Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
15/22.8JBLSB.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO
DECISÃO INSTRUTÓRIA
Data do Acordão: 05/27/2024
Votação: RELATOR
Texto Integral: S
Sumário: 1 – O Juiz de instrução não está vinculado aos actos de instrução requeridos, podendo e devendo praticar apenas aqueles que considerar necessários a realização das finalidades da instrução
2 – A decisão instrutória é irrecorrível quando pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais.
3 – A garantia do duplo grau de jurisdição só existe quanto às decisões penais condenatórias e quanto às respeitantes à situação do arguido face à privação da liberdade ou de outros direitos fundamentais.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 15/22.8JBLSB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja – Juízo Local de Competência Genérica de Cuba – J1
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I – Relatório:
(…) veio reclamar do despacho de não admissão do recurso por si interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal.
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O arguido (…) foi acusado pela prática de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 299.º, n.º 2 e 3; 31 (trinta e um) crimes de tráfico de seres humanos, p. e p. pelo artigo 160.º, n.º 1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas timorenses); 6 (seis) crimes de tráfico de seres humanos, p. e p. pelo artigo 160.º, n.º 1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas ucranianas); 7 (sete) crimes de tráfico de seres humanos, p. e p. pelo artigo 160.º, n.º 1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas argelinas e marroquinas); 7 (sete) crimes de tráfico de seres humanos, p. e p. pelo artigo 160.º, n.º 1, als. a), b), c) e d) e n.º 4 , al. d) (vítimas moldavas); 2 (dois) crimes de tráfico de seres humanos, p. e p. pelo artigo 160.º, n.º 1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas moldavas); 2 (dois) crimes de tráfico de seres humanos, p. e p. pelo artigo 160.º, n.º 1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas moldavas); 1 (um) crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo artigo 368.º-A, n.º 1, als. d) e h), 3 e 4, todos do Código Penal.
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O arguido (…) requereu a abertura de instrução.
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Admitida a instrução, por despacho datado de 18/03/2024 foi rejeitada parcialmente a produção de prova.
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Deste indeferimento e de outra matéria associada ao pedido de abertura de instrução foi apresentada reclamação em 19/03/2024.
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Na decisão proferida em 26/03/2024, para além do mais, o Tribunal manteve nos seus exactos termos os despachos proferidos em 18/03/2024 e em 21/03/2024, quanto ao indeferimento dos meios de prova requeridos pelo arguido.
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Após o debate instrutório, o Tribunal a quo declarou a nulidade parcial da acusação quanto aos crimes de crime de branqueamento de capitais e de tráfico de seres humanos, neste caso relativamente às vítimas de nacionalidade timorense não concretamente identificadas nos autos. E, nessa sequência, com excepção da redução acima referenciada, foi proferida decisão instrutória contra (…) pelos factos que já constavam da acusação, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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O arguido (…) veio interpor recurso da decisão instrutória, a qual, na sua óptica, se tornava recorrível por ter invocado nulidades constantes da fase instrutória.
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Após ter enunciado as normas legais aplicáveis, o Tribunal a quo indeferiu liminarmente o recurso interposto pelo arguido em 07/04/2024, quanto à decisão instrutória datada de 26/03/2024, com a seguinte fundamentação:
«(…) conforme os Tribunais superiores têm entendido de forma constante1, a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
Tornando, assim, inaplicável, aos processos instaurados após a sua entrada em vigor, a jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2000 (DR I-A, de 07.03.2000). Por tal motivo, terão de se ter por “caducos” tal AFJ e o AFJ n.º 7/2004 (DR I-A, de 02.12.2004), citados pelo arguido».
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Devidamente notificado, o arguido veio apresentar reclamação, sublinhando que as nulidades em causa foram devidamente arguidas e não podem ser consideradas sanadas em virtude da decisão instrutória proferida.
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II – Dos factos com interesse para a decisão:
Os factos com interesse para a justa decisão da reclamação são os que constam do relatório inicial.
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III – Enquadramento jurídico:
O n.º 1 do artigo 310.º[1] do Código de Processo Penal estabelece que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
Em primeiro lugar, a reclamação apresentada pelo arguido não se dirige propriamente ao douto despacho que não admitiu o recurso, mas antes à própria decisão instrutória que o pronunciou, alargando inclusivamente o objecto do recurso previamente interposto, como se constata através da leitura dessas duas peças.
Ainda que o objecto da reclamação fosse coincidente com o do recurso, ao repetir o mesmo argumentário, aquilo que, aparentemente, se visa é transformar o presente incidente numa instância de apreciação da própria impugnação recursal – o que não é, manifestamente, a vocação desta pronunciação, dado que o âmbito deste despacho se centra exclusivamente na apreciação de erro de avaliação na prolação do despacho de não admissão do recurso.
Depois é entendimento perfeitamente estabilizado que o Juiz de instrução não está vinculado aos actos de instrução requeridos, podendo e devendo praticar apenas aqueles que considerar necessários a realização das finalidades da instrução. Todos os demais que consideres sem interesse ou que visem protelar o andamento do processo devem ser indeferidos por despacho irrecorrível[2].
Nesta fase não se está perante uma contestação dirigida à acusação ou num pré-julgamento, antes a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Também é jurisprudência absolutamente consolidada que a decisão instrutória é irrecorrível quando pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais.
Neste particular, a circunstância de os termos da pronúncia não serem exactamente os mesmos que constavam da acusação do Ministério Público não tem aqui relevo para o efeito que nos ocupa da irrecorribilidade do respectivo despacho. Na verdade, as modificações operadas foram num sentido de redução do objecto da acusação, ao diminuir o número de crimes que eram imputados ao ora reclamante, mantendo-se no mais toda a factualidade que integrava o libelo acusatório.
Esta posição encontra acolhimento na jurisprudência do Tribunal Constitucional que, faz longo tempo e de forma reiterada, assevera que «a garantia do duplo grau de jurisdição só existe quanto às decisões penais condenatórias e quanto às respeitantes à situação do arguido face à privação da liberdade ou de outros direitos fundamentais, nada obstando a que o direito ao recurso seja restringido ou limitado a certas fases do processo criminal e podendo mesmo tal direito, relativamente a certos actos do juiz, não existir, desde que não se atinja o conteúdo essencial do direito de defesa do arguido.
Não existindo uma real simetria entre os despachos de pronúncia e de não pronúncia, não constitui violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP nem o princípio da igualdade de armas, a circunstância de o n.º 1 do artigo 310.º do CPP estabelecer a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do MP»[3].
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional voltou a assinalar que «tem considerado constitucionalmente admissível, por não configurar uma restrição desproporcionada do direito ao recurso em processo penal, que o legislador, em benefício da celeridade processual, determine a irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação, bem como a irrecorribilidade da decisão instrutória na parte em que decide questões prévias ou incidentais àquele despacho (de pronúncia). Na base dessa jurisprudência constante está o pressuposto de que a natureza meramente provisória do juízo de imputação de factos susceptíveis de integraram a prática de crime que resulta da decisão instrutória de pronúncia permite que qualquer vício ou nulidade que a afecte possa sempre ser ainda devidamente conhecido na fase subsequente de julgamento, concretamente em dois momentos: na sentença que vier a ser proferida após o encerramento da audiência de julgamento ou em sede de recurso a interpor da sentença seja desfavorável ao arguido. Neste âmbito, em coerência, não pode deixar de se entender que o mesmo raciocínio se aplicará à irrecorribilidade do despacho que decida a arguição de vícios (v. g., nulidades) que afetem especificamente a decisão instrutória (…). Decidir o contrário seria, afinal, permitir, por via indirecta, a recorribilidade de uma decisão cuja irrecorribilidade resulta claramente da lei, solução que tem sido constantemente confirmada pelo Tribunal Constitucional como conforme à Constituição»[4].
Tal como consta da decisão de não admissão, o Tribunal Constitucional tem reiteradamente entendido que não é inconstitucional a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, mesmo no segmento decisório atinente a nulidades e outras questões prévias ou interlocutórias[5].
O legislador na revisão operada pela Lei n,º 48/2007, de 29 de Agosto adoptou no que respeita à admissibilidade do recurso do despacho de pronúncia uma solução diversa daquela que se encontrava prevista no texto legal contida na reforma promovida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto[6], entretanto revogada.
Em função disso, ao alargar o âmbito da irrecorribilidade à parte em que aprecia nulidades e outras questões prévias ou incidentais, a jurisprudência fixada nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça n.ºs 6/2000[7] e 7/2004[8] caducou, por esses acórdãos uniformizadores não terem sido editados no domínio da legislação agora vigente e serem incompatíveis com a ratio e a letra da lei actualmente vigente. E, por conseguinte, não merece qualquer reparo a decisão tomada a este propósito pelo Juízo de Competência Genérica de Cuba.
Não existe qualquer outro fundamento da reclamação com a virtualidade de reverter a decisão tomada na Primeira Instância.
Neste espectro lógico-jurídico, deve assim manter-se o despacho de não admissão de recurso, por irrecorribilidade legal, indeferindo-se a pretensão do arguido.
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IV – Sumário: (…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, mantém-se o despacho reclamado, não se admitindo o recurso interposto.
Custas a cargo do arguido, fixando a taxa de justiça em 2 UC´s.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 27/05/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho


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[1] Artigo 310.º (Recursos):
1 - A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas.
3 - É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, Lisboa, págs. 145 e 146.
[3] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 265/94, de 3 de Março, in BMJ 435-432.
[4] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 482/2014, de 25/06/2014, DR, II Série, n.º 143, de 28/07/2014.
[5] Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 216/99, 387/99, 460/08, 247/09, 51/10, 235/10, 430/10, 477/11, 146/12, 265/12, 482/14, 203/16, bem como as Decisões Sumárias 603/14, 799/14 e 78/16.
[6] Artigo 310.º (Recursos):
1 - A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2 - É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior.
[7] DR, série I-A, de 07/03/2000.
[8] DR, série I-A, de 02/12/2004.