Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
97/23.5T8FAR.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO DA SEGURANÇA SOCIAL
LAR DE IDOSOS
SANÇÃO ACESSÓRIA
ENCERRAMENTO DO ESTABELECIMENTO
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – São elementos da contraordenação continuada: (i) A realização de várias ações que constituam ilícitos contraordenacionais por violarem o mesmo tipo contraordenacional ou vários tipos contraordenacionais; (ii) cujo o bem jurídico protegido seja o mesmo; (iii) sendo a execução dessas contraordenações realizada por forma essencialmente homogénea; (iv) e no quadro de um determinado contexto exterior que propicie a repetição, fazendo, por isso, diminuir consideravelmente a culpa do seu autor, pressupondo, neste caso, uma certa proximidade temporal entre as práticas contraordenacionais, de forma a fazer presumir uma menor reflexão sobre a atuação praticada.
II – A manutenção em funcionamento do estabelecimento que a arguida explorava como lar de idosos, sem dispor da competente licença ou autorização provisória de licenciamento, após cada autuação contraordenacional efetuada pela Segurança Social, dependia exclusivamente de um ato de vontade sua, ato esse que, sem desconhecimento da ilegalidade que praticava, persistia em renovar.
III – Tal persistência na atuação ilícita, apesar da condenação reiterada em coimas, intensifica o grau da culpa do seu infrator.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 97/23.5T8FAR.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
A arguida “Pró-Idosos, Lda.” impugnou judicialmente a decisão da Segurança Social que a condenou no pagamento de uma coima unitária no valor de €41.000,00 e a sanção acessória de encerramento do estabelecimento, nos termos do art. 39.º-H, n.º 1, al. d), do DL n.º 64/2007, de 14-03, na redação dada pelo DL n.º 33/2014, de 04-03, relativamente à prática de duas contraordenações, a saber:
- uma contraordenação p. e p. pelos arts. 11.º, n.º 1, 39.º-B, al. a) e 39.º-E, al. a), todos do DL n.º 64/2007, de 14-03, na redação dada pelo DL n.º 33/2014, de 04-03, cuja condenação foi de €22.000,00; e
- uma contraordenação p. e p. pelos arts. 11.º, n.º 1, 39.º-B, al. a) e 39.º-E, al. a), todos do DL n.º 64/2007, de 14-03, na redação dada pelo DL n.º 33/2014, de 04-03, cuja condenação foi de €23.000,00.
O Tribunal de 1.ª instância, realizada a audiência de julgamento, por sentença proferida em 24-02-2023, decidiu nos seguintes termos:
Em face do exposto julgo improcedente a impugnação judicial e, consequentemente, mantenho a decisão administrativa.
Custas pela arguida, fixando a taxa de justiça em 2 Uc´s.
Notifique, deposite e comunique à Autoridade administrativa.
Inconformada, veio a arguida “Pró-Idosos, Lda.” interpor recurso da sentença, terminando com as seguintes conclusões:
1. As duas contra-ordenações imputadas nos presentes autos à Recorrente constituem uma única infracção continuada.
2. Anteriormente já a Recorrente havia sido condenada – em dois processos distintos e sucessivos – pela prática do mesmo tipo legal de contra-ordenação, isto é, o funcionamento do estabelecimento “lar de idosos” sem o necessário licenciamento.
3. Desde 2009, pelo menos, que esta situação é do conhecimento da Autoridade Recorrida, a qual não obstante ter imputado à Recorrente a prática sucessiva de contra-ordenações decorrentes da falta de licenciamento das instalações, optou sempre pela mera aplicação de coimas e nunca, até agora, pela sanção acessória de encerramento.
4. Naturalmente que tal circunstância – passividade da Autoridade Recorrida relativamente à continuidade da actividade – não só facilitou como foi, em boa verdade, a única circunstância que permitiu que o estabelecimento se mantivesse em funcionamento até hoje.
5. Nesta medida, e atento o exposto, é evidente que a conduta passiva da Autoridade Recorrida, ao não determinar, quando podia e porventura ser-lhe-ia exigível, o encerramento das instalações da Recorrente não só facilitou como contribuiu decisivamente para a prática do mesmo tipo legal de contra-ordenação, pelo que existe, no caso concreto, uma infracção continuada.
6. Acontece que a Recorrente foi condenada no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 201400117067, pela prática do mesmo tipo legal de contra-ordenação, por factos praticados em 03/07/2014, mas cuja sentença judicial (Processo n.º 3371719.1RT8FAR – J2 – Juízo de Trabalho de Faro) apenas transitou em julgado em 22/06/2022.
7. Nesta medida, à data dos factos controvertidos nos presentes autos (29/03/2018 e 23/09/2019) não havia ainda sido proferida decisão no âmbito do processo referenciado na conclusão anterior.
8. Destarte, não se pode falar de uma nova resolução criminosa ou da sua renovação, mas sim da mesma infracção continuada.
9. Não pode, pois, a Recorrente ser sancionada mais do que uma vez pela mesma infracção continuada, sob pena de violação dos artigos 29.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e 79.º n.º 1 do Código de Processo Penal, aplicáveis por via dos artigos 60.º do RJCLSS e 41.º n.º 1 do Regime Geral da Contra-Ordenações (RGCO).
10. Por fim, afigura-se desajustada e desproporcional a aplicação da sanção acessória de encerramento do estabelecimento, com violação do disposto no artigo 21.º n.º 1 do RGCO, na medida em que, apesar da situação ser do conhecimento da Autoridade Recorrida desde 2009, pelo menos, esta usou de total passividade relativamente à sua manutenção, optando pelo encerramento administrativo apenas quando o respectivo processo de legalização das instalações se encontra já na sua fase final.
Nestes termos e nos melhores de Direito deverá o presente recurso ser julgado procedente e, por via disso, revogada a sentença recorrida e a Recorrente absolvida da prática das duas contra-ordenações que lhe são imputadas ou, caso assim não se entenda, sem conceder, dispensada a aplicação da sanção acessória de encerramento.
Pede Justiça!
O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, devendo ser mantida a sentença recorrida, terminando com as conclusões que se seguem:
I. Pretende a Recorrente que a “passividade” da Segurança Social, ao imputar-lhe a prática sucessiva de contraordenações, não optando, até à presente, pela sanção acessória de encerramento, facilitou e contribuiu para a prática do mesmo tipo legal de contraordenação, concluindo, por isso, que existe uma infracção continuada;
II. Não podemos, de forma alguma, concordar com esta interpretação que finalmente transforma a Segurança Social na causa ou promotora da infracção:
III. Pelo contrário, tendo a Recorrente sido repetidamente fiscalizada e instaurados processos por falta de licença de funcionamento do estabelecimento e aplicadas as respectivas coimas, a partir do momento em que foi autuada pela prática de cada uma das contraordenações, cessaram as circunstâncias exteriores exigidas para que se possa entender ter havido uma continuação contraordenacional;
IV. Refere, aliás a douta sentença que, tendo sido fiscalizada e condenada pela falta de licenciamento e continuando a laborar, mantendo uma situação que se arrasta desde 2004, sem que as obras necessárias ao licenciamento do funcionamento tenham sido finalizadas, não se pode concluir que a actividade infratora foi adoptada no quadro de uma realidade que facilitou a sua repetição e tornou menos exigível ao agente que se comportasse de maneira diferente, sendo a Recorrente que contribuiu activamente e de forma particularmente censurável para a prática das infrações.
V. Também a douta sentença se pronuncia e justifica a justeza da aplicação da sanção acessória de encerramento, uma vez que a gravidade e culpa da infractora não podem ser classificadas de diminutas, já que o licenciamento do funcionamento do estabelecimento depende da conformidade das obras com o parecer técnico da Segurança Social, sendo certo que tais obras decorrem há quase 20 anos, não se sabendo quando finalizarão.
Termos em que se entende não assistir razão à Recorrente, mostrando-se a sentença recorrida correctamente elaborada e fundamentada, não tendo a Mmª. Juiz a quo violado qualquer norma legal ou feito qualquer incorrecta interpretação dos factos e da sua integração jurídica, devendo ser negado provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra a sentença recorrida.
Vossas Excelências, no entanto, decidirão como for de JUSTIÇA.
O Tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo e, após a subida dos autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, propugnando pela improcedência do recurso, devendo, nessa medida, ser mantida a sentença recorrida.
Não foram apresentadas respostas ao parecer.
Admitido o recurso neste tribunal, alterando-se, porém, o efeito do recurso para meramente devolutivo, foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre apreciar e decidir.
II – Objeto do recurso
Nos termos dos arts. 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do art. 41.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10 (RGCO) e arts. 50.º, n.º 4 e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 410.º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo Penal).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Existência de uma única contraordenação continuada;
2) Violação do princípio ne bis in idem; e
3) A aplicação da sanção acessória de encerramento do estabelecimento é desajustada e desproporcional.
III. Matéria de Facto
A matéria de facto mostra-se fixada pela 1.ª instância, uma vez que o tribunal da relação, em sede contraordenacional laboral, apenas conhece da matéria de direito (art. 51.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14-09), com exceção das situações previstas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
A decisão da 1.ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia 29 de março de 2018 equipa de fiscalização da segurança social deslocou-se ao edifício sito no Sitio do Canal, Alagoas, Faro, explorado pela arguida, Pró-idosos, Lda, sob a designação de “O Cantinho do Avô”.
2. Em tal edifício de dois pisos - R/c e 1°andar -, com amplo espaço exterior ajardinado, onde anteriormente funcionou o "Hotel La Reserve” a arguida acolhia, mediante o pagamento de contrapartida monetária mensal compreendida entre os €775,00 e os €1025,00, 90 utentes, com idades entre os 70 e os 101 anos, fornecendo-lhes habitação, alimentação, cuidados de saúde e higiene.
3. Fazia-o sem dispor de licença ou autorização provisória de licenciamento.
4. Levantado o auto de contraordenação, por oficio de 22 de julho de 2019, a arguida foi notificada de que tal consubstanciava infração podendo exercer o direito de defesa.
5. No dia 23 de setembro de 2019 equipa de fiscalização da segurança social deslocou-se ao edifício sito no Sitio do Canal, Alagoas, Faro, explorado pela arguida, Pró-idosos, Lda., sob a designação de “ O Cantinho do Avô”.
6. Em tal edifício de dois pisos - R/c e 1°andar -, com amplo espaço exterior ajardinado, onde anteriormente funcionou o "Hotel La Reserve” a arguida acolhia, mediante o pagamento de contrapartida monetária mensal compreendida entre os €775,00 e os €1025,00, 89 utentes, com idades entre os 63 e os 102 anos, fornecendo-lhes habitação e alimentação, e cuidados de saúde e higiene.
7. Fazia-o sem dispor de licença ou autorização provisória de licenciamento.
8. Levantado o auto de contraordenação, por oficio de 26 de Novembro de 2019, a arguida foi notificada de que tal consubstanciava infração podendo exercer o direito de defesa.
9. A arguida mantinha em funcionamento aquele estabelecimento, naquelas condições, desde Abril de 2004.
10. Em 01 de abril de 2019 a segurança social emitiu parecer técnico favorável a projeto de arquitetura de licenciamento da ERPI com 90 residente no Sitio das Alagoas, Faro.
11. As obras de adaptação do local estão licenciadas pelo alvará nº114/2021 e 29/2022 este com termo a 16 de junho de 2023 mas ainda não estão finalizadas.
12. Por isso a arguida ainda não solicitou à segurança social o licenciamento do funcionamento da ERPI.
13. No âmbito do processo nº463/11.9TTFAR que correu termos no Tribunal de Trabalho de Faro, por sentença proferida em 17/01/2012, transitada em julgado em 31 de janeiro de 2013, e factos referentes ao processo de contraordenação 201000026519 com factos de 13 de julho de 2009, a arguida foi condenada como autora material das contraordenações p. e p. pelo art.30º do DL 133-A/97, 30 de maio ex vi art.45º do DL 64/2007, 14 de março e p. e p. pelo art.31º al. g) do DL 133-A/97, 30 de março ex vi art.45º do DL 64/2007, 14 de março.
14. No âmbito do processo nº3371/19.1RT8FAR que correu termos neste Juízo de Trabalho – J2, por decisão de 25 de abril de 2020, transitada em julgado, e factos respeitantes ao processo de contraordenação 201400117067 (e anexo 20160001528) datados de 3 de julho de 2014, manteve-se a condenação da arguida como autora material de uma contraordenação, p. e p. pelo art.11º nº1, 39º-B al. a), 39º-E al. a) do DL 64/2007, de 14 de março, na versão do DL 33/2014, de 4 de março.
15. Antes de Abril de 2004 o estabelecimento estava instalado na Quinta da Bemposta, Estoi à luz de contrato de cessão de exploração.
16. Tinha, em tais instalações, licenciamento.
17. Sucede que, em Abril de 2004, o cedente impediu o acesso ás instalações e exigiu a entrega das mesmas o que a recorrente fez.
18. Mudando-se subsequentemente para as instalações que agora ocupa.
19. Bem sabia a arguida que não lhe era permitido explorar estabelecimento de lar de idosos sem o devido licenciamento e que tal constituía infração contraordenacional.
20. Porém não se absteve de o explorar.
E foi dado como não provado o seguinte facto:
1. As obras necessárias ao licenciamento estejam em fase de acabamento.
IV – Enquadramento jurídico
1) Existência de uma única contraordenação continuada
No entender da recorrente, as duas contraordenações que lhe são imputadas constituem uma única infração continuada, uma vez que foi apenas a passividade da recorrida, que podia e devia ter determinado o encerramento das instalações da recorrente, ao não o fazer, que permitiu que tal estabelecimento se mantivesse em funcionamento até aos dias de hoje.
Vejamos.
Dispõe o art. 30.º do Código Penal[2] que:
1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.

São, assim, elementos da contraordenação continuada:
a) A realização de várias ações que constituam ilícitos contraordenacionais por violarem o mesmo tipo contraordenacional ou vários tipos contraordenacionais;
b) cujo o bem jurídico protegido seja o mesmo;
c) sendo a execução dessas contraordenações realizada por forma essencialmente homogénea;
d) e no quadro de um determinado contexto exterior que propicie a repetição, fazendo, por isso, diminuir consideravelmente a culpa do seu autor, pressupondo, neste caso, uma certa proximidade temporal entre as práticas contraordenacionais, de forma a fazer presumir uma menor reflexão sobre a atuação praticada.
Conforme bem refere Eduardo Correia:[3]
[…] o fundamento da figura do crime continuado está além do mais no menor grau de culpa do agente e por força de factores exteriores ao agente […] o pressuposto da continuação criminosa será verdadeiramente a existência de uma relação que de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é de acordo com o direito, desde que se não trate de um agente com uma personalidade particularmente sensível a pressões exógenas.

O que possa representar esta relação que “de fora e de maneira considerável, facilita a repetição da atividade criminosa” mostra-se bem esclarecido no Comentário ao Código Penal de Paulo Pinto de Albuquerque:
A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca. No caso de o agente provocar a repetição da ocasião criminosa […] não há diminuição sensível da culpa […]. Ao invés, a culpa pode até ser mais grave, por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso.

Vejamos, então, a situação concreta.
Resultou provado que a arguida foi condenada por duas contraordenações ps. e ps. pelos arts. 11.º, n.º 1, 39.º-B, al. a) e 39.º-E, al. a), todos do DL n.º 64/2007, de 14-03, na redação dada pelo DL n.º 33/2014, de 04-03, por ter:
- no dia 29-03-2018 em funcionamento, no edifício sito no Sítio do Canal, Alagoas, Faro, um local que explorava, onde acolhia, mediante o pagamento de contrapartida monetária mensal compreendida entre os €775,00 e os €1025,00, 90 utentes, com idades entre os 70 e os 101 anos, fornecendo-lhes habitação, alimentação, cuidados de saúde e higiene, sem que contudo dispusesse de licença ou autorização provisória de licenciamento; e
- no dia 23-09-2019 em funcionamento, no edifício sito no Sítio do Canal, Alagoas, Faro, um local que explorava, onde acolhia, mediante o pagamento de contrapartida monetária mensal compreendida entre os €775,00 e os €1025,00, 89 utentes, com idades entre os 63 e os 102 anos, fornecendo-lhes habitação e alimentação, e cuidados de saúde e higiene, sem que contudo dispusesse de licença ou autorização provisória de licenciamento.
É indubitável, por um lado, que estamos perante duas unidades criminosas distintas que constituam ilícitos contraordenacionais por violarem o mesmo tipo contraordenacional, cujo o bem jurídico protegido é o mesmo, sendo a execução dessas duas contraordenações realizada por forma essencialmente homogénea.
Porém, por outro lado, não se vislumbra qual seja o contexto exterior que propicie a repetição, não só porque inexiste proximidade temporal entre ambos os factos (distanciando-os cerca de 1 ano e 6 meses), como também a repetição do segundo ato contraordenacional, praticado em 23-09-2019, ocorre após já ter sido levantado auto pelas entidades competentes relativamente à atuação do primeiro ato contraordenacional, pelo que não é sequer defensável por parte da arguida de uma menor consciência/reflexão sobre a ilegalidade do ato praticado, sendo tal menor consciência/reflexão o pressuposto para uma diminuição do desvalor social que todo o ato contraordenacional implica.
Acresce que resultou igualmente provado que a arguida já tinha sido condenada, por sentença transitada em julgado em 31-01-2013, ou seja, em data anterior à da prática destas duas contraordenações, num processo contraordenacional, pelo mesmo tipo de contraordenação, relativa a ato praticado em 13-07-2009, pelo que inexistia qualquer contexto exterior que permitisse presumir uma menor reflexão sobre a atuação praticada.
Atente-se que, diferentemente daquilo que a arguida parece pretender defender, a manutenção em funcionamento do estabelecimento que explorava como lar de idosos, sem dispor da competente licença ou autorização provisória de licenciamento, após cada autuação contraordenacional efetuada pela Segurança Social, dependia exclusivamente de um ato de vontade sua, ato esse que, sem desconhecimento da ilegalidade que praticava, persistia em renovar. Compete a quem pratica os atos contrários à Lei deixar de os praticar, sobretudo quando inexistem quaisquer dúvidas sobre tais ilegalidades, não sendo responsabilidade das entidades fiscalizadoras, caso não adotem de imediato as medidas mais gravosas, o facto de as medidas menos gravosas não impedirem os arguidos de reincidirem na atividade ilegal. Consigna-se ainda que a reincidência contraordenacional apenas intensifica o grau da culpa do agente, ao invés de o diminuir.
Pelo exposto, por não se mostrarem verificados os requisitos de que depende a prática de uma contraordenação continuada, improcede, nesta parte, a pretensão da arguida.

2) Violação do princípio ne bis in idem
Entende a recorrente que, ao ter sido condenada num outro processo contraordenacional pela prática do mesmo tipo legal de contraordenação, por factos praticados em 03-07-2014, mas cuja sentença judicial apenas transitou em julgado em 22-06-2022, ou seja, após a pratica dos factos que lhe são imputados neste processo, está-se perante uma mesma infração continuada, que abrange não só as duas situações deste processo, como a situação ocorrida em 03-07-2014, visto não se poder falar de uma nova resolução criminosa ou da sua renovação.
Conclui, assim, que já tendo sido sancionada no processo relativo aos factos ocorridos em 03-07-2014, não pode ser mais do que uma vez sancionada pela mesma infração continuada, sob pena de violação dos arts. 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa e 79.º, n.º 1, do Código Penal.[4]
Dispõe o art. 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, que:
5. Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.

Estipula igualmente o art. 79.º, n.º 1, do Código Penal, que:
1 - O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.

Vejamos.
Conforme mencionámos supra, o crime continuado[5] pressupõe diferentes resoluções criminosas por parte do agente, e não apenas única, como a recorrente parece defender, as quais, porém, por respeitarem determinados requisitos, podem ser integradas numa única atuação criminosa continuada, sujeita à aplicação de uma única pena.
No caso em apreço, a arguida foi julgada por factos ocorridos em 03-07-2014, sendo que os factos que constam do presente processo reportam-se a factos ocorridos em 29-03-2018 e em 23-09-2019. Acresce que em cada uma dessas situações a quantidade de idosos que se encontrava no lar era diferente, bem como os próprios idosos eram outros.[6] Não se compreende, assim, como possa a recorrente entender que ao ser julgada pelos factos ocorridos em 03-07-2014, também foi julgada pelos factos ocorridos em 29-03-2018 e em 23-09-2019, os quais eram manifestamente diversos ainda que violassem a mesma disposição legal.
De salientar ainda que, após cada autuação, a arguida, ao retomar a sua atividade ilegal, teve de renovar a sua intenção ilícita, a qual, também como já mencionámos, traduziu-se numa maior intensidade do seu grau de culpa, e não numa menor intensidade desse grau, pelo que, mesmo que os factos ocorridos 03-07-2014 ainda não tivessem sido julgados, não se mostravam cumpridos todos os requisitos que determinam a existência de uma situação de contraordenação continuada.
Pelo exposto, apenas resta concluir pela improcedência, também nesta parte, da pretensão da arguida.

3) A aplicação da sanção acessória de encerramento do estabelecimento é desajustada e desproporcional
Considera a recorrente que a sanção acessória de encerramento do estabelecimento é desajustada e desproporcional, violando o disposto no art. 21.º, n.º 1, do RGCO, na medida em que, apesar da situação ser do conhecimento da Autoridade Recorrida desde 2009, esta usou de total passividade relativamente à sua manutenção, optando pelo encerramento administrativo apenas quando o respetivo processo de legalização das instalações se encontra já na sua fase final.
Estabelece o art. 21.º, n.º 1, al. f), do DL n.º 433/82, de 27-10, que:
1 - A lei pode, simultaneamente com a coima, determinar as seguintes sanções acessórias, em função da gravidade da infracção e da culpa do agente:
[…]
f) Encerramento de estabelecimento cujo funcionamento esteja sujeito a autorização ou licença de autoridade administrativa;

Por sua vez, estabelece o art. 39.º-H, n.º 1, al. d), do DL n.º 64/2007, de 14-03, na redação dada pelo DL n.º 33/2014, de 04-03, que:
1 - Cumulativamente com as coimas previstas pela prática de infrações muito graves e graves, podem ser aplicadas ao infrator as seguintes sanções acessórias:
[…]
d) Encerramento do estabelecimento e suspensão da licença ou da autorização provisória de funcionamento;

Da conjugação destes dois artigos resulta que, em caso de infrações muito graves e graves, atendendo à culpa do agente, pode ser determinada a sanção acessória de encerramento do estabelecimento.
As contraordenações previstas no art.39.º-B, al. a), do DL n.º 64/2007, de 14-03, na redação dada pelo DL n.º 33/2014, de 04-03, são infrações muito graves.
Por outro lado, a circunstância de a arguida, apesar das diversas condenações por este tipo de contraordenações, persistir na renovação do ato ilegal, determina um aumento do grau da culpa, sendo que a arguida atuou com dolo direto (factos provados 19 e 20).
Por fim, resta referir que a argumentação invocada pela arguida de que o seu processo de legalização das instalações se encontra já na sua fase final não resultou provado, conforme facto não provado 1).
Deste modo, bem andou o tribunal da 1.ª instância em ter mantido a sanção acessória de encerramento do estabelecimento onde a arguida exerce a sua atividade ilegal.
Em conclusão, improcede a pretensão da arguida também neste ponto.
V - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art. 8.º, n.º 7 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
Notifique.
Évora, 15 de junho de 2023
Emília Ramos Costa (relatora)
Mário Branco Coelho
Paula do Paço

__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Mário Branco Coelho; 2.ª Adjunta: Paula do Paço.
[2] Aplicável por força do disposto no art. 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, e art. 41.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27-10, na sua versão atualizada.
[3] In Direito Criminal, II, Almedina, Coimbra, 1971, p. 203.
[4] Apesar de a recorrente ter efetuado menção ao Código de Processo Penal, tal deverá ter configurado um lapso.
[5] E necessariamente também a contraordenação continuada.
[6] Aliás, é isso que resulta da matéria factual dada como provada.