Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
451/23.2PBELV-A.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIMES SUBJACENTES
Data do Acordão: 12/05/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: É sabido que o crime de violência doméstica é mais do que a soma das várias condutas (ou de apenas uma, como agora se prevê no nº 1 do artº 152º do Cód. Penal) que constituem o que é habitual denominar-se de crimes subjacentes.
É essencial que com a conduta do agente se pretenda pôr em causa a dignidade pessoal da vítima.

A prova dessa pretensão só pode resultar das circunstâncias de cada caso concreto. Da vivência, actual ou passada entre o agente e a vítima (que se pode reflectir, ou não, em anteriores condenações, da mesma ou semelhante natureza), da intensidade das ofensas, da natureza das ofensas, do carácter público, ou não, das mesmas, da reiteração dessas mesmas ofensas (o acto único não exclui o crime de violência doméstica, mas terá que ser especialmente ponderado para que só por si o preencha).

É do que em cada caso concreto se apurar que há-de resultar, ou não, o que distingue o crime da violência doméstica do somatório dos crimes subjacentes, ou se for esse o caso, do único crime subjacente.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

O arguido AA foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no âmbito do qual foi determinado que aguardasse o decurso do processo em prisão preventiva.

Inconformado com tal, o arguido recorreu, tendo terminado a motivação e recurso com as seguintes conclusões:

“1. A medida de coação de prisão preventiva foi indevidamente aplicada porquanto não se encontram reunidos os requisitos;

2. Os crimes que se mostram indiciados não são os crimes de violência doméstica e ofensa à integridade física qualificada, mas sim ofensa à integridade simples, previsto no art. 143º do Código Penal.

3. O crime de violência doméstica, não exigindo comportamentos reiterados, pressupõe comportamento que se possa qualificar como maus tratos, o que não ocorre com qualquer agressão; ou seja, a configuração do crime pressupõe a existência de maus tratos físicos e psíquicos, ainda que praticados uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, traduzindo, nomeadamente, actos de crueldade, insensibilidade ou vingança da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação.

4. Com efeito, o comportamento do Recorrente no que concerne a BB, nomeadamente, pelo facto de se ter tratado de um episódio isolado, do tipo de agressões em causa, entendemos que a intensidade das mesmas até pelas lesões delas resultantes não ofende significativamente a dignidade da vítima.

5. Deste modo, a conduta do arguido ainda que penalmente relevante, não assumiu a gravidade necessária para que possa ser enquadrada como maus-tratos ou transcenda o âmbito do crime de ofensa à integridade física.

6. Pelas mesmas razões se entende que as circunstâncias da agressão não revelam a especial censurabilidade ou perversidade que determinariam a qualificação da ofensa à integridade física.

7. Assim sendo, entendemos que os factos indiciados se reconduzem ao crime de ofensa à integridade física simples, previsto no art. 143º do Código Penal e não ao crime de violência doméstica previsto no art. 152º do mesmo diploma.

8. No que concerne a CC, o Arguido admitiu tê-la empurrado com mão e esta ter caído ao chão.

9. A verificação de qualquer das circunstâncias exemplificadas no n.º 2 do art. 132º constitui só um indício da existência da especial censurabilidade ou perversidade, podendo negar-se este maior grau de culpa, apesar da presença de uma das referidas circunstâncias, e concluir-se pela especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, pela qualificação do homicídio, apesar de se negar a presença de qualquer dessas circunstâncias, se ocorrer outra valorativamente análoga, pelo que, in casu, seria necessário que a conduta do Recorrente evidenciasse especial perversidade ou censurabilidade, sendo certo que, considerando o modus operandi e consequências do mesmo, não revestem a censurabilidade e perversidade necessárias para que se possa qualificar o crime.

10. Pelo que, entendemos que aqui se encontra indiciada a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto no art. 143º do Código Penal e não o crime qualificado previsto no art.145º e 132º nº 2 alínea g) do Código Penal.

11. A aplicação da prisão preventiva depende da existência de fortes indícios da prática do crime de um dos crimes elencados nas alíneas do art. 202º do Código do Processo Penal.

12. Considerando o supra exposto, no presente caso e considerando o crime de ofensa à integridade física simples, a prisão preventiva não pode ser aplicada por não se subsumir a nenhuma das alíneas do nº 1 do art. 202º do Código do Processo Penal, nomeadamente pelo facto de a pena máxima aplicável ser inferior a cinco anos e por não se inserir no conceito de criminalidade violenta.

13. Pelo que, a medida de coação aplicada in casu é ilegal, devendo ser revogada.

14. Sem conceder e por mera cautela, ainda que se considere que os crimes que se consideram indiciados são violência doméstica e ofensa à integridade física qualificada, a verdade é que a medida de coação é excessiva e desnecessária, havendo outras que seriam suficientes para acautelar as necessidades cautelares que no caso se fazem sentir.

15. Com efeito, as medidas de coacção visam a descoberta da verdade, através do normal desenvolvimento do processo, sendo meros instrumentos processuais da eficácia do procedimento penal e da boa administração da justiça.

16. O Arguido, em sede de interrogatório judicial, confessou parcialmente os factos que se encontram indiciados nos presentes Autos, nomeadamente e para o que aqui nos interessa, tendo referido que, encontrou a Ofendida a traí-lo com outra pessoa e “perdeu a cabeça”.

17. Ao contrário do que refere o despacho recorrido, o Arguido não procurou desculpabilizar o seu comportamento nem culpar a vítima, este apenas referiu que o facto de ter presenciado aquela situação fez com que perdesse a cabeça, agindo a sangue quente e sem conseguir raciocinar devidamente.

18. O Arguido reconheceu que o comportamento assumido foi absolutamente inadmissível e injustificado, repetindo por diversas vezes ao Tribunal que não era aquela pessoa.

19. Por sua vez, este referiu já pretender separar-se da vítima BB antes do ocorrido no dia 2 de Setembro, estando já a diligenciar no sentido de se mudar para …, onde já teria emprego e local para residir.

20. Quanto a nós, não se mostra suficientemente indiciado que este episódio não se tivesse tratado de um acto isolado, porquanto o Arguido não admitiu a existência de discussões e agressões anteriores, sendo que, o Proc. … foi arquivado.

21. Efectivamente, esta situação teve um significativo impacto no Arguido, que nunca tinha sido condenado, ou sequer julgado num processo-crime, de modo que, apreendeu a necessidade de levar uma vida conforme o direito e pediu uma oportunidade ao Tribunal.

22. O Recorrente evidenciou, assim, ter sentido critico e reconhecer o desvalor das suas condutas.

23. O Recorrente tem um emprego e encontra-se inserido socialmente.

24. A liberdade das pessoas só pode ser limitada total ou parcialmente em função das exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e garantia patrimonial previstas na lei, estando subjacente à respectiva aplicação, os princípios da adequação e proporcionalidade, devendo reservar-se a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação para as situações em que as demais medidas se revelem inadequadas ou insuficientes (artigo 193º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal).

25. Por sua vez, nenhuma medida de coação, à exceção do termo de identidade e residência, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação, fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue em atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem ou tranquilidade públicas (artigo 204º do Código de Processo Penal).

26. Apreciando os pressupostos do art. 204º do Código do Processo Penal, no que respeita ao perigo de fuga, deverá tratar-se de um perigo concreto, ou seja, de um perigo não abstratamente presumido e, sim, concretamente justificado, sendo que, os elementos objetivos do receio de fuga não poderão deixar de assentar num juízo de avaliação da realidade hipotética, de forma que, a mera possibilidade de futura condenação em pena de prisão não permite concluir pela existência de um concreto perigo de fuga, na mesma medida em que nem mesmo a ocorrência dessa condenação o permite.

27. Não obstante a nacionalidade do Recorrente ser brasileira, a verdade é que este tem emprego e os seus filhos em Portugal, pelo que, não se afigura que este abandone o país.

28. Relativamente ao perigo de perturbação do inquérito, este deve também ser aferido de forma concreta, sendo certo que, in casu, já consta do processo muita prova documental, para além da confissão do Recorrente, de forma que, não se vislumbra o que poderá indiciar de forma concreta que este poderá perturbar o inquérito.

29. De outro modo, o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas há-de resultar do perigo baseado em factos capazes de mostrar que a libertação do arguido poderia efectivamente perturbar a ordem pública, não sendo suficiente uma qualquer “inquietação social”.

30. Por fim, no que respeita à continuação da actividade criminosa, cumpre mencionar o seguinte, o Recorrente não tem antecedentes criminais e sentiu-se intimidado, sofrendo um impacto com o sistema judicial, temendo as consequências que podem advir dos presentes Autos, não havendo razão concreta para crer que não conseguirão a partir, deste momento, viver uma vida conforme o Direito.

31. Por outro lado, o Recorrente mostrou-se arrependido, reconhecendo o desvalor do seu comportamento e admitiu já ter emprego na cidade de …, para onde se pretendia mudar.

32. Por sua vez e em função de tudo o exposto, afigura-se que a prisão preventiva é excessiva e inadequada in casu, sendo suficientes outras medidas, não restritivas da liberdade, para satisfazer as necessidades cautelares do processo, nomeadamente, apresentações periódicas, proibição de contactos com a vítima, proibição de frequentar certos locais ou imposição de certas regras de conduta.

33. Deste modo, considerando tudo o referido, entendemos que a medida de coação é ilegal por desproporcional e excessiva às necessidades cautelares que no caso se fazem sentir.

34. O douto despacho recorrido fez incorrecta apreciação dos factos e violando os artigos 32º nº 2, 27º e 28º da Constituição da República Portuguesa, e os artigos 193º, 202º e 204º do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que altere a medida de coacção de prisão preventiva.

35. Devendo assim, ser o douto despacho recorrido, revogado e substituído por outro que altere a medida de coacção de prisão preventiva, aplicando outra menos gravosa, e consequentemente, ordenando a libertação imediata do Recorrente, devendo aguardar os ulteriores trâmites do processo em liberdade.

Termos em que e nos mais de direito que V. Exas. muito doutamente suprirão, face ao exposto, deve o douto despacho, ora recorrido, ser revogado e substituído por outro que sanando os vícios identificados altere a medida de coacção de prisão preventiva, aplicando outra menos gravosa, e consequentemente, ordenando a libertação imediata do Recorrente, devendo aguardar os ulteriores trâmites do processo em liberdade, assim fazendo V. Exas. a devida e esperada, JUSTIÇA!”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta nos seguintes termos:

“Não deve a nosso ver ser dado provimento ao recurso interposto pelo arguido, devendo manter-se inalterada a douta decisão recorrida

Todavia, estamos cientes que Vªas Exªs, como sempre, farão a sempre esperada JUSTIÇA”

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Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada resposta.

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APRECIAÇÃO

A única questão que importa apreciar no presente recurso é a que se prende com o estatuto coactivo do arguido.

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O despacho recorrido é do seguinte teor:

“O arguido prestou declarações sobre os factos assumindo parte da factualidade em causa, dando-lhe, no entanto, outros contornos que, em seu entender, desculpabilizam o seu comportamento, atribuindo a culpa dos mesmos à vítima e às infidelidades da mesma. Admitiu ter agredido a vítima nas circunstâncias de tempo e lugar descritas nos autos, provocando-lhe as lesões visíveis nas fotos juntas. Admitiu ainda ter empurrado a sua enteada, afirmando que não teve intenção de a agredir.

Sucede que dos elementos probatórios recolhidos até ao momento é possível concluir que o arguido praticou os factos elencados na promoção do Ministério Público, atento o teor dos autos de inquirição e demais prova documental.

Tais factos afiguram-se consubstanciadores da prática pelo arguido, em autoria material, e concurso efectivo de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 145.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal ex vi art.º 132.º, n.º 2, al. g) do Código Penal. Crimes esses puníveis com pena de 1 a 5 anos de prisão e prisão até 4 anos.

Cumpre agora decidir qual a medida de coacção a que deverá ficar sujeito o arguido.

É manifesto que se verifica, no caso em apreço, um forte perigo de continuação da actividade criminosa, atenta a natureza dos crimes e as circunstâncias em que foram praticados. Efectivamente, a natureza dos crimes em causa faz prever a efectiva verificação de perigo de continuação da actividade criminosa, já que a reiteração de condutas criminosas se mostra facilitada pelo facto de vítima e agressor viverem na mesma casa. Por outro lado, o arguido não demonstrou ter interiorizado a reprovabilidade da sua conduta, pelo contrário, declarou que a vítima lhe foi infiel e que foi isso que motivou a agressão. Acresce que a denúncia e a sujeição do arguido a um procedimento criminal poderá levar a que este exerça represálias sobre a esposa. Por outro lado, o arguido terá tomado, agora, consciência, da vontade da vítima de se separar, o que também é potenciador de comportamentos agressivos. São inúmeros os casos em que após a separação, ou na eminência da mesma, se assiste a uma escalada da violência por parte do agressor, culminando, não poucas vezes, com agressões graves à vítima ou mesmo até a morte. Da factualidade indiciada resulta essa mesma escalada de violência, com a adopção por parte do arguido de comportamentos cada vez mais gravosos, culminando com a agressão ocorrida na noite de sábado, a qual só cessou mediante a pronta intervenção policial. Importa também considerar a avaliação de risco efectuada pela entidade policial com a classificação de risco elevado e bem assim as declarações da vítima, a qual referiu ter medo que o arguido atente contra a sua vida.

Por outro lado, existe perigo de fuga. Efectivamente, o arguido tem nacionalidade brasileira e embora esteja empregado, nada impedirá que o mesmo, sendo alvo de um procedimento criminal e na eminência de sofrer uma sanção penal, se coloque em paradeiro incerto, mormente no Brasil, sem possibilidade de extradição com vista ao seu julgamento em Portugal.

Existe ainda perigo de perturbação do inquérito, na medida em que o arguido poderá exercer influência junto das vítimas para que alterem o seu depoimento, no sentido de falsearem factos ou até a recusarem-se a depôr.

O arguido não tem outros familiares em Portugal, para além dos filhos menores. Está empregado, possuindo meios próprios de subsistência. Não tem antecedentes criminais registados.

Em primeiro lugar cumpre salientar que o crime em causa insere-se no conceito de criminalidade violenta, pelo que é admissível a aplicação de qualquer uma das medidas de coacção previstas na lei (cfr. art.º 1.º, al. j) do CPP).

No nosso ordenamento jurídico, a privação da liberdade tem carácter excepcional, como decorre do disposto no artigo 28.º da Constituição da República Portuguesa e do preceituado no artigo 193.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Por isso, as medidas de coacção privativas da liberdade só podem ser aplicadas quando as outras medidas de coacção se revelarem inadequadas ou insuficientes para satisfazer as exigências cautelares que no caso se impõem.

Afigura-se, porém, que a medida de coacção promovida pela defesa é insuficiente para acautelar as necessidades cautelares que no caso se fazem sentir.

A proibição de contactos, ainda que com recurso a meios de controlo à distancia tem oferecido fraca protecção às vítimas de violência doméstica, em casos de agressões graves, como é o caso. Acresce a personalidade do arguido, revelada não só na conduta que adoptou para com a vítima BB, mas também no teor das declarações que prestou no presente interrogatório.

Por outro lado, a obrigação de permanencia na habitação, ainda que com vigilância electrónica também não é suficiente para o caso concreto. Basta que a pulseira seja danificada para que o arguido se coloque em local incerto e a vítima fique à sua mercê.

A ofendida encontra-se ainda debilitada a recuperar em casa, atenta a gravidade das lesões que sofreu.

Cabe ao Estado, em obediência ao principio da proporcionalidade, ponderar os intereses da vítima e o direito à liberdade dos arguidos, sendo apenas admissível sacrificar o segundo, quando inexista outro meio adequado a salvaguardar a integridade física ou vida da vítima.

Assim e porque adequada às necessidades cautelares do caso e proporcional à gravidade do crime e sanção que previsivelmente será aplicada ao arguido, decide-se sujeitá-lo às seguintes medidas de coacção, tudo ao abrigo do preceituado nos artigos 191.º, 193.º, 196.º, 202.º, n.º 1, al. b) e 204.º, alíneas a) b) e c), todos do Código de Processo Penal:

a) TIR (já prestado);

b) Prisão preventiva.”

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Os factos elencados na promoção do Ministério Público são os seguintes:

“1. O arguido AA e a ofendida BB são casados entre si, tendo fixado residência na Rua …, ….

2. Desta relação nasceram DD (em …/…/2015) e EE (em …/…/2018), sendo que a ofendida tem ainda uma filha de outro relacionamento, esta de nome CC (nascida a …/…/2002).

3. De algum tempo a esta data, não concretamente apurado, o relacionamento do casal tem-se vindo a degradar, sobretudo em função de desconfianças do arguido quanto a relações extraconjugais da sua esposa.

4. Tal contexto terá originado discussões frequentes entre o casal, com referência a agressões físicas perpetradas pelo arguido contra a pessoa da sua esposa, o que inclusivamente deu já origem a inquérito de natureza similar sob o NUIPC: …, por factos datados de 09/12/2022, o qual se encontra arquivado.

5. Na presente data, 02/09/2023, pelas 04h20m, o arguido, inconformado com o facto de a esposa ter manifestado pretender separar-se do mesmo, surpreendeu BB, juntamente com a filha desta, CC, e um amigo, FF, quando estavam a abandonar o …, onde tinha decorrido um torneio desportivo, encontrando-se os mesmos junto ao portão que dá acesso direto à Avenida … da referida urbe.

6. Logo que viram o arguido a dirigir-se ao local onde se encontravam, BB e CC tentaram encetar fuga, tendo então aquele verbalizado «suas vagabundas, venham cá, suas putas, não fujam» e, de imediato, alcançou a ofendida BB, agarrando-a pelos cabelos, erguendo-a e jogando-a ao chão, num movimento brusco e contínuo.

7. No momento em que CC tentou afastar o arguido da sua mãe BB, aquele empurrou-a com violência, fazendo com que caísse igualmente desamparada no solo.

8. Ato contínuo, e uma vez desembaraçado da oposição da ofendida CC, o arguido agarrou novamente, pelos cabelos, a ofendida BB e arrastou-a pelo chão, seguindo na direção do centro histórico da cidade.

9. Enquanto a arrastava pelo chão, foi-lhe desferindo um número não concretamente apurado de bofetadas na face e socos na cabeça.

10. A dada altura, quando o arguido chegou, ainda a arrastar a ofendida BB, numa nova tentativa de o afastar da sua mãe BB, ao que foi uma vez mais projetada, pelo mesmo, com violência, em direção ao solo, onde permaneceu prostrada e inconsciente durante alguns instantes.

11. Aproveitando tal circunstância, o arguido agarrou novamente a ofendida BB, pelos cabelos, arrastando-a pelo chão, na direção da Avenida …, ao mesmo tempo que a continuava a agredir com socos, em número indeterminado, sobretudo direcionados à zona da cabeça.

12. O arguido arrastou a ofendida BB, pelos cabelos, num percurso de cerca de 600 metros, durante o qual a agrediu insistentemente com socos na cabeça e bofetadas na face e a apodou de «puta, vagabunda e vadia».

13. E manteve tal comportamento pese embora as instâncias da ofendida CC e da testemunha FF para que cessasse as agressões e ainda que tivesse sido percetível que a BB já não tinha condições sequer de se manter de pé, encontrando-se completamente incapaz de oferecer qualquer resistência, permanecendo prostrada no solo, sem a mínima reação.

14. O arguido só cessou as agressões à ofendida BB em virtude da intervenção dos agentes da P.S.P., que acorreram ao local, alertados por FF.

15. Em virtude da atuação do arguido, as ofendidas necessitaram de receber assistência médica, pelo que foram transportadas ao serviço de urgência do Hospital de …, onde deram entrada pelas 05h21m e 05h23m, sob os episódios clínicos n.ºs … e ….

16. Como consequência direta e necessária da atuação do arguido, resultaram para a ofendida BB fenómenos dolorosos e ferimentos (escoriações) predominantemente ao nível da cabeça (nomeadamente na testa), costas e em ambos os joelhos, bem assim o ter-se sentido humilhada e vexada e sentido receio pela sua integridade física e vida.

17. Como consequência direta e necessária da atuação do arguido, resultaram para a ofendida CC, fenómenos dolorosos e ferimentos (escoriações) ao nível da cabeça e face (boca e sobrolho direito), bem assim o ter sentido receio pela sua integridade física.

18. O arguido sabia que, ao praticar os factos descritos quanto à ofendida BB, sua esposa, atentava contra o seu corpo e saúde física e psíquica, bem assim contra a sua consideração e dignidade; o que quis e concretizou.

19. Não se coibindo o arguido de a agredir na via pública e na presença de terceiros, cujas instâncias para cessar as agressões ignorou; intentando assim atingi-la também na sua dignidade pessoal, o que quis e concretizou.

20. Mais sabia o arguido que, ao praticar os factos descritos contra a ofendida CC, e como queria, lesava o seu corpo e a sua saúde, o que concretizou.

21. E fê-lo no intuito de facilitar e continuar na senda da consumação das agressões físicas à pessoa da ofendida BB, assim afastando a oposição da ofendida CC para execução dos seus intentos.

22. Em tudo, agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, tendo tido a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação e, ainda assim, não se coibiu de tais comportamentos.”

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No que se refere à vítima BB, o recorrente entende que a correcta qualificação jurídica dos factos leva a que os mesmos se enquadrem não como crime de violência doméstica mas sim como crime de ofensa à integridade física simples, pelo que não é admissível a aplicação da prisão preventiva.

No seu entender o único acto praticado não é suficientemente grave para que seja considerado como crime de violência doméstica.

Vejamos, então:

É sabido que o bem jurídico protegido pela incriminação do artº 152º do Cód. Penal como bem escreve o Prof. Taipa de Carvalho (in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Coimbra Editora, Tomo I, pág. 332), trata-se de “bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que (…) afetem a dignidade pessoal do cônjuge”.

A ratio do tipo legal de crime previsto no artigo 152º do Código Penal não está, pois, “na proteção da comunidade familiar, conjugal (...), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana”. (ob. e loc. citados)

É sabido também que o crime de violência doméstica é mais do que a soma das várias condutas (ou de apenas uma, como agora se prevê no nº 1 do artº 152º do Cód. Penal) que constituem o que é habitual denominar-se de crimes subjacentes.

É essencial que com a conduta do agente se pretenda pôr em causa a dignidade pessoal da vítima.

A prova dessa pretensão só pode resultar das circunstâncias de cada caso concreto. Da vivência, actual ou passada entre o agente e a vítima (que se pode reflectir, ou não, em anteriores condenações, da mesma ou semelhante natureza), da intensidade das ofensas, da natureza das ofensas, do carácter público, ou não, das mesmas, da reiteração dessas mesmas ofensas (o acto único não exclui o crime de violência doméstica, mas terá que ser especialmente ponderado para que só por si o preencha), etc., etc..

É do que em cada caso concreto se apurar que há-de resultar, ou não, o que distingue o crime da violência doméstica do somatório dos crimes subjacentes, ou se for esse o caso, do único crime subjacente.

Conforme refere Nuno Brandão (in “A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica”, Revista Julgar, nº 12, pág. 19), no crime de violência doméstica “devem estar em causa atos que, pelo seu carácter violento, sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima”, sendo ainda necessária a avaliação da “situação ambiente” e da “imagem global do facto” para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão.”

Assim sendo, se, por um lado, nem todas as ofensas (maus-tratos, no dizer do nº 1 do artº 152º do Cód. Penal) constituirão crime de violência doméstica, por outro lado, serão mais os casos em que se mostram preenchidos os elementos necessários para se concluir pelo crime de violência doméstica. E foi com esse objectivo que se passou a prever o crime de violência doméstica, punindo mais gravemente o que é mais grave.

Como bem se refere no sumário do ac. do S.T.J. de 20/4/2017 (relatado pelo Exmº Cons. Nuno Gomes da Silva):

“VI - Na identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos no crime de violência doméstica generalizadamente, se apontam como carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 152º o que não significa porém, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que nela se insere, individualmente considerada.

VII - A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto. - Mas pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc. Serão estes os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.”

Mas a referida relação do domínio da vítima relativamente ao agente, terá que resultar também das circunstâncias concretas de cada caso, tendo em conta o que acima se referiu.

A relação de domínio tem que ser entendida de forma razoável, no sentido atrás referido, e não no sentido de permanentemente ocorrer uma situação de total subjugação da vítima.

É para este tipo de situações que o crime de violência doméstica também foi previsto; não foi só para os casos de maus tratos com intensidade superior e com consequências bem mais gravosas, designadamente físicas.

Como bem se refere no Código Penal Anotado e Comentado de Vítor Sá Pereira e Alexandre Lafayette, pág. 404, em anotação ao artº 152º do Cód. Penal: “O nº 1 estabelecia, no Projecto e na Proposta de Lei referidos, supra, em 3., um elemento redutor, exigindo que os maus tratos ocorressem «de modo intenso e reiterado». (…). As dificuldades oriundas da redução em causa, entretanto, foram superadas na redacção em último termo adoptada para o nº 1. De facto, não se exige mais «modo intenso e reiterado». Cura-se, realmente, dum mais vasto, e não reduzido ou limitado, «modo reiterado ou não»”.

Também como bem se refere no ac. deste tribunal da Relação de 14/1/2014, relatado pela agora Juiz Conselheira Ana Brito:

“(…) também por Plácido Conde Fernandes recorda que o presidente da Unidade de Missão encarregue da reforma de 2007 ao Código Penal, em diversas conferências sobre essa revisão, esclareceu que “não se pretendia transformar qualquer ofensa e ameaça – crime de natureza semipública – em crime de maus tratos com moldura penal reforçada e natureza pública, apenas pelo facto de ocorrerem no âmbito de uma relação afectiva. Mantinha-se a situação em vigor, apenas com a clarificação de que a reiteração não é exigida desde que a conduta maltratante seja especialmente intensa” (Revista do CEJ, nº 8).

Assim, o tipo abrange as situações de violência familiar reveladoras de um abuso de poder nas relações afectivas, degradante da integridade pessoal da vítima.

Tutela-se a integridade da pessoa em determinada relação afectiva, no caso, a dignidade da pessoa no casal conjugal.

Esta necessidade de protecção perdura (e intensifica-se mesmo) nas situações de ruptura do casamento ou da relação.

A ratio do tipo não reside, porém, na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas na protecção da pessoa individual que a integra, na tutela da sua dignidade humana.

Protege-se o bem jurídico “saúde”, e não apenas a integridade física.

O bem jurídico (saúde) abrange a saúde física, psíquica e mental (assim, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2012, p. 512).

Ora, se é certo que actualmente não se exige a reiteração, quando se trata de apenas um acto não é menos certo que, como refere Nuno Brandão, “A tutela especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar n.º 12, pág. 22, “o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima”.

No caso dos autos está indiciada, em síntese, a prática pelo arguido do seguinte:

Em 2/9/2023, pelas 4h20m, o arguido, na via pública, num primeiro momento dirigiu às vítimas as expressões «suas vagabundas, venham cá, suas putas, não fujam».

De seguida, ao arguido agarrou BB pelos cabelos, ergueu-a e jogou-a ao chão, num movimento brusco e contínuo.

Depois de empurrar a vítima CC, o arguido voltou a agarrar BB pelos cabelos, arrastou-a pelo chão, seguindo na direcção do centro histórico de …, e enquanto a arrastava desferiu-lhe bofetadas na face e socos na cabeça.

De seguida, mais uma vez depois de afastar a vítima CC, o arguido novamente agarrou BB pelos cabelos, arrastando-a pelo chão, na direção da Avenida …, ao mesmo tempo que a continuava a agredir com socos, em número indeterminado, sobretudo direcionados à zona da cabeça.

O arguido arrastou a ofendida BB, pelos cabelos, num percurso de cerca de 600 metros, durante o qual a agrediu insistentemente com socos na cabeça e bofetadas na face e a apodou de «puta, vagabunda e vadia».

Só com a intervenção a G.N.R. o arguido cessou o seu comportamento.

Temos, portanto, que apesar da conduta “continuada” do arguido, tudo ocorreu numa única ocasião.

Trata-se, assim, apenas de um acto, embora com concretização continuada e variada (expressões ditas, arrastamento, socos, bofetadas).

Diga-se, desde já, que a referência feita no despacho recorrido – “Da factualidade indiciada resulta essa mesma escalada de violência, com a adopção por parte do arguido de comportamentos cada vez mais gravosos, culminando com a agressão ocorrida na noite de sábado…”, não tem qualquer fundamento válido.

Com efeito, o que está indiciado é que:

“3. De algum tempo a esta data, não concretamente apurado, o relacionamento do casal tem-se vindo a degradar, sobretudo em função de desconfianças do arguido quanto a relações extraconjugais da sua esposa.

4. Tal contexto terá originado discussões frequentes entre o casal, com referência a agressões físicas perpetradas pelo arguido contra a pessoa da sua esposa, o que inclusivamente deu já origem a inquérito de natureza similar sob o NUIPC: …, por factos datados de 09/12/2022, o qual se encontra arquivado”

Ora, com o devido respeito, isto é o mesmo do que nada.

Referência a “agressões físicas perpetradas” que deram origem a um inquérito que foi arquivado é como se não existissem. Como se sabe, só com a decisão condenatória transitada em julgado é que se pode apelar a quaisquer comportamentos anteriores por parte do arguido.

Não há, assim, qualquer fundamento legal para considerar eventuais comportamentos agressivos anteriores por parte do arguido, seja para a qualificação dos factos, seja para a escolha da medida de coacção a aplicar, como adiante melhor se verá.

Fiquemos, assim, apenas com o que ocorreu no dia 2/9/2023.

E o que ocorreu reveste gravidade suficiente para que se considere que os actos praticados consubstanciam um crime de violência doméstica.

Desde logo porque o arguido não só agrediu fisicamente a vítima, como lhe dirigiu expressões injuriosas: “vagabunda”, “puta” “vadia”.

Por outro lado, e mais importante do que isso, as agressões físicas revestiram-se de violência acentuada, nas quais se destaca o arrastamento pelos cabelos, no total de 600 metros, com o concomitante desferimento de socos e bofetadas.

O arguido demonstrou um ímpeto violento muito expressivo, “desembaraçando-se” por duas vezes da vítima CC e persistindo no seu comportamento agressivo.

Acresce que, também com especial relevância, as agressões ocorreram na via pública, desconhecendo-se, no entanto, se foram, ou não, presenciadas por muitas pessoas, sendo certo que eram 4,20h.

Seja como for, o que é certo é que as agressões ocorreram em local público.

Do exposto, concluiu-se que apesar de estarem em causa apenas os factos ocorridos em 2/9/2023, os mesmos revestem gravidade suficiente para que se considere que o crime indiciado, relativamente à vítima BB é efectivamente o de violência doméstica.

Entende também o recorrente que os factos relativamente à vítima CC (filha da vítima BB) consubstanciam um crime de ofensa à integridade física simples e não um crime de ofensa à integridade física qualificada como se entendeu no despacho recorrido.

O despacho recorrido limita-se a fazer referência à al. g) do nº 2, do artº 132º do Cód. Penal, sem tecer quaisquer outras considerações.

Como se sabe, as circunstâncias qualificativas previstas no referido nº 2 não são de funcionamento automático, pois torna-se necessário fazer um juízo de especial censurabilidade ou perversidade, tal como, aliás, resulta expressamente do nº 2 do artº 145º do Cód. Penal, reiterando o que consta no corpo do nº 2 do artº 132º do mesmo Código.

No caso em apreço, o que ocorreu é que por duas vezes, e com o objectivo de continuar a agredir a vítima BB, o arguido empurrou a vítima CC que caiu ao solo.

Temos, portanto, que se terá entendido que ocorreu especial censurabilidade e que se pretendeu com os empurrões “facilitar” as agressões que estavam a ser cometidas na pessoa da mãe da referida vítima CC, ou até que se pretendeu continuar a “executar” essas mesmas agressões.

Seja como for, não parece que o comportamento do arguido revista essa especial censurabilidade de modo a qualificar o seu comportamento no que à vítima CC se refere.

O arguido pretendeu “remover” o obstáculo que se apresentava à continuação da sua conduta agressiva, não mais do que isso, tendo-se limitada a empurrar a vítima.

Assim sendo, embora isso seja indiferente para o estabelecimento do estatuto coactivo do arguido, uma vez que mesmo que se entenda que quanto a isto a conduta do mesmo é qualificada, não é este crime que possibilita a aplicação da prisão preventiva, conclui-se que, quanto à vítima CC, o crime indiciado é o de ofensa à integridade física simples.

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Posto isto, vejamos agora qual a medida de coacção que se entende como mais adequada.

Para que seja aplicada uma medida de coacção, qualquer que ela seja, tem que ocorrer, pelo menos, uma das seguintes situações, tal como previsto no artº 204º do C.P.P.:

- fuga ou perigo de fuga;

- perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova;

- perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas.

Como refere Paula Marques Carvalho, As medidas de coacção e de garantia patrimonial, pág. 50 “é a existência, em concreto, de qualquer dos perigos enunciados no artº 204º e não a gravidade do crime indiciariamente cometido, que fundamenta a imposição de medidas de coacção”.

A gravidade do crime em abstracto a nada pode conduzir em termos de escolha da medida de coação a aplicar, mas, como o próprio artº 193º, nº 1, do C.P.P. refere, tal gravidade por relação com os factos concretos indiciados, deve ser considerada na apreciação dos princípios aí definidos – necessidade, adequação e proporcionalidade - , desde logo porque existe também uma relação entre a gravidade dos factos concretos e as sanções que previsivelmente serão aplicadas.

Também se sabe que para a aplicação da medida de prisão preventiva – a mais gravosa das previstas da lei, por ser a mais restritiva da liberdade das pessoas – para além dos requisitos gerais têm que se verificar ainda outros pressupostos.

A excepcionalidade da prisão preventiva resulta de vários preceitos legais.

Desde logo, dispõe o artº 28º, nº 2, da C.R.P. que a prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.

Trata-se de um dos corolários do princípio da presunção de inocência consagrado no artº 32º, nº 1, da C.R.P.

Não tendo o arguido sido sujeito ainda a uma decisão condenatória definitiva, devem os seus direitos fundamentais, e de entre eles, um dos mais importantes que é o direito à liberdade, ser coarctados apenas se tiverem verificados determinados requisitos que são manifestamente restritivos.

O carácter excepcional da medida de prisão preventiva resulta também dos artºs 202º e 193º, nº 2, do C.P.P, o qual atribui também carácter excepcional à medida de obrigação de permanência na habitação.

E se a medida de prisão preventiva já devia ser encarada como excepcional antes da reforma do C.P.P. introduzida pela L. 48/07 de 29/8, ainda mais excepcional deve agora ser entendida.

Por outro lado, com a introdução do nº 3 do artº 193º do C.P.P., operada pela referida L. 48/07 de 29/8, o legislador veio claramente demonstrar que, apesar do carácter excepcional de ambas as medidas de coacção referidas – prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação – deve ser dada preferência a esta última.

Na verdade, aí se dispõe que “quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ele se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares”.

Acresce ainda que com a nova redacção dada ao artº 193º, nº 1, do C.P.P., com o aditamento da palavra “necessárias” ficou mais claramente expresso o princípio da necessidade, assim definido no dizer do Prof. Paulo Albuquerque, Comentário ao C.P.P., pág. 547: “O princípio da necessidade consiste em que o fim visado pela concreta medida de coacção ou de garantia patrimonial decretada não pode ser obtido por outro meio menos oneroso para os direitos do arguido.”

No despacho recorrido entendeu-se que ocorriam perigos previstos nas três alíneas do nº 2 do artº 204º do C.P.P.: perigo de fuga, perigo de perturbação do inquérito e perigo de continuação da actividade criminosa.

Reitera-se aqui o que já acima se referiu quanto à “suposta escalada da violência por parte do arguido”.

“Escalada de violência” com base num inquérito que foi arquivado não é legalmente possível concluir no nosso ordenamento legal e constitucional, no qual vigora, como, estamos certos, todos sabemos, o princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado de decisão condenatória.

Assim sendo, embora se possa concluir que poderá haver algum perigo de continuação da actividade criminosa, nunca o mesmo se poderá concluir pela existência de factos anteriores.

O perigo de fuga parece também algo mitigado, pois que a mera nacionalidade brasileira do arguido, só por si, não significa perigo de fuga.

O perigo de perturbação do inquérito efectivamente ocorre pois que facilmente o arguido poderá condicionar os depoimentos de ambas as vítimas, mesmo que os mesmos já tenham sido prestados em sede de inquérito, pois que pode acontecer que os mesmos tenham que ocorrer novamente.

Assim sendo, admitindo que embora em grau menos acentuado do que o que transparece do despacho recorrido, há que aplicar medida de coacção, destinada a tentar evitar a concretização dos referidos perigos.

Ora, perante as referências que acima se deixaram feitas a propósito da prisão preventiva, entende-se que a mesma se mostra desproporcionada, quer relativamente às sanções que previsivelmente serão aplicadas, quer porque existem outras formas de cuidar da não concretização dos referidos perigos.

Refere-se no despacho recorrido que o arguido e a vítima residem na mesma casa, mas tal pode ser evitado com outro tipo de medidas, como adiante se determinará, uma vez que se desconhece qual é a actual situação, para além do anunciado pelo arguido na motivação de recurso: “pretender separar-se da vítima BB antes do ocorrido no dia 2 de Setembro, estando já a diligenciar no sentido de se mudar para …, onde já teria emprego e local para residir.”

Atente-se que na “apresentação” do arguido feita pelo Ministério Público, o mesmo surge como residente em … e no auto de interrogatório judicial surge como residente em ….

O arguido é primário e no despacho recorrido refere-se que o mesmo trabalha.

Ponderando tudo o referido, entende-se como adequado que o arguido aguarde o decurso do processo em liberdade, ficando sujeito às seguintes medias de coacção, para além das que decorrem do t.i.r. já prestado:

- obrigação de se apresentar duas vezes por semana na entidade policial da área da sua residência (artº 198º, nºs e e 2, do C.P.P.);

- obrigação de não permanecer na área do concelho de residência da vítima BB (artº 200º, nº 1, al. a), do C.P.P.) e de não se aproximar dessa mesma residência (artº 31º, nº 1, al. c), da L. 112/2009 de 16/9)

- proibição de contactar com a vítimas BB e CC, proibição esta que deverá ficar sujeita a vigilância electrónica (artº 200º, nºs 1, al. d), e 5, do C.P.P.), no que diz respeito à vítima BB;

- probição de ausentar para se ausentar para o estrangeiro (artº 200º, nº 1, al. b), do C.P.P., devendo proceder de imediato à entrega no tribunal do passaporte ( nº 3 do referido artº 200º).

Importa referir que se justifica a proibição de contactos também com a vítima CC (cfr. artº 31º, nº 1, al. d) da referida Lei 112/2009 de 16/9) de modo a mais facilmente se evitar o perigo de eventual constrangimento do arguido relativamente à mesma no que diz respeito ao seu depoimento.

Por outro lado, quanto à vítima BB:

- o referido controlo por meios técnicos à distância é imprescindível para protecção da referida vítima;

- nos termos do nº 7 do artº 36º da Lei 112/2009 de 16/9 consideram-se dispensados os consentimentos para a utilização dos referidos meios técnicos, sendo certo que a protecção da vítima os exige, pois que sem os mesmos a proibição de contactos torna-se facilmente “violável”.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, decidem:

- alterar o estatuto coactivo do arguido AA, revogando a medida de coacção de prisão preventiva;

- aplicar ao arguido as seguintes medidas de coacção:

obrigação de se apresentar duas vezes por semana na entidade policial da área da sua residência;

obrigação de não permanecer na área do concelho de residência da vítima BB e de não se aproximar dessa mesma residência;

proibição de contactar com a vítimas BB e CC, proibição esta que deverá ficar sujeita a vigilância electrónica, no que diz respeito à vítima BB;

probição de se ausentar para o estrangeiro, devendo proceder de imediato à entrega do passaporte no tribunal.

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Emita mandados para libertação imediata do arguido.

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Oportunamente, na 1ª instância deverá proceder-se à comunicação a que alude o nº 6 do artº 200º do C.P.P..

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Sem tributação, uma vez que não ocorreu decaimento total no recurso.

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Évora, 5 de Dezembro de 2023

Nuno Garcia

Maria Margarida Bacelar

Artur Vargues