Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1312/21.5T8SLV-A.E1
Relator: RICARDO MIRANDA PEIXOTO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
DECLARAÇÃO TÁCITA
ACEITAÇÃO TÁCITA
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: SUMÁRIO (art.º 663º, n.º 7, do CPC):

I. Constitui aceitação tácita do cumprimento da obrigação de prestação de contas (n.º 1 do art.º 217º do CC), o pagamento, sem qualquer declaração de reserva por parte do devedor, do saldo em dívida nas mesmas previsto.


II. Está, por isso, vedado à parte que aceitou tacitamente as contas prestadas, vir executar posteriormente sanção pecuniária compulsória prevista para o deficiente cumprimento da obrigação de prestação de contas quando, até à propositura da acção executiva, não manifestou a sua discordância em relação aos respectivos termos que já eram do seu conhecimento nas datas em que realizou os pagamentos.


III. Incorre em abuso do direito na modalidade de “venire contra factum proprium” (art.º 334º do CC), a conduta de quem, tendo criado com o seu pagamento a convicção de que concordava com o modo como a prestadora das contas estava cumprir essa obrigação, veio arrogar-se anos mais tarde, sem aviso prévio ou manifestação de discordância, titular do direito a aplicar uma sanção pecuniária compulsória fundada no incumprimento daquela prestação.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo

Relator: Ricardo Miranda Peixoto;


1º Adjunto: Susana Ferrão da Costa Cabral;


2º Adjunto: Manuel Bargado.


*


***


I. RELATÓRIO


*


A.


Vêm os presentes embargos de executado, propostos por apenso aos autos de execução principais que Condomínio ... Lote 2 moveu ao Condomínio ... Lote 5 para execução da sentença que condenou este a:


“- Facultar aos condóminos do lote dois o acesso à piscina e jardim envolventes do lote cinco retirando as barreiras existentes e facultando-lhes as chaves de acesso ao local.


- A pagar ao autor uma indemnização pela privação do uso da piscina desde o verão de 2006 até à data desta sentença, no valor de €10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros desde a respectiva citação até efectivo e integral pagamento.


- e a apresentar contas com as despesas efectiva e realmente realizada para conservação e manutenção daqueles espaços, justificando os valores gastos e a fórmula de divisão e cálculo das respectivas quota-parte.


- Pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de €50,00 (cinquenta euros) por cada dia de atraso no cumprimento de qualquer dos pontos da presente sentença que vier a ser decretada”.


Pede o Embargante / Executado a improcedência da pretensão do Exequente / Embargado e a absolvição do pedido.


Alegou para o efeito que, ainda antes da condenação transitada a 1 de Junho de 2015, o Executado, aqui Embargante, entregou ao Exequente, aqui Embargado, a chave que permitia o acesso à piscina e ao jardim envolvente a 20 de Abril de 2015. Por se ter estragado, o canhão da fechadura foi alterado pela actual administração, a “RPG – Condominium, Lda.”, mas foi entregue cópia da nova chave, a AA, em Agosto de 2016, depois de lhe ter sido comunicada a substituição. Negou que a realização faseada dos pagamentos tenha sido por imposição unilateral do Executado/Embargante. Debatidos que foram, a partir de 26 de Agosto de 2016, os orçamentos da gestão da piscina para ao ano de 2016, AA aceitou a liquidação, pelo Exequente/Embargado ao Executado/Embargado, da quantia anual de € 1.357,50, pagamentos realizados em 07.07.2018 e em 17.07.2018, referentes aos exercícios de 17/18 e 18/19, respectivamente.


B.


Contestou o Embargado/Exequente, sustentando a improcedência dos embargos.


Impugnou a entrega da nova chave ao condomínio em Agosto de 2016, o acordo prestacionado da quantia em que o Executado/Embargante foi condenado, assim como o válido cumprimento da obrigação de prestação de contas estabelecida na sentença, já que esta apenas alude ao valor total a pagar, não especificando métodos e formulas de cálculo, nem contendo documentos de suporte das despesas efectuadas com a manutenção e conservação.


Alegou também que devido às obras que foram realizadas na piscina e à omissão de entrega da nova chave, só há dois anos os condóminos do Lote 2 conseguem aceder à piscina e ao seu espaço envolvente e que o valor pago pelo Executado/Embargante não reflecte os juros e a sanção compulsória devidos por não ter sido efectuado tempestivamente.


C.


Depois da audiência prévia, foi proferido despacho-saneador que, entre o mais, identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.


D.


Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou procedentes os embargos de executado e, em consequência, declarou extinta a execução.


E.


Inconformado com o decidido, o Exequente/Embargado interpôs o presente recurso de apelação.


Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial sem sublinhado e negrito da origem):


“(…)


2. Ao longo dos anos o Recorrido não cumpriu integralmente a sentença condenatória mencionada no ponto 1.


3. O incumprimento de qualquer um dos pontos da mencionada sentença conduz à aplicação da sanção pecuniária compulsória prevista na aludida sentença.


4. O Recorrido não apresentou as contas com despesas efectivas e realmente realizadas para a conservação e manutenção da piscina, justificando os valores gastos e a fórmula de divisão e cálculo das respectiva quota-parte.


5. O Recorrido apresentou para o ano de exercício de 2017/2018 o valor total de despesas de € 1357,50.


6. O Recorrido, voltou a apresentar o valor de, para o ano de exercício de 2018/2019, de 1357,50, o que leva a crer que as contas apresentadas são cópia das anteriormente apresentadas.


7. O Recorrido não justifica documentalmente, ou de qualquer outra forma, como chega a esse valor.


8. O Recorrente pagou dois anos a quantia peticionada, somente para não colocar em risco a possibilidade dos condóminos usarem esse espaço (piscina).


9. O facto de ter pago essa quantia peticionada pelo Recorrido, sem ter em conta os critérios da sentença, não valida as contas apresentadas, nem afasta a obrigação do cumprimento integral da decisão judicial.


10. O facto de só passados 3 anos o Recorrente propor a acção executiva não pode ser considerado que o Recorrente anuiu com a conduta incumpridora do Recorrido.


11. As sentenças e decisões judiciais são para serem cumpridas pontualmente.


12. As sentenças ou decisões judiciais não deixam de produzir os seus efeitos pelo decurso do tempo.


13. O Recorrente tem o direito de ver cumprida a decisão judicial, já mencionada, devendo o Recorrido apresentar as contas conforme o determinado judicialmente.


14. O Recorrente tem o direito a receber a sanção pecuniária compulsória peticionada na execução.


15. A acção executiva deverá prosseguir os seus normais trâmites de forma a efectivar os legais direitos do ora Recorrente.


16. Não ficou provado que os documentos apresentados pelo Recorrido cumpram o determinado na sentença condenatória ou que o Recorrente tenha aceite o seu cumprimento defeituoso.


17. A acção executiva proposta foi tempestivamente e é o meio próprio para o Recorrente fazer valor os seus direitos. (…)”.


F.


O Recorrido/Embargante respondeu, concluindo nas suas contra-alegações (transcrição parcial, sem negrito ou sublinhado da origem):


“1. Os argumentos utilizados pelo Recorrente são contrários aos factos provados pela Douta Sentença proferida pelo Tribunal A Quo e confirmam que o Recorrente pretende protelar o desfecho da acção, adiando uma decisão perfeitamente justa; (…)


3. Tal como provado na Douta Sentença proferida pelo Tribunal A Quo, a 26 de Agosto de 2016, foi remetido com email por parte do representante do Recorrido ao Representante do Recorrente, com o orçamento da piscina para o ano de 2016, conforme documento n.º 4, junto aos Embargos de Executado.


4. Em momento posterior, em reunião entre os representantes da Recorrente e Recorrido foi apresentado um novo orçamento para gestão da Piscina do Recorrido, onde foi devidamente explicado como eram realizadas as contas e ao que respeitavam.


5. Bem como foi apurado qual o valor anual que o Recorrente tinha de liquidar ao Recorrido, ou seja, a quantia de € 1.357,50 (mil trezentos e cinquenta e sete euros e cinquenta cêntimos), conforme documento n.º 6, junto aos Embargos de Executado.


6. O representante do Recorrente aceitou toda a explicação das contas apresentadas pelo Recorrido e aceitou liquidar as mesmas, Vejamos,


7. Nos dias 07/07/2018 e 17/07/2018 foram realizados pagamentos de iguais quantias, ou seja, € 1.357,50 (mil trezentos e cinquenta e sete euros e cinquenta cêntimos), pelo Recorrente ao Recorrido, pagamentos esses referentes aos exercícios de 17/18 e 18/19, conforme documentos n.º 7 e 8, junto aos Embargos de Executado.


8. Pelo que, não corresponde à verdade que o Recorrente não conhecia os moldes em que eram calculadas as respectivas quotas-partes, a fórmula de divisão, as reais despesas de manutenção e conservação, senão não as tinha liquidado.


9. Ao contrário do ora alegado pelo Recorrente o Tribunal A Quo pronunciou-se sobre o cumprimento da obrigação do Recorrido, tanto é que não condena o mesmo e menciona o seguinte:


a. “…os factos vertidos em 5. e 7. e 12. espelham o teor dos documentos 2 a 8, os quais não foram impugnados.”


b. “Ora, quanto ao relatório discriminado das despesas da piscina, veja-se que, em 26 de Agosto de 2016, foi enviado orçamento e, em data não concretamente apurada, …foi dada a explicação que consta de 10. E, nessa sequência, o ora Exequente procedeu aos pagamentos indicados em 11. e 12 dos factos provados, em 2018.”


c. “…à semelhança, do que acima se disse relativamente ao pagamento faseado, não se nos apresenta curial vir invocar o não cumprimento de tal obrigação 3 anos depois, com a apresentação da presente execução.”


10. As alegações do Recorrente já haviam sido devidamente apreciadas na 1.ª instância, e limitam-se a reiterar argumentos já analisados, sem apresentar qualquer vício substancial da decisão, nem erro na aplicação do direito.


11. Não havendo incumprimento por parte do Recorrido, tal como provado, não existe direito algum de o Recorrente receber a sanção pecuniária compulsória peticionada em sede de Execução.


12. Pelo supra exposto, O Recorrido concorda com a Douta Sentença proferida pelo Tribunal A Quo, e a Acção Executiva jamais deve prosseguir os seus normais trâmites, mas sim ser extinta tal como proferida na Douta Sentença proferida pelo Tribunal A. (…)”.


G.


Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.


H.


Questões a decidir


São as seguintes as questões em apreciação no presente recurso: 1


1. Se deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada da sentença recorrida;


2. Se foram cumpridas, pela Embargante, as imposições decorrentes da condenação por decisão judicial transitada em julgado que constitui título exequendo; e


3. Em caso de resposta negativa à questão precedente, quais as obrigações emitidas e passíveis de execução.


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II. FUNDAMENTAÇÃO


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A. De facto


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Reprodução integral dos factos provados e não provados da decisão a matéria de facto como decidido na sentença sob recurso (negrito e itálico da origem):


“Factos Provados


1. Por sentença proferida na Acção de Processo Ordinário nº 4/07.2..., confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Évora que transitou em julgado em 01.06.2015 (conforme certidão junta com o requerimento executivo, cujo teor se dá por reproduzido), foi o ora Executado, Condomínio ... Lote 5" condenado a:


“- Facultar aos condóminos do lote dois o acesso à piscina e jardim envolventes do lote cinco retirando as barreiras existentes e facultando-lhes as chaves de acesso ao local.


- A pagar ao autor uma indemnização pela privação do uso da piscina desde o verão de 2006 até à data desta sentença, no valor de €10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros desde a respectiva citação até efectivo e integral pagamento.


- e a apresentar contas com as despesas efectiva e realmente realizada para conservação e manutenção daqueles espaços, justificando os valores gastos e a formula de divisão e calculo das respectivas quota-parte.


- Pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de €50,00 (cinquenta euros) por cada dia de atraso no cumprimento de qualquer dos pontos da presente sentença que vier a ser decretada”


2. Após ter sido proferida a sentença condenatória, a Administração do Lote 5 procedeu à entrega de uma cópia das chaves de acesso à piscina a AA, Administrador do Exequente/Embargado, no dia 20 de Abril de 2015, altura em que aí decorriam obras.


3. O canhão da fechadura foi alterado pela actual administração, a RPG – Condominium, Lda., por estrago da mesma.


4. Em 26 de Agosto de 2016, foi entregue a cópia da nova chave de acesso à piscina e jardim a AA.


5. A 6 de Outubro de 2015, a anterior administração do Executado/Embargante, na pessoa de BB remeteu um email a CC (representante do Exequente/Embargado), com o seguinte teor:


“Da parte do Condomínio ... Lote 5, já informámos que o pretendido é efectuar o pagamento total mediante as prestações que foram anteriormente sugeridas.


Voltamos a referir, que não foi uma "exigência ou decisão unilateral" e sim uma proposta de pagamento, a qual ainda não tivemos feedback acerca da aceitação da parte do Lote 2.


Agradecemos que não sejam feitas comparações entre pequenos sinistros e a demolição integral de um prédio.


Se o Condomínio ... Lote 2 tem alguma contraproposta a apresentar, basta que nos informe e transmitiremos os nossos condóminos, apesar das dificuldades financeiras que possam estar a passar.”


6. O Executado procedeu ao pagamento da quantia de € 10.000,00, da seguinte forma: € 2.000,00, em 22 de Fevereiro de 2016; € 2.000,00, em 24 de Junho de 2016; € 2.000,00, em 9 de Fevereiro de 2017; € 2.000,00, em 23 de Agosto de 2017 e os restantes € 2.000,00, em 20 de Fevereiro de 2018.


7. No dia 26 de Agosto de 2016, AA enviou um email à actual administração do Executado/Embargante, conforme documento n.º 3 junto com o requerimento de embargos cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.


8. A 26 de Agosto de 2016, DD, em representação do Executado/Embargante remeteu um email a AA, com o seguinte teor:


“No seguimento da nossa conversa telefónica de à momentos, segue o orçamento da piscina do lote 5:


- Manutenção: 1.320,00€


- Água: 200,00€


- Eletricidade: 450,00€


- Pequenas reparações: 30,00€


-Produtos: 500,00€


Total: 2.500.00€


A fim de facilitar o pagamento das despesas inerentes à piscina, solicitamos que o lote 2 possa pagar os valor em avanço, mensal, trimestral, semestral ou anualmente (ficando esta parte ao vosso critério).


O valor apresentado reporta-se ao ano de 2016.


Relativamente à chave, não foi por vós levantada, tal como discutimos à pouco por telefone. A mesma está à vossa disponibilidade desde que foi alterada. Contudo, como combinamos, ainda hoje nos encontraremos para te entregar a chave.


Por fim, em relação aos juros da indeminização, visto que V/ Exas, de boa fé, aceitaram o acordo de pagamentos, entendemos que o mesmo não se verifique, pois os juros são indicados caso o Condomínio do Lote 5 não avança-se com os devidos pagamentos, o que não se verifica. Sendo os mesmos, como até a data, cumpridos e que continuarão a ser, não se verifica a aplicação de uma sanção compulsória.


Acreditamos que com a nossa gestão e a boa colaboração entre Administrações, teremos o fim dos problemas entre os lotes.”


9. Em data não concretamente apurada, DD, em representação do Executado/Embargante apresentou a AA, em representação do Exequente/Embargado, o seguinte documento:


Piscina sita no Condomínio ... Lote 5
Rubricas / ServicesValor Anual / Anual Value
Manutenção da Piscina1320,00€
Agua200,00€
Electricidade450,00€
Pequenas reparações30,00€
Produtos500,00€
Limpeza300,00€
Sub-total2800,00€
Valores com IVA incluído


10. DD explicou ainda a EE como eram realizadas as contas, bem como foi apurado qual o valor anual de € 1.357,50 (mil trezentos e cinquenta e sete euros e cinquenta cêntimos), que o Exequente/Embargado tinha de liquidar ao Executado/Embargante, nos seguintes termos
PISCINA ROJA PÉ
CondomínioNº Frações
Lote 11
Lote 218
Lote 516
Valor total da Manutenção€ 2800,00
Lote 1 – Apartamento Sr. Manuel€ 85,00
Valor restante€ 2715,50
Lote 2€ 1375,00
Lote 5€ 1375,00
11. Em 07.07.2018, foi realizado um pagamento de € 1.357,50 (mil trezentos e cinquenta e sete euros e cinquenta cêntimos) pelo Exequente/Embargado ao Executado/Embargante, referente ao exercício de 17/18.


12. Em 17.07.2018, foi realizado outro pagamento, na mesma quantia, pelo Exequente/Embargado ao Executado/Embargante, referente ao exercício de 18/19.


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Factos Não Provados (…)


a) Foi alterado o canhão da fechadura da porta de acesso à piscina em Janeiro de 2017, não tendo sido entregue ao Exequente a respectiva chave a fim de permitir o acesso à referida zona. (…)”.


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Do recurso da decisão da matéria de facto


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Apesar de transcrever, nas suas alegações, passagem do depoimento prestado em sessão de julgamento do dia 13.11.2024 pelo legal representante da Recorrente para justificar que o tribunal a quo não podia deixar de dar como provado que o Recorrido, ao longo dos anos desde o trânsito da sentença exequenda, tem incumprido as suas obrigações perante o Recorrente (nomeadamente pelo facto de não apresentar as contas relativas à piscina nos moldes consignados na sentença que serve de base à execução, com a sanção pecuniária compulsória), constata-se que a alegação produzida não contém matéria de facto susceptível de, em obediência às regras do ónus da prova, ser incluída na decisão dos autos.


Desde logo, o tribunal de 1ª instância não podia dar “como provado que o Recorrido (…) tem incumprido as suas obrigações perante o Recorrente” porque se trata de uma conclusão jurídica sem cabimento em sede da decisão da matéria de facto. Enquanto resultado de um silogismo judiciário que confronta factos – a descrição das obrigações impostas por sentença e dos actos realizados pelo obrigado para as satisfazer – com normas sobre o modo e o tempo do cumprimento (cfr., entre outros, os artigos 804º a 806º e 406º, n.º 1 do CC), o “incumprimento” de obrigações integra a fundamentação de direito da sentença, pelo que o considerando das alegações de recurso em apreço não constitui, em rigor, impugnação da matéria de facto provada.


Depois, na formulação negativa dada pelo Recorrente - “…não apresentar as contas relativas à piscina nos moldes consignados na sentença que serve de base à execução…” -, a matéria de facto em análise é irrelevante. Isto porque, correndo por apenso aos autos de execução de uma sentença que condenou o Executado/Embargante na realização de determinadas prestações pecuniárias e não pecuniárias, sobre este impende o ónus de provar que as realizou, e em que termos o fez. Tudo o mais – se as contas apresentadas deveriam, ou não, ter incluído o pagamento de juros ou de sanção pecuniária compulsória -, são já considerações jurídicas a ponderar noutra sede que não a do apuramento do facto.


Segundo Paulo Faria, se “o tema da instrução pode aqui ser identificado por referência a conceitos de direito ou conclusivos (…) já a decisão sobre a matéria de facto nunca se poderá bastar com tais formulações genéricas, de direito ou conclusivas, exigindo-se que o tribunal se pronuncie sobre os factos essenciais e instrumentais.” 2


Ou com Miguel Teixeira de Sousa, “…[a] selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídico (…)”. 3


Não incidindo sobre factualidade provada ou não provada da decisão recorrida, impõe-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 640.º do C.P.C., a rejeição da correspondente parte do recurso interposto.


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B. De direito


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Do não cumprimento da obrigação de prestação de contas pelo Embargante


*


A questão jurídica que, nos termos delimitados pelas conclusões do recurso, se impõe conhecer, respeita ao cumprimento / incumprimento pelo Executado/Embargante das imposições decorrentes da sentença exequenda.


Considera o Exequente/Embargado/Recorrente que, contrariamente à conclusão da sentença de 1ª instância:


- a obrigação de prestação das contas para a conservação e a manutenção daqueles espaços não foi devidamente cumprida pelo Executado, pois não se sustenta em documentação válida das despesas com produtos, serviços de manutenção, consumo de água e de eletricidade e reparações, não sendo crível que o valor do consumo de água e electricidade seja constante/inalterado ao longo dos anos, nem se mostra justificada a fórmula de divisão e cálculo das respectivas quotas-partes utilizada;


- este incumprimento não se mostra suprido pelo facto de o Recorrente ter pago tais valores por duas vezes, nos exercícios de 2017/2018 e 2018/2019, o que apenas ocorreu para que o Recorrido não viesse a alegar incumprimento; e


- o Recorrente tem o direito a receber a sanção pecuniária compulsória peticionada na execução.


O âmbito do recurso está, assim, circunscrito ao cumprimento da obrigação, imposta pela sentença transitada em julgado, do Executado/Embargante “…apresentar contas com as despesas efectiva e realmente realizada para conservação e manutenção daqueles espaços, justificando os valores gastos e a fórmula de divisão e cálculo das respectivas quota-parte.”


Sobre a questão, resulta da factualidade provada que Rui Pedro Garcia, em representação do Executado/Embargante, remeteu a Luís Rodrigues que representava o Exequente/Embargado, no dia 26 de Agosto de 2016, o orçamento da piscina do lote 5 com o seguinte teor:


“- Manutenção: 1.320,00€


- Água: 200,00€


- Eletricidade: 450,00€


- Pequenas reparações: 30,00€


- Produtos: 500,00€


Total: 2.500.00€ (…)


O valor apresentado reporta-se ao ano de 2016. (…)”


Posteriormente, o mesmo Rui Pedro apresentou a Luís Rodrigues, o quadro reproduzido no facto provado número 9, com os mesmos valores, acrescentando € 300,00 a título de “Limpeza”, num total de € 2.800,00. Explicou ainda como eram realizadas as contas e como foi apurado o valor anual de € 1.357,50 (mil trezentos e cinquenta e sete euros e cinquenta cêntimos), que o Exequente/Embargado tinha de liquidar ao Executado/Embargante, nos termos da tabela reproduzida no facto provado número 10.


No seguimento da apresentação do orçamento pelo Executado/Embargante, o Exequente/Embargado não esboçou qualquer discordância quanto aos valores ou à distribuição de custos apresentada na tabela do facto provado n.º 10 e, em 07.07.2018, pagou ao Executado o montante de € 1.357,50 orçamentado, referente ao exercício de 2017/2018. O mesmo sucedeu relativamente ao exercício de 2018/2019 que o Exequente pagou, no mesmo montante, na data de 17.07.2018.


Estes dois pagamentos foram realizados de forma incondicional, sem que o Exequente/Embargado tivesse solicitado ao Executado/Embargante a apresentação dos documentos comprovativos das despesas suportadas ou declarado que o fazia sob reserva de prova futura.


Estamos perante um comportamento que, nos termos previstos pelo n.º 1 do artigo 217º do Código Civil, evidencia a concordância do Exequente/Embargado com o valor que lhe foi apresentado como custo que deveria suportar nos exercícios de 2017/2018 e 2018/2019.


Deste modo, não assiste ao Exequente/Embargado o direito de, numa atitude que contraria, frontalmente, a aceitação tácita pelo pagamento que realizou sem qualquer exigência ao Executado/Embargante, vir agora invocar a falta ou deficiente demonstração dos resultados das despesas daqueles exercícios.


Se assim é relativamente às prestações vencidas e pagas dos exercícios de 2017 a 2019, no que respeita às subsequentes deveria o Exequente/Embargado ter manifestado ao Executado/Embargante a sua discordância relativamente ao modo como as contas vinham sendo feitas ou reclamado do Executado a apresentação de provas das despesas, concedendo-lhe para o efeito um prazo razoável, antes de se poder ter por incumprida a obrigação.


É que havia um procedimento adoptado e aceite nos anos precedentes que justificava a convicção por parte do Executado/Embargante, de estar a proceder adequadamente, de que o Embargado/Exequente nenhuma reserva tinha quanto ao valor estipulado e/ou à forma de distribuição das despesas adoptada em cumprimento da obrigação imposta por sentença.


A factualidade provada não revela qualquer objecção colocada pela Exequente ao Executado em data anterior à propositura da acção executiva principal.


No contexto de aceitação tácita dos termos da prestação realizada pela Embargante em anos anteriores, não se vislumbra incumprimento da obrigação de prestação de contas enquanto, através de uma conduta da Embargada claramente demonstrativa de que considera não estar a ser cumprida, não for facultada à Embargante a oportunidade de satisfazer as objecções daquela.


Admitir-se o contrário criaria uma situação de abuso do direito (cfr. artigo 334º do CC) na modalidade de “venire contra factum proprium” por constituir o exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida pela Embargada, traindo, objectivamente, o “investimento de confiança” feito pela contraparte.


Como refere o Professor Baptista Machado, o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico” (in “Obra Dispersa”, Vol. I, págs. 415 e ss.).


No caso, é incontornável que a Embargada criou na Embargante a convicção de que concordava com o modo como estava cumprir a obrigação em apreço, imposta por sentença para, sem qualquer aviso prévio ou manifestação de discordância, vir a arrogar-se, anos mais tarde, titular do direito a aplicar uma sanção pecuniária compulsória fundada no incumprimento da mesma.


Mais: apesar do comportamento concludente no sentido de que aceitou as contas das despesas referentes aos exercícios anteriores até 2018/2019, não se coibiu de vir reclamar o pagamento da sanção pecuniária compulsória desde o trânsito da sentença ocorrido anos antes.


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Deste modo, conclui-se que não assiste fundamento factual ou jurídico para alterar o sentido da decisão da sentença recorrida, proferida pelo tribunal de 1ª instância.


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Custas


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Não havendo norma que preveja isenção (art. 4º, n.º 2 do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (art.º 607º, n.º 6, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do CPC).


No critério definido pelos artigos 527º, n.ºs 1 e 2 e 607º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.


No caso, o Recorrente não obteve vencimento pelo que deve suportar as custas do recurso.


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III. DECISÃO


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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:


1.


Julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.


2.


Condenar em custas o Recorrente.


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Notifique.


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Évora, d.c.s.


Ricardo Miranda Peixoto


Susana Ferrão da Costa Cabral


Manuel Bargado

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1. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (art.ºs 635º, n.º 4, 636º e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art.º 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).

Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.↩︎

2. In “A reforma da base instrutória: uma regressão, A Reforma do Processo Civil-Contributos”, Revista do Ministério Público, Cadernos II, 2012, págs. 37 a 48.↩︎

3. In “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 2ª edição, 1997, pág. 312.↩︎