Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3459/24.7T8PTM-A.E1
Relator: ANABELA RAIMUNDO FIALHO
Descritores: CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS - CONVENÇÃO DE HAIA
ASSINADA EM 25 DE OUTUBRO DE 1980
CONDENAÇÃO
DESPESAS DE DESLOCAÇÃO
Data do Acordão: 10/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I) Para efeitos de condenação no pagamento de despesas decorrentes da deslocação/retenção ilícita de uma criança, ao abrigo do previsto no artigo 26.º da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25/10/1980, é irrelevante que a decisão de regresso se pronuncie quanto ao mérito ou que se limite a homologar um acordo ou a confirmar a aceitação da parte requerida.
II) Ainda que o objetivo essencial da Convenção seja o de assegurar o regresso imediato de crianças deslocadas ou retidas ilicitamente de um Estado Contratante, não pode o tribunal deixar de decidir quanto a outros pedidos conexos quando os mesmos contam com fundamento convencional pelo facto de o regresso ocorrer voluntariamente.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3459/24.7T8PTM-A.E1
Tribunal Recorrido - Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Família e Menores de Portimão, Juiz 2
Recorrente (Requerente) – (…)
Recorrida (Requerida) – (…)
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Sumário: (…)
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Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO

(…) instaurou os presentes autos de processo tutelar comum, à luz da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25/10/1980 (doravante, Convenção), contra (…), relativamente às filhas de ambos, (…) e (…), nascidas, respetivamente, a 17 de janeiro de 2018 e 5 de novembro de 2015, pedindo, em síntese, que fosse regulado o direito de visitas entre pai e filhas, considerada ilícita a deslocação e a retenção em Portugal das crianças e ordenado o regresso imediato das mesmas a Israel e ainda condenada a progenitora a entregar imediatamente as crianças e a pagar ao Requerente o valor de € 40.147,07 e todas as despesas em que este venha a incorrer por causa da deslocação e ou retenção ilícita e ou do impedimento ao exercício do direito de visita, incluindo as relativas a honorários e despesas da mandatária e a viagens, nos termos do artigo 26.º da citada Convenção.
Alegou para o efeito, também em síntese, que, após férias em Portugal, a mãe recusou o regresso das crianças a Israel, aqui permanecendo com as mesmas. Alegou ainda que passou a ter dificuldades de convívio com as filhas e juntou aos autos decisão proferida por Tribunal de Israel, ordenando, além do mais, o regresso das crianças a este país. Finalmente, alegou que suportou diversas despesas com as viagens entre os dois países, alojamento, tradução de documentos, pagamento a Advogada, perda de vencimento e pagamento de renda da casa de morada de família.

Foi proferido despacho inicial e designada data para audição da Requerida e das crianças, o que ocorreu a 15 de janeiro de 2025.

Nessa diligência, a Requerida aceitou o regresso das crianças a Israel, tendo sido, em consequência, proferido o seguinte despacho:
Considerando a manifestação de vontade e aceitação da progenitora, determino o regresso imediato das crianças a Israel (artigos 7.º, alínea c) e 10.º da Convenção de Haia de 1980).
Comunique ao Sirene que as crianças poderão regressar ao país de origem na companhia do progenitor.
Comunique à DGAJ.
Em face do consentimento da progenitora o Tribunal irá proceder à audição breve das crianças.
Notifique”.

No final da diligência, o Requerente pediu o prazo de dois dias para ponderar a desistência dos demais pedidos, tendo sido proferido, então, o seguinte despacho:
O comportamento da progenitora perante as filhas e presenciado pelo Tribunal revela, pelo menos, falta de sensibilidade com o bem-estar emocional das crianças.
Neste quadro, fica a progenitora especialmente advertida que, caso coloque algum obstáculo a que as crianças regressem a Israel com o pai, contrariando o que se comprometeu, na data da viagem que o pai adquiriu, o Tribunal determinará a emissão de mandados com o auxílio das entidades policiais em conjugação com Técnico da Segurança Social que acompanhem e assegurem a condução das crianças até ao embarque nas maiores e melhores condições de estabilidade emocional para as mesmas.
Tenha-se ainda em atenção que nada obsta a que as crianças regressem para além de acompanhadas pelo progenitor também acompanhadas pela progenitora caso esta seja a sua vontade. O pai tem passaportes novos das crianças e será com esses passaportes que se irá ausentar do país com os mesmos, devendo para tal ser informado o Sirene.
As crianças deverão ser entregues até às 20:00 horas do dia hoje ao progenitor com os seus pertences de forma a garantir a viagem de volta a Israel.
Quanto ao requerido pela Ilustre Mandatária do progenitor aguarde-se o prazo de 2 dias quanto a possível desistência dos demais pedidos”.

Entretanto e conforme informação constante dos autos, prestada pela DGAJ, as crianças regressaram efetivamente a Israel no dia 16 de janeiro de 2025.

Após, o Requerente declarou nos autos que mantinha o pedido relativo à condenação da Requerida no pagamento das despesas em que incorreu na sequência do comportamento de retenção (alegadamente ilícita) das crianças em Portugal por parte daquela.

A 20 de janeiro, o tribunal proferiu o seguinte despacho:
Com cópia do requerimento que antecede junto pelo progenitor e bem assim da petição inicial, havendo os autos de prosseguir quanto ao demais peticionado, notifique-se a progenitora para, querendo, alegar e juntar os respectivos elementos de prova”.

Posteriormente, foram juntas aos autos decisões emanadas do Tribunal de Família em (…), em Israel, mediante as quais a Requerida é condenada a pagar ao Requerente quantias relacionadas com a deslocação e permanência das crianças em Portugal. Perante tais decisões, nos presentes autos, o Requerente reduziu o pedido de condenação no pagamento de despesas para € 38.969,29 (vd. requerimento de 31 de março de 2025).

A 13 de junho de 2025 foi proferida sentença que absolveu a Requerida do pagamento das aludidas despesas, com fundamento na inaplicabilidade do artigo 26.º da Convenção, por não ter sido proferida decisão a ordenar o regresso das crianças a Israel, em face do regresso aceite pela mesma.
Inconformado com esta decisão, o Requerente interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1. O Recorrente teve que propor o presente processo porque a Recorrida ilicitamente deslocou e reteve em Portugal as crianças e durante 9 meses a mesma se recusou a cessar a retenção ilícita apesar das insistentes tentativas do Recorrente para que aquela voluntária e extrajudicialmente fizesse regressar as crianças à sua residência habitual.
2. Durante esses 9 meses e até ao regresso das crianças a Israel, o Recorrente incorreu
em avultadas despesas, incluindo de viagem e de representação judiciária, como alegou e apresentou prova.
3. O despacho, proferido em sede de audição dos progenitores e da criança, que determina o regresso imediato das crianças ao país da sua residência habitual, mesmo que tenha sido tomado após a aceitação, naquela audição, por parte da progenitora que ilicitamente deslocou e reteve as crianças, de tal regresso na companhia do progenitor, é uma decisão judicial que contém uma ordem – a do regresso – para efeitos do disposto no artigo 26.º da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
4. Ou seja, tal aceitação por parte da Recorrida não tem, nem pode ter, o condão de a isentar ou de a desobrigar de pagar ao Recorrente as despesas que este peticionou ao abrigo do artigo 26.º da Convenção.
5. A ser assim, injustificadamente beneficiar-se-ia a progenitora infractora e penalizar-se-ia o outro progenitor, que já era vítima da deslocação e retenção ilícitas.
6. O regresso das crianças, na sequência da propositura da acção, da audição dos progenitores e das crianças, da aceitação do regresso por parte da progenitora infractora e do despacho que, nessa sequência, determina tal regresso, não tem como efeito a impossibilidade de procedência do pedido de condenação no pagamento das despesas, formulado pelo Recorrente na petição inicial, e do qual o mesmo não desistiu.
7. A decisão, contida no predito despacho, que determina o regresso imediato das crianças, refere-se a um só dos pedidos formulados pelo Recorrido – o principal, é certo – mas ele tem direito a que o processo prossiga para conhecimento dos restantes pedidos, nomeadamente quanto ao de condenação da Recorrida no pagamento das despesas que suportou por causa da deslocação e da retenção ilícitas, sob pena de denegação de justiça.
8. Pelo que a decisão sob recurso viola o disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança e o artigo 26.º da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças”.
A Requerida contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
1. Não é cabível qualquer indemnização ou compensação financeira em favor do recorrente, posto que o regresso da recorrida ocorreu em virtude de acordo, e não por força de decisão judicial que verse sobre o mérito da legalidade do deslocamento e da retenção, conforme requisito expresso constante do artigo 26.º da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
2. Não houve qualquer deslocamento ilícito por parte da recorrida, posto que a viagem de férias das filhas, recorrente e recorrida aconteceram em Portugal por comum acordo entre ela e o recorrente no dia 17 de abril a 07 de maio de 2024.
3. Também não houve retenção ilícita por parte da recorrida, visto que o regresso das menores a Israel as sujeitaria a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável, nos termos do artigo 13.º, alínea b, da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado: Decreto do Governo n.º 33/83 de 11 de Maio, consistindo, portanto, numa situação excecional em que ilegalidade de retenção é afastada.
4. Nos termos do artigo 26.º da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, o tribunal não é obrigado a condenar a qualquer indemnização, devendo fazer apenas em caso de necessidade. Não se vislumbra a necessidade de tal condenação neste processo, uma vez que: a) não houve decisão coercitiva oriunda da Justiça Portuguesa que ordenasse o regresso; b) o caso já foi discutido nos tribunais de Israel; c) a compensação requerida pelo recorrente não tem intuito de ressarcir o progenitor por supostos danos, mas de funcionar como um meio de violência psicológica para levá-la à falência financeira, considerando que ele não custeava com a manutenção das menores em igual proporção com a progenitora, desde a chegada da família em Portugal, quando este o deveria fazer, independentemente de haver determinação ou não de pensão alimentícia por meio de regulação das responsabilidades parentais.
5. A Justiça Israelita é competente para apreciar a viabilidade desse tipo de condenação, nos termos do artigo 9.º, n.º 1 e 7, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
6. A sentença acerca da avaliação das pretensões de compensação financeira já transitou em julgado, devendo o progenitor se insurgir nos tribunais israelenses caso ele entenda como irrisória.
7. Rediscutir a matéria em tribunais portugueses vai acarretar o pagamento em duplicidade e enriquecimento ilícito por parte do recorrente.
8. Pelo exposto, o entendimento perfilhado pelo recorrente consiste em violação ao artigo 1.º e 26.º da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, aprovada pelo Decreto do Governo n.º 33/83, de 11 de Maio e ao artigo 9.º, n.º 1 e 7, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, devendo ser julgado improcedente o recurso”.
O Ministério Público apresentou contra-alegações, manifestando concordância com o decidido e respetivos fundamentos.
O recurso foi admitido.

1.1. Questão a decidir
Considerando as conclusões do recurso, há que decidir se, tendo ocorrido o regresso voluntário das crianças, filhas do Requerente e da Requerida, a Israel, pode esta, ainda assim, ser condenada a pagar ao 1º as despesas que o mesmo suportou em virtude da deslocação e retenção das crianças em Portugal, à luz do previsto no artigo 26.º da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças de 25/10/1980.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

1.2. Questão prévia
A Requerida, embora de modo pouco rigoroso, suscitou a questão da incompetência internacional dos tribunais portugueses para decidir quanto à questão em apreço, invocando o disposto no artigo 9.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e o critério aí consagrado para aferição da competência territorial dos tribunais da residência da criança no momento em que o processo é instaurado. Para sustentar a sua posição, alude ao facto de ter sido proferido despacho a 10 de janeiro de 2025, que ordenou a suspensão dos autos de regulação das responsabilidades parentais, por ter sido efetuado pelo progenitor, ao abrigo da Convenção de Haia, pedido de regresso das crianças a Israel, país da sua residência habitual e onde se encontra igualmente pendente processo de regulação das responsabilidades parentais. Para além disso e face à decisão proferida a 6 de fevereiro de 2025 nos autos de regulação das responsabilidades parentais em apenso, na qual foi declarada a incompetência internacional dos tribunais portugueses para apreciar o pedido de regulação das responsabilidades parentais, alega que tal entendimento deve “ser estendido a seus processos acessórios”, como é o presente.
O Recorrente, por seu turno e quanto a esta questão, declarou que não tem razão a Requerida, porquanto é a própria Convenção da Haia que atribui competência internacional, no caso, aos tribunais portugueses.
O Ministério Público pronunciou-se igualmente quanto a esta questão, defendendo que “tendo sido atingido o objetivo da Convenção e encontrando-se a correr termos em Israel, processos relacionados com as questões e direitos das crianças (o que resulta dos documentos juntos, bem como, da alegação do pai), é esse o tribunal internacionalmente competente para decidir, todas as questões relacionadas com as crianças e que com estas se mostrem conexas. Nomeadamente, o pedido de despesas formulado, cuja causa de pedir, assenta na decisão de regresso proferida pelo tribunal da sua área de residência, em Israel”, concluindo, assim, pela incompetência internacional do tribunal nacional.
Ora, ainda que o tribunal a quo não se tenha pronunciado sobre esta questão e que, nem as partes, nem o Ministério Público, em sede de alegações de recurso ou contra-alegações tenham feito qualquer outra referência à mesma, por uma questão de clareza e face ao disposto no artigo 655.º, n.º 2, do CPC, dir-se-á brevemente o seguinte (referindo-se ainda que, por se terem as partes já pronunciado, mostra-se desnecessário dar cumprimento ao n.º 3):
Resulta evidente do alegado, quer pela Recorrida, quer pelo Ministério Público, que confundem a aplicação das regras relativas à atribuição de competência internacional para a ação de regulação das responsabilidades parentais e para a ação de regresso, instaurada à luz da Convenção da Haia de 1980.
Com efeito e relativamente à primeira, não oferece qualquer dúvida que há que apurar qual o país da residência habitual da criança e que serão os tribunais desse país os competentes para regular as questões compreendidas no exercício das responsabilidades parentais. A título meramente exemplificativo, veja-se o acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 11/05/2023 (proferido no processo n.º 20/22.4T8VVC.E1, da relatora Maria Adelaide Domingos, in dgsi), em cujo sumário se escreveu:
1. Tendo a criança sido deslocada ilicitamente do Estado-Membro onde residia habitualmente (França) para o nosso país, ainda que não seja ordenado o seu regresso ao abrigo do artigo 13.º, alínea b), da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção de Haia de 1980), a competência internacional para decidir a ação de regulação das responsabilidades parentais, instaurada em Portugal, quando a criança se encontrava há 14 dias em Portugal, é regulada pelo artigo 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27-11-2003 (…)
2. A atribuição da competência internacional é deferida ao tribunal da residência habitual antes da deslocação ilícita, à data da instauração da ação que visa regular as responsabilidades parentais, exceto se se verificarem as condições da alínea a) ou b), subalíneas i) a iv) do artigo 10.º do referido Regulamento.
3. O artigo 10.º deste Regulamento visa desincentivar que o rapto de crianças (i. e., deslocações ou retenções ilícitas) determine a transferência da competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros onde a criança antes residia habitualmente para os do local para onde foi deslocada ilicitamente. (…)”.
Porém, numa situação em que esteja em causa uma deslocação ilícita e uma decisão sobre o regresso duma criança, não se trata de apurar a competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer das responsabilidades parentais, direito de guarda ou outras questões respeitantes a essa criança, mas, tão só, de definir o modo como tal regresso deve ser requerido e junto de que entidades, resultando claro da leitura dos artigos 8.º a 20.º da Convenção e, desde logo, dos artigos 12.º e 13.º, que cabe à autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar decidir ordenar ou não o seu regresso ao país da residência habitual antes da deslocação.
Ora, se assim é, não pode deixar de ser o mesmo tribunal o competente para decidir quanto à condenação ou não no pagamento de despesas, ao abrigo do previsto no artigo 26.º da Convenção, sendo, aliás, literal o argumento nesse sentido.
Face ao exposto, conclui-se pois que os tribunais nacionais são internacionalmente competentes para conhecer do pedido apresentado pelo Requerente, com fundamento no citado artigo 26.º, decorrente da “ordem” de regresso das suas filhas ao país natal e de residência habitual.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Fundamentos de facto
A matéria de facto a considerar é a que consta do Relatório que antecede.

2.2. Apreciação do objeto do recurso
A decisão recorrida julgou improcedente o pedido formulado pelo Recorrente ao abrigo do disposto no artigo 26.º da Convenção, dele absolvendo a Recorrida, por entender que tal normativo não é aplicável ao presente caso, uma vez que o regresso das crianças a Israel, seu país natal e de residência, ocorreu com a concordância da mãe, aqui Requerida/Recorrida.
Vejamos se lhe assiste razão.
A Convenção da Haia de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, em vigor no nosso ordenamento jurídico desde 1 de dezembro de 1983, dispõe no seu artigo 12.º que “quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respetiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.”
Esta Convenção tem, assim, “o objectivo essencial de assegurar o regresso imediato de crianças deslocadas ou retidas ilicitamente de um Estado Contratante (designado por Estado onde a criança tinha a sua residência habitual), fazer respeitar efectivamente nos outros Estados Contratantes os direitos de guarda e de visita que existiam naquele Estado (da residência habitual) e, paralelamente, evidenciando o princípio da confiança e do respeito mútuo pelas decisões dos diversos Estados, através da institucionalização de um mecanismo de colaboração de autoridades centrais e, mais recentemente, através das redes judiciais e do estabelecimento de comunicações judiciais directas” (António José Fialho, Contributo para um regime processual das ações de regresso das crianças ilicitamente deslocadas ou retidas (CH 1980), in Julgar on line, maio 2019).
No presente caso e no cumprimento do disposto nos artigos 10.º e 11.º da Convenção, foi tentada uma solução consensual para o regresso das crianças a Israel, o que foi possível, já que a mãe aceitou o regresso das filhas àquele país, o que, efetivamente, veio a concretizar-se.
Ainda assim e após lhe ter sido concedido prazo para ponderar sobre o interesse na decisão quanto ao demais pedido – a condenação da Recorrida no ressarcimento de despesas efetuadas, ao abrigo do previsto no artigo 26.º da Convenção – o Recorrente reiterou esse interesse, tendo o tribunal determinado o prosseguimento dos autos com o exercício do contraditório por parte daquela.
Prevê o mencionado artigo 26.º o seguinte:
Cada autoridade central deverá suportar os encargos que resultam da aplicação da Convenção.
A autoridade central e os outros serviços públicos dos Estados Contratantes não deverão exigir o pagamento de quaisquer custas pela interposição de pedidos feitos ao abrigo da presente Convenção. Não poderão, especialmente, reclamar do requerente o pagamento de custas e de despesas efectuadas com o processo ou, eventualmente, com a participação de um advogado. Mas poderão exigir o pagamento das despesas ocasionadas pelo regresso da criança.
Todavia, qualquer Estado Contratante poderá, ao fazer a reserva prevista no Artigo 42.º, declarar que não se obriga ao pagamento dos encargos previstos no parágrafo anterior, referentes à participação de advogado ou de consultor jurídico ou ao pagamento das custas judiciais, excepto se esses encargos puderem ser cobertos pelo seu sistema de assistência judiciária e jurídica.
Ao ordenar o regresso da criança ou ao regular o direito de visita no quadro da presente Convenção, as autoridades judiciais ou administrativas podem, se necessário, impor à pessoa que deslocou ou que haja retido a criança ou que tenha impedido o exercício do direito de visita o pagamento de todas as despesas necessárias efectuadas pelo requerente ou em seu nome, incluindo as despesas de viagem, as efectuadas com a representação judiciária do requerente e com o regresso da criança, bem como todas as custas e despesas feitas para localizar a criança” (sublinhado nosso).
E é, precisamente, a interpretação – divergente – desta norma que está em causa neste momento processual.
Com efeito, entendeu o tribunal a quo, a este respeito, o seguinte:
A norma em apreço pressupõe, desde logo, como requisito da sua aplicação que haja uma decisão a ordenar o regresso da criança – “Ao ordenar o regresso da criança (…)” – o que não se verifica no caso presente e que impede ad initio o deferimento da pretensão do progenitor.
Como se referiu, o Tribunal limitou-se a constatar a aceitação do regresso voluntário das crianças pela progenitora Requerida sem ter feito qualquer juízo de apreciação do carácter ilícito da retenção ou sequer do direito de visita. E nem o poderia ter feito naquele momento processual por nem sequer ter existido ainda o necessário contraditório da Requerida e eventual produção dos elementos de prova que por esta fossem invocados.
Só após tal juízo de apreciação factual e contraditório, era possível ao Tribunal, fazendo a subsunção dos factos provados às normas legais aplicáveis da Convenção, determinar se a retenção era ilícita ou não. Não o tendo feito, por aceitação do regresso, não poderia haver condenação.
E não se diga que no despacho proferido pelo Tribunal “Considerando a manifestação de vontade e aceitação da progenitora, determino o regresso imediato das crianças a Israel (artigos 7.º, alínea c) e 10.º da Convenção de Haia de 1980)” preenche aquela condição legal. Como é notório, o despacho do Tribunal não é uma decisão a ordenar o regresso da criança após discussão das posições das partes, é uma mera formulação face à aceitação de regresso voluntário.
Medida em que se verifica uma impossibilidade de procedência do pedido”.
Não nos parece, porém, que este argumento possa proceder.
Com efeito, é bem verdade que, perante a aceitação por parte da Recorrida de consentir no regresso das filhas ao seu país natal e de residência habitual, o tribunal limitou-se a confirmar tal decisão, determinando o regresso das crianças, nos termos em que, na sequência de um qualquer acordo das partes numa ação, é proferida sentença homologatória do mesmo, a qual, incorpora tal acordo. Ainda assim, foi um pouco além dessa mera confirmação, fixando, por exemplo, os exatos termos em que deveria ocorrer a entrega das crianças ao pai e prevendo consequências para a mãe, caso não cumprisse o determinado. Não deixa, por isso, de se tratar de uma decisão, com todos os efeitos legais daí decorrentes, designadamente, o de caso julgado.
Como se escreveu no sumário do acórdão do TRG, de 9/01/2025 (proferido no processo n.º 220/24.2T8P.G1 do relator José Alberto Moreira Dias, in Jurisprudência.pt): Embora a sentença homologatória de transação judicial configure uma decisão de mérito, não é o juiz que decide o litígio que contrapõe as partes, mas são antes estas que, por acordo (contrato), decidem o modo como esse litígio judicial é entre elas, total ou parcialmente, solucionado, limitando-se o julgador, em sede homologatória, a exercer uma função de puro controlo da legalidade da transação celebrada quanto à qualidade das partes nela intervenientes e ao seu objeto e, no caso de se certificar da sua validade, a homologá-la, conferindo-lhe força executiva e de incontestabilidade intra e extraprocessualmente”.
E, também a este propósito, escreveu-se no acórdão do TRL de 19/11/2009 (proferido no processo n.º 6161/05.5TVLSB.L1-8, do relator Ferreira de Almeida, in dgsi) que “Revestindo a sentença homologatória de transacção natureza de verdadeira sentença, não diverge a situação resultante da transacção homologada da que ocorreria se, prosseguindo seus termos a acção em que se dirimia o litígio, na mesma houvesse sido proferida sentença final”.
Tal significa, pois, que não cabe distinguir, para efeitos de aplicação do disposto no artigo 26.º da Convenção, se a decisão que lhe serve de fundamento conhece do mérito da causa, eventualmente na sequência de produção de prova, ou se se limita a homologar um acordo das partes ou, até, a uma manifestação de vontade de uma delas, consonante com a pretensão da outra.
Por outro lado, entende ainda – e bem, nesta parte – o tribunal a quo que a decisão de condenação no pagamento de despesas não é automática, nem obrigatória, carecendo da verificação (leia-se, prova) de várias circunstâncias. Escreveu-se o seguinte, a este propósito, na decisão recorrida: “Ademais, sempre haveria ainda que atender ao preenchimento do demais estatuído, ou seja, “as autoridades judiciais ou administrativas podem, se necessário, impor à pessoa que deslocou ou que haja retido (…) o pagamento”. Ou seja, existe uma possibilidade (“podem”), não uma obrigação e que depende de um juízo de necessidade (“se necessário”). A condenação nas despesas é uma possibilidade a aferir no caso concreto e dependente de um juízo de necessidade que poderá estar associado, sem prejuízo da avaliação do carácter ilícito da conduta do progenitor, a uma situação de maior desfavorecimento económico do progenitor com quem a criança não se encontrava e que dificulta a execução do regresso e, bem assim, de necessidade de, por força do peso económico do pagamento das despesas com a retenção, compelir o progenitor infractor a um mais célere cumprimento da decisão de regresso, tudo isto condições que o Tribunal não tinha de conhecer face à aceitação voluntária com imediato cumprimento”.
Não lhe assiste, porém, razão nesta conclusão. Na verdade e ainda que, como adiante refere, “O foco da Convenção é o regresso imediato das crianças e não a disputa de outras quaisquer questões entre os pais e muito menos questões indemnizatórias de prejuízos”, não podem ser menosprezados ou deixados de ser considerados outros pedidos – secundários, subsidiários, conexos com o principal – quando a própria Convenção prevê tais mecanismos de ressarcimentos de prejuízos.
A propósito da norma em causa – o artigo 26.º da Convenção – escreveu-se no Relatório Explicativo: “O quarto parágrafo contém um tipo de disposição bastante diferente, pela qual as autoridades internas competentes podem ordenar ao «raptor» ou à pessoa que impediu o exercício dos direitos de visita que pague as despesas necessárias incorridas pelo requerente ou em seu nome, incluindo «despesas de viagem, quaisquer custos incorridos ou pagamentos efetuados para localizar a criança, os custos da representação legal do requerente e os da devolução da criança». Mas, uma vez que esta regra é apenas uma disposição opcional, que reconhece o poder discricionário que pode ser exercido pelos tribunais em cada caso, o seu âmbito parece ser particularmente simbólico, um possível dissuasor de comportamentos contrários aos objetivos da Convenção.” (in Explanatory Report by Elisa Pérez-Vera, tradução livre).

No presente caso, o próprio tribunal a quo concedeu prazo ao Recorrente para que o mesmo ponderasse se mantinha o interesse na decisão quanto aos demais pedidos e, perante a sua resposta afirmativa, garantiu a observância do contraditório, proferindo, a 20 de janeiro do corrente ano, um despacho com o seguinte teor: “Com cópia do requerimento que antecede junto pelo progenitor e bem assim da petição inicial, havendo os autos de prosseguir quanto ao demais peticionado, notifique-se a progenitora para, querendo, alegar e juntar os respectivos elementos de prova” (sublinhado nosso). Ora, ao proferir depois sentença, decidindo pela improcedência do pedido, com fundamento na inaplicabilidade do normativo em causa, agiu numa espécie de venire contra factum proprium.
E nem se diga que o facto de ter corrido termos ação em tribunal israelita, na qual a aqui Requerida foi condenada no pagamento ao Recorrente de quantias relacionadas com a deslocação e permanências das crianças em Portugal altera o entendimento que ora se perfilha. Com efeito e ao contrário do que entende o tribunal a quo, pode e deve averiguar quais os pedidos concretos formulados naquela ação e qual a medida exata da condenação/absolvição, para desse modo obviar a que a Recorrida seja duplamente condenada no mesmo pedido. Aliás, por despacho proferido a 14 de fevereiro do corrente ano, o tribunal a quo deferiu o pedido do Recorrente de prorrogação de prazo para exercício do contraditório, com vista a solicitar ao Tribunal em Israel “a especificação das despesas que o mesmo incluiu no valor da indemnização que condenou a requerida a pagar ao requerente, de modo a que, após, neste processo, exerça o dito contraditório e eventualmente altere a causa de pedir e ou o pedido” – o que veio a fazer por requerimento de 31 de março, no qual reduziu o montante do pedido.
Face ao exposto, procedem, pois, as conclusões da apelação.

3. DECISÃO
Nestes termos, julga-se a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine os ulteriores termos do processo.
Custas pela Recorrida (cfr. artigo 527.º do CPC).
Notifique.
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Évora, 30 de outubro de 2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Anabela Raimundo Fialho (Relatora)
Helena Bolieiro (1ª Adjunta)
Miguel Teixeira (2º Adjunto)