Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
6912/20.8T8STB.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: HIPOTECA
PRÉDIO RÚSTICO
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- A partir do momento em que o prédio em causa passa a estar registado como prédio misto, como uma unidade registral, composto por uma parte urbana e uma rústica, não pode cada uma das partes ser hipotecada separadamente e também não é possível a sua alienação em separado;
II- Passando a existir apenas um prédio misto, a hipoteca, que outrora incidia sobre o prédio rústico, expande-se, passando a incidir sobre o bem na sua integralidade, tal como se encontra registado, e não pode circunscrever-se sobre uma parte desse bem que deixou de ter autonomia registral.
(Sumário pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

1. M.S.C.C. e V.M.P.C.C. interpuseram acção declarativa contra Hefesto STC, S.A. pedindo que seja declarado que a parte urbana do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob a descrição nº (…) da freguesia de Marateca, da União de Freguesias de Poceirão e Marateca, inscrita na matriz anteriormente sob o artigo (…) e, actualmente, sob o nº (…), não integra o prédio objecto da hipoteca constituída a favor da Ré, com a consequente redução do prédio objecto da referida hipoteca exclusivamente, à parte rústica e, por via disso, que seja determinada a rectificação do registo, na referida descrição predial, apresentação 11 de 2008/10/20 e averbamento respectivo feito pela apresentação 17 de 2008/12/17, de forma a que a hipoteca se limite a incidir sobre a parte rústica do prédio misto constante da referida descrição.
Em alternativa, pedem a condenação da Ré a pagar aos Autores, se e quando executar a identificada hipoteca, a quantia correspondente ao valor comercial actual da referida parte urbana, a apurar em liquidação de sentença.
Sustentam para o efeito, em síntese, que o 1º Autor e a mulher, outorgaram escritura pública de abertura de crédito com hipoteca e fiança, através da qual constituíram hipoteca voluntária sobre o prédio rústico composto de vinha, com a área de 24907,5m2, situado em Cajados, inscrito na matriz rústica sob o artigo (…) da Secção (…), da freguesia de Palmela, destinado a vinha e descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob a descrição nº (…), mútuo garantido no qual o 2.º Autor e ex-mulher eram devedores.
O crédito veio a ser cedido pela CEMG à Ré.
No imóvel (rústico) hipotecado, encontrava-se previamente implantado um prédio urbano que posteriormente à constituição da hipoteca voluntária, foi adquirido pelo 1º Autor, convertendo o referido prédio rústico em prédio misto, o qual, levado a registo, passou indevidamente a integrar o objecto da hipoteca.
Devidamente citada, a Ré excepcionou a ilegitimidade activa do 2.º Autor.
Contestou os pedidos por inadmissibilidade de redução da hipoteca, tanto mais que foram os Autores que tiveram a iniciativa de requerer o registo do prédio como misto, não se encontrando o pedido formulado dentro dos pressupostos legais de redução. Mais sustentou que a tratar-se de uma benfeitoria no prédio rústico, a mesma está abrangida pela hipoteca.
Por fim, defendeu que houve má fé dos intervenientes na escritura, os quais ocultaram do mutuante a existência de uma construção edificada na parcela de terreno, que não foi regularizada na Conservatória do Registo Predial, havendo, por isso venire contra factum proprium, uma vez que o pedido de redução da hipoteca à parte rústica é contraditório e inconciliável com a alegada existência do prédio urbano (omitido) antes da constituição da hipoteca, implicando que a ser procedente o tal pedido, redunde numa redução da parcela garantida, o que não é consentido pelas regras que regulam a hipoteca.
Pede, por fim, a condenação dos Autores como litigantes de má fé.
Os Autores responderam à matéria de excepção e ao pedido de litigância de má fé, pugnando pela sua improcedência.

Conheceu-se da excepção de ilegitimidade suscitada no sentido da sua procedência.

Realizada audiência final veio, subsequentemente a ser proferida sentença que julgando a acção improcedente, absolveu a Ré dos pedidos.

2. Inconformados com tal desfecho recorreram os Autores formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
1. O prédio urbano é pré-existente à constituição da hipoteca, tendo sempre sido tratado de forma autónoma, relativamente ao prédio rústico, durante diversos anos.
Sucedendo que, o tratamento enquanto prédio misto só passou a ocorrer após o registo da aquisição de créditos.
2. Tal prédio urbano constitui um mero acrescento ao prédio rústico, não podendo nem devendo ser qualificado como benfeitoria.
3. Ao fazê-lo favoreceu-se, unicamente, o credor hipotecário em detrimento dos titulares do direito de crédito sobre o terreno que, deste modo, ficaram desprotegidos e foram totalmente ignorados.
4. Verifica-se, assim, uma incorreta qualificação por parte do douto Tribunal, da verdadeira natureza jurídica do imóvel sobre o qual recai o direito de crédito, uma vez que o prédio urbano deveria ter sido qualificado como acrescento e não como benfeitoria.
5. Motivo pelo qual a hipoteca não abrange o prédio urbano, em virtude da mesma ser posterior à sua implantação no prédio rústico e, igualmente, por este não constar do título constitutivo da hipoteca.
Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser proferida decisão que revogue a decisão impugnada, e condene a Ré nos termos peticionados.
Tudo com as legais consequências.
Fazendo-se, dessa forma, JUSTIÇA.


3. Contra-alegou a apelada, defendendo a improcedência do recurso.

4. OBJECTO DO RECURSO
Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil - a única questão que importa dirimir consiste em saber se a hipoteca a favor do credor Réu se estende, ou não, a todo o imóvel emergente da unificação física, económica e jurídica de dois prédios quando primitivamente um só deles estava hipotecado.

II. FUNDAMENTAÇÃO

5. É o seguinte o acervo de factos dados como provados na sentença recorrida e que não foram impugnados:
1) Em 10 de Dezembro de 2008, foi outorgada escritura pública na qual V.M.P.C.C., por si e na qualidade de representante de Transcarnes, Unip. Lda., de M.S.C.C. e mulher, (…), ajustaram com a Caixa Económica Montepio Geral (CEMG), um acordo de “abertura de crédito com hipoteca e fiança”, pelo qual a CEMG, na qualidade de mutuante, abriu um crédito em conta corrente a favor dos mutuários
2) Para garantia das obrigações emergentes desse acordo, as partes ajustaram ainda a constituição de hipoteca voluntária a favor da CEMG sobre o seguinte imóvel, ao qual atribuíram o valor de €190.000,00:
“Prédio rústico composto de vinha, com área de vinte e quatro mil novecentos e sete vírgula cinco metros quadrados, situado em Cajados, na freguesia de Marateca, do concelho de Palmela sob o número (…), de (…), da citada freguesia de Marateca registado o prédio a favor dos representados do segundo outorgante pela inscrição requisitada pela Apresentação sessenta e dois, de catorze de Maio de dois mil e um, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…) da Secção (…) da freguesia de Palmela”.
3) A referida hipoteca foi constituída “para garantia de todas as obrigações emergentes do presente contrato para a parte devedora, e, ainda, do seguinte até ao limite máximo de capital de cento e vinte e cinco mil euros:
a) Pagamento de toda e qualquer letra, livrança, cheque ou extracto de factura de que a Caixa Económica Montepio Geral seja portadora e em que a parte devedora e/ou o segundo e terceira outorgantes, isoladamente, em conjunto ou solidariamente com terceiros se haja obrigado por aceite, subscrição, saque, aval ou endosso e, ainda, que por actos diferentes;
b) Pagamento de toda e qualquer quantia que a referida Caixa Económica Montepio Geral tenha emprestado ou venha a emprestar, através de mútuo, abertura de crédito, saldos devedores ou descobertos em contas de depósito, e de que a parte devedora e/ou o segundo e terceira outorgantes isoladamente, em conjunto ou solidariamente com terceiros seja devedora, e ainda de qualquer crédito concedido pela Caixa Económica Montepio Geral proveniente de contrato de desconto, ou de aceite em títulos de crédito dos quais seja sacadora a parte devedora e/ou o segundo e terceira outorgantes, por forma isolada, solidária ou conjunta;
c) Reembolso de quaisquer quantias que a Caixa Económica Montepio Geral tenha despendido ou venha a despender por quaisquer garantias bancárias já prestadas ou a prestar, de que seja ordenadora a parte devedora e/ou o segundo e terceira outorgantes, por forma isolada, solidária ou conjunta;
d) Pagamento de juros à taxa nominal anual de treze vírgula sete cinco zero zero por cento, que incidam sobre qualquer montante em dívida à Caixa Económica Montepio Geral e provenientes de qualquer das operações atrás referidas;
e) Pagamento da cláusula penal que incide sobre o capital em dívida, à sobretaxa de quatro por cento ao ano, correspondente ao tempo da mora;”
4) A mencionada hipoteca voluntária foi registada em 20/10/2008, a favor da Caixa Económica Montepio Geral.
5) No prédio aludido em 2), está implantado, desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 1942, uma edificação composta de rés-do-chão, com 2 divisões para habitação e uma dependência para arrecadação, com 2 portas e 2 janelas, com área de 105m2.
6) A edificação aludida em 5) estava anteriormente inscrita na matriz sob o artigo (…) da freguesia da Marateca o artigo (…) da freguesia de Palmela e, inicialmente, sob o artigo (…) da freguesia de Palmela.
7) Na referida casa residiu (…) e família, até pelo menos à morte do primeiro.
8) Em 15 de Julho de 2009, após a morte do referido (…), os seus herdeiros, viúva (…) e filha (…), outorgaram um escrito particular, com reconhecimento notarial de assinaturas, denominado “contrato de cessão de créditos”, pelo qual declararam ceder a M.S.C.C. e mulher, (…), os direitos sobre o prédio urbano aludido em 5), pelo valor global de mil oitocentos e trinta e nove euros e sessenta e seis cêntimos, com todos os acessórios, pertenças e direitos inerentes, incluindo o eventual direito à aquisição do terreno sobre que se encontra edificada a construção, quer seja a título de acessão imobiliária quer a outro título.
9) Nesse acto, declararam que “tal construção por ser inseparável do terreno sobre que se encontra edificada, sem perda da sua identidade, constitui uma benfeitoria, traduzindo-se num direito de crédito sobre os donos do terreno”.
10) Após o momento aludido em 8), M.S.C.C. e mulher, (…), liquidaram e pagaram o imposto de selo e o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMI) devido.
11) Em seguida, M.S.C.C. e mulher, (…), inscreveram em registo o prédio aludido em 5) e 6), sob a descrição nº (…), com a mesma área de 24907,54m2, e qualificado como prédio “misto” as seguintes características:
“Matriz n.º: (…) Natureza: Rústica
Secção n.º: (…)
Freguesia: Palmela
Matriz n.º: (…)
Composição e confrontações:
Parte rústica: Vinha.
Parte urbana: R/C para habitação e arrecadação com a.c. de 105m2
Norte: (…);
Sul: (…);
Nascente: (…);
Poente: Aceiro.
Desanexado do prédio n.º (…)”
12) Após a modificação aludida em 11), o referido prédio passou a constar como unificado sob o artigo matricial de (…) da União de Freguesias de Poceirão e Marateca, do concelho de Palmela.
13) A hipoteca aludida em 4), ficou a incidir, após a modificação referida em 11), sobre o conjunto do prédio referido em 12).
14) Em 02/07/2013, foi inscrito em registo, a favor da Caixa Económica Montepio Geral, penhora sobre o prédio aludido em 11) e 12), pela quantia exequenda de €87.153,23, resultante do proc. executivo n.º 2556/11.3TBSTB, no qual, entre outros, o 2.º Autor é executado.
15) Em 15/06/2016 foi sujeita a registo a cessão do referido crédito garantido por hipoteca, da Caixa Económica Montepio Geral, para a Hefesto STC, S.A.
16) Os Autores não comunicaram à Ré o acordo mencionado em 8) e 9).

6. Do mérito do recurso

Entendeu-se proficientemente na sentença recorrida que “(…) tendo a hipoteca onerado o prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…) da Secção (…) da freguesia de Palmela, o qual agora – por iniciativa do 1.º Autor – está qualificado como misto, passou a abranger o vínculo sobre todo o prédio, incluindo as construções ou benfeitorias nele implantadas, independentemente do aumento do valor, uma vez que nenhuma convenção existe em contrário - artigos 691º, nº1, al. c) e 696º do CCiv.
Deste modo, o princípio da indivisibilidade da hipoteca não permite que se ordene a redução do prédio objecto da referida hipoteca exclusivamente à parte rústica do identificado prédio, nem que se determine à consequente rectificação do registo o que, de resto, implicaria uma divisão proporcional e rateada do valor do prédio (uno) por critérios que não são claros”.

A clara e consistente justificação do assim sentenciado dispensa considerações repetitivas, pelo que tentaremos explanar, com argumentação acrescida, o bem fundado da decisão.

Vejamos então.

A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor das coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, mas não produz efeitos, mesmo entre as partes, se não for objecto de registo predial (artigos 686º, nº. 1, e 687º do Cód. Civil).

No caso foi-o e, como de tal registo consta, incidiu primacialmente sobre um prédio rústico no qual, tal como provado, já se encontrava implantada uma edificação composta de rés-do-chão, com 2 divisões para habitação e uma dependência para arrecadação, com 2 portas e 2 janelas, com área de 105m2, que os Autores, posteriormente à constituição da hipoteca voluntária, adquiriram, convertendo o referido prédio rústico em prédio misto.

Rejeitam os apelantes que tal edificação seja considerada benfeitoria e que, por isso, esteja abrangido pela hipoteca nos termos do disposto na alínea c) do nº1 do art.º 691º do Cód. Civil.

Vejamos.
A qualificação da construção em causa como benfeitoria decorre da ausência de prova evidente de que a mesma terá sido levada a efeito por outrem que não o dono do prédio rústico.

Como se sabe, só pode haver acessão quando as obras são feitas por quem não tinha uma relação jurídica com a coisa beneficiada, sendo aplicável o regime das benfeitorias quando tal relação exista.

Para além de tal edificação assim ter sido qualificada no negócio a que se alude supra no ponto 8 do elenco dos “ Factos Provados” e por esse motivo estar inequivocamente contemplada na citada norma, não é a circunstância de ter chegado a estar autonomizada na matriz ( cfr. Ponto 6) que lhe retira tal atributo.

Por isso, não há dúvida que a hipoteca constituída sobre o prédio rústico abrangia a edificação já aí existente e não pode deixar de acompanhar as vicissitudes registrais que o mesmo sofreu ao ser “transformado” em prédio misto, sob pena de se defraudar o poder que o titular da garantia dispõe de desencadear a venda judicial do bem.

Por consequência, a pretensão dos apelantes de reduzir o objecto da referida hipoteca exclusivamente, à parte rústica do “prédio misto” entretanto constituído não poderia merecer deferimento.

Como se explica no Ac. desta Relação de 25.1.2018 proferido no processo 54/17.0T8FTR-A.E1 “ A lei civil não conhece o conceito de prédio misto, porquanto, como decorre do n.º 1 do artigo 204º do Código Civil, os prédios são rústicos ou urbanos, entendendo-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano, qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro (cf. n.º 2).
O conceito de prédio misto está definido no artigo 5º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis - aprovado pelo Decreto-Lei nº 287/2003, de 12 de Novembro, onde se estipula que: “1 - Sempre que um prédio tenha partes rústica e urbana é classificado, na íntegra, de acordo com a parte principal. 2 - Se nenhuma das partes puder ser classificada como principal, o prédio é havido como misto”.
Na definição fiscal do conceito, como é referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/02/2008, (proc. n.º 08A075), disponível em www.dgsi.pt, “consagra-se … um critério de predominância, ou seja, a parte que avultar no conjunto é que determina a qualificação como prédio rústico ou urbano; se tal juízo de predominância não for alcançável, o prédio é considerado misto.
Temos, assim, que o prédio misto é um tertium genus, já que os prédios devem, sempre que possível, ser considerados de harmonia com a sua parte principal e essa, a priori, ou é rústica ou urbana.
A distinção assenta, pois, numa avaliação casuística, tendo subjacente um critério de destinação ou afectação económica”.

A partir do momento em que o prédio em causa passa a estar registado como prédio misto, como uma unidade registral, composto por uma parte urbana e uma rústica, não pode cada uma das partes ser hipotecada separadamente e também não é possível a sua alienação em separado.

Em suma : Passando a existir apenas um prédio misto, a hipoteca, que outrora incidia sobre o prédio rústico, expande-se, passando a incidir sobre o bem na sua integralidade, tal como se encontra registado, e não pode circunscrever-se sobre uma parte desse bem que deixou de ter autonomia registral.

III. DECISÃO

Por todo o exposto, se acorda em julgar a apelação improcedente, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.

Évora, 7 de Abril de 2022
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente