Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2632/22.7T8FAR.E1
Relator: ANTÓNIO MARQUES DA SILVA
Descritores: DIVÓRCIO
SEPARAÇÃO DE FACTO
RUPTURA CONJUGAL
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

- a separação de facto por período inferior a um ano pode funcionar como fundamento de divórcio se estiver associada a outros factos que, em conjunto com aquela separação, revelem a ruptura definitiva do casamento; tal ocorre quando essa separação ocorre em período de doença muito grave de um dos cônjuges, perdurando até ao óbito deste.

Decisão Texto Integral: Proc. 2632/22.7T8FAR

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I. AA [1] intentou contra BB a presente acção, pedindo que seja decretado o divórcio entre o A. e a R..


Alegou para tanto, no essencial, que:


- a A. e o R. contraíram casamento.


- há vários anos que o relacionamento entre o A. e a R. terminou.


- a R. abandonou a casa de morada de família, levando consigo os seus objectos pessoais.


- deixando de fazer refeições com o A., de pernoitar com o A. ou de partilhar qualquer intimidade.


- passando a fazer “vidas separadas”, sem o propósito por parte do A. em retornar à anterior situação.


Após:


- o A. informou os autos que estaria pendente outra acção de divórcio entre os mesmos sujeitos processuais, sendo a aqui R. ali a A., tendo esta apresentado desistência do pedido naquela acção. Requereu a suspensão da instância até decisão de homologação da desistência do pedido.


- o A. requereu a rectificação do seu nome face ao indicado na PI (e juntou documentos).


- o mandatário do A. informou que o A. faleceu, que os seus descendentes pretendem continuar a demanda, e que na outra acção pendente foi homologada a desistência do pedido.


Foram habilitados os sucessores (filhos) do A., CC e DD.


A R. contestou, tendo:


- invocado a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir e já que o A. não alegou a ruptura do casamento nem a violação de deveres conjugais.


- impugnado a versão do A., afirmando que o relacionamento entre ambos não terminou (apenas se ausentava da casa de morada nos períodos em que o A., devido à doença, a agredia) e que o A. estava debilitado e incapaz de cuidar de si mesmo, sendo a A. quem dele cuidava.


Os AA. habilitados responderam, pugnando pela não verificação da excepção, tendo-se ainda pronunciado sobre a matéria da impugnação e sobre efeitos jurídicos do divórcio.


Dispensada a audiência prévia, efectuou-se o saneamento da causa, julgando-se improcedente a excepção invocada, e procedeu-se à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova.


Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a R. do pedido.


Desta decisão foi interposto recurso pelos AA. habilitados, os quais fizeram juntar ao recurso um documento, tendo formulado as seguintes conclusões:


1. O casamento baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, estando estes vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, de modo a constituírem família, nos termos dos artigos n.º 1577.º e 1672º do Código Civil


2. Já o divórcio é uma das causas de dissolução do casamento decretada por tribunal ou por conservador do registo civil, a requerimento de um ou dois cônjuges, como determina a lei.


3. O artigo 1781.º alíneas a), b), c) e d) do Código Civil enuncia os fundamentos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges.


4. A rutura do matrimónio, que fundamenta o divórcio, pode ainda ser demonstrada através da prova de quaisquer factos, nomeadamente na alínea d) do artigo 1781.º do Código Civil.


5. Por outras palavras, a rutura do casamento não é apenas relevante quando se provam causas tipificadas pela lei, como sucede, nas alíneas a) b) e c), mas também noutras situações.


6. Está mais do que demonstrado factualidade “que mostrem objetivamente, e repetidamente, o desinteresse total, a falta radical de cooperação e de comprometimento na vida da família que fundaram (artigo 1674.º), a negligência grosseira, a que se vota um cônjuge ou os filhos comuns”, isto é, situações que pela sua reiteração, tornam a vida comum inexistente ou inexigível.


7. A própria sentença sub judice afirma alguns destes factos e não parece fundamentar de modo bastante o porquê de alguns factos positivamente atestados em tribunal, sob juramento, não terem sido aproveitados, quando realmente denotam e evidenciam o abandono e o desinteresse conjugal.


8. Sem prejuízo de ser condenável a desistência da ação de divórcio, por parte da Recorrida, que a promoveu, ao saber que o seu marido padecia de doença grave e terminal, num claro e evidente aproveitamento de doação feita pelo AA a favor de si.


9. Sendo que, após tal desistência, não se mostrou qualquer contrição por parte da Recorrida, de onde pudesse concluir-se o arrependimento pela conduta de afastamento e abandono, ainda para mais, conhecedora do estado de saúde delicado do de cujus, que em virtude de tal doença, veio a falecer.


10. Deveria o Tribunal a quo ter investigado em maior profundidade e, fosse como fosse, deveria este ter decretado o divórcio, retroagindo os seus efeitos à data da propositura da respetiva ação, negando-se à Recorrida beneficiar de uma posição em claro abuso de direito, conforme prevê o artº 334.º do Código Civil.


11. De um modo ou de outro, sempre pode este Colendo Tribunal, por se achar habilitado de toda a prova bastante, decretar o divórcio entre o de cujus e a Recorrida, de modo a produzir os efeitos desejados e que a Recorrida, maliciosamente, se quer prevalecer.


12. Em suma se dirá, que face aos factos provados o Tribunal a quo esteve mal, ao não decretar o divórcio, uma vez que os mesmos são elucidativos da rutura definitiva do casamento, bem como do incumprimento reiterado por parte da Recorrida, nos deveres e obrigações a que o contrato de casamento a vinculava.


13. Ouvidas e analisadas, todas as gravações, constatasse que também o Tribunal a quo não lhes concedeu a devida valoração, uma vez que de uma forma abundante os testemunhos consubstanciam factos subsumíveis na al. d, do art.º 1781.º do CC.


14. Analisada a prova documental, constatasse que também o Tribunal a quo não lhes concedeu a devida valoração, uma vez que de uma forma abundante a referida prova consubstancia factos subsumíveis na al. d, do art.º 1781.º do CC.


A R. respondeu, tendo sustentado que o recurso seria extemporâneo por os recorrentes não beneficiarem do prazo alargado inerente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto e já que não respeitavam os requisitos legais de tal impugnação.


Foi decidido, nesta sede, que o recurso interposto era tempestivo, e não foi admitida a junção do documento oferecido.


II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


Assim, importa:


- avaliar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.


- verificar se existe fundamento legal, mormente à luz do art. 1782º al. d) do CC, para decretar o divórcio.


III. Foram considerados provados os seguintes factos [2]:


1) AA e BB contraíram casamento, entre si, em ... de ... de 2007, sem convenção antenupcial.


2) Em 02 de novembro de 2021, BB abandonou a casa de morada de família.


3) No momento referido em 2), EE levou consigo os seus objetos pessoais.


4) A partir do momento referido em 2), EE deixou de fazer refeições com AA.


5) A partir do momento referido em 2), deixou de pernoitar com AA ou partilhar qualquer intimidade.


6) A partir do momento referido em 2), AA e BB deixaram de assumir conjuntamente as responsabilidades a que estavam obrigados, passando a fazer “vidas separadas”, nem existindo o propósito de AA em retornar à situação anterior.


7) AA não pretendia continuar vinculado ao contrato celebrado com BB, nomeadamente, com ela constituir família em plena comunhão de vida, nem ficar, perante ela, vinculado aos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.


8) AA encontrava-se doente com um tumor cerebral e, bem assim, leucemia aguda, sendo doente oncológico.


9) Em 13 de julho de 2022, AA foi operado e foi-lhe extraído um tumor no cérebro no Hospital ....


10) No momento referido em 11), AA encontrava-se extremamente debilitado e acamado.


11) AA faleceu em ... de ... de 2022.


E foram tidos por não provados os seguintes factos:


A) O referido em 2) ocorreu em agosto de 2021.


B) AA e BB encontravam-se juntos no momento referido em 11).


C) BB sempre habitou na casa de morada de família.


D) BB apenas se ausentava da casa de morada de família nos períodos em que AA, devido à doença que padecia, a agredia fisicamente e psicologicamente.


E) Em momento não concretamente apurado, mas previamente ao referido em 9), AA ficou com surdez total.


F) AA encontrava-se desorientado, não conseguindo localizar-se no espaço e no tempo.


G) AA não conhecia o dinheiro, nem o valor económico das coisas, nem conseguia efetuar simples cálculos aritméticos.


H) AA não era capaz de confecionar as suas refeições, cuidar da sua higiene pessoal, vestir-se ou alimentar-se sozinho.


I) No momento referido em 10), BB auxiliava AA em termos de pagamentos, bem como animicamente.


J) No momento referido em 10), BB era quem cuidava de AA e o auxiliava nas tarefas do quotidiano.


IV.1. Os recorrentes intentam impugnar a decisão sobre a matéria de facto. Com efeito, os recorrentes indicam que o recurso incide «sobre a errada valoração, face a prova documental e testemunhal (...)», o que significa que pretendem discutir a prova documental e testemunhal, o que só tem sentido útil no âmbito da impugnação factual, e impugnação esta que procuram depois desenvolver.


A impugnação da decisão sobre a matéria de facto encontra-se sujeita às regras decorrentes do art. 640º do CPC.


Deste art. 640ºdo CPC, na parte ora relevante, decorre que:


1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:


a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;


b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;


c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


2. — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:


a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;


b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.


2. Tem sido entendido (de forma claramente dominante na jurisprudência [3]) que não cabe despacho de aperfeiçoamento da impugnação da matéria de facto em sede de recurso [4], com razões que se julgam fundadas, assentes: na sequência das intervenções legislativas, em sentido agregador de maior exigência; na letra da norma em causa, que inculca uma sanção imediata (art. 640º n.º1 in fine e, em particular, n.º2 al. a) do CPC); na contraposição sistemática e material face ao art. 639º n.º3 e ao art. 652º n.º1 al. a) do CPC, confirmando a referida asserção literal (quanto à imediata rejeição) derivada do art. 640º e indiciando quer o carácter específico (especial) do regime do art. 640º em causa, quer a existência de razões que distinguem aqueles regimes e explicam a diferença entre eles; razões estas ligadas ao tipo de recurso, no qual o tribunal ad quem intervém após a produção da prova e sobre questões factuais específicas (sem reavaliação de toda a prova produzida nem de toda a prova produzida), exigindo-se, por razões de coerência, inteligibilidade, funcionalidade e também derivadas da sujeição do recurso ao dispositivo e ao contraditório, que a intervenção do tribunal de recurso esteja devidamente balizada (condição da possibilidade da devida discussão), obviando do mesmo passo a recursos infundados, assentes em meras considerações gerais (derivando de razões de economia mas também, com o demais, sublinhando a auto-responsabilidade das partes) – assim, a exigência legal é condição da fixação precisa do objecto da impugnação, da sua inteligibilidade e da seriedade da impugnação, condições sem as quais o recurso não merece ser aproveitado; a própria concessão do prazo adicional de 10 dias para recorrer tempera o rigor da exigência, quanto à al. a) do n.º2 do art. 640º, mas tende também a justificar a dispensa legal do aperfeiçoamento (pois a parte teve tempo adicional para cumprir, e cumprir bem).


Nesta medida, verificado fundamento de rejeição, não cabe qualquer medida paliativa prévia mas apenas operar o efeito legal.


3. Quanto aos termos da impugnação, admite-se dever valer, na sua avaliação e como sustentado pelo STJ, «um critério adequado à função e conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade» [5].Não obstante, esta funcionalização material não serve para permitir ao recorrente desconsiderar os ónus legais, mantendo-se a exigência de cumprimento essencial das imposições legais.


No que respeita ao assento formal destas obrigações, entende-se que o requisito imposto pela al. a) do n.º1 do art. 640º deve estar enunciado quer na motivação quer nas conclusões (nestas porque a indicação nessa sede se mostra essencial à definição do objecto do recurso), admitindo-se que os demais devem estar expressos nas alegações mas não têm que ter tradução, sucinta que seja, nas conclusões. E assim é, quanto aos requisitos da al. b) do n.º1 e al. a) do n.º2 do art. 640º, por estes requisitos constituírem razões que servem para suportar a discussão mas não delimitam o objecto do recurso. E quanto à indicação do sentido da decisão pretendido (al. c) do n.º1 do art. 640º), vale agora o AUJ 12/2023, segundo o qual «o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações» [no sentido exposto, V. A. Abrantes Geraldes, Recursos em processo civil, Almedina 2024, pág. 228 e ss., 232/3, e 234 nota 385 (nota esta na qual expressamente afirma que «é infundada a rejeição do recurso da matéria de facto com fundamento na falta de indicação, nas conclusões, dos meios probatórios ou dos segmentos da gravação em que o recorrente se funda»); L. Freitas, R. Mendes e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 3º, Almedina 2022, pág. 97 a 99, Acs. do STJ proc. 10300/18.8T8SNT.L1.S1, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, proc. 326/14.6TTCBR.C1.S1, proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, proc. 299/05, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, proc. 233/09, proc. 1572/12, proc. 449/410, proc. 1060/07 ou proc. 2351/21.1T8PDL.L1.S1 (in 3w.dgsi.pt)].


Assim, cabe apreciar a impugnação realizada, à luz das coordenadas fixadas.


4. E o que se começar por verificar é que as conclusões são completamente omissas quanto aos concretos pontos de facto que os recorrentes considerariam incorrectamente julgados (art. 640º n.º1 al. a) do CPC). Nenhuma menção a concretos elementos de facto, julgados ou não, se encontra nas conclusões, nunca se indicando que concreta realidade, descritiva e circunscrita, deveria ser dada como provada ou não. Tanto bastaria para justificar a rejeição da impugnação.


Quanto às alegações, dos seus art. 30 a 33 ainda se poderia fazer derivar a intenção de impugnar o facto 2 dos factos provados, e ainda o sentido da alteração factual proposta e, bem assim, a prova (documental) que o sustentaria. A omissão da referência a tal facto nas conclusões torna, porém, tal impugnação inaproveitável. No mais, as alegações não identificam outros factos concretos impugnados, nem muito menos qual o sentido decisório pretendido. O que também justificaria a rejeição da impugnação nessa parte.


Rejeita-se, pois, a impugnação.


5. Nos termos do art. 1781º do CC (e do art. 1773º n.º3 do CC), são fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:


a) A separação de facto por um ano consecutivo;


b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;


c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;


d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.


6. Na acção, AA (então A.) sustentou a sua pretensão com base na circunstância de o relacionamento marital ter terminado há muitos anos, estando o então A. e a R. separados. Não se referindo especificamente ao art. 1781º do CC (nem, por isso, a alguma das suas alíneas), referiu, na parte da PI intitulada «Do Direito», a existência de uma ruptura definitiva do casamento, o que apelaria, por rectas contas, à previsão da al. d) do citado art. 1781º do CC.


A sentença apreciou a pretensão deduzida apenas na perspectiva da separação de facto (al. a) do referido art. 1781º do CC), concluindo não estar verificado o elemento temporal da previsão legal, e por isso julgou improcedente a acção.


No recurso, embora de forma pouco clara ou concludente, os recorrentes pareciam querer realizar uma discussão alargada (chegando a incluir na discussão as al. b) e c) do art. 1781º, como decorre do art. 32º das alegações), tendo, nomeadamente, suscitado discussão sobre o facto relativo ao requisito temporal daquela al. a) do art. 1781º - em impugnação factual que, contudo, se não mostra passível de apreciação, como se demonstrou. Não obstante, deriva com clareza das alegações e das conclusões que os recorrentes colocam especial ênfase na hipótese da al. d) do citado art. 1781º do CC (v. art. 17º, 82º e ss. 92º e 99º e ss. das alegações, e art. 12º e 13º das conclusões), sendo esta o suporte essencial da sua pretensão recursória.


Atendendo aos termos da PI, deve aceitar-se que este fundamento do divórcio fora já ali suscitado, quando nela se invocou como fundamento jurídico a ruptura definitiva do casamento. Sem embargo, e ainda que assim não fosse, deve levar-se em conta que a causa de pedir condiciona a actividade do tribunal (art. 5º n.º1 do CPC), mas que a sua qualificação jurídica é, em princípio [6], livre, podendo o tribunal adoptar a perspectiva jurídica que mais se ajuste aos factos alegados e depois demonstrado (art. 5º n.º3 do CPC). Por isso que sempre podia este tribunal de recurso avaliar os factos ao abrigo de qualquer uma das alíneas do art. 1781º do CC, por tal corresponder apenas a uma opção jurídica, lícita ao abrigo daquele art. 5º n.º 3 do CC [7].


7. Aquela al. d) do art. 1781º contém uma cláusula geral, por natureza indeterminada, visando cobrir todas as situações de crise matrimonial insuperável que, contudo, não se subsumem às demais hipóteses legais. Nessa medida, quaisquer factos, distintos dos que correspondem às demais alíneas, podem ser usados na verificação da ruptura definitiva do casamento.


Esta noção não tem na lei qualquer padrão definidor preciso. As demais alíneas, na medida em que contêm a previsão de situações dotadas de alguma gravidade (em si ou pela sua persistência temporal), podem constituir índices heurísticos da gravidade suposta nesta hipótese (pois também as demais situações levam presumida, embora de modo absoluto, a ruptura definitiva do casamento). De modo adicional, o apelo legal a factos que «mostrem a ruptura definitiva do casamento» revela que a vontade do cônjuge é, em si, irrelevante, pelo que não basta a intenção do cônjuge em não manter a vida em comum para fazer funcionar a hipótese legal (excluindo-se assim o divórcio a pedido). Têm, pois, que estar em causa dados objectivos, avaliáveis em si e não enquanto manifestação de vontade de um dos cônjuges. A final, a gravidade suposta pelos factos fundantes da ruptura tem que medir-se pela forma como se projectam no casamento e assim na sua aptidão para criarem «uma situação consolidada de rompimento da vida conjugal». Momento em que o modo, grau ou intensidade da violação dos deveres conjugais (violação que subjaz sempre à ruptura) podem funcionar como critérios de avaliação daquela gravidade.


A lei não exige, contudo, que os factos em causa tenham um carácter reiterado ou que fiquem sujeitos a qualquer específica duração. É a sua gravidade que releva. A reiteração ou duração serão apenas elementos que podem contribuir para o juízo de gravidade, mas não são dele constitutivos. De modo paralelo, também se não exige que se demonstre ser a situação imputável à parte que não pede o divórcio (a lei não exige a imputabilidade da situação [8]), o que constitui apoio forte para sustentar que, ao menos nesta previsão, vale sem reservas uma ideia de divórcio-constatação da ruptura (o que corresponde, aliás, ao que deriva dos trabalhos preparatórios da criação deste regime legal, nos quais esta natureza é especificamente sustentada).


8. No caso, o que se verifica é, numa primeira aparência, uma situação de separação de facto com duração inferior à legalmente estabelecida na al. a) do art. 1781º do CC, assim se impedindo a aplicação desta hipótese legal. E a conexão de tal situação com aquela hipótese legal tenderia, também numa primeira aproximação, a excluir a aplicação da hipótese descrita na al. d) do citado art. 1781º, e já que esta hipótese exige factos diferentes dos que correspondem às demais alíneas. Esta asserção carece, porém, de um esclarecimento adicional: o que a articulação das normas em causa proíbe é que a separação de facto seja, só por si, valorada como ruptura do casamento. Já não impede que tal separação, em articulação com outros dados que excedem o âmbito da mera separação, não possa relevar no quadro da referida al. d) do art. 1781º do CC.


Ora, a separação constatada no processo apresenta duas notas específicas que lhe permitem atribuir uma coloração própria, justificando a sua valoração sem subordinação ao regime da referida al. a) do art. 1781º do CC.


Assim, e de um lado, verifica-se que a separação cobre um período especialmente delicado da vida de AA, quando ele está gravemente doente (leucemia e tumor no cérebro) e em que os deveres conjugais, mormente de cooperação e assistência pessoal (não alimentar), se mostram especialmente relevantes. A situação de crise pessoal, muito grave, reflecte-se na crise do casamento, demonstrando, pela subsistência da separação (das «vidas separadas», sem intimidade, como deriva dos factos provados), que também neste existe uma crise profunda e irreversível. Pois é a solidariedade familiar que assim se constata inexistir, e dessa forma também se constata inexistir verdadeiro casamento. Com efeito, se a separação subsiste no momento em que de mais apoio necessita um dos cônjuges, tal só pode significar que o casamento se tornou uma formalidade despida de conteúdo, sem que existam laços vivenciais, emocionais e assistenciais (psicológicos e afectivos) e, assim, sem qualquer conexão com a comunidade de vida e de afectos que o casamento pressupõe e postula (e bem assim sem a nota de sacrifício e renúncia pelo outro que nenhum casamento dispensa). Neste sentido específico se pode falar do «desinteresse total» que P. Coelho e G. de Oliveira consideram poder revelar a ruptura definitiva do casamento. Isto mostra, também à luz da vontade do AA em não renovar o casamento, que a falha é radical e definitiva, não acidental ou transitória [9].


De outro lado, deve levar-se em conta que a situação se mantém até ao óbito de AA e só cessa por força deste óbito. O que lhe atribui um relevo acrescido, no sentido de que a falha, radical como referido, é também terminal, subsiste até ao último momento possível, e momento a partir do qual se consolida definitivamente. O que também reforça o sentido da gravidade da separação, no contexto exposto, por a perpetuar definitivamente, criando a nota final de que a separação não apenas contempla o período de estrita necessidade do AA como a contempla até ao culminar irreversível desse período de carência. Contribuindo, à luz do contexto social, para revelar uma situação de falência consumada do casamento.


Está, assim, em causa uma situação em que a separação de facto, não constituindo por si fundamento bastante do divórcio (por se não verificar o condicionalismo previsto na alínea a) do art. 1781º), deve ser valorada «para conjuntamente com outros factos que lhe acrescentem significado, fundar um pedido à luz da alínea d)» [10].


9. Desta forma, existe uma situação de ruptura consumada, que se não reduz à mera separação de facto, assentando antes numa separação de facto em circunstâncias que lhe atribuem um relevo especial, autónomo, revelando que o vínculo matrimonial se rompeu. Assim se constituindo uma situação de ruptura definitiva do casamento.


10. Deste modo, justifica-se decretar o divórcio, embora apenas para efeitos patrimoniais (art. 1785º n.º3 do CC).


11. Porque decai, a recorrida suporta as custas da acção e do recurso (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).


V. Pelo exposto, revoga-se a sentença recorrida, decretando-se, para efeitos patrimoniais, o divórcio entre AA e BB.


Custas, da acção e do recurso, pela recorrida.


Notifique-se.


Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):


(…)

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).


António Marques da Silva - Relator


Filipe César Osório - Adjunto


Sónia Moura - Adjunta

__________________________________

1. Nome rectificado após a instauração da acção.↩︎

2. Em reprodução literal.↩︎

3. V. por todos os Ac. do STJ proc. 21389/15.1T8LSB.E1.S1, proc. 4330/20.7T8OER.L1.S1, proc. 1680/19.9T8BGC.G1.S1, proc. 1229/18.0T8OLH.E1.S1, proc. 1786/17.9T8PVZ.P1.S1, proc. 150/19.0T8PVZ.P1.S1 ou proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1 (3w.dgsi.pt), este com indicações doutrinais a que se podem aditar Henrique Antunes, Recurso de apelação e controlo da decisão da questão de facto, Estudos em Comemoração dos 100 Anos do Tribunal da Relação de Coimbra, Almedina 2018, pág. 80 no sentido da inadmissibilidade legal do convite (embora com reservas face ao direito constitucional a um processo equitativo); e, no sentido oposto, L. Freitas, R. Mendes e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 3º, Almedina 2022, pág. 95 e 99 (também com outras indicações).↩︎

4. No sentido da constitucionalidade da solução, v. DS 256/2021 do TC (no site do TC).↩︎

5. V. Ac. do STJ proc. 20592/16.1 T8SNT.L1.S1 (3w.dgsi.pt).↩︎

6. Ressalvadas situações em que a diferenciação jurídica se traduz num «modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação».↩︎

7. Assim, Acs. do STJ de 16.05.2023, proc. 2184/20.2T8VRL.G1.S1 ou de STJ de 15.09.2022, proc. 381/18.0T8ABT.E1.S1, em 3w.dgsi.pt↩︎

8. Embora também se defenda que o cônjuge causador do facto não o deve poder aproveitar para obter o divórcio contra a vontade do outro cônjuge.↩︎

9. V., para situações semelhantes ou próximas, Acs. do STJ de 15.09.2022, proc. 3395/16.0T8BRG.G1.S1, ou de 25.02.2021, proc. 1299/16.6T8TMR.E2.S1, ou, de forma até aparentemente mais extrema, de 03.10.2013, proc. 2610/10.9TMPRT.P1.S1, todos em 3w.dgsi.pt. No entanto, argumentando em sentido desfavorável a esta solução (ou ao menos a certos aspectos da solução), G. de Oliveira, Contribuições jurisprudenciais para o desenvolvimento do Direito da Família, Revista do STJ 02, pág. 45 e ss..↩︎

10. Rute Teixeira Pedro, CC Anotado (Ana Prata coord.), vol. II, Almedina 2017, pág. 685.↩︎