Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
271/22.1T8ADV.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: INCAPACIDADE POR ANOMALIA PSÍQUICA
NECESSIDADE
PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: É certo que, atendendo ao novo paradigma que enforma o regime actualmente vigente, quando se conclua pela necessidade de nomear um acompanhante, deverão ser-lhe atribuídos poderes apenas na justa medida em que a condição do acompanhado o exija, emanação do princípio da necessidade a que se fez já referência.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 271/22.1T8ADV.E1
Tribunal Judicial da Comarca ...
Juízo de Competência Genérica ....


I. Relatório
AA instaurou a presente ação declarativa constitutiva, a seguir o processo especial de acompanhamento de maiores, pedindo a final que fosse decretado o acompanhamento de sua Mãe, BB, viúva, nascida em .../.../1934, com aplicação das seguintes medidas:
i. Representação geral, sem prejuízo de uma eventual representação mais restrita em função das necessidades que se vierem a apurar nos termos ulteriores do processo (…), a qual deverá incluir, nos termos do disposto no artigo 145.º, n.º, 2, alínea e), do Código Civil:
- o acompanhamento na administração total dos bens do beneficiário, bem como na celebração de negócios que envolvam disposição do seu património e acompanhamento no tratamento dos seus assuntos junto das entidades bancárias;
- acompanhamento no tratamento dos assuntos pessoais do beneficiário, junto de entidades públicas e privadas;
- acompanhamento no tratamento clínico do beneficiário, v.g. marcação e acompanhamento de consultas médicas e ainda adesão às terapêuticas prescritas; suprimento de autorização para internamento em Lar ou Instituição de Saúde;
ii. interdição da beneficiária praticar os seguintes actos de carácter pessoal, nos termos do disposto no artigo 147.º, n.º 2, do Código Civil: ser tutora, vogal do conselho de família e administradora de bens de incapazes, ao abrigo do disposto nos artigos 1933.º, n.º 2, 1953.º, n.º 1 e 1970.º do Código Civil; testar, segundo o artigo 2189.º, alínea b), do Código Civil; exercer funções de cabeça-de-casal, de acordo com o artigo 2082.º, n.º 1, do Código Civil e outros actos pessoais que se venham a apurar nos termos ulteriores do processo.
Indicou-se a si própria para o cargo de acompanhante.

Em fundamento alegou, em síntese, que a requerida, devido à sua idade avançada e doença de que padece – demência arterosclerótica – não tem capacidade para reger de forma autónoma a sua vida, afigurando-se necessário decretar o seu acompanhamento.
*
Frustrada a citação pessoal da requerida, foi citado o MP nos termos do artigo 21.º do CPC, o qual apresentou contestação, peça na qual sustentou não terem sido alegadas necessidades da requerida que exijam a restrição dos seus direitos e o decretamento do seu acompanhamento. Assim, reconhecendo embora que se verificam os respectivos pressupostos, atendendo a que se encontram assegurados o bem-estar e saúde da requerida no âmbito dos deveres gerais de assistência e cooperação, pronunciou-se no sentido de inexistir actualmente necessidade do decretamento do acompanhamento requerido, devendo “a causa ser julgada de harmonia com a prova a produzir”.
*
Foi designada data para audição da beneficiária nos termos dos artigos 897.º, n.º 2 e 898.º do CPC, diligência a que se reporta o auto de fls. 32-33 destes autos e foi junto o relatório pericial que faz fls. 27 a 29 verso, após o que foi proferida sentença por cujos termos foi reconhecida a impossibilidade BB exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou de cumprir os seus deveres, tendo-se determinado que esta passasse a beneficiar das seguintes medidas de acompanhamento:
- Representação geral – artigo 145.º, n.º 1, alínea b) e 258.º do C.C.; - Deverá a Acompanhante assegurar que a Beneficiária é observada periodicamente por médico de medicina geral e familiar e/ou outras da especialidade que sejam necessárias para a sua saúde e bem-estar, nomeadamente de psiquiatria e neurologia.
- Deverá a Acompanhante assegurar que eventuais prescrições médicas sejam seguidas;
- Nos termos do disposto no artigo 147.º do C.C., determina-se a restrição dos seguintes direitos pessoais:
a. Capacidade de testar;
b. Capacidade de se deslocar no país ou no estrangeiro
Como acompanhante, foi designada a requerente AA, filha da beneficiária, com dispensa de nomeação de conselho família.
Mais se fixou a data de 28/4/2021 como sendo aquela em que se começou a verificar o quadro de incapacidade permanente da beneficiária.

Inconformado, apelou o D. Magistrado do MP, e tendo desenvolvido nas alegações que apresentou os fundamentos da sua divergência com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
1.ª O presente recurso incide sobre a sentença datada de 23-06-2023, nomeadamente quanto à decisão que determinou do acompanhamento de maior de BB e com a consequente escolha das medidas de acompanhamento, de acompanhante e restrição de direitos pessoais.
2.ª O Tribunal a quo não fez a correcta aplicação do direito ao determinar o acompanhamento de maior de BB, uma vez que não se verificam necessidades da mesma que não sejam supridas pelos deveres gerais de cooperação e assistência que urjam salvaguardar.
3.ª Versa o presente recurso sobre matéria de facto e de direito.
4.ª Da factualidade dada como provada na douta sentença, o Ministério Público considera incorrectamente julgados os factos provados 17 e 19 e entende que deveria ser dado como provado que os referidos imóveis descritos no facto provado 18 se encontram desabitados há cerca de 13 anos, que a requerente tem acesso aos imóveis e tem efectuado as obras de conservação que tem possibilidade de realizar.
5.ª Mais deverão ser dados como provados mais factos relativos às necessidades de BB, que se encontram efectivamente acauteladas.
6.ª Relativamente ao facto provado 17, tal facto deverá passar a ter a seguinte redacção -a beneficiária é herdeira da herança aberta por óbito do seu marido CC, à data de 23-04-2019, possuindo ainda a respetiva meação.
7.ª A referida alteração do facto provado 17 deverá ser motivada pelo averbamento do Assento de Nascimento de BB, de onde consta a dissolução do casamento celebrado pela mesma, que se encontra junto aos autos, como documento ... do requerimento inicial.
8.ª Quanto ao facto provado 19, o mesmo deverá ter a seguinte redacção
Os referidos imóveis encontram-se num estado de progressiva degradação, sendo que a requerente pretende recuperá-los.
9.ª Não resulta provado que a requerente pretenda recuperar os referidos imóveis tendo em vista uma eventual futura venda.
10.ª Das declarações prestadas pela requerente, que se encontram gravadas e constantes das passagens contidas nos minutos 13:40 a 14:40, resulta, em súmula, que a requerente não sabe o que quer fazer à casa, que as sobrinhas queriam vender e que a própria requerente «gostava de mandar arranjar».
11.ª Das referidas declarações, resulta expressamente que a intenção da requerente não é proceder à venda do imóvel, mas sim à sua conservação.
12.ª Mais deverão ser dados como provados os seguintes factos:
- os imóveis descritos no facto provado 18 encontram-se desabitados há cerca de 13 anos;
- a requerente tem acesso aos imóveis descritos no facto provado 18;
- a requerente e o seu cônjuge têm efectuado as obras de conservação que têm possibilidade de realizar;
- a beneficiária encontra-se imobilizada quando faz levante para um cadeirão, para evitar a sua queda;
- a alimentação e higiene diária da beneficiária é assegurada pelos funcionários e colaboradores do Lar ...;
- a requerente tem acesso à conta bancária da beneficiária;
- a requerente procede ao procede ao pagamento do Lar, utilizado para tal o vale postal referente às pensões de sobrevivência e de velhice que aufere, e das despesas da beneficiária;
- a requerente assegura a aquisição da medicação e a frequência de beneficiária a consultas médicas.
13.ª Da passagem contida entre o minuto 18:25 a 18:50 a requerente refere que o marido tem procedido a pequenas obras de reparação.
14.ª Resulta das suas declarações prestadas ao minuto 17:53 da gravação, que a requerente tem acesso aos imóveis.
15.ª Resulta das declarações da requerente gravadas e contidas no minuto 18:58 da gravação que o imóvel se encontra desabitado há cerca de 13 anos, desde que a irmã da requerente faleceu.
16.ª Por sua vez, quanto ao facto de BB se encontrar imobilizada quando faz levante para um cadeirão, para evitar a sua queda, tal facto resulta da sua audição, sendo que foi possível visualizar esta imobilização, bem como, resulta do depoimento prestado por DD, contidas no minuto 2:00 a 2:37 da gravação.
17.ª Também do depoimento prestado por DD, contidas no minuto 05:15 a 05:20, resulta que a alimentação e higiene diária de BB é assegurada pelos funcionários e colaboradores do Lar ....
18.ª Relativamente à gestão dos rendimentos e pagamento de despesas de BB, das declarações da requerente, nomeadamente das passagens contidas na gravação nos minutos 19:20 a 19:25, 24:25 a 24:50 e 24:55 a 25:50, resulta que a requerente tem acesso à conta bancária da beneficiária, procede à entrega do vale postal relativo às pensões de BB para pagamento do Lar e que também procede ao pagamento das despesas da beneficiária.
20.ª[1] A aquisição da medicação e a frequência a consultas médicas, por parte da requerente, resulta das suas declarações, nomeadamente da passagem contida entre os minutos 12:05 a 12:45 da gravação.
21.ª Os referidos factos que deverão ser dados como provados, que não constam no elenco da douta sentença, afiguram-se como essenciais para a decisão da causa, uma vez que os mesmos se prendem com as necessidades da beneficiária e a forma como as mesmas se encontram asseguradas e que, no entender do Ministério Público, se retiram as conclusões que determinam a decisão de improcedência da presente acção.
22.ª Relativamente à matéria de direito, o Ministério Público não coloca em causa o entendimento vertido na douta sentença relativamente ao preenchimento dos pressupostos do artigo 138.º do Código Civil.
23.ª Contudo, não se concorda com o entendimento vertido na douta sentença de «(…) que existindo a intenção de gerir o património e, eventualmente, proceder à venda dos imóveis que integram a herança da qual a beneficiária é herdeira, os deveres gerais de cooperação e assistência se afiguram insuficientes para tal fim.
Sendo certo que, da perspetiva do tribunal, esta necessidade afigura-se “atual” e não meramente eventual (como referido pelo Ministério Público), na medida em que sem a concessão dos necessários poderes de representação à requerente, não se afigurará possível proceder à prática dos referidos atos de partilha da herança e de venda dos imóveis que a compõem, que devem ser precedidos de autorização judicial nos termos do artigo 1014.º e seguintes do CPC.
Por outro lado, considerando a idade avançada da requerente, tendencialmente o seu estado de saúde tenderá a agravar-se, impondo-se que a primeira esteja munida dos poderes necessários para tomar as decisões a esse respeito, uma vez que o estado de saúde da beneficiária não o permite, de todo, fazer».
24.ª As medidas de acompanhamento visam assegurar o bem-estar, a recuperação e o pleno exercício de direitos e cumprimento dos deveres do beneficiário, nos termos do artigo 140.º, n.º 1, do Código Civil.
25.ª As medidas de acompanhamento só devem ser aplicadas quando tais fins não estejam já assegurados.
26.ª Mostrando-se os seus referidos objetivos garantidos através dos deveres gerais de cooperação e de assistência, não cabe a aplicação de medidas de acompanhamento, como se retira do artigo 140.º, n.º 2, do Código Civil.
27.ª Nos deveres gerais de cooperação e assistência estão incluídos os deveres os deveres de pais e filhos, constantes do artigo 1874.º do Código Civil, e constituem medidas informais, para as quais não é necessária a intervenção do tribunal.
28.ª Dos factos dados como provados, bem como dos factos que o Ministério Público entende que deveriam ter sido dados como provados, verifica-se que a beneficiária é efetivamente assistida, estando assegurado o seu bem-estar, a sua recuperação, assim como o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, que lhe são possíveis exercer e cumprir, atendendo às suas condições de saúde.
29.ª Dos factos dados como provados, não resultam quaisquer necessidades actuais da beneficiária que não se encontrem já acauteladas.
30.ª A única questão que poderia apontar para a existência de necessidade, prende-se com o património que a beneficiária tem direito por herança, tendo sido este o argumento utilizado pela douta sentença.
31.ª A referida necessidade não é actual, uma vez que tal herança foi aberta por óbito do marido da beneficiária, que ocorreu a 23-04-2019.
32.ª Mais também se dirá que o imóvel que faz parte integrante da referida herança encontra-se desabitado há cerca de 13 anos, quando faleceu a irmã da requerente.
33.ª Atendendo às datas em causa, não se poderá de todo afirmar que se trata de uma questão actual.
34.ª A requerente tem acesso ao imóvel, que não o pretende vender e que tem efectuado as obras que consegue de conservação.
35.ª Não resultam provadas despesas que a beneficiária, por si só, ou através dos apoios familiares, não consiga fazer face, o que poderia levar a que existisse necessidade na alienação dos referidos imóveis.
36.ª Não se afigurando demonstrada a necessidade, por parte da beneficiária, na partilha da herança, nem na alienação do imóvel, não poderão tais argumentos serem utilizados para o decretamento do acompanhamento de maior.
37.ª Também a necessidade de proceder a obras de reparação dos referidos imóveis se encontra acautelada, uma vez que a própria requerente admite já ter efectuado obras de conservação que tem disponibilidade para realizar.
38.ª O decretamento do acompanhamento de maior em nada irá afectar esta necessidade de a beneficiária não ver o seu património a degradar-se, uma vez que a sua filha já tem vindo a acautelar a mesma.
39.ª O decretamento do acompanhamento de maior de BB não irá fazer com que a requerente possa realizar mais obras de conservação do que aquelas que já realizou ou tem possibilidade de realizar, pelo que, em nada afecta a referida necessidade, em nada assegura o seu direito de propriedade.
40.ª Não resultam demonstradas quaisquer necessidades que não sejam supridas pelos deveres gerais de cooperação e assistência que urjam salvaguardar.
41.ª Não se concorda com a argumentação vertida na douta sentença de que «(…) considerando a idade avançada da requerente, tendencialmente o seu estado de saúde tenderá a agravar-se, impondo-se que a primeira esteja munida dos poderes necessários para tomar as decisões a esse respeito, uma vez que o estado de saúde da beneficiária não o permite, de todo, fazer». -se, impondo-se que a primeira esteja munida dos poderes necessários para tomar as decisões a esse respeito, uma vez que o estado de saúde da beneficiária não o permite, de todo, fazer».
42.ª Tal argumentação prende-se com necessidades futuras e vagas, sendo a mesma meramente conclusiva, não sendo retirada de qualquer facto provado, nem tendo mesmo sido referida qualquer necessidade de BB ser representada junto de quaisquer entidades, nem cuidados médicos extraordinários actuais e concretos, para a prática dos quais seja necessária a autorização.
43.ª O raciocínio do legislador, aquando da entrada em vigor do Regime do Maior Acompanhado, que se encontra vertido no preâmbulo da proposta de Lei n.º 110/XIII, que estabeleceu o referido regime, é o de que o modelo adoptado é um modelo de acompanhamento e não de substituição, em que a pessoa incapaz é simplesmente apoiada, e não substituída, na formação e exteriorização da sua vontade.
44.ª O modelo adoptado de Acompanhamento de Maior surge com a consagração e com a consciencialização supra nacional dos direitos das pessoas com deficiência.
45.ª A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, em 30 de Março de 2007, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 30 de Julho, foi ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de Julho, com o respetivo Protocolo Adicional adotado na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, em 30 de Março de 2007, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 57/2009, de 30 de Julho, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 72/2009, de 30 de Julho, que tem aplicação no apresente caso, uma vez que abrange as pessoas com incapacidades duradouras físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, nos termos do artigo 1.º, 2.º parágrafo, no seu artigo 12.º, n.º 4, exige que as medidas sejam «proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa». mentais, intelectuais ou sensoriais, nos termos do artigo 1.º, 2.º parágrafo, no seu artigo 12.º, n.º 4, exige que as medidas sejam «proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa».
46.ª Também a referida Convenção sobre o Direito das Pessoas com Deficiência, nos seus artigos 5.º, n.º 2, e 12.º, n.º 2, impõe aos Estados uma proibição de discriminação de pessoas com deficiência e um reconhecimento de que estas têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida.
47.ª Todas as pessoas maiores, têm plena capacidade jurídica, sendo que, quando alguém se encontra limitado no exercício dos seus direitos e cumprimento de deveres, deverá ser dado apoio nas suas decisões relativas ao exercício da capacidade jurídica, sendo que estas medidas de apoio devem ser flexíveis e de acordo com as necessidades individuais de cada pessoa e, tal como já referido, apenas devem ser tomadas se forem absolutamente necessárias e proporcionais.
48.ª Atendendo a que todas as pessoas maiores de idade têm plena capacidade jurídica, a aplicação de uma medida de acompanhamento é uma restrição de direitos, liberdades e garantias, pelo que tal restrição se encontra limitada pelos princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
49.ª A ponderação dos referidos princípios ser sempre feita, também, através de critérios de actualidade, ou seja, não basta que a impossibilidade seja actual, mostra-se também que as necessidades o sejam.
50.ª Não são legais as restrições de direitos que visem acautelar situações futuras que podem nem se vir a verificar.
51.ª A surgirem tais situações, existem mecanismos legais urgentes para as suprir, no momento certo, como a própria acção de acompanhamento e/ou suprimento do consentimento, o que não justifica o acompanhamento “preventivo”.
52.ª Não estão verificados os pressupostos do artigo 140.º do Código Civil, pelo que não a medida de acompanhamento não pode ter lugar.
53.ª A medida de acompanhamento a mais restritiva de direitos, de representação geral, que foi aplicada é manifestamente desnecessária, desproporcional e desadequada.
54.ª Ainda que se concorde com o entendimento vertido na douta sentença, identificadas as necessidades da beneficiária, caberia aplicação de medidas menos restritivas, como a representação especial junto de certas instituições e entidades e a administração de bens.
55.ª Mesmo as referidas medidas menos restritivas não têm cabimento, por não existirem quaisquer necessidades de representação nem despesas da beneficiária que urja fazer face e que admitam a administração de bens.
56.ª Não resultam provadas quaisquer necessidades actuais que imponham a restrição dos direitos da beneficiária, nem que fundamente a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida de acompanhamento decretada.
57.ª A medida de representação geral não irá contribuir para assegurar o bem-estar, a recuperação e o pleno exercício de direitos e cumprimento dos deveres de BB, mais do que já estão pelos deveres gerais de cooperação e assistência.
58.ª A restrição da capacidade de testar e de se deslocar no país ou no estrangeiro não se mostra necessária.
59.ª Nenhum notário, sem praticar acto contrário às suas funções e lei, escreveria ou aprovaria testamento da beneficiária, atendendo à sua incapacidade manifesta e que foi verificada aquando da sua audição.
70.ª[2] Em nenhum elemento do processo, nem de nenhum facto provado resulta que a beneficiária tenha sequer tentado se deslocar do Lar onde se encontra internada, quando mais para sair para o estrangeiro.
71.ª Resulta provado, no facto provado 12, que a beneficiária não se consegue locomover sem ajuda de terceiros e que faz levante para um cadeirão.
72.ª Dos factos provados resulta que a beneficiária só se consegue locomover com ajuda de terceiros.
73.ª A restrição de se deslocar afigura-se vazia de conteúdo, pois restringe o que a beneficiária, por si só, já não consegue fazer, e ainda se afigura desprovida de qualquer necessidade que a admita.
74.ª Não resultam quaisquer factos provados que permitam e que determinem a necessidade de restrição de direitos pessoais e de celebração de negócios da vida corrente.
75.ª A presente sentença violou o artigo 140.º do Código Civil, o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e os artigos 1.º, 2.º parágrafo, 5.º, n.º 2, e 12.º, n.ºs 2 e 4, da Convenção sobre o Direito das Pessoas com Deficiência.
76.ª Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, alterando-se a sentença recorrida nos termos propugnados, procedendo à alteração da factualidade dada como provada e julgando a presente acção improcedente, não decretando o acompanhamento de BB.
*
Contra alegou a requerente, pugnando pela manutenção do decidido.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões suscitadas e que cumpre apreciar:
i. impugnação da matéria de facto;
ii. indagar da necessidade da aplicação do acompanhamento e da desnecessidade, desproporcionalidade e desadequação da concreta medida de representação geral aplicada.
*
i. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto
Porque as questões de facto precedem as de direito, começaremos por apreciar a impugnação deduzida contra a matéria de facto.
Considera o D. recorrente que se encontram incorrectamente julgados os pontos 17 e 19,
Relativamente ao ponto 17, onde se fez consignar que “17. A beneficiária é herdeira da herança aberta por morte do seu marido CC, possuindo ainda a respetiva meação”, pretende o impugnante que seja aditado o óbito do falecido marido da requerida ocorreu em .../.../2019, conforme consta do averbamento ao assento de nascimento daquela (doc. ... junto com a petição inicial).
Tratando-se embora de aditamento do qual não se extrai, em nosso entender, a ilação pretendida pelo D. recorrente, a verdade é que do aludido documento, que tem a natureza de autêntico, resulta a data do óbito do autor da herança, donde, por uma questão de rigor, determina-se a referência à mesma.

No que ao ponto 19 diz respeito, o D. recorrente refuta que tenha resultado da prova produzida quanto ficou a constar da sua parte final, segmento que deve ser eliminado, alegando que das declarações prestadas pela própria requerente resultou apenas “que não sabe o que quer fazer à casa, que as sobrinhas queriam vender e que a própria requerente «gostava de mandar arranjar»”.
Ouvidas as declarações da requerente, confirma-se ter a mesma declarado que, não excluindo embora a venda – não quis vender a casa em vida do pai – “não queria deixar a casa ir abaixo”. De todo o modo, pretendendo as sobrinhas, também herdeiras em direito de representação de sua mãe, pré-falecida em relação ao autor da herança, cônjuge da beneficiária BB, vender, resultou das declarações prestadas que é a situação desta última que conduz ao impasse que se verifica, não estando excluída uma futura venda, tal como ficou consignado.
No que respeita às alegadas obras de conservação, o que a requerente declarou, salvo o devido respeito, é menos do que o impugnante pretende ver consignado, tendo aquela feito referência a pequenos trabalhos de conservação levados a cabo pelo marido, mínimos, tendo em vista evitar maior degradação da casa, antiga, e devoluta há 13 anos.
Deste modo, e em respeito pelas declarações prestadas, que se afiguraram espontâneas e verdadeiras, altera-se a redacção do ponto 19, que passa a ser a seguinte:
19. Os referidos imóveis encontram-se devolutos há 13 anos e, tendo beneficiado apenas de pequenos trabalhos de conservação levados a cabo pelo marido da requerente, têm vindo progressivamente a degradar-se.
Determina-se o aditamento do ponto 20, com o seguinte conteúdo:
20. As sobrinhas da requerente, também herdeiras em representação de sua irmã pré-falecida, pretendem vender os imóveis, ao passo que a requerente preferia mandar arranjar.
No que respeita ao facto de a requerente ter acesso aos imóveis, o que é perfeitamente natural, atendendo a que também é herdeira, trata-se de matéria factual que, não tenso sido posta em causa, não se reveste, salvo melhor opinião, de relevância para a decisão.
Menção particular merecem os factos, também pretendidos aditar, da requerente ter acesso à conta bancária da beneficiária e proceder ao pagamento do Lar e despesas da beneficiária, utilizado para tal os vales postais enviados para pagamento das pensões de sobrevivência e de velhice que aufere.
No que se refere à conta bancária, o que resultou das declarações prestadas é que se tratava de uma conta do tempo do falecido pai, da qual a requerente passou a fazer parte, até por insistência daquele. A conta em causa tem dinheiros, ao que resultou das mesmas declarações, que pertenciam ao casal – visto que as pensões de que a requerida é beneficiária não são ali creditadas –, tendo sido movimentada pela declarante aquando do falecimento do pai para pagar o funeral, último movimento nela registado.
Face ao assim declarado, não é rigoroso que a requerida tenha acesso a conta bancária da requerida, porquanto, tal acesso é-lhe permitido mas porque se trata de uma conta plural, da qual é uma das titulares, desconhecendo-se o regime de movimentação.
No que respeita ao vale postal, na ausência de uma procuração emitida pela requerida, destinatária das quantias, não temos dúvida em afirmar que os mesmos são movimentados pelo lar, a quem a requerida os entrega para pagamento das despesas da requerida, por tolerância do funcionário dos serviços postais. Com efeito, conforme resulta do disposto no artigo 11.º da Portaria n.º 536/95, de 3 de Junho, os vales só são transmissíveis por endosso, sendo pagos, nos termos do artigo 12.º, “ao destinatário, remetente, endossado ou seus representantes legais ou voluntários”. Não constando dos autos que a requerente ou o representante do lar estejam munidos de procuração outorgada pela requerida, sabendo-se que esta não tem capacidade para endossar os vales, impõe-se concluir, segundo autorizada presunção judiciária (artigos 349.º a 351.º do CPC) que o acesso às pensões sociais abonadas à requerida se deve à boa vontade do funcionário dos serviços postais.
Finalmente, por corresponder à verdade, tendo resultado das declarações prestadas pela requerida e testemunho do funcionário do lar, DD, que a beneficiária é imobilizada quando sentada no cadeirão para evitar quedas e que aquela sua filha vem assegurando a aquisição da medicação e a frequência da Mãe a consultas médicas, determina-se o aditamento de tais factos.
Tendo resultado igualmente das declarações da requerente que vem satisfazendo as obrigações fiscais da beneficiária, sendo a si que recorrem os funcionários da instituição quando é necessário tomar alguma decisão em relação à mesma, serão tais factos igualmente aditados.
*
II. Fundamentação
De facto
É a seguinte a factualidade a atender:
1. A beneficiária é filha de EE e FF e nasceu no dia .../.../1934.
2. AA é filha da beneficiária.
3. A beneficiária é viúva.
4. A beneficiária sofre de doença Perturbação Neuropsiquiátrica Major – Síndrome Demencial Avançado.
5. A beneficiária não tem autonomia para as atividades da vida diária, necessitando de apoio de terceiros em todas as atividades.
6. Não conhece o valor do dinheiro.
7. Não consegue ler, escrever ou contar.
8. Não consegue manter um diálogo simples e com sentido e não compreende o sentido dos documentos.
9. Não se consegue expressar, nem possui discurso lógico, apenas dizendo frases soltas sem nexo.
10. Não reconhece os seus familiares.
11. Encontra-se internada no Lar ... em ....
12. Encontra-se totalmente dependente para desenvolver as atividades da vida diária, locomovendo-se apenas com ajuda de terceiros e fazendo levante para um cadeirão, ocasiões em que é imobilizada a fim de evitar quedas.
13. Usa fralda.
14. Não compreende as questões que lhe colocam.
15. A beneficiária não outorgou testamento vital.
16. A beneficiária aufere uma pensão de sobrevivência no valor de € 161,44 e uma pensão de velhice no valor de € 380,00, através de vales postais.
16 a) Os vales postais são pela requerente entregues no Lar ..., que procede ao respectivo desconto para pagamento das despesas da requerida BB.
17. A beneficiária é herdeira da herança aberta por morte do seu marido CC, óbito verificado em 23 de Abril de 2019, sendo também meeira.
18. Integra a herança aberta por morte de CC o prédio urbano sito na Rua ... em ... inscrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...15 e sob o artigo ...62, da freguesia ... e o prédio urbano sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...26 e inscrito sob o artigo ...23, da freguesia ....
19. Os referidos imóveis encontram-se devolutos há 13 anos e, tendo beneficiado apenas de pequenos trabalhos de conservação levados a cabo pelo marido da requerente, têm vindo progressivamente a degradar-se.
20. As sobrinhas da requerente, também herdeiras em representação de sua irmã pré-falecida, pretendem vender os imóveis, ao passo que a requerente preferia mandar arranjar.
21. A requerente é cotitular de conta bancária na qual se encontram depositadas quantias pertença do casal formado pela requerida e seu falecido marido.
22. A requerente vem assegurando a aquisição da medicação e a frequência de sua Mãe a consultas médicas quando necessário.
23. É também a requerente quem vem preenchendo as declarações fiscais, sendo a si que recorrem os funcionários do lar sempre que é necessário tomar alguma medida em relação à requerida sua Mãe.
*


De Direito
Da necessidade de acompanhamento da beneficiária e da adequação das medidas decretadas.
Nos termos do 138.º do Código Civil[3] “O maior impossibilitado por razões de saúde, de deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.
Não questionando o D. recorrente que a requerida se encontra impossibilitada, por razões de saúde, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos e cumprir os seus deveres sustenta, porém, que o objectivo do acompanhamento, consagrado no n.º 1 do artigo 140.º do mesmo diploma, se encontra já assegurado pelo cumprimento dos deveres gerais de cooperação e assistência, donde ser desnecessária a aplicação de qualquer medida, sendo em todo o caso desadequada, por excessiva, a aplicada representação geral. Vejamos, pois, se procede a argumentação do recorrente.
Não se desconhece que, tal como o D. recorrente invoca, a Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação previstos no Código Civil, teve como pano fundo “tomada de posição de várias instâncias internacionais, no sentido de valorizar os direitos das pessoas deficientes, da sua dignidade e autonomia.”[4]. Neste contexto, assume particular relevância a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das pessoas com Deficiência, adoptada pelas Nações Unidas em 30 de Março de 2007 e aprovada pela Resolução da AR n.º 56/2009, de 7 de Maio, ratificada pelo Decreto do Sr. PR n.º 71/2009, de 30 de Julho, destacando-se o seu artigo 12.º.
Epigrafado de “Reconhecimento igual perante a lei”, dispõe-se naquele preceito que
“1 - Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito ao reconhecimento perante a lei da sua personalidade jurídica em qualquer lugar.
2 - Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiências têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida.
3 - Os Estados Partes tomam medidas apropriadas para providenciar acesso às pessoas com deficiência ao apoio que possam necessitar no exercício da sua capacidade jurídica.
4 - Os Estados Partes asseguram que todas as medidas que se relacionem com o exercício da capacidade jurídica fornecem as garantias apropriadas e efectivas para prevenir o abuso de acordo com o direito internacional dos direitos humanos. Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa estão isentas de conflitos de interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa, aplicam-se no período de tempo mais curto possível e estão sujeitas a um controlo periódico por uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial. As garantias são proporcionais ao grau em que tais medidas afectam os direitos e interesses da pessoa.
5 - Sem prejuízo das disposições do presente artigo, os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas e efectivas para assegurar a igualdade de direitos das pessoas com deficiência em serem proprietárias e herdarem património, a controlarem os seus próprios assuntos financeiros e a terem igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e asseguram que as pessoas com deficiência não são, arbitrariamente, privadas do seu património.”
Tendo o novo regime nascido do compromisso assumido pelo Estado português no sentido de dar cumprimento à Convenção, que operou “a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de posição”[5], a esta luz deve ser interpretado.
O princípio a observar é o de que a pessoa com deficiência deverá ser apoiada na medida do necessário para que possa manter a sua capacidade de exercício dos direitos. Nas palavras de Mafalda Barbosa[6], “Parte-se de uma ideia de capacidade, para dotar a pessoa dos instrumentos necessários para a sua tutela nos casos pontuais – e sempre tendo em conta as particularidades de cada atuação ou domínio de atuação – em que dela careça. A solução já não é generalizante, procurando, pelo contrário, preservar até ao limite a possibilidade de atuação autónoma do sujeito. No fundo, pretende-se proteger sem incapacitar”.
Resulta do antes citado artigo 138.º que são dois os requisitos para que possa ser decretado o acompanhamento do maior: a impossibilidade de exercer plena, pessoal e conscientemente os direitos ou cumprir os deveres e que tal impossibilidade tenha por fundamento razões de saúde, uma deficiência ou o comportamento do beneficiário.
Não obstante a verificação de tais requisitos e considerando que “o regime é edificado com base num princípio de subsidiariedade”[7], bem pode acontecer que não tenha lugar a nomeação de um acompanhante, o que ocorrerá sempre que as finalidades visadas com o acompanhamento se mostrem assegurados, conforme se referiu já, através dos deveres gerais de cooperação e assistência (cfr. n.º 2 do preceito). Tal é, no que respeita ao caso dos autos, a posição sustentada pelo D. recorrente. Sem razão, porém, antecipamos.
O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, objectivo que, no entender do D. recorrente, se mostra atingido, dado que a filha da requerida, sobre quem recai o dever de assistência, vem assegurando que “a beneficiária é efetivamente assistida, estando assegurado o seu bem-estar, a sua recuperação, assim como o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, que lhe são possíveis exercer e cumprir, atendendo às suas condições de saúde”.
Pois bem, salvo o devido respeito pelo entendimento expresso, atendendo ao estado de saúde da requerida que, conforme se apurou, se encontra incapacitada para entender e querer, pese embora as suas necessidades básicas de alimentação, assistência médica e alojamento se encontrem asseguradas, designadamente pelos colaboradores da instituição onde se encontra internada, não está de modo algum assegurado o exercício dos seus direitos “que lhe são possíveis exercer”, sendo certo que o D. recorrente não explicita quais sejam, nem tão pouco a assunção ou cumprimento das suas obrigações. Faz-se notar que a notória incapacidade da beneficiária testar, o que levaria o notário a recusar lavrar o testamento, ou de exercer o cargo de cabeça de casal, o que conduziria o juiz a recusar o seu empossamento, ou até a impossibilidade natural de, por si, se deslocar, apenas para citar exemplos a que o D. recorrente faz apelo, não configuram, no entender deste Tribunal, situações em que a imposição de uma medida de acompanhamento se revele desnecessária, antes se impondo o seu decretamento por razões de segurança jurídica (cfr., neste mesmo sentido, em situação com semelhanças ao nível da matéria de facto, o acórdão do STJ de 13/9/2023, processo 1472/22.8 T8STR.E1.S1, em www.dgsi.pt).
No caso vertente, e conforme se apurou, a beneficiária sofre de Perturbação Neuropsiquiátrica Major – Síndrome Demencial Avançado, não tem autonomia para as actividades da vida diária, necessitando de apoio de terceiros em todas as actividades da vida, não conhece o valor do dinheiro, não consegue ler, escrever ou contar ou sequer manter um diálogo simples e com sentido e não compreende o sentido dos documentos. Não se consegue expressar, nem possui discurso lógico, apenas dizendo frases soltas sem nexo, não reconhece os seus familiares, encontrando-se totalmente dependente para desenvolver as atividades da vida diária, locomovendo-se apenas com ajuda de terceiros e fazendo levante para um cadeirão, com contenção para evitar quedas.
Atendendo a tal quadro factual, e tal como se refere no aresto citado, fácil se torna concluir que “pela própria natureza das coisas, a acompanhada se encontra incapacitada para o exercício da generalidade dos seus direitos ou para o cumprimento de quaisquer deveres”, tornando necessário -necessidade actual, posto que a descrita situação se mantém e se apresenta como irreversível- o acompanhamento decretado.
Mas o Digno recorrente dissente igualmente das medidas decretadas, que tem por excessivas, desadequadas e desproporcionadas, restringindo indevidamente os direitos da beneficiária.
É certo que, atendendo ao novo paradigma que enforma o regime actualmente vigente, quando se conclua pela necessidade de nomear um acompanhante deverão ser-lhe atribuídos poderes apenas na justa medida em que a condição do acompanhado o exija, emanação do princípio da necessidade a que se fez já referência.
Todavia, situações há – e o caso vertente é um dos exemplos – em que de todo falta a vontade ou a capacidade de entender e querer. Nessas situações limite a solução passa, ainda que a título excepcional, pelo recurso ao instituto da representação, “substituindo-se o incapaz, no interesse deste, pela actuação do tutor”, porquanto “Tão prejudicial seria eliminar por sistema a capacidade de tomar decisões de uma pessoa com deficiência como atribuir plena capacidade de exercício a quem de facto carece dela”[8]. Também Mafalda Barbosa admite que “situações pontuais podem conduzir à exclusão da capacidade do sujeito”[9].
Ora, correspondendo embora à verdade que, conforme se refere na sentença recorrida, as necessidades básicas da requerida se encontram acauteladas pela assistência que lhe é prestada pela sua filha e requerente, bem como pelos colaboradores do lar onde se encontra institucionalizada, já não assim no que respeita ao exercício de direitos e cumprimento de obrigações, específicos domínios que cumpre assegurar. Com efeito, sendo a requerida herdeira e meeira na herança aberta por óbito de seu marido, sendo seu direito requerer a respectiva partilha – independentemente de necessitar ou não dos recursos que a mesma lhe proporcionará – e cabendo-lhe legalmente o cabeçalato, importa reconhecer a sua incapacidade para o efeito.
Do mesmo modo, não é a circunstância de a requerente entregar ao lar em que a beneficiária se encontra internada os vales postais através dos quais são pagas as pensões sociais que lhe estão atribuídas e a instituição conseguir descontá-los, que torna desnecessária a aplicação da medida de representação. Com efeito, e conforme se consignou aquando da apreciação da impugnação sobre a matéria de facto, apenas a colaboração do funcionário dos serviços postais, facilitando o pagamento das quantias a um terceiro não representante do destinatário, justifica o acesso a tais quantias, bastando que cesse essa boa vontade para que se suscite um problema de não fácil resolução, a justificar plenamente a decretada medida de representação.
Tal raciocínio é ainda de aplicar quando se considere o cumprimento das obrigações fiscais da beneficiária, tarefa de que a requerente se vem oficiosamente desincumbindo, mas que demanda igualmente regularização.
O D. recorrente argumenta ainda que estando o imóvel pertença da herança desabitado há cerca de 13 anos e que a requerente nele vem executando alguns trabalhos de conservação, segundo as suas possibilidades, não se verifica a necessidade, muito menos actual, de conferir à acompanhante poderes de gestão. Mais uma vez, porém, não secundamos tal posição.
Antes de mais, a circunstância de a casa se encontrar devoluta há mais de uma década, ao invés de afastar a actualidade da necessidade de providenciar pela representação da requerida no que respeita à gestão do património da herança – uma situação que se mantém continuadamente é ainda actual – torna-a mais premente, uma vez que, como decorre das regras da experiência comum e ficou demonstrado, é susceptível de conduzir a uma natural degradação do imóvel.
Afigura-se assistir igualmente razão ao Mm.º juiz quando indica que, dada a idade avançada da requerente e a doença de que padece, o seu estado de saúde tenderá a agravar-se, facto que se atinge por autorizada presunção judiciária, por corresponder à ordem natural das coisas, impondo-se que a acompanhante esteja munida dos poderes necessários para tomar as decisões que a esse respeito se vierem a revelar necessárias. Trata-se, ainda aqui, de uma situação de necessidade real e actual, e não de “vagas e futuras” necessidades.
Dir-se-á, por fim, que o D. recorrente insurge-se contra o decretamento do acompanhamento e das medidas fixadas, restritivas “de direitos pessoais e de celebração de negócios da vida corrente”, na consideração de que, encontrando-se a requerida incapacitada, por razões de saúde, de exercer tais direitos e celebrar quaisquer negócios, então não há necessidade de nomear acompanhante, vedar o exercício de direitos de natureza pessoal que não pode, de todo, exercitar, ou conferir poderes para praticar actos de administração e disposição, já que as suas necessidades básicas se encontram asseguradas. Acontece que o regime do maior acompanhado cobre tendencialmente todos os domínios de actuação em que se verifique a necessidade do beneficiário ser assistido ou representado, cabendo ao juiz assegurar que não ficará privado de protecção em nenhum deles. E se estamos, como é o caso, perante situação de incapacidade total, não há qualquer autonomia, por inexistente, a preservar, sendo a medida de representação geral a adequada à tutela efectiva da beneficiária.
Do mesmo passo, não tendo a beneficiária do acompanhamento capacidade para entender e querer, razões de certeza e segurança jurídica justificam que na decisão judicial se tivessem elencado direitos de natureza pessoal cujo exercício fica vedado, não podendo excluir-se totalmente que, apesar de não ter capacidade para se locomover por si, um terceiro a possa levar em viagem, dentro do país ou para o estrangeiro, ou ensaie a elaboração de um testamento.
Improcedentes nos termos expostos todos os argumentos do recurso, impõe-se confirmar a sentença recorrida.
*
III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o D. recorrente (artigo 4.º, n.º 1, alínea l), do RCP).
*
Évora, 12 de Outubro de 2023
Maria Domingas Simões
Cristina Dá Mesquita
Canelas Brás
__________________________________________________
[1] Verifica-se lapso na numeração, tendo sido omitida a conclusão 19.ª, tendo-se optado por manter a numeração original, a fim de evitar eventual confusão.
[2] Por manifesto lapso, na numeração das conclusões, passou-se do n.º 59 para o 70, tendo-se optado mais uma vez por manter a numeração original.
[3] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[4] António Pinto Monteiro, “Das incapacidades do maior acompanhado – Breve apresentação da Lei n.º 49/2018”, acessível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=_nsidISl_rE%3D&portalid=30
[5] Prof. Pinto Monteiro, que colaborou no articulado da autoria do Prof. Menezes Cordeiro que esteve na base da Proposta de Lei que veio a culminar na Lei n.º 49/2018, conforme dá conta no texto referido na nota anterior.
[6] “Maiores acompanhados: da incapacidade à capacidade?”, acessível em https://portal.oa.pt/media/130218/mafalda-miranda-barbosa_roa_i_ii-2018-revista-da-ordem-dos-advogados.pdf
[7] Mafalda Barbosa, “Maiores acompanhados: da incapacidade à capacidade” citado, pág. 243.
[8] Prof. Pinto Monteiro, “Das incapacidades do maior acompanhado – Breve apresentação da Lei n.º 49/2018”, pág. 32.
[9] ´”Maiores acompanhados…” cit., pág. 257.