Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
528/17.3T9CTX.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: OFENSA A PESSOA COLECTIVA
FACTOS VERDADEIROS
FACTOS REPUTADOS COMO VERDADEIROS
INDÍCIOS
Data do Acordão: 10/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O elemento objetivo do tipo de crime de ofensa a pessoa coletiva, previsto e punido pelo art.º 187 do CP, consiste na difusão de factos não verídicos, com capacidade ou idoneidade para ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança que aquela deve merecer, mesmo que essa credibilidade, esse prestígio ou essa confiança não tenham sido, efetivamente, atingidos, por se tratar de um crime de mera atividade e de perigo, o que significa que as entidades abstratas gozam de uma proteção penal mais abrangente do que as pessoas singulares, enquanto que o preenchimento do seu elemento subjetivo se basta com o conhecimento pelo agente da inveracidade de tais factos, sem embargo de, mesmo assim, os apregoar ou divulgar, querendo propalar o seu conteúdo, não reclamando este elemento subjetivo (animus) específico do tipo legal do crime em análise a lesão da credibilidade, prestígio ou confiança, porquanto, se satisfaz com a vontade de difundir o facto inverídico.

Tendo o arguido conhecimento de sentença transitada em julgado, onde a assistente fora absolvida do pedido, fazendo apelo às regras da experiência e aos critérios da normalidade - não se pode afirmar que tinha fundamentos para, em boa fé, reputar como verdadeira a imputação feita à assistente.

E, sendo assim, o facto imputado à assistente não só não era verdadeiro, como não havia fundamentos para, de acordo com as regras da boa fé, o arguido o reputar como verdadeiro.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém (Juízo de Instrução Criminal de Santarém, Juiz 2) correu termos o Proc. n.º 528/17.3T9CTX (autos de instrução), no qual, na sequência da instrução requerida pelo arguido – PMVFMA, filho de CMA e de MLVFA nascido a … em …, casado, residente na rua …, lote…, ….., com TIR prestado a fls. 8 – foi decidido, por decisão de 10.12.2019, não pronunciar o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, do crime que lhe vinha imputado pela acusação particular deduzida pela assistente - um crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 187 nºs 1 e 2 al.ª a), e 183 n.ºs 1 al.ª s a) e b) e 2, ambos do Cód. Penal – e, em consequência, ordenar o arquivamento dos autos.

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2. Inconformada com tal decisão, recorreu a assistente (HHES, Ld.ª) da mesma, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:

1 - A assistente (HHES, Ld.ª) deduziu acusação particular contra o arguido PMVFMA, imputando-se a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 187 nºs 1 e 2 al.ª a), e 183 n.ºs 1 al.ª s a) e b) e 2, ambos do Cód. Penal, porquanto, publicitou três comentários na página oficial da assistente, na rede facebook, em que esta se propunha publicitar e angariar clientes para a primeira Tipi de Glamping (acampamento de glamour) que tinha para oferecer aos seus clientes, onde aquele, dirigindo-se à assistente, e sem que nada o justificasse, escreveu:

“É de lamentar esta empresa estar a operar”, “pois para projetar este espaço ficou por pagar um levantamento topográfico, vergonha deviam de ter em abrir as portas ao público, assim se faz fortuna neste país onde as leis protegem os caloteiros, PAGUEM a quem devem e só depois apareçam, Vergonha.******sorrisos “Como disse e reafirmo, não foi liquidado o trabalho, assim não estou a difamar mas sim a dar a conhecer o tipo de pessoas que gerem ou geriam esta empresa independentemente da decisão que o tribunal tomou, ambos abemos que esse projeto foi realizado em cima de um calote, assim reafirmo paguem o e que devem! Pois não gosto de injustiça, e o que fizeram à Arq. Não se Faz”.

2 - Tais comentários foram, na altura, vistos/lidos por 2843 perfis, tendo existido 57 partilhas dessa publicação, sendo que hoje em dia ainda existem visualizações a esta publicação, com acesso inerente aos comentários ofensivos e difamatórios escritos.

3 - Com o referido comportamento o arguido ofendeu a assistente, imputando-lhe factos e dirigindo-lhe expressões que atentam contra a sua dignidade, credibilidade, confiança, consideração e prestígio, não acatando uma decisão soberana do tribunal cível, transitada em julgado, que absolvera do pedido a assistente.

4 - O arguido requereu abertura de instrução, sustentando que os factos por si escritos na página do facebook são verídicos e que a sua conduta não é punível, uma vez que não cometeu os crimes de que vem acusado, já que a assistente solicitou um serviço à esposa do arguido que nunca foi pago.

5 - No final do debate instrutório, analisados os meios de prova produzidos em sede de inquérito e de instrução, o tribunal entendeu que se deviam considerar como fortemente indiciados determinados factos e como indiciariamente não provados outros, acabando por proferir decisão em que considerou que “… no caso vertente não ficou provado que os factos imputados e divulgados são inverídicos. Diferentemente, provou-se que são verídicos e que o arguido, cônjuge da credora da assistente, tinha perfeita razão de ciência desses factos imputados. Nestes termos, a factualidade indiciariamente provada não preenche nem o elemento objetivo nem o elemento subjetivo do tipo em análise… ainda que os factos tivessem sido enquadrados no tipo de difamação, sempre a presente decisão seria de não pronúncia”.

E, consequentemente, não pronunciou o arguido.

6 - Esta decisão – de não pronúncia – com a qual a assistente não concorda, assente em decisão instrutória que padece de erro de julgamento da matéria de facto, em virtude da desconformidade entre a decisão proferida a final e a que deveria ter resultado da prova produzida, porquanto, a prova produzida em sede de inquérito e de instrução deveria ter conduzido o douto tribunal a quo a formar uma convicção diversa daquela que se encontra vertida na decisão instrutória.

7 - Padecendo, igualmente, de erro de julgamento da matéria de direito, porquanto, a valoração de determinados factos como não suficientemente indiciados e de outros tidos como indiciados, mas sem o respaldo necessário respetivo, quando outra deveria ter sido a sua qualificação, em face da prova produzida, determinou a aplicação incorreta de princípios de direito e uma inadequada valoração jurídica dos direitos e interesses legalmente protegidos e que se encontram em conflito nos presentes autos.

8 - O elemento objetivo do tipo de crime de ofensa a pessoa coletiva, previsto e punido pelo art.º 187 do CP, consiste na difusão de factos não verídicos, com capacidade ou idoneidade para ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança que aquela deve merecer, mesmo que essa credibilidade, esse prestígio ou essa confiança não tenham sido, efetivamente, atingidos, por se tratar de um crime de mera atividade e de perigo, o que significa que as entidades abstratas gozam de uma proteção penal mais abrangente do que as pessoas singulares, enquanto que o preenchimento do seu elemento subjetivo se basta com o conhecimento pelo agente da inveracidade de tais factos, sem embargo de, mesmo assim, os apregoar ou divulgar, querendo propalar o seu conteúdo, não reclamando este elemento subjetivo (animus) específico do tipo legal do crime em análise a lesão da credibilidade, prestígio ou confiança, porquanto, se satisfaz com a vontade de difundir o facto inverídico.

9 - Não bastando ao agente afirmar ou propalar factos inverídicos, sendo necessário, igualmente, que se encontre de má fé na convicção que forma acerca da sua veracidade, ou melhor, que, no caso concreto, não tenha razões sérias para aceitar esses factos como verdadeiros.

10 - E para que haja uma crença justificada na verdade dos factos e na boa fé do agente da imputação para reputar os factos imputados como verdadeiros é necessário que a convicção deste decorra de uma busca de prova minimamente objetiva para, de acordo com as regras de experiência comum, ficar convencido da verdade os factos que imputa, não esse exigindo, para o preenchimento desse elemento típico constitutivo do crime de ofensa a pessoa coletiva, que o agente tenha conhecimento do seu carácter não verídico, bastando, para o efeito, que não tenha fundamento para, em boa fé, os reputar como verdadeiros.

11 - Na ação cível proposta pela esposa do ora arguido – RSGC – contra a ré, aqui assistente, ficou provado:

- que “a autora e a ré acordaram verbalmente em aquela elaborar para esta um plano de pormenor, com prévio levantamento topográfico, relativo a um prédio da propriedade desta, não tendo sido acordado o preço a pagar”, sendo que “em maio de 2003 a ré entregou à autora a quantia de 500,00 euros por conta do preço a pagar pela execução do serviço contratado…”;

- que “a autora procedeu à elaboração do levantamento topográfico e entregou-o à ré em suporte informático em julho de 2003”, mas “não elaborou o plano de pormenor acordado”, sendo que “aquando da entrega do levantamento topográfico a autora pediu á ré o pagamento de 1.750,00 euros, que esta não pagou”.

E não se provou, de acordo com aquela sentença cível, que “foi acordado entre a autora e a ré o preço de 1.750,00 euros para elaboração por aquela do plano de pormenor com prévio levantamento topográfico”.

12 - Por outro lado, em sede de fundamentação escreveu-se ainda naquela sentença que se apurou “que não foi acordado entre as partes o valor dessa retribuição e que os serviços contratados não foram executados na sua totalidade, porquanto, a autora elaborou o levantamento topográfico, mas não o plano de pormenor, não tendo a autora logrado comprovar que o valor do serviço prestado corresponde à quantia peticionada nem tão pouco que foi emitida e remetida à ré a correspondente fatura com o valor de IVA discriminado, como se lhe impunha. Acresce que a autora omitiu ao tribunal que a ré lhe havia pago 500,00 euros por conta dos serviços a prestara, pagamento este que a ré logrou comprovar, apesar de a autora não ter emitido, como era obrigada a fazer, o correspondente recibo, e que a autora não provou ser inferior ao valor do serviço prestado (ou ao preço que tivesse sido acordado relativamente a esse serviço”.

13 - Em sede de dispositivo a sentença cível julgou a ação totalmente improcedente a absolveu a ré do pedido.

14 - Neste enquadramento factual e jurídico, o ora arguido, marido da autora da ação cível, assim julgada improcedente, ao publicar três comentários na página oficial da assistente, na rede facebook - onde escreveu que “É de lamentar esta empresa estar a operar”, “pois para projetar este espaço ficou por pagar um levantamento topográfico, vergonha deviam de ter em abrir as portas ao público, assim se faz fortuna neste país onde as leis protegem os caloteiros, PAGUEM a quem devem e só depois apareçam, Vergonha.******sorrisos “Como disse e reafirmo, não foi liquidado o trabalho, assim não estou a difamar mas sim a dar a conhecer o tipo de pessoas que gerem ou geriam esta empresa independentemente da decisão que o tribunal tomou, ambos abemos que esse projeto foi realizado em cima de um calote, assim reafirmo paguem o e que devem! Pois não gosto de injustiça, e o que fizeram à Arq. Não se Faz” - difundiu factos não verídicos, com o conhecimento da inveracidade dos mesmos, mas com a intenção de os querer propalar, encontrando-se, assim, de má fé na convicção que, alegadamente, diz ter formado acerca da sua verdade, não tendo razões sérias para aceitar esses factos como verdadeiros, sendo certo que renunciou aceitar a bondade dos factos que, preteritamente, na aludida ação cível, haviam sido demonstrados, em sentença transitada em julgado, que absolveu a assistente do pedido contra si formulado pela esposa do ora arguido, mas eu este se recusou a reconhecer.

15 - Deste modo, o arguido não tinha qualquer fundamento para, em boa fé, reputar os factos imputados à assistente como verdadeiros.

16 - Diz-se na decisão recorrida que, “sendo os factos verídicos, não tem o agente de cuidar saber se a sua divulgação visa interesses públicos ou outros, v.g., juridicamente relevantes”, acrescentando-se, mais à frente, que “… no caso vertente não ficou provado que os factos imputados e divulgados são inverídicos. Diferentemente, provou-se que são verídicos e que o arguido, cônjuge da credora da assistente, tinha perfeita razão de ciência desses factos imputados”.

17 - A decisão recorrida entendeu, porém, que o que resultou da certidão do aludido processo cível é, “grosso modo, que ficou provado que RC fez o trabalho, mas ficou por provar qual o preço estabelecido. Assim, e porque a assistente entregara um cheque de 500,00 euros, a ação intentada pela testemunha foi improcedente. Note-se que não improcede por se ter provado que a assistente pagou o preço nem improcedeu por não se ter provado que não fez o trabalho. Ao invés, provou-se que o fez. Contudo, porque cabia a RC o ónus da prova do preço acordado e esta não logrou provar tal elemento, tendo a assistente pago uma quantia, não foi possível concluir pelo valor do preço acordado”.

18 - Contudo, o que decorre, manifestamente, da factualidade demonstrada na sobredita ação cível é que não foi acordado entre as partes o valor da retribuição pelos serviços contratados, os quais não foram executados, na sua totalidade, porquanto, a autora elaborou tão só o levantamento topográfico, mas não o plano de pormenor, tendo a ré pago àquela, antecipadamente, 500,00 euros por conta dos serviços a prestar.

19 - Assim sendo, ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, da sentença cível não se retira que a autora da ação cível “fez o trabalho”, antes que o mesmo não foi executado na sua totalidade, que “ficou por provar o preço estabelecido” e que não foi acordado entre as partes o valor da retribuição pelos serviços contratados, sendo certo que, em sede de instrução, apenas foram ouvidas a autora da ação cível e a representante legal da ora assistente, e no inquérito foram ouvidos o arguido, a assistente e a testemunha, cônjuge daquele.

20 - Deste modo, foram considerados como fortemente indiciados factos que estão em oposição ao que tinha sido demonstrado em audiência cível, em que, além da prova direta obtida com recurso aos depoimentos de parta da autora e da ré, intervieram, igualmente, as testemunhas CA, sogro da aurora, PA, marida da autora e aqui arguido, e AC, amigo da autora.

21 - Assim sendo:

1) Não se deveriam ter dado como demonstrados, por falta de base legal de sustentação bastante, os seguintes factos:

- A segunda parte do ponto 5 do requerimento de abertura de instrução, onde s escreve “mas teve motivos justificados para o fazer”, desde logo, porque se encontra em contradição com o ponto 2 da acusação particular, onde se diz, com referência à mesma realidade factual, “e sem que nada o justificasse”, devendo considerar-se como não escrito, por se tratar de um facto posterior declarado como demonstrado, em conformidade com o estipulado pelo art.º 410 n.º 2 al.ª b) do CPP, sanando-se, assim, a evidente contradição insanável da fundamentação, sem necessidade de recurso ao mecanismo da anulação do julgamento e do reenvio do processo para novo julgamento, na totalidade ou para questões concretas identificadas na decisão de reenvio, atento o teor do art.º 426 n.º 1 do mesmo diploma legal, mas, também por inexistir qualquer causa justificativa para a publicação do teor dos comentários escritos, por parte do arguido, após a prolação da sentença cível que retratou uma factualidade oposta, que aquele deveria respeitar, porque bem conhecida, sem pretender reinventar qualquer interesse legítimo nessa publicação;

- A totalidade dos pontos 6, 7 e 23 do requerimento de abertura de instrução, porquanto, da aludida ação cível resulta provado que os trabalhos não foram executados, na sua totalidade, uma vez que a autora elaborou tão só o levantamento topográfico, mas não o plano de pormenor, não se tendo provado que a assistente deve dinheiro a RSGC, por serviços por esta prestados, pois que aquela pagou a esta, antecipadamente, 500,00 euros, por conta dos serviços a prestar.

2) E não deveriam ser considerados como não provados, indiciariamente, os pontos 12, 16 e 19, nem o segmento do ponto 13 onde se escreve que “… em 2005 a esposa do aqui arguido, a tal Arq. que é falada no comentário, perdeu uma ação em tribunal com a aqui assistente”, todos da acusação particular.

22 - Nestes termos, deveria ser dada como provada a seguinte factualidade da acusação particular:

1) Ponto 1 (No dia 10 de junho de 2017, pelas 17h26m e pelas 22h38m, foram publicados três comentários, pelo arguido, na página oficial da assistente na rede facebook);

2) (Nesse momento, o arguido dirigiu-se e referiu-se à assistente e, sem que nada o justificasse, escreveu o seguinte:

“É de lamentar esta empresa estar a operar”, “pois para projetar este espaço ficou por pagar um levantamento topográfico, vergonha deviam de ter em abrir as portas ao público, assim se faz fortuna neste país onde as leis protegem os caloteiros, PAGUEM a quem devem e só depois apareçam, Vergonha.******sorrisos “Como disse e reafirmo, não foi liquidado o trabalho, assim não estou a difamar mas sim a dar a conhecer o tipo de pessoas que gerem ou geriam esta empresa independentemente da decisão que o tribunal tomou, ambos abemos que esse projeto foi realizado em cima de um calote, assim reafirmo paguem o e que devem! Pois não gosto de injustiça, e o que fizeram à Arq. Não se Faz”);

3) (Tais comentários foram proferidos na página do facebook da assistente e, pelo menos, na altura foram vistos/lidos por 2843 perfis, sendo que hoje em dia ainda existem visualizações a esta publicação, com acesso inerente aos comentários ofensivos e difamatórios escritos. Doc. 1);

4) (Tal publicação tinha como objetivo publicitar e angariar clientes para a primeira Tipi de Glamping (acampamento de glamour) que a assistente tinha para oferecer aos seus clientes).

5) Ponto 5 (o arguido confessa integralmente ter tecido tais comentários de livre vontade);

6) (A referida prestadora de serviços, cônjuge do arguido, intentou ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, a qual correu termos no ext. 1.º Juízo do Tribunal Judicial do …, sob o n.º …..) – do requerimento de abertura de instrução;

23 - E deveria ter considerado como não provado, da acusação particular, apenas:

1) Ponto 5 (Com efeito, a assistente é uma pessoa coletiva que estava a dar os seus primeiros passos naquela região, nomeadamente, na …., concelho da ….);

2) Ponto 13 (Tal situação ficou a dever-se apenas ao propósito de criar elevados prejuízos à assistente);

3) Ponto 17 (O aqui arguido premeditou o seu comportamento e toda esta situação, soube muito bem escolher qual a foto em que iria fazer o aludido injuriosos e difamatório comentário);

4) Ponto 18 (Escolheu a fotografia que iria lançar, um serviço/uma dormida nunca antes vista na região, o que levaria muitas pessoas a serem atraídas por essa foto e esse serviço).

24 - Como assim, não foram recolhidos no decurso da instrução factos indiciários que permitam sustentar que “os factos imputados e divulgados pelo arguido são verídicos”, provando-se, não obstante, que o arguido, sem ter fundamento sério para, em boa fé, os reputar como verdadeiros, afirmou factos inverídicos, ou seja, que bem sabia não corresponderem à realidade dos acontecimentos, sem ter observado os deveres de cuidado exigíveis, no caso concreto, “máxime”, quando já havia sido proferida sentença cível, transitada em julgado, proposta pela sua esposa contra a assistente, que, além de ter sido julgada improcedente, declarou que não foi acordado entre as partes o valor da retribuição pelos serviços contratados, os quais não foram executados na sua totalidade, porquanto, a autora elaborou tão só o levantamento topográfico, mas não o plano de pormenor, tendo a ré pago àquela, antecipadamente, 500,00 euros por conta dos serviços a prestar.

24 - Ora, ao conseguimento da prova da verdade dos factos a lei equipara o conseguimento da prova que o agente fez tudo o que estava o seu alcance e lhe era exigível para reputar como verdadeira a imputação, confiando “seriamente” na verdade do facto, pelo que esta crença na verdade há-de ser, portanto, uma crença objetivamente fundada, sendo que esses factos eram suscetíveis de ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança na pessoa da autora.

25 - Pelo exposto, existem indícios suficientes da prática dos factos descritos na acusação particular da assistente e que consubstanciam a autoria material de um crime de ofensa a pessoa coletiva agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 187 n.ºs 1 e 2 al.ª a) e 183 n.ºs 1 al.ªs a) e b) e 2, ambos do CP, pelo qual o arguido deve ser pronunciado e, consequentemente, submetido a julgamento.

26 - Foram violados os artigos 187 n.ºs 1 e 2 al.ª a) e 183 n.ºs 1 al.ªs a) e b) e 2, ambos do CP, e 410 n.º 2 al.ª b) do Código de Processo Penal.

27 - Deve ser dado provimento ao recurso e, por via dele, ser revogada a decisão recorrida e, em consequência, ser o arguido pronunciado pela autoria material de um crime de ofensa a pessoa coletiva agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 187 n.ºs 1 e 2 al.ª a) e 183 n.ºs 1 al.ªs a) e b) e 2, ambos do CP.

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3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância ao recurso interposto, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:

1 - Ao destacar por segmentos naturalísticos, analisando cada um de per si, relativamente a toda a dinâmica protagonizada pelo arguido, o tribunal a quo autonomizou e decidiu à revelia do conceito de ação criminosa vigente na nossa doutrina denominado a partir do conceito de “retalho de vida” de Figueiredo Dias e, por isso, o despacho em crime cometeu erro de julgamento.

2 - Ignorando-se os termos iniciais (e finais), designadamente, quanto ao preço do serviço a cargo da então ré e aqui assistente, do contrato celebrado entre a então esposa do arguido e a assistente, como se conclui pela sentença cuja certidão se encontra junta aos autos, o tribunal não podia o tribunal decidir pela não pronúncia, dado que, quer pelos exemplos explanados supra, quer pelos motivos apontados no seu recurso, resulta que o arguido agiu, pelo menos, com dolo eventual, por desconhecer a verdadeira dimensão do contrato que esteve na base da comunicação pública que protagonizou e, mesmo assim, não ase absteve de tal comportamento.

3 - Os pontos 1, 2 e 3, evidenciados supra e que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais, constituem, quando analisados na sua dinâmica própria e dentro do conceito de ação criminosa vigente entre nós, evidente exemplo de erro de julgamento, sem prejuízo do que já foi evidenciado pela recorrente.

4 - Por isso o recurso a que ora se responde deve ter provimento, revogando-se o despacho recorrido e sendo ordenada a sua substituição por outro que determine a pronúncia do arguido pelos factos de que se encontra acusado, seguindo-se os ulteriores termos até final.

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4. Nesta instância o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso (parecer de 15.07.2020), manifestando a sua “concordância genérica com as perspetivas jurídicas e conclusões apresentadas” na motivação do recurso e na resposta do Ministério Público apresentada na 1.ª instância.

5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª b) do CPP), atenta a questão colocada pela recorrente/assistente nas conclusões do recurso, enquanto peça delimitadora do seu objeto, que se resume a saber se existem indícios suficientes para a pronúncia do arguido pelo crime pelo qual foi acusado pela assistente.

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5.1. A assistente deduziu acusação particular contra o arguido, acima melhor identificado, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa a pessoa coletiva agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 187 n.ºs 1 e 2 al.ª a) e 183 n.ºs 1 al.ªs a) e b) e 2, ambos do CP.

5.2. Não se conformando com o teor da acusação particular, veio o arguido, acima melhor identificado, requerer a abertura da instrução com vista à prolação de despacho de não pronúncia, sustentando em síntese, que os factos por si relatados na página do facebook – e descritos na acusação particular deduzida - são verídicos.

5.3. Realizada a instrução e efetuado debate instrutório, foi proferida a decisão (de não pronúncia), onde, em síntese, se escreveu:

“… o que resulta da certidão do aludido processo cível é, grosso modo, que ficou provado que RC fez o trabalho, mas ficou por provar qual o preço estabelecido. Assim, e porque a assistente entregara um cheque de €500,00, a ação intentada pela testemunha foi improcedente. Note-se que não improcedeu por se ter provado que a assistente pagou o preço nem improcedeu por não se ter provado que não fez o trabalho. Ao invés, provou-se que o fez. Contudo, porque cabia a RC o ónus da prova do preço acordado e esta não logrou provar tal elemento, tendo a assistente pago uma quantia, não foi possível concluir pelo valor do preço acordado.

Por conseguinte, julgam-se fortemente indiciados os seguintes factos, ora elencados por remissão, ao abrigo do n.º 1 do art.º 307 do CPP:

Pontos 1, 2, 3 e 9 da Acusação Particular, que ora se dão aqui por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos.

Pontos do RAI; 5, 6, 7, 8 e 23.

Factos Indiciariamente não provados ora elencados por remissão ao abrigo do n.º 1 do art.º 307 do CPP:

Pontos: 5, 12, 13 e 16 a 19 da Acusação Particular, cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

No tipo da difamação, porém, a conduta não é punível quando visar a realização de interesses legítimos. Ora, no caso que nos ocupa, tendo perdido a dita ação cível, parecem esgotados os meios jurisdicionais ao dispor de RC. Nesta medida, não é possível afirmar-se que o arguido visou a realização de qualquer interesse.

Sucede porém, que, no tipo do art.º 187 o legislador não faz tal distinção, sendo de concluir que, a contrario senso, sendo os factos verídicos, não tem o agente de cuidar sobre se a sua divulgação visa interesses públicos ou outros, v.g., juridicamente relevantes. Ponto é que estejam em causa factos e não juízos, pois, neste último caso, a conduta não se subsume ao crime de ofensa a organismo, mas, antes, ao da difamação.

Detendo-se na diferença típica entre este crime e o de difamação – suscetível igualmente de ser cometido contra pessoas coletivas - no que toca à dispensa de interesse público dos factos, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Évora no aresto de 24.09.13 (disponível em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=201&artigo_id=&nid=109&pagina=3&tabela=leis&nversao=&so_miolo= ), afirmando que «A liberdade de expressão (e de opinião, em assuntos sociais e políticos) constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, caracterizada, necessariamente, pelo pluralismo, pela tolerância, pela discussão de ideias e pelo espírito de abertura».

De realçar que o conceito de boa-fé, que integra o recorte subjetivo, deve procurar-se no último número do art.º 180 e tem que ver, essencialmente, com o cumprimento do dever de informação a cargo do agente antes da divulgação de factos. Isto porque tal divulgação pode, efetivamente, prejudicar a esfera da entidade coletiva.

Ora, no caso vertente não ficou provado que os factos imputados e divulgados são inverídicos. Diferentemente, provou-se que são verídicos e que o arguido, cônjuge da credora da assistente, tinha perfeita razão de ciência desses factos imputados.

Nestes termos, a factualidade indiciariamente provada não preenche nem o elemento objetivo nem o elemento subjetivo do tipo em análise.

Ainda que estivéssemos no âmbito do tipo da difamação, p. p. pelo art.º 180 do Cód. Penal, sempre seria aplicável o n.º 2 do art.º 186 do mesmo diploma.

Estabelece, pois, o art.º 186 do mesmo diploma que «1 - O tribunal dispensa de pena o agente quando este der em juízo esclarecimentos ou explicações da ofensa de que foi acusado, se o ofendido, quem o represente ou integre a sua vontade como titular do direito de queixa ou de acusação particular, os aceitar como satisfatórios. 2 - O tribunal pode ainda dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido.

3 - Se o ofendido ripostar, no mesmo ato, com uma ofensa a outra ofensa, o tribunal pode dispensar de pena ambos os agentes ou só um deles, conforme as circunstâncias».

Em suma, qualquer que seja o enquadramento jurídico dos factos, dentro do leque plausível de alternativas, sempre seria de concluir pela maior probabilidade de, em julgamento, não vir a ser aplicada ao arguido qualquer pena. Assim sendo, impõe-se não pronunciar o arguido e determinar o arquivamento dos autos”.

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5.4. É sabido, mas não será demais recordar, que a instrução visa a comprovação judicial da acusação em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento; ela termina pela decisão instrutória, onde o juiz avalia os elementos de prova carreados para os autos, concretamente, se os mesmos são suficientes para se concluir que se verificam os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena (ou medida de segurança) – na afirmativa, o juiz decidirá que a causa deve ser submetida a julgamento, proferindo despacho de pronúncia, na negativa, ele optará por uma decisão de arquivamento, proferindo despacho de não pronúncia (art.º 308 do Código de Processo Penal).

Na instrução impõe-se alcançar, não a demonstração da realidade dos factos, mas apenas indícios, ou seja, sinais da ocorrência de um crime e de que este foi cometido pelo agente a quem é imputado, não constituindo, nesta fase, os dados probatórios, pressuposto da decisão de fundo, mas de simples determinação judicial de prosseguimento dos trâmites processuais até julgamento.

A lei define atualmente (art.º 283 n.º 2 do CPP) o que deve entender-se por indícios suficientes, no seguimento da orientação da doutrina e jurisprudência que vigoraram no domínio da lei processual anterior: “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.

Não basta, pois, a existência de quaisquer indícios, é necessário que tais indícios sejam de tal modo fortes que o julgador adquira a convicção, pela análise conjugada dos mesmos, de acordo com as regras da experiência e critérios de razoabilidade, que em julgamento – com a discussão ampla – se poderão vir a provar, com um juízo de certeza (e não de mera probabilidade), os elementos constitutivos da infracção.

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5.5. No caso em apreço, a factualidade objetiva imputada ao arguido encontra-se documentada, pois que ela se resume à publicação de três comentários na página oficial da assistente, na rede facebook, onde escreveu que “É de lamentar esta empresa estar a operar”, “pois para projetar este espaço ficou por pagar um levantamento topográfico, vergonha deviam de ter em abrir as portas ao público, assim se faz fortuna neste país onde as leis protegem os caloteiros, PAGUEM a quem devem e só depois apareçam, Vergonha.******sorrisos “Como disse e reafirmo, não foi liquidado o trabalho, assim não estou a difamar mas sim a dar a conhecer o tipo de pessoas que gerem ou geriam esta empresa independentemente da decisão que o tribunal tomou, ambos sabemos que esse projeto foi realizado em cima de um calote, assim reafirmo paguem o que devem! Pois não gosto de injustiça, e o que fizeram à Arq. Não se Faz”.

A questão essencial resume-se a saber se, em face das circunstâncias em que faz publicar tais comentários e das que os precederam, se pode afirmar:

Por um lado, que os factos relatados pelo arguido são verídicos;

Por outro, que – não sendo verídicos – há razões para considerar que o agente, de acordo com o princípio da boa fé, tinha razões para os reputar como verdadeiros.

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1) Na decisão recorrida consideraram-se indiciados os pontos 1, 2, 3 e 9 da acusação particular, onde consta:

“…

No dia 10 de junho de 2017, pelas 17h26m, pelas 17h38m e pelas 22h38m foram publicados três comentários pelo arguido na página oficial da assistente na rede social facebook.

2.º

Nesse momento o arguido dirigiu-se e referiu-se à assistente e, sem que nada o justificasse, escrevendo-lhe o seguinte: “É de lamentar esta empresa estar a operar”, “pois para projetar este espaço ficou por pagar um levantamento topográfico, vergonha deviam de ter em abrir as portas ao público, assim se faz fortuna neste país onde as leis protegem os caloteiros, PAGUEM a quem devem e só depois apareçam, Vergonha.******sorrisos “Como disse e reafirmo, não foi liquidado o trabalho, assim não estou a difamar mas sim a dar a conhecer o tipo de pessoas que gerem ou geriam esta empresa independentemente da decisão que o tribunal tomou, ambos sabemos que esse projeto foi realizado em cima de um calote, assim reafirmo paguem o que devem! Pois não gosto de injustiça, e o que fizeram à Arq. Não se Faz”.

3.º

Tais comentários foram proferidos na página do facebook da assistente e, pelo menos na altura, foram vistos/lidos por 2.843 perfis, sendo que hoje em dia ainda existem visualizações a esta publicação, com acesso inerente aos comentários ofensivos e difamatórios escritos”.

9.º

A assistente tinha uma publicação na página do facebook que “tinha como objetivo publicitar e angariar clientes para a Primeira Tipi Glamoping (acampamento de glamour) que a assistente tinha para oferecer aos seus clientes”.

E como não indiciados:

“5.º

A assistente é uma pessoa coletiva que estava a dar os seus primeiros passos naquela região, nomeadamente, na …., concelho da …..”.

12.º

Tais factos imputados na rede social pelo arguido, que sabia desde logo que nunca existiram nem podiam existir.

13.º

Tal situação ficou-se a dever apenas ao propósito de criar elevados prejuízos à assistente, uma vez que em 2005 a esposa do arguido, a tal arquiteta que é falada no comentário, perdeu uma ação em tribunal com a aqui assistente.

16.º

… o arguido agiu de má fé, contrariando a verdade dos factos, que real e processualmente, bem sabia existirem, com o intuito claro de prejudicar, como conseguiu, a aqui assistente, que é uma pessoa coletiva com um negócio desdobrado em várias vertentes.

17.º

O aqui arguido premeditou o seu comportamento e toda esta situação, soube muito bem escolher qual a foto em que iria fazer o aludido injurioso e difamatório comentário.

18.º

Escolheu a fotografia que iria lançar um serviço/uma dormida nunca antes vista na região, oi que levaria muitas pessoas a serem atraídas por essa foto e por esse serviço.

19.º

O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei, bem como tinha plena consciência que os factos propalados não correspondiam à verdade”.

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2) Por sua vez, considerou indiciada a seguinte factualidade do RAI:

“5.º

O arguido confessou integralmente ter tecido tais comentários de livre vontade, mas teve motivos justificativos para o fazer.

6.º

… o assistente deve dinheiro a RSGC por serviços por esta prestados, os quais se consubstanciam num «plano de pormenor com prévio levantamento topográfico» efetuado em maio de 2003.

7.º

Dinheiro esse que se cifra em 1.790,00 euros e que a assistente até à presente data não procedeu ao respetivo pagamento, apesar de ter sido diversas vezes interpelada para o efeito.

8.º

A prestadora de serviço, cônjuge do arguido, intentou ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, a qual correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial do ……. sob o n.º de Processo ……

23.º

A assistente bem sabe que os factos imputados pelo arguido são verdadeiros, ou sejam, a assistente deve dinheiro à esposa do arguido”.

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Vejamos.

Em primeiro lugar deve dizer-se que, em face da matéria considerada indiciada e não indiciada, não se percebe como o tribunal considera não indiciada (ou omite na matéria indiciada) parte da matéria constante do ponto 13 da acusação – onde se alega que a esposa do arguido perdeu a ação movida contra a assistente - quando considera indiciado (ponto 8 do RAI), que “a prestadora de serviço, cônjuge do arguido, intentou ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, a qual correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial do …. sob o n.º de Processo ……” e da cópia da sentença junta aos autos consta que a ação foi julgada improcedente, em suma, que a esposa do arguido perdeu essa ação.

Depois, consta dessa sentença:

- que a ré (esposa do arguido) elaborou apenas uma parte do serviço – o levantamento topográfico – que não elaborou o plano de pormenor acordado e que e recebeu da assistente a quantia de 500,00 euros;

E que não se provou:

- que o preço acordado – para a elaboração do plano de pormenor com prévio levantamento topográfico - foi de 1.750,00 euros;

- que não se provou que o valor pago seja inferior “ao valor do serviço prestado (ou ao preço que tivesse sido acordado relativamente a esse serviço)” e, consequentemente, que a assistente deva à esposa do arguido quaisquer quantias.

Ou seja:

O arguido sabia – porque não podia deixar de saber, até porque alegara isso no RAI (ponto 9) - que a assistente foi absolvida do pedido que a sua esposa formulara contra a assistente, decisão que – concorde-se ou não com a mesma – uma vez transitada em julgado se torna definitiva, vinculando as partes ao seu cumprimento, nos precisos termos em que o litígio foi colocado ao tribunal e decidido.

Na altura em que o arguido imputa à assistente o facto cuja imputação deu origem aos presentes autos – em 10 de junho de 2017 – há muito que o litígio relativo à invocada dívida da assistente para com a sua esposa estava resolvido.

Não faz qualquer sentido - e é contraditório com a sentença proferida – que o tribunal, contra o decidido na ação cível, considere indiciado:

- que o arguido “teve motivos justificativos” para fazer tais comentários (que motivos, se não se provou a existência de qualquer dívida?);

- que a assistente “deve dinheiro a RSGC por serviços por esta prestados, os quais se consubstanciam num «plano de pormenor com prévio levantamento topográfico» efetuado em maio de 2003” (quando é certo que o plano de pormenor não chegou a ser elaborado);

- que a dívida “se cifra em 1.790,00 euros…”;

- e que a “assistente bem sabe que os factos imputados pelo arguido são verdadeiros, ou seja, a assistente deve dinheiro à esposa do arguido”.

Consequentemente:

O facto imputado à assistente não era verídico (não se demonstrando qual foi o preço acordado pelo serviço prestado pela esposa do arguido, demonstrando-se que esta apenas prestou parte do serviço acordado e que a assistente pagou por conta dos serviços prestados a quantia de 500,00 euros, não se pode dizer que a assistente é devedora da esposa do arguido, pois que não se provou que o seja) – concorde-se ou não com o decidido naquela sentença cível, trata-se de uma decisão transitada em julgado, que decidiu em definitivo a questão que ali se discutia – e a sua imputação, nas circunstâncias em que foi feita, era idónea a ofender a credibilidade, o prestígio e a reputação da assistente;

Por outro lado, o arguido tinha conhecimento dessa sentença, sabia que a assistente fora absolvida do pedido, que não se provara que a sua esposa fosse credora da assistente, pelo que – fazendo apelo às regras da experiência e aos critérios da normalidade - não se pode afirmar que tinha fundamentos para, em boa fé, reputar como verdadeira a imputação feita à assistente – o tribunal decidira já que nada era devido - até porque ele sabia que pelo menos parte do levantamento topográfico foi pago, pelo que não é verdade o que consta do seu comentário quando aí se diz que “ficou por pagar um levantamento topográfico”.

E sendo assim, como é, o facto imputado à assistente não só não era verdadeiro, como não havia fundamentos para, de acordo com as regras da boa fé, o arguido o reputar como verdadeiro, pois que ele sabia do trabalho que a sua esposa fez para a assistente, sabia do dinheiro que recebeu e da improcedência da ação que a sua esposa moveu à assistente, onde se decidiu que a assistente não era devedora das quantias pedidas.

Os autos contêm, pois, indícios suficientes da prática, pelo arguido, do crime que lhe vem imputado; falamos, naturalmente, em indícios, pois não é este o momento próprio para julgar, mas tais indícios, relacionados e conjugados, permitem neste momento formar a convicção de que o arguido, em julgamento, com uma discussão ampla dos factos, com elevada probabilidade poderá vir a ser condenado.

Assim, em face do que se deixa dito e dos elementos de prova juntos aos autos há razões para concluir:

- pela existência de indícios da factualidade descrita na acusação particular, com exceção da descrita nos pontos 5, 13 (na parte em que se refere que “tal situação se ficou a dever apenas ao propósito de criara elevados prejuízos à assistente”), 17 e 18;

- e que (ponto 8 e 9 do RAI): “A referida prestadora de serviços, cônjuge do arguido, intentou ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, a qual correu termos no extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial do …, sob o n.º …, na qual a assistente, ali autora, foi absolvida do pedido”.

Deve, pois, o arguido ser pronunciado pela prática dos factos e crime pelos quais foi acusado - com exceção dos factos descritos nos pontos 5, 13 (na parte em que se refere que “tal situação se ficou a dever apenas ao propósito de criar elevados prejuízos à assistente”), 17 e 18 da acusação e demais factualidade aí alegada que respeite a conceitos de direito ou matéria conclusiva – aditando à mesma a seguinte factualidade do RAI, alegada pelo arguido: “A referida prestadora de serviços, cônjuge do arguido, intentou ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, a qual correu termos no extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial do …, sob o n.º ….., na qual a assistente, ali autora, foi absolvida do pedido”.

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6. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pela assistente e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que pronuncie o arguido nos termos supra exarados.

Sem tributação.

(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 20/10/2020

(Alberto João Borges)

(Maria Fernanda Pereira Palma)