Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3783/11.9TBLLE-N.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A ação destinada a obter a declaração da inexistência do direito à resolução de atos em benefício da massa insolvente instaurada nos termos do artigo 125.º do CIRE constitui uma acção de simples apreciação negativa e a sentença proferida no seu termo não constitui título executivo em ordem a, com base nele, poder a Massa insolvente, representada pelo AI, obter coercivamente a entrega dos bens em acção executiva pata tanto instaurada.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3783/11.9TBLLE-N.E1[1]
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo de Comércio de Olhão – Juiz 1


I. Relatório
Por apenso aos autos de processo especial de insolvência em que foi declarada insolvente a devedora (…) – Reparação e Aluguer de Máquinas, Lda., a massa insolvente instaurou contra (…) acção executiva para entrega de coisa certa, dando à execução a sentença proferida na acção apensa de impugnação da resolução de actos prejudiciais à massa.

Citado, o executado deduziu embargos alegando, para o que aqui releva, que a sentença dada à execução apenas reconhece o direito à resolução do contrato celebrado entre a empresa insolvente e o executado embargante tendo por objecto os veículos nele identificados, não constituindo por isso título executivo.
Acrescentou terem sido já apreendidas pelo Sr. AI seis das viaturas cuja entrega vem pedida, pelo que nunca a execução poderia prosseguir quanto a elas, impondo-se a procedência dos embargos, com a consequente extinção da execução.
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Tendo o Tribunal anunciado que os autos continham os elementos necessários ao proferimento de decisão antecipada sobre o mérito, foi em 24/1/2024 proferido saneador sentença [ref.ª 129695245], que decretou a total procedência dos embargos e a consequente extinção da execução.
Inconformada, apelou a massa insolvente e, tendo desenvolvido nas doutas alegações apresentadas os fundamentos da sua discordância com a decisão, formulou a final as seguintes conclusões:
“1. Na sequência da improcedência da ação de impugnação de ato resolutivo de negócios em benefício da massa, instaurada pelo ora recorrido contra a massa insolvente da sociedade (…), Lda. e, não tendo o mesmo, voluntariamente, entregue as viaturas à massa insolvente, cuja propriedade à data, já era inquestionável por força do disposto no artigo 126.º do CIRE, foi, pela massa insolvente, instaurada ação executiva para entrega de coisa certa.
2. O Tribunal entendeu que a sentença de impugnação de ato resolutivo em benefício da massa insolvente é título executivo bastante, Estamos perante indiscutível pressuposto que pode consubstanciar exceção processual inominada (cfr. artigo 577.º do Código de Processo Civil) e que assenta na preocupação de evitar ações inúteis, o que, envolvendo o interesse público da racionalização dos recursos jurisdicionais, importa o seu conhecimento oficioso. No caso dos autos, conforme já analisado, resultando da conjugação dos três termos: decisão que declarou a insolvência; resolução operada pelo administrador da insolvência perante os outorgantes do negócio de compra e venda dos veículos; decisão proferida na ação de impugnação em benefício da massa, temos assente que o Embargante se encontra obrigado a entregar os veículos identificados no requerimento inicial de execução, ainda que parte desses veículos se encontrem registados a favor da massa insolvente e identificados em auto de apreensão. O Embargante recusa a entrega daqueles veículos, pese embora já tenha sido notificado para proceder à entrega. Atento o exposto parece manifesto o interesse em agir da massa insolvente, razão pela qual improcede também este fundamento dos embargos.
3. No entanto, em sede de embargos de executado, o Tribunal a quo declarou os mesmos procedentes e na esteira dos dois acórdãos que cita entendeu, “De onde se conclui que, não tendo procedido o ora recorrente e adquirente dos bens móveis em causa nos autos, voluntariamente à sua entrega, a resolução do contrato promovida pelo AI só se torna eficaz através da propositura de uma ação que condene o réu possuidor dos bens a entregá-los à massa insolvente, apesar de na sentença dada à execução resultar implicitamente que os bens devem ser restituídos. Contudo, para que um documento preencha os requisitos de um título executivo não pode satisfazer-se com uma decisão implícita, não sendo, por isso, título executivo a sentença dada à execução. Neste sentido, cfr. Ac. TRC de 15-02-22, Proc. n.º 543/17.7T8FND.1.C1 I – A sentença que decrete a resolução a favor da massa de um determinado negócio jurídico, sem condenação da massa insolvente a restituir ao terceiro os valores por ele prestados no âmbito daquele negócio, não constitui título executivo que permita ao terceiro instaurar execução para cobrança coerciva desses valores. Assim sendo, devemos concluir que a apelação é procedente, devendo a decisão ser revogada com a consequente procedência dos embargos e a extinção da execução.
4. Desde logo diga-se: o Ac. TRC de 15-02-22, proc. n.º 543/17.7T8FND.1.C1, leia-se: Efectivamente, analisando a referida sentença, constata-se que a mesma reconhece o direito à resolução a favor da massa, mas só constitui título executivo relativamente à obrigação que impende sobre o terceiro para entrega do bem objecto do contrato resolvido, sem que atribua ao terceiro qualquer direito, designadamente, a haver da massa o valor que despendeu com a transação resolvida. Isto é, o douto Acórdão do TRC, entende que a sentença de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, constitui título executivo bastante.
5. O processo de Insolvência constitui um procedimento universal e concursal, cujo objetivo é a obtenção da liquidação do património do devedor, por todos os seus credores: concursal (concursus creditorum), uma vez que todos os credores são chamados a nele intervirem, seja qual for a natureza do respetivo crédito e, por outro lado, verificada que seja a insuficiência do património a excutir, serão repartidas de modo proporcional por todos os credores as respetivas perdas (principio da par conditio creditorum); é um processo universal, uma vez que todos os bens do devedor podem ser apreendidos para futura liquidação, de harmonia com o disposto no artigo 46º, n.ºs 1 e 2, do CIRE, normativo este que define o âmbito e a função da massa insolvente. A massa insolvente abrange, desta feita, a totalidade do património do devedor insolvente, suscetível de apreensão, que não esteja excluído por qualquer disposição especial em contrário, que existam no momento da declaração da insolvência ou que venham a ser adquiridos subsequentemente pelo devedor na pendência do processo.
6. A resolução em benefício da massa insolvente, tal como na resolução no direito civil, determina a imediata cessação do vínculo, produzindo o efeito extintivo logo que a declaração de vontade chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida; essa declaração tem, por força da Lei, eficácia constitutiva.
O instituto da resolução em benefício da massa insolvente, consagrado no CIRE, visou conferir uma maior eficácia e celeridade aos atos de recuperação de bens que estivessem no património do devedor insolvente e que tivessem sido desviados do fim a que se destina o processo de insolvência, qual seja o de dar satisfação, na medida das forças do património, aos créditos existentes à data da declaração da insolvência.
Sendo que, a ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, não se destina apenas a atacar os aspetos puramente formais da carta resolutiva enviada pelo Administrador da insolvência, mas também os aspetos substanciais contidos na mesma.
7. Dispõeon.º 1 do artigo 126.º do CIRE “efeitos da resolução”, “a resolução tem efeitos retroactivos, devendo reconstituir-se a situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado ou omitido, consoante o caso”. Assim, este regime com efeitos de retroatividade obriga o recorrido a restituir os bens à massa insolvente, reconstruindo assim a situação em que a insolvente se encontrava antes da prática do ato.
8. Pese embora várias vezes instado para o efeito, mesmo após ter sido julgada improcedente a ação de impugnação apresentada pelo ora executado/recorrido, confirmando a resolução operada em benefício da massa insolvente, a verdade é que este não entregou as viaturas ao AI.
9. É sabido que a resolução de um contrato é o meio de extinção do vínculo contratual por declaração unilateral. No artigo 120.º e segts. do CIRE, estão previstas as condições que permitem ao administrador da massa insolvente resolver em benefício desta qualquer contrato celebrado nos, à data, quatro anos anteriores ao processo de insolvência. No caso concreto não temos dúvidas em admitir a exequibilidade da sentença proferida no âmbito do processo de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente que julgou a mesma improcedente e procedente a resolução, uma vez que à mesma está subjacente uma situação que, de acordo com o direito material, confere ao exequente o correspondente direito de crédito, isto é, o direito de exigir imediatamente a entrega dos bens, reconstituindo-se assim, a situação que se verificaria se o negócio não tivesse sido concretizado.
10.O douto Tribunal ad quo faz alguma confusão entre o que é uma ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente e o ato de resolução em si mesmo.
11. Dúvidas não há que a ação de impugnação em benefício da massa insolvente prevista no art.º 125.º do CIRE, é uma ação de simples apreciação negativa, uma vez que com ela o impugnante pretende, apenas, obter a declaração da inexistência do direito à resolução exercida pelo administrador da insolvência. Não existem dúvidas quanto à qualificação da ação declarativa de simples apreciação. Nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 10.º do CPC, estas ações visam obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto. É o que está em causa no disposto no artigo 125.º, saber se pode ser resolvido em benefício da massa o acto prejudicial invocado pelo administrador judicial.
12. A ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, é de simples apreciação negativa, apenas no sentido em que compete ao impugnante alegar algum facto ou exceção que impeça, modifique ou extinga os efeitos produzidos pela resolução operada pelo administrador da insolvência. Caso o impugnante obtenha procedência na referida ação, a mesma não lhe confere a si, um título executivo;
13. Nos termos do artigo 703.º, n.º 1, alínea a), do CPC, são exequíveis as sentenças que condenem na satisfação de uma obrigação, a par do reconhecimento explícito ou implícito do correspetivo direito de crédito. Este preceito não afasta alguma dúvida a respeito da possibilidade de enquadrar no seu âmbito não apenas as sentenças explicitamente condenatórias, mas também as que, apenas de forma implícita, contenham uma imposição ao executado do cumprimento de entrega dos bens por força da resolução operada em benefício da massa insolvente. Uma vez que o impugnante não entrega os bens de forma voluntária, pode e deve o administrador da insolvência socorrer-se da ação executiva para obter essa entrega coercivamente. O que neste âmbito se fez e, neste sentido, cfr. Ac. TRC de 15.02.22, proc. n.º 543/17.7T8DND.1.C1 já suprarreferido.
14. Efetivamente, analisada a sentença e Acórdão, constata-se que reconhecem o direito à resolução a favor da massa. Desta forma, dúvidas não há que, a sentença constitui para a massa insolvente, título executivo bastante relativamente à obrigação que impende sobre o recorrido para a entrega das viaturas, objeto do contrato resolvido. Esta sentença, conjugada com a resolução em benefício da massa insolvente, constitui título executivo bastante.
15. Aliás, reitera-se, com o devido respeito que é muito, a fundamentação do Acórdão ora colocado em crise, vai, de todo, ao encontro do entendimento da ora recorrente. No entanto, encontra-se a mesma em desacordo com a interpretação dada pelo douto Tribunal a quo e pela forma como decidiu pela procedência dos embargos.
16. Mal andariam os processos de insolvência, se, por cada resolução em benefício da massa operada, tivesse ainda que mover uma ação judicial com vista à obtenção de título executivo para a entrega dos seus de sua propriedade. Gorar-se-ia, seguramente, a natureza urgente destes processos, nunca atingindo a satisfação dos interesses dos credores de forma célere e justa. E a ser assim, o Preâmbulo do CIRE, estaria atingido no seu âmago.
17. Será necessário à massa insolvente, depois de resolvido o ato em benefício da massa insolvente, ser declarada improcedente a ação de impugnação do ato, interpor mais uma ação declarativa, onde, novamente, se irão discutir os mesmos factos, já discutidos em sede de impugnação, ignorando-se o instituto do caso julgado?
18. In casu, pese embora na sentença que serve de título executivo, ter sido julgada procedente a exceção da caducidade do direito de impugnar a resolução, a verdade é que, conforme se poderá verificar pelo teor da mesma, ficou decidida toda a questão de mérito do caso concreto, que abrange os factos alegados pelo executado/recorrido em sede de embargos, não se podendo, dessa forma, querer, de forma encapotada, tirar algum proveio sobre os mesmos em sede de uma nova ação declarativa???? Para que, coercivamente, o mesmo entregue as viaturas.
19. Em face do exposto, é a recorrente de opinião que se justifica a intervenção Deste Tribunal da Relação, no sentido de decidir se, nestes casos, ato resolutivo, ação de impugnação improcedente, em processo de insolvência, para entrega de coisa certa, são título executivo bastante.
20. A sentença de que ora se recorre, viola o disposto nos artigos 126.º, n.º 1, do CIRE, 10.º, n.ºs 5 e 6, 703.º, n.º 1, do CPC, devendo a mesma ser revogada e substituída por Acórdão que declare ser o ato resolutivo conjugado com a ação de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente, título executivo bastante, devendo prosseguir a execução.
Contra alegou o apelado, defendendo naturalmente a manutenção do julgado.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se a sentença dada à execução, ainda que complementada nos termos agora indicados pela exequente, constitui título executivo bastante.
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II. Fundamentação
De facto
São os seguintes os factos relevantes a ter em consideração para a decisão, tal como constam da decisão recorrida:
1. Por sentença datada do dia 18 de Junho de 2012, e na sequência de processo judicial iniciado em 05 de Dezembro 2011, foi a sociedade (…) – Reparação e Aluguer de Máquinas, Lda., pessoa colectiva n.º (…), com sede na (…), Lote E-3, R/C A e B, 8125-301 Quarteira, declarada insolvente e ali nomeado como Administrador Judicial o Senhor Dr. (…).
2. Além do mais determinou-se na referida sentença a apreensão e imediata entrega ao administrador da insolvência dos elementos da contabilidade da insolvente e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no artigo 150.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
3. No âmbito das suas funções, o Administrador de Insolvência teve conhecimento de que, já posteriormente ao início do processo de insolvência, concretamente por acordo de 31.03.2012, a Insolvente transmitiu ao ora Executado, pelo valor global de € 59.040,00 os seguintes bens nos seguintes termos: veículos com as matrículas (…), (…), (…), (…), (…) e (…), pelo montante unitário de € 8.000,00 + IVA por cada viatura.
4. No âmbito das suas funções, o Administrador de Insolvência teve conhecimento de que, já posteriormente ao início do processo de insolvência, concretamente por acordo de 31.03.2012, a Insolvente transmitiu ao ora Executado, pelo valor global de € 12.300,00 os seguintes bens nos seguintes termos: veículos com as matrículas (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…) e (…), pelo montante unitário de € 1.250,00 + IVA por cada viatura.
5. No âmbito das suas funções, o Administrador de Insolvência teve conhecimento de que, já posteriormente ao início do processo de insolvência, concretamente por acordo de 31.03.2012, a Insolvente transmitiu ao ora Executado, pelo valor global de € 277.365,00 os seguintes bens nos seguintes termos: veículos com as matrículas (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…) e (…), pelo montante unitário de € 10.250,00 + IVA por cada viatura.
6. No âmbito das suas funções o Administrador Judicial procedeu à resolução dos contratos pelos quais foram alienadas as viaturas descritas em benefício da massa insolvente, nos termos dos artigos 120.º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, tendo remetido comunicações para o efeito ao aqui Embargante em idêntica data.
7. O Embargante recebeu as cartas mencionadas em 3 de Julho de 2013 onde se declarava resolvido e ineficaz o contrato celebrado com a Insolvente e pedia a entrega dos veículos objecto do contrato.
8. No dia 29 de Maio de 2014, o ora Embargante instaurou acção de impugnação da resolução dos contratos celebrado com a sociedade Insolvente pedindo nessa acção que fosse revogada a resolução em benefício da Massa Insolvente notificada pelo Senhor Administrador e relativa ao contrato de compra e venda de veículos que a Insolvente celebrou com o Executado.
9. Por sentença datada de 17 de Janeiro de 2018, a acção de impugnação instaurada pelo Embargante foi julgada improcedente por caducidade do Direito, e bem assim, julgada procedente a resolução do negócio em benefício da massa.
10. O Embargante interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Évora tendo o mesmo sido julgado improcedente através de acórdão de 07 de Junho de 2018.
11. O Embargante não procedeu ainda à entrega dos veículos identificados.
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Da (in)existência do título executivo
Conforme resulta dos factos assentes, tendo sido declarada a insolvência da sociedade (…) – Reparação e Aluguer de Máquinas, Lda. e verificando o Sr. AI a celebração de negócios de transmissão de veículos entre a devedora e um terceiro, aqui embargante/apelado, procedeu à resolução dos aludidos contratos de compra e venda, a qual se consolidou face à improcedência da acção de impugnação posteriormente instaurada pelo terceiro adquirente. E foi com base na sentença proferida nesta acção que a Massa Insolvente da referida (…) veio instaurar acção executiva tendo em vista obter a entrega coerciva das viaturas, tendo-se considerando na sentença ora recorrida, e que julgou procedentes os embargos deduzidos com esse mesmo fundamento, que a exequente não dispõe de título executivo. Dissente, como vimos, a exequente/embargada, sustentando que, pese embora a natureza de simples apreciação negativa da ação de impugnação dos actos de resolução em benefício da massa, a sentença que decretou a sua improcedência contém implícita a condenação do impugnante na entrega do bem, constituindo título executivo.
Não tem, porém, razão, antecipa-se.
Antes de mais, importa aqui referir que a ora relatora subscreveu como adjunta o acórdão proferido a 12 de Janeiro de 2023 nos embargos deduzidos no proc. n.º 37854/11.7TBLLE-N.E1, acessível em www.dgsi.pt, no qual foi adoptado entendimento idêntico ao que a recorrente aqui defende. Ocorre, porém, que revisitada a questão e ponderados os argumentos expendidos no aresto deste mesmo TRE de 9/2/2023 (processo n.º 3780/11.4TBLLE-N.E1, também acessível em www.dgsi.pt), afigura-se que a melhor interpretação dos preceitos aplicáveis, designadamente do artigo 126.º do CIRE (diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem), conduz a entendimento diverso, assim revendo a ora relatora a sua anterior posição.
Vejamos:
Conforme resulta do disposto no artigo 10.º do CPC, as acções podem ser de duas diferentes espécies: declarativas ou executivas, sendo estas últimas “aquelas em que o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida” (vide n.ºs 1 e 4 do preceito).
Ensina o Prof. Lebre de Freitas que a acção executiva tem por finalidade a reparação efectiva dum direito violado”, providenciando “(…) pela realização coativa de uma prestação devida”[2]. Pressupõe por isso “(…) a prévia solução da dúvida sobre a existência e a configuração do direito exequendo. A declaração ou acertamento (dum direito ou de outra situação jurídica; dum facto), que é o ponto de chegada da acção declarativa, constitui na acção executiva o seu ponto de partida”[3]. Vale isto por dizer que a pretensão material está “acertada”, no sentido de sobre ela não dever ter lugar mais nenhuma controvérsia no processo executivo. E é porque o título executivo contém esse acertamento que dele se diz constituir a base da execução, por ele se determinando “o fim e os limites da acção executiva» (n.º 5 do artigo 10.º), isto é, o tipo de acção e o seu objecto, assim como a legitimidade activa e passiva para ela, sendo ainda em face do título que se verifica se a obrigação é certa, líquida e exigível (artigo 713.º).
O n.º 6 do artigo 10.º distingue três tipos de acção executiva: para pagamento de quantia certa, na qual o credor pretende obter o cumprimento de uma obrigação pecuniária através da execução do património do devedor, como prevê o artigo 817.º do CC; para entrega de coisa certa, na qual o exequente, titular do direito à prestação de uma coisa determinada, requer ao tribunal a apreensão dessa coisa e que a mesma lhe seja entregue, conferindo tutela à previsão do artigo 827.º do CC; para prestação de facto, na qual o exequente pode pedir ao tribunal que o mesmo seja prestado por terceiro à custa do devedor incumpridor, sendo apreendidos e vendidos os bens deste que forem necessários ao pagamento do custo respectivo, em conformidade com o que dispõe o artigo 828.º do CC. Seja qual for o tipo de execução a instaurar atendendo ao seu fim, este é revelado pelo título executivo (cfr. n.º 6 do citado artigo 10.º, sem embargo da frequente conversão da acção executiva para entrega de coisa certa ou para prestação de facto em execução para cobrança de quantia certa, prevista nos artigos 867.º, 869.º e 877.º, n.º 2).
Explica o STJ (acórdão proferido em 22/02/2022, no processo 140/11.0TBCVD-A.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt) que “I - Só a “sentença condenatória”, como é referido no artigo 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC, pode servir de base a uma execução. II - Expressão esta em que não se incluem as ações de simples apreciação, ou seja, as ações em que unicamente se obtém a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto (cfr. artigo 10.º, n.º 3, alínea a), do CPC), em que o réu não é condenado no cumprimento duma obrigação pré-existente ou condenado/constituído em nova obrigação a cumprir. III - É o caso da sentença que se limite a reconhecer/declarar um direito real (seja de propriedade, seja de servidão), sentença que só passará (e nessa estrita medida) a servir de base a uma execução se (e a partir do momento), na mesma sentença, para além do reconhecimento/declaração do direito real, se condene, por ex., na restituição do prédio (como acontece na reivindicação, na hipótese do prédio não estar em poder daquele que foi declarado seu proprietário) (…)”.
No caso dos autos a apelada deu à execução uma sentença proferida no âmbito de uma acção de simples apreciação negativa, caracterização aceite pelas partes sem controvérsia. A qual, como se disse, não pode constituir título executivo.
Conforme se explanou no acórdão deste TRE de 9/2/2023 antes citado “os atos prejudiciais à massa insolvente, entendendo-se como tal os atos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência, podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente se praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência [artigo 120.º, nºs 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)]. Dado que a resolução é realizada por declaração do administrador da insolvência através de carta registada com aviso de receção [artigo 123.º, n.º 1, do CIRE], cabe à parte que se opõe à resolução o ónus de intentar a ação destinada a impugnar a resolução.
Impugnar a resolução significará, em geral, contradizer os factos invocados pelo administrador da insolvência e, assim, obstar aos efeitos de direito que decorrem da resolução extrajudicial, por ele, declarada, numa palavra, a impugnação da resolução destina-se a obter a declaração da inexistência do direito à resolução, efeito típico das ações de simples apreciação. Com esta configuração, a ação de impugnação da resolução de atos em benefício da massa insolvente constitui uma ação de simples apreciação negativa.”
E prossegue o mesmo acórdão, que por facilidade se transcreve, atendendo a que versa sobre factualidade idêntica à dos presentes autos, sendo de acolher integralmente os argumentos nele expendidos: “Na espécie, o Administrador da insolvência resolveu em benefício da massa insolvente o contrato mediante o qual a Insolvente, após iniciado o processo de insolvência, alienou a favor do Recorrente o veículo com a matrícula (…).
O Recorrente impugnou a resolução e no termo da ação de impugnação foi proferida a sentença dada à execução, cujo dispositivo é o seguinte: “Pelo exposto, julgo a ação improcedente e, em consequência: 1. Julgo procedente por provada a exceção perentória da caducidade do direito do Autor a intentar a presente ação de impugnação da resolução do negócio em benefício da massa insolvente. 2. Julgo procedente a resolução do negócio em benefício da massa insolvente operada pelo Administrador da Insolvência” (…). Sentença que não impõe ao Recorrente um qualquer dever de cumprimento de prestação de uma coisa ou de um facto, mais apropriadamente, não o condenou à entrega do veículo, coercivamente exercitada na execução, julgou caducado o direito do Autor a intentar a ação de impugnação da resolução do negócio em benefício da massa insolvente.
A sentença dada à execução não é uma sentença condenatória e, como tal, não constitui título executivo. Há, porém, um acrescento a fazer. A sentença dada à execução não se limitou a uma mera apreciação negativa do direito à resolução, declarou ainda a existência do direito à resolução – “julgo procedente a resolução do negócio em benefício da massa insolvente operada pelo Administrador da Insolvência” –, apreciação positiva que, tanto quanto apreendemos da sentença, não lhe foi pedida [não consta do relatório ou dos fundamentos da sentença a alusão a qualquer pedido reconvencional da Massa Insolvente e o aí A., ora recorrente, pediu a revogação da resolução – ponto 8 dos factos provados], mas que se estabilizou na ordem jurídica por efeito do trânsito em julgado da decisão.
Significará este segmento do dispositivo da sentença uma pronúncia sobre os efeitos da resolução e, assim, a imposição implícita de entrega do veículo? Se bem vemos, não.
A sentença dada à execução, mesmo na parte em que julga procedente a resolução do negócio em benefício da massa insolvente operada pelo Administrador da Insolvência, nada acrescenta, para efeitos da resolução, à mera vigência da declaração resolutiva – seja por falta de impugnação do terceiro a quem foi dirigida, seja por improcedência da impugnação – e, decisivamente, não impõe ao Recorrente a obrigação de entrega do bem, é uma sentença de mera apreciação, não é uma sentença condenatória.
Vigorando a declaração resolutiva, seja porque o terceiro a quem foi dirigida não a impugnou, seja porque a impugnou e não obteve ganho de causa, segue-se uma de duas situações: o terceiro entrega voluntariamente os bens ou não os entrega; ocorrendo esta última situação, isto é, incumprindo o terceiro a obrigação de apresentar os bens, o administrador da insolvência tem que propor uma ação destinada à condenação do terceiro a entregar os bens e à fixação de um prazo para o efeito. A esta ação reporta-se o n.º 2 do artigo 126.º do CIRE”.
Comentando o citado artigo 126.º referem Carvalho Fernandes e João Labareda, o “regime de retroatividade fixado no n.º 1 impõe à contraparte a obrigação de restituir o que lhe tiver sido prestado (…). O n.º 2 pressupõe o incumprimento dessa obrigação e a consequente necessidade de o administrador da insolvência recorrer a uma ação para o seu cumprimento coercivo. É essa ação que, sendo dependência do processo de insolvência, corre como apenso dele. Também aqui, pois, prevalece o regime de urgência consagrado no artigo 9.º”[4]. Acresce que o incumprimento da sentença que nesta acção vier a ser proferida por parte do terceiro obrigado a apresentar os bens dá lugar ao arresto dos seus bens nos termos prevenidos nos artigos 126.º, n.º 3, do CIRE e 771.º, n.º 2, do CPC, e não à execução para prestação de facto.
Somos assim a concluir, em concordância com o aresto citado, que “A sentença dada à execução não incorpora, a nosso ver, nenhuma condenação implícita de entrega do bem coercivamente exercitada na execução.” E esta conclusão não é abalada ainda que se considere que estamos perante um título complexo, eventualmente complementado com a sentença declarativa da insolvência e comunicação de resolução dos negócios visados. Com efeito, “o poder de apreensão de bens que resulta da declaração de insolvência mostra-se circunscrito aos bens integrantes da massa insolvente, isto é, a todos os bens do devedor ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos [cfr. artigos 36.º, n.º 1, alínea g), 149.º, n.º 1 e 150.º, n.º 1, do CIRE], já quanto aos bens vendidos, a apreensão tem por objeto o produto da venda [artigo 149.º, n.º 2, do CIRE], a menos que subsistam razões, como no caso se verificou, para a resolução do negócio em benefício da massa, caso em que resolvido o negócio – por não impugnada a resolução ou por improcedência da ação de impugnação – e não sendo voluntariamente restituído o bem à massa, incumbe ao administrador de insolvência instaurar ação judicial com vista à restituição do bem em prazo a fixar para o efeito [artigo 126.º, nºs 2 e 3, do CIRE]” (do mesmo acórdão).
Argumenta ainda a apelante que impor a propositura de uma outra acção para obter a restituição dos bens objecto dos contratos resolvidos implica violação do caso julgado. Trata-se, todavia, de argumento que não procede. A acção a que se reporta o artigo 126.º tem como finalidade a obtenção da restituição das prestações, sendo assim de condenação e não constitutiva. Não pode, por isso, o réu utilizá-la para contestar a eficácia da resolução, se não procedeu atempadamente à sua impugnação. Daí que o acórdão do TRC 15/2/2022 (processo n.º 543/17.7T8FND.1.C1, acessível em www.dgsi.pt) que a recorrente convoca em abono da sua tese em nada a auxilie, por não haver identidade das situações. Discutia-se ali se a sentença proferida na acção de resolução interposta pela massa insolvente contra a devedora, na qualidade de vendedora, e um terceiro comprador, do negócio de compra e venda tendo por objecto um prédio urbano -acção constitutiva, portanto- constituía título executivo em ordem a permitir que o terceiro pudesse instaurar acção executiva contra a massa para cobrar coercivamente o preço pago. Foi entendido que não, sem embargo de se ter lateralmente referido – não era o thema decidendum – que a sentença, ao reconhecer o direito à resolução a favor da massa, constituía título executivo relativamente à obrigação que impendia sobre o terceiro de entrega do bem objecto do contrato resolvido.
Pese embora a expressão “sentença condenatória” do artigo 703.º do CPC não inclua, via de regra, as sentenças proferidas em acções constitutivas, na hipótese de delas constarem segmentos condenatórios são estes susceptíveis de execução, como ocorre quando se condenam as partes nos efeitos restitutórios decorrentes da anulação ou resolução de um contrato, o que seria ali o caso. Diversamente, na situação sub judice, a sentença dada à execução foi proferida no âmbito da acção de impugnação da resolução, inexistindo segmento condenatório, ainda que implícito. Aliás, bem poderia acontecer que, sem instaurar acção de impugnação da resolução, o apelado transmissário no negócio recusasse a entrega dos bens, cabendo questionar que sentença daria então a agora apelante massa insolvente à execução para obter a sua entrega coerciva.
Em suma, porque a exequente não detém título executivo, ao administrador da insolvência resta instaurar acção para obter a condenação do terceiro nos “efeitos da resolução”, nos termos do artigo 126.º, à semelhança do que ocorre com todos os titulares do direito de propriedade que não têm o bem em seu poder e que terão de lançar mão da acção declarativa a fim de obterem título que lhes permita pedir coercivamente a entrega.
Concede-se finalmente que a solução legal tem potencial para retardar a apreensão dos bens para a massa. No entanto, a desejável celeridade não pode ser obtida à custa da segurança, valores que o legislador ponderou e visou conciliar nas soluções que adoptou e consagrou e que aos tribunais cabe aplicar.
Improcedentes são assim todos os fundamentos do recurso, impondo-se confirmar a sentença recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante (artigos 527.º, n.º 1 e 533.º, n.º 2, do CPC).
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Sumário: (…)
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Évora, 09 de Maio de 2024
Maria Domingas Simões
Rui Machado e Moura
Isabel Peixoto Imaginário

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[1] Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos:
1.º Adjunto – Sr. Juiz Desembargador Rui Machado e Moura;
2.º Adjunto – Sr.ª Juíza Desembargadora Isabel Peixoto Imaginário.
[2] Prof. Lebre de Freitas, A acção executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, pág. 16.
[3] Idem, pág. 28.
[4] CIRE Anotado, 2.ª edição, pág. 541.