Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1580/23.8YLPRT.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: ARRENDAMENTO
ASSÉDIO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não caracteriza o assédio no arrendamento a oposição do senhorio à renovação do contrato de arrendamento com o fim de vender o imóvel arrendado após a caducidade do contrato de arrendamento.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: 1580/23.8YLPRT.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. (…), (…), S.A., com sede no Edifício (…), Torre (…), Av. do (...), 37-F, 4º Piso, em Lisboa, na qualidade de senhoria, instaurou contra AA e BB, com morada na ..., n.º ...4, ..., em ..., na qualidade de arrendatários, ação especial de despejo, com fundamento na oposição à renovação do contrato de arrendamento.
O requerido Autor deduziu oposição. Admitiu haver recebido a comunicação da Requerente, mediante a qual esta se opôs à renovação do contrato de arrendamento da fracção autónoma que lhe foi dada de arrendamento, em 01/06/2020, pelo prazo de três anos, e argumentou que a actuação da Requerente, posterior à referida comunicação, gerou nos Requeridos a convicção que oposição à renovação do contrato de arrendamento deixaria de produzir efeitos e “que não teriam que sair do imóvel”, excepcionando o abuso de direito.
Concluiu pela improcedência do procedimento.
A Requerente respondeu por forma a concluir pela improcedência da oposição com o consequente despejo do imóvel pelos Réus.

2. Realizou-se a audiência final e depois foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou:
(…) julga-se a acção totalmente improcedente e totalmente procedente a excepção peremptória de abuso de direito por provada e, consequentemente, absolvem-se os Réus de todos os pedidos.”.

3. Recurso
A Requerente recorre da sentença, motiva o recurso e conclui:
“1. A Recorrente apresentou um requerimento de despejo, através do preenchimento e envio de formulário eletrónico disponível no sistema informático citius, no Balcão Nacional do Arrendamento, adiante designado por BNA, correndo a ação sob forma de procedimento especial de despejo (doravante PED).
2. No decorrer da fase administrativa não se verificou nenhum fundamento para a recusa do requerimento de despejo, nos termos do artigo 15.º-C do NRAU.
3. Não restando, porém, dúvidas que se encontra atribuído à fase administrativa, ou seja, à Secretaria do BNA, a competência para proceder à verificação da ineptidão do requerimento de despejo e recusá-lo, se for caso disso.
4. Não se verificando motivos para a recusa do requerimento, o BNA procedeu à notificação dos Recorridos para estes (i) desocuparem o locado e, sendo caso disso, pagar ao requerente a quantia pedida, acrescida da taxa por ele liquidada ou (ii) deduzir oposição à pretensão e/ou requerer o diferimento da desocupação do locado, nos termos do disposto nos artigos 15.º-N e 15.º-O (n.º 1 do artigo 15.º-D).
5. Os Recorridos depois de notificação pelo Balcão Nacional do Arrendamento apresentaram Oposição ao requerimento de despejo confessando terem recebidas as cartas de oposição à renovação do contrato de arrendamento, invocando a falta de fundamentação da oposição à renovação por parte da Recorrente, (…), S.A. e, acusando-a de ter atuado com abuso de direito.
6. O Tribunal de 1ª Instância fez errada apreciação e interpretação do artigo 334.º do Código Civil, ao acusar a Recorrente de ter atuado com abuso de direito, ao decidir pela absolvição dos Recorridos do pedido, embora tenha dado como provado que as comunicações de oposição à renovação do contrato de arrendamento, foram tempestivas e eficazes.
7. Tendo produzido efeitos as comunicações de oposição à renovação do Contrato de Arrendamento, que chegaram ao conhecimento dos Recorridos a 26/07/22 deveria ter sido declarado procedente o processo especial de despejo, por cessação do Contrato em 31/05/23.
8. As comunicações da oposição à renovação do contrato foram enviadas a 14/07/22 e 07/09/24, por cartas registadas com aviso de receção, produziram os seus efeitos, pois foram recebidas pelos Recorridos em 26/07/22 pelo que, os Recorridos deveriam ter entregue o imóvel livre de pessoas e bens, na data de 31/05/23 ou então pelo menos, no dia 01/06/23 que estava agendado para a realização da vistoria ao imóvel, estando esta data inserida nas mencionadas cartas.
9. A Recorrente e atual proprietária sempre manifestou o interesse na recuperação da posse do Imóvel, tendo lançado mão do procedimento especial de despejo, em face da não entrega voluntária do imóvel por parte dos Recorridos.
10. Os Recorridos é que têm agido com manifesta má-fé contra a Recorrente e, só com o intuito claro de usar de expediente dilatório para atrasar a entrega do imóvel à sua legitima proprietária.
11. E, tomando posição sobre o abuso de direito, de conhecimento oficioso, devia ter sido considerado pelo Tribunal a quo de que os Recorridos é que agiram com abuso de direito, e não a Recorrente.
12. Não podemos concordar, com a douta sentença do Tribunal a quo sendo ofensiva e até difamatória a acusação.
13. A Recorrente exerceu o seu direito potestativo de comunicar que se opunha à renovação do contrato de arrendamento, que foi eficaz e em consequência a decisão do Tribunal a quo tinha de ser no sentido da procedência do processo especial de despejo.
14. O direito que a lei concede ao senhorio, não pode ser subvertido e eliminado com troca de mails com propostas de compra do imóvel, pouco tempo antes do terminus do contrato, quando os Recorridos deixaram decorrer cerca de oito meses para o fazerem.
15. Tendo ficado provado que as comunicações da senhoria à oposição à renovação do contrato de arrendamento foram rececionadas pelos Recorridos, pelo que bem sabiam desde 26 julho de 2022 da vontade da Recorrente em não pretender renovar o contrato de arrendamento.
16. E, por conseguinte, eficazes e, que produziram os seus efeitos, pelo que o contrato de arrendamento cessou em 31/05/23.
17. Decorreram meses, cerca de oito meses, desde 26/07/22, data em que receberam as comunicações de que não havia vontade de renovar o contrato de arrendamento, até os Recorridos apresentarem uma proposta de compra em março de 2023.
18. E quase a completar cerca de dois anos desde 26/07/22, sem que os Recorridos de forma séria tenham apresentado uma proposta próxima dos valores de venda que a Recorrente pretende.
19. E como sabem, que a Recorrente pretende que lhe seja entregue o imóvel, tentam forçar a Recorrente para que aceite o valor proposto, embora exista a convicção de que não querem comprar nada, mas sim evitar ser despejados.
20. Quem atuou com abuso de direito foram claramente os Recorridos, que andaram a empatar sempre com a mesma proposta, com o intuito claro de ganhar tempo, de impedir e de frustrar o exercício de um direito legal da Recorrente em pretender cessar o contrato de arrendamento.
21. Como é bom de ver, resulta manifesto, ostensivo, mesmo que a situação delineada nos autos não é – muito longe disso – suscetível de ser caracterizada, como de assédio, sequer e, muito menos de conduta ilegítima por parte da Recorrente.
22. E, tomando posição sobre o abuso de direito, de conhecimento oficioso, devia ter sido considerado pelo Tribunal a quo de que os Recorridos é que agiram com abuso de direito, e não a Recorrente e, por conseguinte proferida sentença da procedência do processo de despejo.
23. Demonstrado fica, sem margem para qualquer dúvida, que não houve em momento algum, qualquer ato da Requerente ou da sua procuradora, que tenha criado qualquer expetativa do que quer que seja e, muito menos, de que a Requerente aceitava o valor de compra proposto pelos Requeridos e, bem assim, que o contrato de arrendamento não tinha cessado.
24. Por outro lado, sempre se dirá, que o facto de os Recorridos terem apresentado uma proposta, não vincula a Recorrente e, muito menos a obriga a fazer negócio nem com os Recorridos, nem com outros interessados e, muito menos pelo preço que eles entenderem.
25. A conduta da Recorrente ou da sua procuradora, está justificada, em termos de senso comum, de razoabilidade e, não tem a dimensão, o sentido, nem a ressonância aqui prevista pelo legislador e, que o Tribunal a quo lhe pretende emprestar, de forma, absoluta, grosseira e gritantemente injustificada.
26. Toda a factualidade invocada, não pode conduzir à pretensão dos Recorridos de que seja considerada como abuso de direito a conduta da Recorrente (embora com comunicações eficazes e com produção de efeitos) e, por conseguinte, de que procedimento de despejo terá de improceder, como veio a ser decidido.
27. A decisão do tribunal a quo restringe o direito de propriedade da Recorrente com total violação do sentido e o alcance do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
28. A atuação dos Recorridos é limitativa do direito de propriedade e da liberdade da Recorrente, enquanto senhoria e proprietária, aquela sim com abuso de direito ao pretenderem forçar a Recorrente a vender o imóvel pelo valor que querem dar, e, ainda, entorpecer o processo especial de despejo.
29. Igualmente afastada deve ficar a acusação de a Recorrente ter atuado como assédio no arrendamento, pois em momento teve comportamentos, como: perturbar, constranger, afetar, sujeitar a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, impedir ou prejudicar gravemente o acesso e a fruição do locado, apesar de poder traduzir num ato isolado, o certo é que, pela própria natureza das coisas e da definição etimológica da expressão "assédio" – comportamento desagradável ou incómodo a quem alguém é sujeito repetidamente - pressupõe uma continuação, a prática de atos plúrimos, uma reiteração uma persistência na atuação do agente ativo.
30. O que, se dirá, que nem sequer foi alegado pelos Recorridos, sobre quem, atentas as regras de repartição do ónus da prova, contidas no artigo 342.º do Código Civil, incumbia o ónus da prova.
31. Pelo que o Tribunal a quo não podia e não devia ter acusado a Recorrente de ter atuado com abuso de direito e muito menos praticado assédio no arrendamento e, com esta fundamentação decidir pela improcedência do pedido de despejo e de desocupação do locado.
32. A atuação da Recorrente, ou da sua procuradora, em troca de mails, com o Recorridos em março de 2023, pouco antes de terminar o contrato de arrendamento, em nada pode fazer uma tábua rasa do direito das comunicações efetuadas que foram eficazes e produzirem efeitos, tendo o contrato de arrendamento cessado em 31/05/23.
33. E igualmente não se pode concordar com a decisão que ao decidir pela existência do abuso de direito, de que se não houvesse abuso de direito, haveria assédio no arrendamento.
34. Ora, se a Recorrente entende não ter havido abuso de direito, muito menos houve assédio no arrendamento por parte da Recorrente ou dos funcionários da sua procuradora.
35. Nos termos, artigo 13.º-A – prevê a Proibição de assédio, a saber:
“É proibido o assédio no arrendamento ou no subarrendamento, entendendo-se como tal qualquer comportamento ilegítimo do senhorio, de quem o represente ou de terceiro interessado na aquisição ou na comercialização do locado, que, com o objetivo de provocar a desocupação do mesmo, perturbe, constranja ou afete a dignidade do arrendatário, subarrendatário ou das pessoas que com estes residam legitimamente no locado, os sujeite a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do locado”.
36. Ora, foram os Requeridos que estabeleceram contactos no sentido de apresentar propostas de compra do imóvel arrendado e, fizeram-no muito para além do dia 26/07/22 e, pouco tempo antes da data de 31/05/23, apenas em março de 2023, como já se disse.
37. Acresce que a Recorrente não está obrigada a vender o imóvel, pelo preço que os Recorridos ofereceram ou outrem que venha a estar interessado.
38. Pelo que afastada fica, manifestamente, que a Requerente, por si ou por interposta pessoa tenha agido em algum momento com abuso de direito e, muito menos contrária à lei e aos princípios da boa fé, pelo que a decisão do Tribunal a quo devia ter sido no sentido da procedência, por provada, do processo especial de despejo, declarando a cessação do contrato de arrendamento em 31/05/23 por oposição à renovação eficaz e ainda, na condenação dos Recorridos na entrega do locado livre de pessoas e bens e nas custas do processo.
39. Os Recorridos é que agem e agiram, com Abuso de Direito num venire contra factum proprium, pois claramente pretendem beneficiar de um alegado comportamento aparentemente desconforme de terceiro, que afinal de contas foram os Recorridos que o provocaram ou para o qual contribuíram, uma vez que apresentaram uma proposta, que não foi aceite, como sabem muito bem, bem sabendo que o contrato de arrendamento cessou em 31/05/23.
40. Os Recorridos é que agem com manifesta má-fé contra a Requerente e, só com o intuito claro de usar de expediente dilatório para atrasar a entrega do imóvel à sua legitima proprietária.
41. Acresce ainda, que a Recorrente no âmbito e plenitude do seu direito de propriedade é livre de publicitar a venda do imóvel em causa, onde quiser e pelo preço que entender.
42. Aliás, como está previsto no artigo 1305.º do Código Civil ao definir o conteúdo do direito de propriedade: “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.”
43. Por outro lado, sempre se dirá, que o facto de os Recorridos terem apresentado uma proposta, não vincula a Recorrente e, muito menos a obriga a fazer negócio com os Recorridos ou com outro interessado e, muito menos, pelo preço que eles entenderem.
44. A decisão recorrida é ilegal, violando o artigo 9.º e consequentemente os artigos 1080.º, 1096.º, n.º 1 e 3, e 1097.º, n.º 3, 334.º, 1305.º, todos do Código Civil e ainda, n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.
Assim, com o Douto Suprimento do Tribunal ad quem deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão que julgou totalmente improcedente o processo especial de despejo e acusou a Recorrente de ter atuado com abuso de direito ou até de assédio no arrendamento, sendo a mesma substituída por outra que declare a procedência do processo, por provada, com a consequente caducidade do contrato de arrendamento (por oposição à sua renovação do senhorio eficaz) e, consequentemente condene os Recorridos na desocupação e entrega do imóvel em crise e, nas custas do processo e condigna procuradora, fazendo-se assim, inteira e sã JUSTIÇA”.
Respondeu o requerido AA por forma a defender a improcedência do recurso.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Considerando as conclusões da motivação do recurso e sendo estas que delimitam o seu objeto, importa decidir, se o exercício do direito ao despejo, pela Requerente, é ilegítimo por abuso de direito e/ou se ocorre assédio no arrendamento.


III. Fundamentação
1. Factos
1.1. A decisão recorrida julgou assim os factos:
Provado:
1) A Autora (…), (…), S.A. é a proprietária e actual senhoria da fração ..., a que corresponde o 1.º andar, com entrada pelo número ...4 do prédio urbano, em propriedade horizontal, sito na ..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...31 e inscrito na matriz predial urbana com o artigo ...28.
2) No dia 01/06/2020, o Fundo de Investimento Imobiliário Fechado para Arrendamento Habitacional, Solução Arrendamento, representado pela sua gestora (…) – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliários, S.A., deu de arrendamento aos Réus para habitação permanente, com prazo certo de três anos, a fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao 1.º andar, com entrada pelo número ...4 do prédio urbano, em propriedade horizontal, sito na Rua Doutor (…) – Rua A, em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...31 e inscrito na matriz predial urbana com o artigo ...28, com prazo de duração inicial de 3 (três) anos, renovável por iguais e sucessivos prazos de 1 (um) ano, salvo denúncia das partes.
3) O imóvel locado foi comprado pela Requerente, encontrando-se a aquisição registada pela Ap....23, de 2022/01/31.
4) Através de cartas registadas com aviso de recepção, e efetivamente recebidas, a Autora comunicou a oposição à renovação do contrato de arrendamento aos Réus.
5) Após a recepção das cartas referidas em 4), a Autora adoptou uma conduta que gerou nos Réus a convicção de que a comunicação anterior fora dada sem efeito e que não teriam de sair do imóvel.
6) Face à comunicação da Autora de oposição à renovação do contrato de arrendamento, a Ré BB, entrou em contacto com a (…), procuradora e gestora do património da Autora.
7) Após várias insistências da Ré, a (…) respondeu a 7 de Março de 2023, transmitindo o seguinte:
Acusamos a recepção do seu email.
Após análise do seu processo cabe me informar que o seu imóvel se encontra com estratégia de venda por parte do novo senhorio com um novo valor mínimo não vinculativo de proposta de € 62.000,00, podendo ser atualizado para cima dependendo dos valores atualizados da zona.
No caso de aceitação deste valor terá de ter um valor de € 6.200,00 de sinal e capacidade para assinar o CPCV (contrato promessa compra e venda) no prazo máximo de 5 dias após o recebimento do mesmo.
Após apresentação de proposta formal, a ser enviada pelo departamento comercial, necessita de ser aprovada pelo nosso cliente antes de dar início a qualquer processo bancário.
Em caso de não aceitação do valor, mais perto da data fim do seu contrato, será contactada por uma colega para agendar a entrega das chaves do imóvel.
Aguardo feedback até dia 31.03.2023 para poder dar seguimento ao seu processo.
Melhores cumprimentos
CC”
8) No seguimento desta informação, a Ré enviou proposta de compra pelo valor de € 62.000,00, no entanto, não obteve qualquer resposta nem mais conseguiu contacto com CC, da (…).
9) Após várias tentativas de contacto telefónico com a (…), BB conseguiu, a 23 de Março de 2023, chegar à fala com DD, tendo esta funcionária pedido novamente à Ré que lhe remetesse a proposta de compra do imóvel, o que fez.
10) Em resposta, DD enviou nesse mesmo dia (23/03/2023) mail com o seguinte teor:
Acusamos a recepção do email infra. O mesmo será encaminhado para o departamento comercial de forma a ser analisado e apreciado.
Atentamente
DD”.
11) Sem qualquer informação por parte da (…), BB continuou a insistir por uma resposta do departamento comercial, tendo recebido a 27 de Abril de 2023, a seguinte comunicação:
Exmo(a) Sr(a)
Acusamos a recepção do email infra, que informo foi encaminhado ao departamento competente, queira aguardar o contacto dos colegas pf.
Com os melhores cumprimentos,
EE
12) A ausência de resposta foi geradora de muita ansiedade nos Réus, por não entenderem o que impedia a (…) de dar continuidade ao procedimento com vista à aquisição do imóvel.
13) Os Réus preocupados com toda a situação, fizeram várias tentativas de contacto telefónico com a (…), no entanto, o atendimento automático informa, na grande maioria das vezes, que não é possível atender a chamada naquele momento, pedindo dados para contacto futuro por parte da (…), o qual nunca chega a ocorrer.
14) Os Réus ficaram surpreendidos quando tomaram conhecimento de que a venda da fração em que habitam estava a ser publicitada pela P... - Sociedade Mediação Imobiliária S.A. (R...), com a licença ...63 e sede na Av. ..., ..., em ..., pelo preço de € 87.000,00, preço em muito superior ao que lhes havia sido comunicado a 6 de Março de 2023 e que não corresponde ao valor de mercado, estando o imóvel ainda à venda na data actual, conforme anúncio disponível em ....
15) Os Réus ficaram ainda mais perplexos quando, dias depois, ao invés de receberem uma resposta do departamento comercial da (…) à proposta de compra, recepcionaram a 17 de Maio de 2023, o seguinte email, assinado por FF:
Exmo(a). Sr(a).,
Serve o presente e-mail para informar V. Exa, da marcação da vistoria e entrega das chaves do imóvel, para o dia 01 de Junho de 2023, da parte da manhã.
De salientar, que na data da vistoria supramencionada o imóvel tem de permanecer livre de pessoas e bens.
Deste modo, solicita-se a V. Exa, que altere toda a correspondência que tenha por base a morada do imóvel em questão, sob pena de deixar de ter acesso à mesma após o a entrega do locado.
Desde já agradecemos a atenção dispensada,
Com os melhores cumprimentos,
FF.
16) No mesmo dia, BB remeteu mail solicitando esclarecimento urgente da situação.
17) Após, a Ré foi contactada pelo funcionário GG que solicitou o preenchimento de formulário específico da (…), o qual foi remetido por mail no dia 18 de Maio de 2023.
18) O funcionário GG deu ainda instruções de como deveriam os Réus proceder para a prorrogação do contrato de arrendamento.
19) Os Réus preencheram o formulário solicitado, conforme lhes foi indicado, a 23 de Maio de 2023 e entregaram o mesmo na agência imobiliária R..., em ..., tendo alterado a sua proposta de compra para € 68.000,00, no entanto a (…) estranhamente não deu resposta aos Réus, agindo notoriamente de má fé, uma vez que estabeleceu negociações com os Réus para venda do imóvel.
20) A Autora deu entrada do presente procedimento especial de despejo a 26 de Julho de 2023.
21) Os Réus continuam a pagar atempadamente a renda mensal, o que é aceite pela Autora.
22) Os Réus mantêm o interesse na aquisição da fração que habitam.
23) A Autora pretende impedir os Réus de adquirirem o imóvel, aumentando consecutivamente o seu preço.
24) O teor do anúncio de venda ao invés de indicar que o imóvel está arrendado, informa “Imóvel ocupado, não disponível para visitas.”
25) A Autora com a sua pretensão entra em contradição com o comportamento que adoptou com o envio da oposição à renovação do contrato de arrendamento e a posterior negociação de aquisição do imóvel pelos Réus, fixando o preço inicial e alterando-o posteriormente após as negociações iniciais, inflacionando o preço.
Não provado:
i) Os emails trocados entre os Réus e funcionários da (…) são apenas informativos os enviados por estes.
ii) Os Réus encetaram negociações apenas com a imobiliária P... e não com a (…).
iii) Foi a imobiliária que transmitiu aos Réus que a proposta dos € 68.000,00 não era aceite e que reformulassem para € 75.000,00, poderia ser que fosse apresentada a aprovação e decisão da (…).
iv) Os Réus sabem muito bem, que mantiveram a proposta do valor de compra nos € 68.000,00 e, que esta não foi aceite e, por conseguinte, a proposta foi retirada em 16/06/23 da plataforma pela referida imobiliária.
v) A anterior proprietária do imóvel e senhoria que vendeu o imóvel à Autora, notificou os Réus das condições da venda e para exercerem a opção de compra do imóvel.
vi) Foi comunicado aos Réus por mail de 17/05/23 o dia da vistoria do imóvel a realizar no dia imediato ao da cessação do contrato, ou seja, no dia 01 de Junho de 2023, que é um procedimento prévio à entrega do imóvel e que manifestamente faz prova de que o contrato de arrendamento ia cessar em 31/05/23, como cessou.
vii) Não tendo sido aprovada a proposta apresentada pelos Réus e que foi do seu conhecimento e, que por essa razão, a mencionada imobiliária retirou a proposta da plataforma.
viii) O procedimento da vistoria, manteve-se na sequência da data da cessação do contrato de arrendamento.
ix) Os Réus já sabem há muito que a proposta que apresentaram não foi aceite e, tal foi-lhes comunicado pela imobiliária referida, que foi com quem encetaram negociações e ao saberem que não tinha sido aceite, igualmente sabiam que o contrato de arrendamento tinha cessado.
x) Os Requeridos alegam factos falsos ou deturpados, unicamente para obstaculizar a concretização do despejo e enganar o Tribunal.
xi) Não houve qualquer acto da Autora ou da sua procuradora (…), que tenha criado qualquer expectativa do que quer que seja e, muito menos, de que a Autora aceitava o valor de compra proposto pelos Réus e, bem assim, que o contrato de arrendamento não tinha cessado.
xii) Os Réus pretendem beneficiar de um alegado comportamento aparentemente desconforme de terceiro, que afinal de contas foram os Réus que o provocaram ou para o qual contribuíram, uma vez que apresentaram uma proposta, que não foi aceite, bem sabendo que o contrato de arrendamento cessou a 31/05/23.
xiii) Os Réus agem com manifesta má-fé contra a Autora e só com o intuito claro de usar de expediente dilatório para atrasar a entrega do imóvel à autora.

1.2. Eliminação de matérias de direito discriminadas como factos provados
Julgou-se provado: “5) Após a recepção das cartas referidas em 4), a Autora adoptou uma conduta que gerou nos Réus a convicção de que a comunicação anterior fora dada sem efeito e que não teriam de sair do imóvel”; 25) A Autora com a sua pretensão entra em contradição com o comportamento que adoptou com o envio da oposição à renovação do contrato de arrendamento e a posterior negociação de aquisição do imóvel pelos Réus, fixando o preço inicial e alterando-o posteriormente após as negociações iniciais, inflacionando o preço”.
Esta descrição dos termos do litígio, a manter-se, resolve a questão de direito, ou de boa parte dela, colocada na ação e agora no recurso – o abuso de direito – pois dela decorre o comportamento contraditório que concorre para a caraterização da referida excepção peremptória inominada.
Assim, e não obstante os temas da prova [artigo 596.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, doravante CPC] imponham um menor rigor formal na distinção entre matéria de facto e matéria de direito, por comparação com a solução da lei processual civil pregressa, tal não significa, nem justifica, sob pena de se subverter a estrutura lógica da sentença e, em última razão, os procedimentos da sua reponderação [artigos 639.º e 640.º do CPC] que a discriminação dos factos provados [artigo 607.º, n.º 3, do CPC] comporte a solução de direito da causa, ou de parte dela, como seria aqui o caso.
O CPC de 1961 dispunha de norma que permitia ao juiz da sentença considerar como não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito (artigo 646.º, n.º 4), não dispondo o Código vigente de norma idêntica; o que se justifica porquanto, na vigência deste, o julgamento da matéria de facto e de direito deixou de ocorrer em ciclos processuais distintos e, ambos os juízos têm lugar na sentença, mas tal não significa que a fundamentação de facto da sentença tenha passado a poder incidir também sobre matéria de direito. Na sentença o juiz deve discriminar os factos provados (artigo 607.º, n.º 3), o que excluí a discriminação, como provado, de matérias que, no contexto do litígio, assumam claramente a natureza de questões de direito. É o caso.
A decisão de facto quanto às apontadas matérias é, a nosso ver, deficiente e, assim, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, os supra referidos pontos 5) e 25 não se deverão manter.
Face ao exposto, elimina-se da discriminação dos factos provados o que consta sob os pontos 5) e 25).

2. Direito
Apesar de haver reconhecido a regularidade e validade da oposição da senhoria, ora Recorrente, à renovação do contrato de arrendamento a decisão recorrida desconsiderou o direito por esta exercitado, de por termo ao contrato de arrendamento, por abuso de direito e, subsidiariamente, por assédio no arrendamento.
A Recorrente considera legítimo e conforme à lei o exercício do direito potestativo de se opor à renovação do contrato de arrendamento e, por sua vez, caracteriza a actuação dos Requeridos como abusiva e de má-fé, ao criarem expedientes dilatórios para atrasar a entrega do imóvel.

2.1. Abuso de direito
A lei considera “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direitoartigo 334.º do CC.
Como desde há muito tem sido acentuado o direito cessa onde começa o abuso,[1] de modo que o uso, quando convertido em abuso, não pode colher da ordem jurídica a tutela que, em princípio, deveria merecer.[2]
A doutrina tem vindo a autonomizar tipos de atos abusivos e, entre eles, o venire contra factum próprio, ou seja, um comportamento contraditório do agente reprovado pela ordem jurídica.
Estruturalmente, ensina Menezes Cordeiro, “o venire postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas entre si e diferidas no tempo. A primeira – o factum proprium – é contrariada pela segunda. O óbice reside na relação de oposição entre ambas”; no venire positivo, uma pessoa manifesta uma intenção ou, pelo menos, gera uma convicção de que não irá praticar certo acto e, depois, pratica-o mesmo”; no “venire negativo, o agente em causa demonstra ir desenvolver certa conduta e, depois, nega-a.” [3]
Embora o direito privado não disponha de uma regra, ou princípio geral, proibitiva do comportamento contraditório fora dos quadros do negócio jurídico – o “negócio jurídico é, na verdade, justamente o mecanismo disponibilizado pela ordem jurídica para possibilitar a formação da confiança na palavra dada e, consequentemente, numa conduta futura dos contraentes[4]casos existem em que o negócio jurídico não pode ser o único modo de protecção das expectativas criadas à contraparte sob pena de flagrantes injustiças.[5]
A proibição do comportamento contraditório, fora do âmbito do negócio jurídico constituí uma manifestação da tutela da confiança.
A ação abusiva não se basta, porém, com a confiança subjetiva daquele contra quem se invoca o direito é necessária uma justificação para essa confiança, expressa em elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocarem uma crença plausível, “[d]igamos que o quantum de credibilidade necessária para integrar uma previsão de confiança, por parte do factum proprium, é assim função do necessário para convencer uma pessoa normal, colocada na posição do confiante razoável, tendo em conta o esforço realizado pelo mesmo confiante na obtenção do factor a que se entrega[6] e ainda um investimento de confiança por parte do confiante, ou seja., o desenvolvimento de “uma atividade tal que o regresso à situação anterior, não estando vedado de modo específico, seja impossível em termos de justiça.”[7]
Assim, a mera confiança subjetiva, alicerçada fora dum quadro de razoabilidade objetivamente considerada, só por si, é insuficiente para, fundada nela, se concluir pelo comportamento contraditório suposto pelo exercício abusivo do direito.
À luz destes considerandos e tornando à espécie dos autos, cumpre, em primeiro linha, averiguar se a conduta da Recorrente, posterior à comunicação da oposição da renovação do contrato de arrendamento – mediante a qual declarou cessados os seus efeitos em 31/5/2023, com a consequente desocupação do imóvel nesta data – foi no sentido de, razoavelmente, gerar no Recorrido, uma expectativa factual, sólida, de que podia confiar que a comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento “fora dado sem efeito e que não teriam que sair do imóvel”, uma vez que foi precisamente isto que o Recorrido defendeu e a decisão recorrida corroborou.
Segundo os factos provados, a Recorrente, através da sua procuradora e gestora do património, (…), depois de comunicar ao Recorrido e à requerida BB, a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento [ponto 4 dos factos provados] teve as seguintes actuações:
- em 7 de Março de 2023, comunicou à requerida BB que o imóvel se encontrava “com estratégia de venda” com um novo “valor mínimo não vinculativo de proposta de € 62.000,00, podendo ser atualizado para cima”, que a proposta formal de compra carecia de aprovação da Recorrente e que “em caso de não aceitação do valor, mais perto da data fim do seu contrato, será contactada por uma colega para agendar a entrega das chaves do imóvel [ponto 7 dos factos provados];
- em 23 de Março de 2023, pediu novamente à requerida BB a remessa da proposta de compra do imóvel e comunicou-lhe que a proposta fora enviada para o departamento comercial para análise e apreciação, informação que renovou em 27 de Abril de 2023 [pontos 9 a 11 dos factos provados].
- posteriormente, colocou o imóvel à venda pelo preço de € 87.000,00 [ponto 14 dos factos provados].
- em 17 de Maio de 2023, informou os Requeridos da data de entrega do imóvel, 1 de Junho de 2023, com vistoria e entrega das chaves [ponto 15 dos factos provados].
- no mesmo dia, e por iniciativa da requerida BB, solicitou a esta o preenchimento de formulário específico, destinado à prorrogação do contrato de arredamento [pontos 16 a 18 dos factos provados].
- a 26 de Julho de 2023, instaurou procedimento especial de despejo [ponto 20 dos factos provados].
Pergunta-se, à luz desta actuação, onde reside o factum proprium da Recorrente, isto é, a manifestação de uma intenção ou, pelo menos, de um acto, expressa em elementos objetivos capazes de, em abstrato, gerarem nos Requeridos a convicção de que a comunicação de oposição à renovação do contrato “fora dado sem efeito e que (os requeridos) não teriam que sair do imóvel”? Em momento algum, a nossa ver; não o evidencia o processo negocial destinado à aquisição do imóvel, porquanto tais negociações têm como efeito típico, normal, a aquisição da propriedade e não a manutenção do contrato de arrendamento do arrendatário/comprador, aliás, a concretização da aquisição do imóvel pelo arrendatário conduz à extinção das obrigações do contrato de arrendamento por confusão [artigo 868.º do Código Civil], não à sua manutenção e não o demonstra as especificas declarações da Recorrente, em tais negociações – “em caso de não aceitação do valor, mais perto da data fim do seu contrato, será contactada por uma colega para agendar a entrega das chaves do imóvel” [ponto 7 dos factos provados] – de acordo com as quais, parece clara a separação entre o processo negocial de aquisição do imóvel e os efeitos da declaração de oposição à renovação do contrato de arrendamento, de tal forma que a existência do primeiro não afectaria a normal produção de efeitos da segunda.
Não se encontra, pois, na actuação da Recorrente qualquer intenção, ou acto, apto a gerar nos Requeridos a convicção de que, por efeito das negociações destinadas à aquisição do imóvel, a comunicação de oposição à renovação do contrato “fora dado sem efeito e que (os requeridos) não teriam que sair do imóvel” e, assim, a mera confiança subjetiva que possam ter formado sobre este ponto, por irrazoável à luz das regras da experiência da vida e da normalidade das coisas, não justifica protecção.
Enunciação que concorre para não se acompanhar a decisão recorrida, na parte em que caracteriza o abuso de direito da Recorrente “por ter criado expectativas nos Réus na compra da casa e por alterarem significativamente o valor inicialmente proposto, aproveitando-se do facto de serem arrendatários”; o direito que a Recorrente pretende exercer nos autos – o despejo do imóvel por caducidade do arrendamento – não se dilui, nem se confunde, em negociações com vista à aquisição do imóvel arrendado, isto é, ainda que a Recorrente tivesse actuado por forma a criar nos Requeridos a convicção que com eles celebraria um contrato de compra e venda do imóvel – actuação que os autos não revelam – a convicção ou expectativa cuja tutela vem exercida nos autos não é a da aquisição do imóvel mas a de que a comunicação de oposição à renovação do contrato “fora dado sem efeito”; e, depois, a possibilidade de aquisição do imóvel pelos Requeridos não passou da fase das negociações e, nesta fase, sem prejuízo do dever de indemnizar por culpa in contrahendo (artigo 227.º do Código Civil), as partes são livres de contratar, ou não. Os Requeridos podem queixar-se, é certo, de um total desinteresse da Recorrente em negociar com eles, de indiferença para com a sua proposta de aquisição do imóvel, de inoperância dos seus serviços, mas nenhuma destas situações carateriza o abuso de direito que pretendem ver reconhecido.
Os factos provados não permitem, a nosso ver, concluir pelo exercício abusivo do direito invocado pela Recorrente.
O recurso procede quanto a esta questão.

2.2. Assédio no arrendamento
A título de fundamento subsidiário, a decisão recorrida julgou verificada a excepção peremptória do assédio no arrendamento – “importante é ainda referir que caso não se entendesse que há abuso de direito da Autora, entendemos que há assédio no arrendamento”, mencionou-se.
Sob a designação assédio no arrendamento, a lei proíbe comportamentos ilegítimos dos senhorios destinados a provocar a desocupação do local arrendado ou impedir ou prejudicar gravemente o acesso e a fruição dele [artigo 13.º-A da Lei n.º 6/2006, de 27/2, aditado pela Lei n.º 12/2019, de 12/2].
Susceptíveis de caracterizar o assédio no arrendamento serão os casos de i) produção de ruído fora dos limites legalmente estabelecidos ou de outros atos, praticados pelo senhorio ou por interposta pessoa, suscetíveis de causar prejuízo para a saúde do arrendatário e das pessoas que com ele residam legitimamente no locado, de ii) ausência de correcção de deficiências do locado ou das partes comuns do respetivo edifício que constituam risco grave para a saúde ou segurança de pessoas e bens e de iii) ausência de correcções de outras situações que impeçam a fruição do locado, o acesso ao mesmo ou a serviços essenciais como as ligações às redes de água, eletricidade, gás ou esgotos, situações em que o arrendatário pode lançar mão de um procedimento de intimação destinado à cessação das concretas situações de assédio, sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou contraordenacional do senhorio [artigo 13.º-B, nºs 1 a 7, da referida Lei 6/2006].
O reconhecimento dum determinado comportamento ilegítimo do senhorio, qualificável como assédio no arrendamento, constitui um facto impeditivo do direito a despejar o inquilino e, em tais situações, à luz da lei processual civil, o assédio constituirá uma exceção peremptória [artigo 576.º, n.º 3, do CPC].
No caso, a decisão recorrida julgou verificado o assédio no arrendamento por considerar que a Recorrente “aproveitando-se da fragilidade dos Réus por não terem mais nenhuma casa para habitar, começarem a especular o preço, inflacionando o preço inicial apresentado pela procuradora da Autora” e que “a (…) em nome da Autora intimidou, hostilizou, destabilizou e prejudicou gravemente os Réus, na medida em que estes por não terem outra casa para habitarem vêem-se pressionados a aceitar aumentar as suas propostas na aquisição do imóvel”.
Pressuposto deste juízo é a circunstância de os Requeridos não terem outra casa para habitar; segundo a decisão recorrida, é ela que fragiliza a posição dos Requeridos – “aproveitando-se da fragilidade dos Réus por não terem mais nenhuma casa para habitar” – e é ela que justifica a intimidação, hostilização, destabilização e prejuízo grave dos Requeridos – “a (…), em nome da Autora intimidou, hostilizou, destabilizou e prejudicou gravemente os Réus, na medida em que estes por não terem outra casa para habitarem”; ora, não consta dos factos provados que os Requeridos “não têm mais nenhuma casa para habitar”, facto que podendo ser verdadeiro – no sentido da inexistência de habitações disponíveis no mercado de arrendamento local – não pode ser considerado na sentença, uma vez que os factos a que cumpre aplicar o direito são, em primeira linha, os factos discriminados como provados, sem prejuízo da consideração de factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito [nºs 3 e 4 do artigo 607.º do CPC].
Assente em factos que não se provam o assédio no arrendamento não se verifica e, de qualquer modo, temos por perfeitamente legítimo que o proprietário que pretende vender um bem imóvel sujeito a arrendamento, o faça depois de cessar o arrendamento, nos casos em que, à face da lei, tenha fundamento para tal, precisamente, porque – é do conhecimento geral – o imóvel, livre de pessoas e bens, tem maior valor no mercado do aquele que lhe resulta se onerado com um arrendamento.
O senhorio deve honrar o contrato de arrendamento mas não é obrigado a vender o imóvel ao arrendatário, fora dos casos em que a lei confere a este o direito de preferir na venda [artigo 1091.º do Código Civil], nem lhe é exigível que sobreponha aos seus interesses de proprietário, os interesses do arrendatário, prolongando o prazo do arrendamento com vista a permitir que o arrendatário exerça o direito de preferência.
Assim, não caracteriza o assédio no arrendamento a oposição do senhorio à renovação do contrato de arrendamento com o fim de vender o imóvel arrendado após a caducidade do contrato de arrendamento.
De tudo resultando, que destinando-se o contrato de arrendamento, com prazo certo, a vigorar entre 1/6/2020 e 31/5/2023 e opondo-se a Recorrente validamente – não se questiona – à sua renovação [pontos 2 e 4 dos factos provados, doc. ... junto com o requerimento inicial, não impugnado pelos Requeridos e artigos 607.º, n.º 4, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC], o contrato de arrendamento cessou, por caducidade, em 31/5/2023, incumbindo aos Requeridos restituir a fração arrendada à Recorrente [artigos 1051.º, alínea a), 1079.º, 1038.º, alínea i) e 1081.º, n.º 1, do Código Civil].
Procede o recurso e, em consequência, a acção.

3. Custas
Vencido no recurso, incumbe ao Recorrido pagar as custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do que constar em termos de benefício do apoio judiciário.

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se pelo exposto, na procedência do recurso, em:
a) revogar a decisão recorrida;
b) julgar a ação procedente e, em consequência, condena-se os requeridos AA e BB, a entregarem à requerente (…), (…), S.A., livre de pessoas e bens, a fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao 1.º andar, com entrada pelo n.º ...4 do prédio urbano, em propriedade horizontal, sito na Rua Dr. (…) – Rua A, em ....
Custas pelo Recorrido.
Évora, 09 de Maio de 2024
Francisco Matos
Eduarda Branquinho
Canelas Brás


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[1] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, pág. 252, citando Planiol.
[2] Ac. da RL de 16/05/2006 (proc. 3834/2006-7), disponível em www.dgsi.
[3] Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado, V, parte geral, 2011, pág. 278.
[4] Paulo Mota Pinto, Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório no Direito Civil, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 2003, pág. 276.
[5] Cfr. Paulo Mota Pinto, Ob. e loc. cit.
[6] Menezes Cordeiro, Ob. Cit., págs 293 e 294.
[7] Menezes Cordeiro, Ob. Cit., pág. 294.