Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4453/24.3T8STB-A.E1
Relator: SÓNIA KIETZMANN LOPES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
LIVRANÇA
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: i) Nas relações imediatas – como aquela estabelecida entre o sacador e o tomador de uma livrança – é lícito aos obrigados cambiários invocar as exceções perentórias inerentes à relação causal, impeditivas, modificativas ou extintivas do direito exercido, para afastar a exigência decorrente da obrigação cartular.
ii) No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º, alínea e), do Código Civil.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4453/24.3T8STB-A.E1 – Apelação

Tribunal Recorrido - Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo de Execução de Setúbal – Juiz 2

Recorrente – (…) – STC, S.A.

Recorrido – (…)
*
Sumário: (…)
*
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1.
Na ação executiva que (…) – STC, S.A. moveu contra (…) e (…), veio esta opor-se à execução, alegando, nomeadamente e no que de relevo nesta sede, que o incumprimento do contrato de crédito subjacente à livrança dada como título executivo ocorreu em 02/05/2014, pelo que, tratando-se de crédito a amortizar em quotas do capital pagáveis com juros, à data da citação dos executados as respetivas prestações já haviam prescrito, por decurso do prazo de cinco anos previsto no artigo 310.º, alínea e), do Código Civil.
*
A exequente embargada apresentou contestação, sustentando que, uma vez que a livrança tem aposta como data de vencimento o dia 10/05/2024, não se mostra decorrido o prazo de prescrição, que é de três anos, tal como previsto no artigo 70.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças.
2.
Após dispensa da realização de audiência prévia, o tribunal a quo proferiu despacho saneador sentença e decidiu “declarar procedente a oposição à execução e, por consequência, determinar a extinção da execução relativamente aos opoentes / executados”.

3.
Inconformada, a exequente embargada interpôs recurso de apelação do assim decidido, enunciando as seguintes conclusões:
«
A.
O ora apelante não se pode conformar nem concordar com a sentença recorrida, proferida a 3 de abril de 2025, a qual decidiu julgar os embargos de executado procedentes, ao determinar:
“(…) Desta feita, tendo presente a data de incumprimento – 02.05.2014 – sendo a execução instaurada em 22.06.2024 e inexistindo qualquer causa interruptiva ou suspensiva, o prazo prescricional de 5 anos foi atingido em 02.05.2019, pelo que é forçoso concluir que a obrigação exequenda se mostra prescrita.
Assim, à data em que a livrança foi preenchida (10.05.2024), encontrar-se-iam, assim, prescritas todas as prestações e respectivos juros, convencionais ou legais, vencidos há mais de cinco anos incluídos no montante aposto na livrança.
Conclui-se, deste modo, que a obrigação pecuniária está prescrita e que o título executivo não reúne os requisitos previstos no artigo 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC.
Em conformidade, procede a oposição à execução.
Conclui-se, deste modo, que a obrigação pecuniária está prescrita e que o título executivo não reúne os requisitos previstos no artigo 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC.
A procedência da oposição com base na insuficiência do título executivo prejudica a apreciação das demais questões suscitadas em sede de oposição à execução (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC).
(…)”.
B.
É inevitável à aqui Apelante indicar que o Tribunal a quo andou mal, sendo impossível conformar-se com a mesma, por força do que a decisão judicial que ora se recorre refere antes desta tomada de decisão, que merece total reparo na sua conclusão, pois, acaba ainda por reconhecer e admitir que:
“(…) Apenas quando a obrigação perde a sua natureza cambiária é que é necessária a invocação do negócio causal (a relação subjacente).
E só, neste caso (que não o destes autos), tem o exequente o ónus de alegar, no requerimento executivo, ainda que sucintamente (cfr. artigo 724.º, n.º 1, alínea e), do CPC), factos que permitam caracterizar e individualizar o negócio causal, sob pena de ineptidão do requerimento executivo (…)”.
C.
De entre os factos dados como provados e nos quais o julgador baseia a sua decisão, resultam os já indicados nos pontos 7º e 8º dos fundamentos das presentes alegações, dos quais, outra conclusão não resulta que não a má análise e correlação, não apenas entre os mesmos, como também, com a aplicação das normas legais aplicáveis à matéria em causa.
D.
Sendo reconhecido que o título executivo é uma livrança, a esta não se poderá, jamais, aceitar a aplicação do prazo de prescrição previsto no artigo 310.º, alínea c), do Código Civil, mas sim, aquele que é definido no artigo 77.º, ex vi dos artigos 70.º e 71.º da LULL, ou seja, 3 (três) anos a contar do seu vencimento.
E.
Além do julgador reconhecer tal facto, que a execução se baseia numa livrança, como já referido no ponto 11º dos presentes fundamentos, reconhece ainda que a mesma é um título de crédito, permitindo ao seu titular (a quem foi entregue para garantia do bom e pontual pagamento), em caso de incumprimento, intentar uma ação executiva e, de forma coerciva, promover pela cobrança do valor em dívida sobre o subscritor da mesma, apenas após verificado o seu preenchimento.
F.
Refira-se que, é legal e juridicamente assente que, sendo a livrança uma garantia, a mesma terá de ser subscrita no exato momento do contrato a que servirá de garantia, mas só se constituirá como título cambiário com o respetivo preenchimento.
G.
Não podendo por isso, em qualquer hipótese, assumir-se que o prazo prescricional que, eventualmente pudesse ser imputado ao facto garantido pela dita livrança, seja a esta extensível, isto porque, tal como reconhece o julgador na sentença ora recorrida “(…) Em consequência dessas características, o crédito consubstanciado numa livrança corresponde à obrigação pecuniária nela inscrita. (…)”.
H.
E o julgador ao assumir tal posição, inevitavelmente reconhece e concorda assume e, pela com a posição da jurisprudencial nacional, já identificada nos artigos 17º e 18º dos fundamentos das presentes alegações, os quais exibem as características atinentes aos títulos de crédito: autonomia, literalidade e abstração, para ser executado nessa veste, sem necessidade de alegação da relação causal ou subjacente, quando preenchida.
I.
Ou seja, se não existisse o incumprimento da obrigação a que o subscritor se vinculou, não seria necessário preencher a dita livrança e, é com este preenchimento que nasce uma obrigação pecuniária autónoma, através da aposição na livrança do valor que agora constitui o valor a liquidar, tal como identificado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 22-06-2023, no âmbito do processo judicial n.º 4839/21.5T8FNC-B.L1-2, identificado no ponto 23º dos fundamentos destas alegações.
J.
Cabe assim concluir que, o julgador não podia chamar à colação a relação subjacente e os prazos de prescrição que, eventualmente lhe seriam impostos, quando em causa não está uma livrança enquanto mero quirógrafo, tampouco, poderia subsumir o dito título executivo a tais prazos, quando na realidade, as condições de aplicação dos regimes, já por si, distintos, se reportam a fatores e circunstâncias totalmente díspares.
K.
Destarte, apenas se ao caso em concreto tivesse sido dada uma livrança prescrita, ou seja, uma livrança como mero quirógrafo, seria necessário impor a relação subjacente à mesma – o que não se verifica!
L.
Pelo exposto, não pode a sentença ora recorrida, fundamentar a inexistência de título executivo, nos termos e para efeitos do artigo 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC, com base na eventual e alegada prescrição da obrigação subjacente à emissão da livrança, não sendo o que está em causa, pois o título executivo trata-se de uma livrança, não prescrita, e não de um contrato, muito menos de uma livrança como mero quirógrafo!
M.
Assim, tendo a livrança sido emitida em branco, sem determinação do objeto, que apenas foi determinado em função do incumprimento (uma vez que o objeto será o valor em dívida, ao qual se somam juros), sendo a data de vencimento o dia 10 de maio de 2024, não se mostra decorrido o prazo de prescrição da ação cambiária, de três anos, previsto no artigo 70.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças, no momento em que a ação é intentada.
N.
Em suma, enquanto título de crédito, não se poderá aplicar o prazo de prescrição previsto no artigo 310.º, alínea e), do CC, mas sim e, corretamente, o prazo de prescrição previsto no artigo 77.º, ex vi dos artigos 70.º e 71.º, todos da LULL.
O.
Logo, tal como postulado no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 25 de Novembro de 2021, no âmbito do Processo Judicial n.º 659/17.0T8SNT-A.E1, já mencionado no artigo 77º da contestação:
“(…) Atendendo a que não foi reconhecida a alegada violação do pacto de preenchimento, a data em que se inicia a contagem do prazo de prescrição relativamente à livrança subscrita em branco é o dia do respetivo vencimento aposto pelo portador do título. (…)”.
P.
Consequentemente, em função da presunção assumida, o Tribunal a quo, ignorou deliberadamente a factualidade vigente, para uma correta decisão da causa, prejudicando assim a posição da aqui apelante, enquanto exequente,
Q.
facto com o qual não pode o aqui recorrente concordar, em face do claro prejuízo a que é exposto, ao lhe ser vedado o seu direito à recuperação da obrigação pecuniária em dívida.»
*
Foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
*
O recurso foi admitido e colheram-se os vistos.

4. Questões a decidir
Considerando as conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil (de ora em diante CPC) são as seguintes as questões a decidir:
i) Se a embargante podia invocar a prescrição da obrigação subjacente à emissão da livrança;
ii) Se tal obrigação se mostra prescrita.

II. FUNDAMENTOS

1. De facto

A decisão recorrida considerou assentes os seguintes factos:

1. O exequente deu à execução o documento consistente em livrança emitido pelo Banco (…), S.A. e subscrito por (…) e (…), preenchido além do mais nos seguintes termos:

Data emissão Data vencimento Importância
2011-02-17 2024-05-10 € 13.938,36
2. O documento referido em 1. foi entregue em branco ao Banco (…), SA para garantia do pagamento de todas as responsabilidades assumidas pelos executados no âmbito do designado “Contrato de Crédito ao Consumo” celebrado com o Banco (…), SA n.º (…) como mutuante os opoentes/executados como mutuários, datado de 17.02.2011, para pagamento da quantia de € 2.941,61 euros em 60 prestações mensais e sucessivas de € 217,25 vencendo-se a primeira prestação no dia 02 do primeiro mês a contar da data da outorga do acordo consubstanciado no documento de que foi junta cópia como doc. 1 da contestação, cujo teor de dá aqui por reproduzido [e do qual consta que a prestação de € 217,25 inclui capital, juros e imposto].
3. Os executados assinaram e rubricaram o “Crédito ao Consumo (…)” n.º (…), onde consta no ponto 12.1 o seguinte: “O cliente entrega ao Banco uma livrança com a cláusula “não à ordem” que o Banco poderá acionar ou descontar no caso de incumprimento das obrigações assumidas no Contrato.(…)” e 12.2 “O Banco fica autorizado pelo Cliente a preencher a livrança com uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o Cliente lhe deva ao abrigo do Contrato”.
4. A partir de 02.05.2014, os opoentes/executados deixaram de pagar as prestações mensais acordadas com o Banco.
5. Consta assinaladamente das “Condições Gerais” do contrato de consumo referido em 3, no ponto 9.1. o seguinte: “(…) Todas as garantias constituídas e indicadas nas Condições Particulares destinam-se a garantir o bom pagamento de todas as responsabilidades que advêm para o Cliente do não cumprimento pontual e integral de qualquer obrigação resultante do contrato, (…)”.
6. Por Contrato de Cessão de Créditos outorgado em 22.12.2018, o (…) Banco, S.A. (ex …, SA) cedeu à sociedade (…) Partners II, SARL, os créditos que detinha, entre os quais se encontram os créditos detidos por aquela entidade sobre os opoentes / executados.
7. Por contrato de titularização de créditos de 03.04.2020 alterado em 31.03.2021, a (…) Partners II, SARL cedeu os referidos créditos à (…), STC, SA.
8. A acção executiva foi apresentada em 22.06.2024.

2. Conhecimento das questões suscitadas no recurso
2.1.

A livrança é “o título de crédito constituído pelo escrito através do qual o seu emitente declara que pagará a certa pessoa ou à sua ordem, uma quantia concreta em dinheiro, em época determinada”[1] e tem a sua disciplina legal estabelecida nos artigos 75.º e ss. da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças (de ora em diante LULL).

Como título de crédito que é, “incorpora em si o direito nele representado e legitima o credor a exigir a prestação mediante a sua apresentação ao devedor” (Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, in ob. cit., pág. 61).

No caso dos autos, é credora – ainda que na sequência de várias cessões de crédito – a exequente e são devedores os executados, que, todos, revestem dúplice qualidade: a primeira enquanto tomadora da livrança e, simultaneamente, mutuante no âmbito do “Contrato de Crédito ao Consumo” com o n.º (…), os segundos enquanto sacadores da livrança e, simultaneamente, mutuários no sobredito contrato de crédito.

Significa isto que entre a exequente e os executados existe uma “relação imediata”.

Efetivamente, no direito cambiário há que distinguir entre relações imediatas e relações mediatas. Como ensina Pedro Pais de Vasconcelos[2], quando “entre dois intervenientes num título existe uma relação subjacente diz-se que a sua relação é imediata; quando esses não estão ligados por uma relação subjacente, diz-se que a sua relação é mediata. As relações imediatas, no título, […], são as relações existentes entre obrigados cambiários que se encontrem ligados por uma relação subjacente e uma convenção executiva. As relações mediatas são as que [se suscitam] entre obrigados cambiários que se não encontrem ligados por qualquer relação subjacente ou convenção executiva. Nas relações mediatas não existe, pois, qualquer relação subjacente ou convenção executiva”.

Dito de outro modo, consubstancia uma relação imediata aquela em que entre os dois signatários não se interpõe qualquer outro ou em que os sujeitos da relação cambiária são concomitantemente os sujeitos da relação causal, como acontece no caso em apreço.

Ora, conforme vem sendo entendido ultimamente pelo nosso mais alto tribunal, no caso de o título executivo ser uma livrança e se a mesma estiver no domínio das relações imediatas, “é lícito aos obrigados cambiários invocar as exceções perentórias inerentes à relação causal, impeditivas, modificativas ou extintivas do direito exercido, para afastar a exigência decorrente da obrigação cartular, por tudo se passar como se a relação cambiária deixasse de possuir as propriedades da literalidade e da abstração” (veja-se, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/10/2024, proferido no processo n.º 466/22.8T8ELV-C.E1.S1, disponível na base de dados da dgsi). “Neste caso, em que não há interesses de terceiros de boa fé a defender, os princípios da literalidade, abstração e autonomia que caracterizam os títulos cambiários deixam de funcionar, podendo fundar-se a defesa nas excepções emergentes da relação casual” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/09/2021, proferido no processo n.º 2449/18.3T8OER-A.L1.S1, disponível na base de dados da dgsi).

Assim, muito embora assista razão à Recorrente quando afirma que a livrança beneficia das características da autonomia, da literalidade e da abstração, o que torna a obrigação cambiária autónoma da relação causal e determina que esteja vedada a invocação das exceções emergentes da relação causal, o certo é que esta autonomia tão-somente se verifica nas relações mediatas, como decorre, aliás, do artigo 17.º da LULL, aplicável por via do artigo 77.º do mesmo diploma.

A relação em causa nestes autos, porém, é imediata, pelo que as partes são admitidas a sindicar a relação subjacente, fundamental ou causal, que, no caso presente, se traduz num mútuo.

2.2.

Aqui chegados, concluindo-se que aos executados era permitido invocar a prescrição da obrigação causal e sendo certo que a prescrição foi invocada em sede de oposição à execução, importa perceber se aquela se verificou.

De acordo com o artigo 298.º do Código Civil (de ora em diante CC), estão “sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição”.

No caso dos autos temos que a livrança dada à execução visou garantir o pagamento das responsabilidades assumidas pelos executados no âmbito do “Contrato de Crédito ao Consumo”, datado de 17.02.2011, para pagamento da quantia de € 2.941,61 euros em 60 prestações mensais e sucessivas de € 217,25 (incluindo juros), vencendo-se a primeira prestação no dia 02 do primeiro mês a contar da data da outorga do acordo (ponto 2 da matéria de facto). A partir de 02.05.2014, os executados deixaram de pagar as prestações mensais acordadas (ponto 4 da matéria de facto).

O tribunal a quo subsumiu esta situação ao disposto no artigo 310.º, alínea e), do CC, nos termos do qual prescrevem “no prazo de cinco anos as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros”.

Ora, no seu acórdão n.º 6/2022[3], o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º, alínea e), do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas”.

Não vemos razão para afastar este entendimento, seguido que foi, aliás, na decisão recorrida.

Efetivamente, como se lê no aresto por último citado, foi esse o espírito do legislador, espelhado nos trabalhos preparatórios (o “escopo legal de evitar a insolvência do devedor pela exigência da dívida, transformada toda ela agora em dívida de capital, de um só golpe, ao cabo de um número demasiado de anos”), sendo que, para “efeitos de prescrição, o vencimento ou exigibilidade imediata das prestações, por força do disposto no artigo 781.º do Código Civil, não altera a natureza das obrigações inicialmente assumidas, isto é, se altera o momento da exigibilidade das quotas, não altera o acordo inicial, o escalonamento inicial, relativo à devolução do capital e juros em quotas de capital e juros”.

Acompanha, assim, o entendimento professado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/09/2016, proferido no processo n.º 201/13.1TBMIR-A.C1.S1 e disponível na base de dados da dgsi, quando escreve: “por explicita opção legislativa, o artigo 310.º, alínea e), do Código Civil considera que a amortização fraccionada do capital em dívida, quando realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando uma prestação unitária e global, envolve a aplicabilidade a toda essa prestação do prazo quinquenal de prescrição, situação que foi equiparada à das típicas prestações periodicamente renováveis. Ou seja, o legislador entendeu que, neste caso, o regime prescricional do débito parcelado ou fraccionado de amortização do capital deveria ser absorvido pelo que inquestionavelmente vigora em sede da típica prestação periodicamente renovável de juros, devendo valer para todas as prestações sucessivas e globais, convencionadas pelas partes, quer para amortização do capital, quer para pagamento dos juros sucessivamente vencidos, o prazo curto de prescrição decorrente do referido artigo 310.º".

Posto isto, tendo-se o incumprimento no caso em apreço dado em 02/05/2014, com vencimento de todas as prestações em tal data, e não tendo até 02/05/2019 ocorrido a interrupção promovida pelo titular, tal como prevista no artigo 323.º do CC, não pode deixar de se considerar acertada a decisão recorrida quando conclui, que, quer quando vista a data do preenchimento da livrança (10/05/2024 – ponto 1 da matéria de facto), quer quando considerada a data da instauração da execução (22/06/2024 – ponto 8 da matéria de facto) e subsequente citação dos executados, a obrigação pecuniária estava prescrita.

Ora, no domínio das relações imediatas, prescrita a obrigação que resulta da relação causal, extingue-se, por consequência, a obrigação cartular (veja-se, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/10/2024, acima citado).

Bem andou, pois, o tribunal a quo ao considerar procedente a oposição à execução.

Por todo o exposto, importa confirmar a decisão recorrida.

3. Custas

Custas pela Recorrente, atento o decaimento (artigo 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC e tabela I-B do Regulamento das Custas Processuais).

III. DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 02 de outubro de 2025
Sónia Kietzmann Lopes (Relatora)

Ana Pessoa (2ª Adjunta)

Declaração de voto

Divergimos no entendimento de que a prescrição da obrigação causal origina a prescrição da obrigação cartular.
Consideramos que, tal posição retira utilidade e desconsidera o artigo 70.º da LULL, que estabelece especificamente o prazo de prescrição do direito cartular (regime esse imperativo).
A questão de saber se o credor cambiário tem ao seu dispor o poder de preencher o título ad eternum ou se, diversamente, este está balizado num determinado período temporal, foi alvo de tratamento específico noutros ordenamentos jurídicos.
Porém, ao contrário de outros ordenamentos jurídicos, o legislador português não balizou o período temporal para que o credor cambiário preencha o título (o único limite consagrado foi o teor do pacto de preenchimento entre o credor e os subscritores).
Assim, se se estabelecer uma total dependência da prescrição cartular face à prescrição da relação causal, cria-se uma dependência que a lei não acolhe, bem pelo contrário, afasta, quando estabelece a autonomia e literalidade das obrigações cartulares.
Não significa isto que sejamos indiferentes e inconsequentes quanto ao desequilíbrio decorrente da falta de limites temporais para o preenchimento, especialmente nos casos em que se está perante um consumidor individual (mais fragilizado) e perante contratos de adesão.
Acompanhamos a solução preconizada por Ana Carolina Fernandes Almeida (in “A Livrança em Branco e a Prescrição Cambiária: As cláusulas que permitem a inscrição do vencimento a juízo do próprio credor” Volume 1, Dissertação no âmbito do mestrado em ciências jurídico-forenses orientada pela Professora Doutora Carolina de Castro Nunes Vicente e Cunha e apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2022: https://hdl.handle.net/10316/103648).
A Autora em causa não só afasta a posição de que a prescrição da obrigação causal origina a prescrição da obrigação cartular, como aponta o regime da nulidade das cláusulas contratuais, nos termos do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, como a forma de reação mais adequada para tutelar a posição dos obrigados cambiários, perante o preenchimento de maneira temporalmente discricionária (até porque, são normalmente as instituições de crédito e as sociedades de locação financeira, que recorrem a tais meios e em regra, o complexo contrato de garantia, composto pelo pacto de preenchimento predisposto no contrato fundamental, bem como pela própria subscrição em branco no título, não é passível de negociação, limitando-se a contraparte a aceitar contratar naquelas condições ou a recusar).
Faz-nos sentido que, sendo o acordo de preenchimento um mecanismo que se materializa num verdadeiro negócio jurídico, conformador do poder de facto de que o credor cambiário dispõe (o de preencher o título que mantém na sua posse), esteja, como qualquer outro contrato, sujeito aos limites da boa-fé que, como regra, exclui o vínculo indefinido (excepto se essa mesma for a vontade da parte no âmbito da liberdade contratual), o que importará sempre uma análise casuística.
Elisabete Valente

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[1] Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, in “Títulos de Crédito”, Almedina, pág. 213.

[2] in “Direito Comercial – Títulos de Crédito”, AAFDL, Lisboa, 1997, pág. 56 e s.

[3] Publicado no Diário da República n.º 184/2022, Série I, de 2022-09-22.