurso, alega, em síntese, que face às circunstâncias concretas constantes dos autos, resulta que a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, resulta desadequada e desproporcional, violando o disposto no artigo 193º do Código de Processo Penal, face às concretas circunstancias objetivas e subjetivas que envolvem os presentes autos. Cumpre decidir. Desde logo, o Mm. Juiz “a quo” fundamentou (e bem) a alteração da medida de coacção aplicada com base na condenação do arguido, ainda que não transitada em julgado, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão efectiva e na pena acessória de proibição de contactos com a vítima pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses (cfr. artigo 152º, nº 4 do Código Penal), pela prática, em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), nº 4 e nº 5 do Código Penal. À data da prolação da sentença condenatória, ainda não transitada em julgado, o arguido e a vítima não falavam há largos meses, pelo que o Tribunal julgou como suficiente que o mesmo aguardasse o trânsito em julgado da sentença proferida, apenas sujeito ao termo de identidade e residência que havia prestado nos autos. Contudo, posteriormente vieram a ser conhecidos nos autos, determinados factos praticados pelo arguido, de enorme gravidade e indiciariamente com relevância penal. Tais factos praticados pelo arguido na pessoa da vítima, vieram a demonstrar a efectiva continuação da actividade criminosa daquele e a revelar a insuficiência e desadequação da medida de coacção aplicada e a necessidade da sua substituição para a satisfação das exigências cautelares pelos autos exigidas. O crime pelo qual o arguido foi condenado, embora em abstrato seja punido com pena de prisão até 5 (cinco) anos admite a aplicação da medida de coação de prisão preventiva. Com efeito, o crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal, prevê a condenação em pena de prisão de 1 a 5 anos, mas nos termos do disposto no artigo 202º nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal e artigo 1º, alínea j) do mesmo diploma, integra o conceito de criminalidade violenta. Do artigo 1º, alínea j) do Código Penal, resulta que cabem no conceito de criminalidade violenta as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos. Por tal, o crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal, admite a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, artigo 202º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal. Cumpre reafirmar todos os pressupostos cumulativos específicos constantes do artigo 202º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, especificamente, a existência de fortes indícios da prática pelo recorrente de um crime de violência doméstica, condenado em pena de prisão efectiva, ainda que não transitada em julgado, verificando-se assim, todos os requisitos específicos para a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, não merecendo por isso qualquer censura o despacho recorrido, neste particular. Os pressupostos do artigo 204º do Código de Processo Penal não são cumulativos, pelo que basta a existência, no caso concreto, de qualquer dos perigos aí previstos para justificar a decisão tomada. No despacho objecto do recurso, além de se atender à gravidade objectiva do crime de violência doméstica indiciariamente praticado pelo arguido/recorrente, encontram-se indiciados nos autos uma série de factos praticados pelo arguido que em concreto determinam a existência de perigo de continuação da actividade criminosa, pois, após a condenação nos presentes autos, praticou diversos factos persecutórios na pessoa da vítima e de outros intervenientes no processo, de carácter violento e criminalmente relevante, que coadjuvado com a instabilidade e descontrolo emocional e problemas psiquiátricos, determinaram e, bem, a alteração das medidas de coacção a aplicar ao arguido. Assim, ponderadas as exigências cautelares concretas que os autos impõem, atenta a natureza e as circunstâncias do crime e as condições pessoais do arguido/recorrente, que permitem afirmar, que a sua personalidade indicia fortemente o perigo de continuação da actividade criminosa, com relevante perigo para a integridade da vítima e de outros intervenientes no processo, tais circunstâncias não permitem consolidar uma convicção que o arguido em liberdade, ainda que só no interior de um domicílio ou de uma instituição de tratamento, não prossiga por via dos contactos que detém, na sua actividade criminosa. Por tudo isto resulta evidente que apenas uma medida de coacção restritiva da liberdade, apresenta-se desde logo, como a única adequada a evitar a verificação de tais perigos, sendo que destas, nenhuma outra, face ao concreto perigo de continuação da actividade criminosa, com efectivo perigo para a integridade física da ofendida, só a medida de coacção de prisão preventiva, consegue evitar tal tipo de ocorrência. Assim, a medida de coacção aplicada – prisão preventiva – é, no caso vertente, adequada e proporcional ao crime indiciariamente praticado pelo arguido/recorrente, não se mostrando suficiente ou adequada, face ao supra, referido, a aplicação de qualquer outra medida de coacção que não aquela, com ou sem vigilância electrónica. Em consequência, é de desatender, à pretensão do recorrente. Concluindo, encontram-se preenchidos os pressupostos, quer os de carácter geral, quer os de carácter específico, impostos por lei, para que ao recorrente possa ser aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, medida essa que, dentro da panóplia das medidas de coacção previstas na lei, é a única capaz de satisfazer de forma adequada e suficiente as exigências cautelares do caso concreto, pelo que bem andou o Mm. Juiz “a quo” ao ter determinado que o arguido/recorrente AA aguarde os ulteriores termos do processo em prisão preventiva. Por tudo o que se deixa dito, o recurso tem forçosamente que improceder, na sua globalidade, não se verificando existir qualquer violação do disposto nos artigos 1º, alínea f), 191º, 192º, 193º, 202º e 204º, do Código de Processo Penal, 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal e 18º, 27º, 28º, 32º e 205º, da Constituição da República Portuguesa. Em vista do decaimento total no recurso interposto pelo arguido AA, ao abrigo do disposto nos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 5, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação do recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze. III - DISPOSITIVO Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em: - Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se o despacho recorrido. Custas pelo recorrente que se fixam em 4UC, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze. Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários. Évora, 28-06-2023 Fernando Paiva Gomes M Pina (Relator) João F. R. Carrola (adjunto) Renato Barroso (adjunto) |