Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1257/23.4PBFAR-A.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ACTIVIDADE CRIMINOSA
PERIGO DE PERTURBAÇÃO DA ORDEM E TRANQUILIDADE PÚBLICAS
PERIGO DE PERTURBAÇÃO DO INQUÉRITO
Data do Acordão: 11/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Verifica-se a existência de um fortíssimo perigo de continuação da atividade criminosa por parte do arguido - cf. art. 204.º, n.º 1, al. c), do CPP, porquanto a personalidade manifestada pelo arguido vinca o domínio que este pretende fazer valer sobre a vítima e a incapacidade de se abster de novos atos do mesmo género.
De mais a mais, o arguido proferiu ameaças de morte, deixando no ar a possibilidade de mais tarde concretizar os seus intentos e prosseguir nos termos indiciados.

De igual feita, o arguido afirma a sua perigosidade ao pegar num sabre e apontar à sua filha e dizer à vítima que «corto-te ao meio a ti e aos teus amigos» e demonstra em primeiro interrogatório uma indiferença pelos seus comportamentos, antes desculpabilizando a sua conduta e desvalorizando a gravidade das suas atitudes.

Ademais, entende-se que existe perigo de perturbação do inquérito, uma vez que ainda não foram tomadas declarações para memória futura à vítima e através de atos semelhantes aos praticados, o arguido facilmente conseguirá inibir a mesma de prestar declarações em conformidade com a verdade - cf. art. 204.º al. b), do CPP.

Relativamente ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, o que a lei exige é que exista perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas devido a um previsível comportamento futuro do arguido. Perigo que se não confunde com o de continuação da actividade criminosa, porquanto este não tem como finalidade precaver a prática de qualquer outro futuro crime, mas acautelar, apenas e só, a continuação da actividade delituosa que nos autos é indiciariamente imputada ao arguido.

Da prognose que volte a desenvolver outros comportamentos criminosos como o destes autos ou até de gravidade mais significativa, como ficou exposto, aliada à natureza do crime indiciariamente praticado, resulta o perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo de Instrução Criminal de … -Juiz …, Processo de Inquérito com o nº 1257/23.4PBFAR, foi proferido despacho, aos 17/07/2023, que aplicou ao arguido AA, a medida de coacção de prisão preventiva e, após ser implementado o controlo electrónico de vigilância à distância, a proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima BB (e não CC, como consta da decisão recorrida), não frequentar e não se aproximar da residência e local de trabalho da vítima a, pelo menos, 400 metros, por indiciarem fortemente os autos a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a), do Código Penal, verificando-se os perigos concretos de perturbação do decurso do inquérito, perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas e continuação da actividade criminosa.

2. Inconformado com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso o arguido, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):

1. Face ao exposto, conclui-se como segue:

a. (exactamente como no original) Ao Recorrente apenas poderia ter sido aplicada a medida de coação de termo de identidade e residência, uma vez que não se verifica qualquer requisito do artigo 204.º do Cód. Proc. Penal:

1. Não existe perigo de fuga, tal como assente pelo tribunal a quo, que nem sequer o mencionou;

2. Não existem indiciados quaisquer factos que permitam concluir que o Recorrente já tentou ou irá tentar intervir na investigação, até porque a ofendida já prestou depoimento em dois momentos distintos (fls. 41 e fls. 117), sem que haja nos autos qualquer elemento que indique o Recorrente tentou impedi-la de o fazer;

3. Não foram consubstanciados factos que permitam inferir, face ao caso concreto e à personalidade do Recorrente, que haja perigo de perturbação da ordem pública e da tranquilidade social, e

4. Não existe perigo de continuação da atividade criminosa, na medida em que:

a. Não se pode ter como avaliada a personalidade do Recorrente, na medida em que o tribunal a quo não o fez nem justifica como poderia tê-lo feito

b. Não resulta devidamente indiciada a ameaça que despertou o alarme do tribunal a quo, apenas carreada nos autos por declarações da ofendida a fls. 117, havendo uma testemunha, que presenciou a discussão, DD, que não fez qualquer menção a ameaças proferidas pelo Recorrido

c. O empunhamento do sabre não se destinava a ameaçar a ofendida, mas a, num momento de desespero do Recorrente, em magoar-se a si próprio, tal como indiciam as declarações do mesmo em sede de primeiro interrogatório judicial e os relatórios de avaliação de risco de violência doméstica em que BB (ofendida) e DD, declaram que o Recorrente já atentou contra a sua própria via.

d. O Recorrente nunca foi condenado pela prática de qualquer crime.

e. O Recorrente declarou que iria viver com a sua mãe

f. O sabre, alegadamente empunhado para ameaçar a ofendida, já foi apreendido, conforme auto de apreensão a fls. 113.

b. Pelo que se quer a V. Exas. a revogação da medida de coação de proibição de contacto e de aproximação da vítima, sujeita a controlo eletrónico, bem como julguem incorretamente aplicada a medida de prisão preventiva provisória a que o Recorrente foi sujeito.

c. Caso assim não se entenda, ao Recorrente não podiam ter sido aplicadas as medidas de coação de prisão preventiva nem de imposição de condutas, na medida em que não está fortemente indiciado o crime de violência doméstica ou qualquer outro que permita a aplicação dessas medidas de coação

i. Não resulta dos autos elementos que, num juízo de prognose, permitam concluir que o Recorrente irá ser condenado pelo crime de violência doméstica.

ii. Não resulta dos autos que o Recorrente tenha agido para com a ofendida com um tratamento cruel, numa conduta maltratante especialmente intensa, degradante ou desumana.

iii. Apenas está fortemente indiciado a prática do crime de injúria, que não permite a aplicação das medidas de coação aplicadas ao Recorrente, previstas nos artigos 200.º e 202.º do Cód. Proc. Penal.

d. Pelo que, subsidiariamente, também por este motivo, se requer a V. Exas. a revogação da medida de coação de proibição de contacto e de aproximação da vítima, sujeita a meios de vigilância eletrónica, bem como julguem incorretamente aplicada a medida de prisão preventiva provisória a que o Recorrente foi sujeito.

e. Se, no entanto, V. Exas. entenderem que se verifica qualquer perigo previsto no artigo 204.º do Cód. Proc. Penal e que está fortemente indiciado o crime de violência doméstica, o que apenas por dever de patrocínio se equaciona, as medidas de coação aplicadas não são necessárias, na medida em que, face às circunstâncias do caso concreto, (descritas no ponto a), n.º 4 das conclusões supra, bem como nos § 26.º a 43.º das motivações), existem outras capazes de satisfazer as exigências cautelares do presente processo criminal menos onerosas para os direitos do Recorrente, pelo que aquelas devem ser revogadas e substituídas pelas seguintes, a aplicar cumulativamente:

i. Obrigação de apresentação periódica (Art. 198.º do Cód. Proc. Penal)

ii. Não adquirir, não usar ou entregar, de forma imediata, armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a continuação da atividade criminosa (Art. 31.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro)

iii. Sujeitar o Recorrente a frequência de programa para arguidos em crimes no contexto da violência doméstica (Art. 31.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro), cujo consentimento o Arguido concede, por esta via, expressamente.

f. O douto despacho recorrido fez incorreta apreciação dos factos e violou os artigo 32.º n.º 2, 27.º e 28.º da Constituição da República Pública, e os artigos 193.º, 200.º, 202.º e 204.º do Código de Processo Penal.

2. Pelo exposto, e pelo mais que for doutamente suprido, deve conceder-se provimento ao presente recurso, com o que se fará a costumada justiça.

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

4. Respondeu à motivação de recurso o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo, pugnando por lhe ser negado provimento.

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer como se transcreve:

Por despacho proferido em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido a 17 de Julho de 2023, tendo sido considerada fortemente indiciada a prática pelo arguido AA de factos suscetíveis de integrarem a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, e considerando- se verificado fortíssimo perigo de continuação da atividade criminosa e perigo de perturbação do inquérito e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, foram aplicadas ao arguido as medidas de coação de não contactar por qualquer meio a ofendida e de não se aproximar da sua residência ou do seu local de trabalho num raio de 400 metros, com controlo técnico à distância.

Até implementação dos meios de controlo técnico à distância, foi o arguido sujeito a prisão preventiva.

Aderimos à fundada argumentação do Ministério Público junto da 1ª instância em resposta ao recurso interposto pelo arguido do referido despacho pela sua correção jurídica e clareza, bem se pronunciando acerca das questões a dirimir, com os aditamentos que seguem.

O crime de violência doméstica é um crime que visa prevenir as frequentes formas de violência no âmbito da família, tendo em conta a gravidade individual e social destes comportamentos e a consciencialização da sua inadequação, gravidade e perniciosidade.

O fenómeno da violência domeìstica no nosso Paiìs tem sido sinalizado como um problema social a exigir medidas para a sua resoluçaÞo, que têm vindo a ser adoptadas nas sucessivas alteraçoÞes nesta mateìria ao Coìdigo Penal, assim como a adoçaÞo de um Plano Nacional contra a Violência Domeìstica.

A propósito refere-se ainda a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, conhecida como a Convenção de Istambul, o primeiro instrumento internacional com o objetivo de eliminar a violência contra as mulheres, ao estabelecer medidas jurídicas e estratégicas abrangentes para prevenir esse tipo de violência e proteger e prestar assistência às vítimas, incluindo medidas relativas à recolha de dados, à sensibilização, à criminalização da violência contra as mulheres e à prestação de serviços de apoio, a qual entrou em vigor em 1 de abril de 2014 e foi assinada pela UE em 13 de junho de 2017.

A Convenção de Istambul é, pois, um tratado internacional de direitos humanos, em particular das mulheres e raparigas, e foi ratificada por Portugal em 2013 e entrou em vigor em 2014 (cfr. Resolução da AR n.º 4/2013, de 21 de Janeiro que aprova a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011).

Tudo ponderado, somos de parecer que o recurso não deve obter provimento.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pelo arguido, em que reitera o já aduzido na motivação de recurso.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Verificação dos pressupostos de aplicação das medidas de coacção em causa.

Adequação e proporcionalidade das medidas de coacção.

2. O despacho recorrido apresenta o seguinte teor, na parte que releva (transcrição):

Encontram-se fortemente indiciados nos autos, os seguintes factos:

O arguido viveu maritalmente com a ofendida BB durante 24 anos, tendo-se separado da mesma há cerca de 1 ano.

Todavia arguido e ofendida coabitam na residência sita na Rua …, n.º … em ….

O arguido é pai de DD e do menor EE (nascido a …/…/2006), os quais também residem na mesma morada.

Durante a manhã do dia 16 de julho de 2023, no interior da aludida residência comum, o arguido iniciou uma discussão com a ofendida BB em virtude de não querer que esta se deslocasse para a praia com o menor EE. Na sequência de tal discussão, fechou a porta de entrada do apartamento, impedindo aqueles dois de sair.

Perante a insistência da ofendida o arguido abriu a porta e deixou-os sair, proferindo as seguintes palavras: "Vais, mas não voltas, vais para a praia mostrar as mamas, não voltas, mulher minha não vai mostrar as mamas para a praia, não voltas.

Quando a ofendida e o menor regressaram à residência, por volta das 13 horas, o arguido voltou a encetar uma discussão com a mesma BB, dizendo que a mesma tinha outros homens, que era uma puta, que ia para a praia mostrar as mamas e que era uma bruxa.

Por volta das 13 horas e 30 minutos, na cozinha da mesma residência, o arguido voltou a dirigir a BB frases do mesmo teor e começou a empurrar a mesma com as mãos.

Logo de seguida, DD surgiu na cozinha e colocou-se no meio dos outros dois.

Nessa altura, o arguido afastou-se e voltou a surgir na mesma divisão empunhando nas duas mãos um sabre, com 68 cm de lâmina e 102 cm de comprimento - devidamente descrito no auto de apreensão de fls. 113 - avançou na direção da filha DD e, apontando a ponta do sabre na direção da mesma, disse a frase: "Vai-te embora".

Depois, espetou a ponta do sabre numa das paredes da cozinha, dizendo para a BB: "corto-te ao meio a ti e aos teus amigos" e "bruxa, o que estás a fazer aql.li?".

Já no dia 30 de maio de 2023, durante a tarde, na mesma residência, o arguido havia dirigido à ofendida BB as seguintes palavras: “eìs uma puta do caralho, és uma cabra, andas com outros homens, isto naÞo fica assim, vais ver”.

E, já em diversas outras ocasiões anteriores e de forma recorrente o arguido havia dirigido à ofendida BB palavras com um teor semelhante às supra descritas.

O arguido, através do WhatsApp e entre 05/2023 e 13/06/2023, dirigiu várias mensagens à ofendida com um teor semelhante.

Agiu o arguido de uma forma voluntária, livre e consciente, querendo infligir maus tratos físicos e psíquicos à ofendida, o que logrou.

Sabia ele que a sua conduta era proibida por lei.

Pelos motivos acima expostos, foi o arguido detido.

Mais resultou indiciado que,

O arguido é eletricista, mas afirmou que irá deixar de trabalhar. O arguido irá viver para casa da sua mãe.

Da motivação de facto

Para consideração dos factos supra elencados como indiciados, o Tribunal valorou a prova apresentada na promoção do Ministério Público, designadamente:

- Auto de Notícia por Detenção de fls. 111;

- Mandado de Detenção de fls. 112;

- Auto de Apreensão de fls. 113;

- Autos de inquirição de testemunha de fls. 41 a 44, 117 e 118;

- - Listagem de fls. 48 a 65;

- Fotografias de fls. 123/124.

A convicção do Tribunal neste juízo indiciário estriba-se nos elementos de prova juntos aos autos, mormente e com especial tónica no teor das declarações prestadas pela vítima BB e filha DD, devida e pormenorizadamente descritas nos autos.

Cuide-se, ainda, que se encontram juntas aos autos capturas de ecrã das mensagens enviadas pelo arguido.

O arguido prestou declarações, as quais se mostraram incongruentes e assentes num discurso de manipulação e apresentação de razões manifestamente infundadas, como o facto de no contexto da discussão ter pegado no sabre para ver se entrava alguém em casa e depois para fazer mal a si próprio. O arguido nega e apresenta uma versão manifestamente contrária à da vítima e da sua filha, mas sem qualquer convicção do que afirma e denotando-se que o arguido entende que mulher sua não poderá adotar certos comportamentos. Minudencie-se que o arguido nega ter apodado a vítima de puta do caralho, cabra e de a acusar de andar com outros homens, mas questionado se podiam existir mensagens com esse teor, diz que mensagens podem haver, mas que também lhe dizia que a amava.

Com as condutas indiciadas, o arguido sabia que instalava um ambiente de medo sobre a vítima, perturbando a paz e o sossego da mesma, bem como sabia que a humilhava com as expressões que lhe dirigia, as quais são comummente tidas como ofensivas da honra e consideração de outrem.

O conhecimento da ilicitude de ameaças de morte e imputação de tais contumélias está sedimentado na ordem jurídica portuguesa de forma a que há uma grande sensibilização e consciencialização social no tocante a tais comportamentos ofensivos, pelo tanto de aviltante que o são, bem como pelo profundo receio que provocam.

Nenhum elemento tendo sido carreado aos autos que subtraísse esta consciência e voluntariedade.

Do enquadramento jurídico dos factos

Os factos tais como se mostram imputados ao arguido, são suscetíveis de integrar a prática pelo arguido, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º , n. º 1 al. b) e n º 2 al. a), do Código Penal;

Cumpre, agora, apurar se existe necessidade de aplicação de uma medida de coação em simultâneo com o TIR já prestado.

A aplicação de medidas de coação no âmbito do direito processual penal português tem por base o respeito máximo pelos princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade, da subsidiariedade e da precaridade, conforme moldado nos 193.º nº.1, al. b) e 204.º do CPP e 28º n.º 2 e 32 º n.º 2 da CRP.

Enquanto corolário de todos estes princípios, estabelece o nosso ordenamento jurídico o princípio da legalidade das medidas de coação, as quais só podem consistir nas estabelecidas na lei processual penal — cf. art. 191º do CPP.

Destarte e como ensina Maria João Antunes in Direito Processual Penal, Almedina, 2016, pág. 137, «Na medida em que a sujeição a uma medida de coacção tem de ser comunitariamente suportável face à possibilidade de estar a ser aplicada a um inocente, justificando-se exclusivamente por razões processuais de natureza cautelar, os requisitos gerais constantes do artigo 204º do CPP devem ser interpretados estritamente à luz das finalidades processuais de realização da justiça e de descoberta da verdade material (alíneas a) e b) deste artigo) e de restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa com a prática do crime (alínea c) do mesmo artigo).».

Desta feita, e concretizando os princípios supra aludidos, a aplicação de qualquer medida de coação deve partir da avaliação da sua necessidade face às exigências cautelares que o caso concreto requer, tal como da ponderação da gravidade da conduta indiciariamente imputada ao arguido, fazendo-se depois, a partir da medida abstrata da pena, um juízo de previsibilidade da pena concreta em que este venha a ser condenado.

Neste conspecto, nenhuma medida de coação, à exceção do Termo de Identidade e Residência, pode ser aplicada se, em concreto, não se verificar fuga ou perigo de fuga, perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidades públicas.

Afirma-se, portanto, que para aplicar determinada de coação é necessário não só que em concreto a mesma seja necessária e adequada para acautelar aqueles fins, mas também que se verifique, em concreto, alguma das circunstâncias referidas no artigo 204º do Código de Processo Penal.

Atente-se, ainda, que enquanto que para ser aplicada uma das medidas de coação previstas nos artigos 197º a 199.º, do Código de Processo Penal, se mostra suficiente a existência de indícios, já para a aplicação das medidas de coação previstas nos artigos 200º a 202º do mesmo diploma legal, mostra-se necessário a existência de fortes indícios da prática do crime pelo arguido.

No que concerne à medida de coação de prisão preventiva, esta para além de assumir uma natureza excecional, em relação às restantes medidas, a exigir a compreensibilidade dessa excecionalidade e a impor-se como um requisito acrescido aos fundamentos em que se sustentará, também ninguém deve ser preso preventivamente se não houver fortes probabilidades de o agente vir a ser condenado em pena de prisão efetiva.

Esquadrinhe-se, então, o caso vertente, procedendo à subsunção fáctico normativa no sentido de determinar da necessidade de aplicação de medida de coação e, em caso afirmativo, de qual a adequada a satisfazer as necessidades preventivas que se evidenciem. O crime de violência doméstica admite a aplicação de qualquer medida de coação do catálogo existente no Código do Processo Penal.

Verifica-se a existência de um fortíssimo perigo de continuação da atividade criminosa por parte do arguido - cf. art. 204.º, n.º 1, al. c), do CPP, porquanto a personalidade manifestada pelo arguido vinca o domínio que este pretende fazer valer sobre a vítima e a incapacidade de se abster de novos atos do mesmo género.

De mais a mais, o arguido proferiu ameaças de morte, deixando no ar a possibilidade de mais tarde concretizar os seus intentos e prosseguir nos termos indiciados.

De igual feita, o arguido afirma a sua perigosidade ao pegar num sabre e apontar à sua filha e dizer à vítima que «corto-te ao meio a ti e aos teus amigos» e demonstra em primeiro interrogatório uma indiferença pelos seus comportamentos, antes desculpabilizando a sua conduta e desvalorizando a gravidade das suas atitudes.

Ademais, entende-se que existe perigo de perturbação do inquérito, uma vez que ainda não foram tomadas declarações para memória futura à vítima e através de atos semelhantes aos praticados, o arguido facilmente conseguirá inibir a mesma de prestar declarações em conformidade com a verdade - cf. art. 204.º al. b), do CPP.

De mais a mais, revelam-se intensos os juízos de alarme e censura social, pois é sabida a repercussão que este tipo de criminalidade provoca na comunidade, sendo fonte de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, tendo a problemática da violência doméstica uma especial acutilância nos dias de hoje, constituindo um autêntico flagelo social, dado o número de vítimas que vêm sendo assassinadas no âmbito deste fenómeno. Tanto mais, tendo em consideração que, também, o crime de violação, que é a criminalidade que maior repulsa social gera.

Em face do perquirido, o Tribunal considera que decorre também o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidades públicas conforme descrito no art. 204.º, al. c) do CPP, porquanto se instala um sentimento de insegurança na vizinhança quanto à prática de factos mais gravosos.

O Tribunal tem, pois, de aplicar uma medida de coação que seja adequada a tais exigências cautelares e que respeite o princípio da proporcionalidade consagrado no art. 193.º do CPP.

Finca-se a necessidade premente de garantir a segurança e estabilidade da vítima, face às referidas ameaças e agressividade levadas a cabo pelo arguido, que lhe criam um crescente sentimento de insegurança, restituindo-lhe uma vida livre e sossegada, enquanto eminência da sua dignidade humana,

Neste contexto, existindo, uma forte probabilidade de o arguido voltar a reincidir no cometimento de atas do mesmo género, entende-se que só com a imposição de medidas de coacção que o afastem da vítima se assegurará efetivamente a proteção desta.

Perante todo o quadro supra perquirido e a afirmação do arguido de que irá residir para casa da sua mãe, de considerar, por ora, suficiente a medida de coação de não contactar por qualquer meio e não se aproximar da ofendida BB, da residência e do seu local de trabalho, num raio de 400 (quatrocentos) metros cf. arts. 200º n º 1, als. a) e d), do CPP, e 31º n º 1, al. d) da Lei n. º 112/2009, de 16 de setembro, a qual deverá ser controlada por meios técnicos de controlo distância.

Entende-se que estas medidas de coação se afiguram suficientes, uma vez que vigiando o arguido, mormente através do equipamento eletrónico de controlo à distância, saber-se-á da segurança da vítima.

Sucede, porém, que não existe a possibilidade de ser instalado ainda no dia de hoje o aparelho eletrónico de vigilância à distância, o que é pressuposto essencial à permanência do arguido em liberdade, ou seja, será o meio de controlar o arguido e saber que o mesmo não procurará a vítima para cumprir as ameaças que deixou feitas e com uma arma perigosa na mão.

Nesta senda, entende-se que até se lograr ter o arguido completamente vigiado, de molde a que as autoridades possam intervir perante a violação do estatuto coativo, ou seja, da violação da zona de exclusão, impõe-se privar o arguido da liberdade.

Posto isto, entende-se que até se reunirem as condições necessárias à segurança da vítima com o arguido em liberdade, é de manter o mesmo sujeito à medida de coação mais gravosa, a de prisão preventiva - cf. art. 202.º, nº 1, ala b), do CPP. Mensure-se que bastaria, assim, o arguido saber-se sem vigilância para procurar a retaliação em face deste processo crime para num ato de descompensação concretizar as ameaças proferidas.

Em razão do exposto e ao abrigo do disposto nos arts. 191.º, 193.º, 195.º, 196.º, 200.º , n.ºs 1, alíneas a) e d) e 4, 202.º n.º 1, al. a), 204.º, al. b) e c) do CPP e arts. 31.º n. º 1, alíneas c) e d), 35.º da Lei n.º 112/2009 de 16/09, determina-se que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coação:

- TIR, já prestado nos autos;

- Prisão Preventiva;

E após ser implementado o controlo eletrónico de vigilância à distância:

- proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima BB

- não frequentar e não se aproximar da residência e local de trabalho a, pelo menos, 400 metros de BB;

- tais medidas serão controladas por meios de vigilância eletrónica à distância,

Fica o arguido advertido de que o incumprimento das medidas de coação a cumprir, quando em liberdade, poderá determinar a imposição de uma medida de coação mais gravosa, nomeadamente a prisão preventiva, sendo que igual consequência poderá advir da prática de ilícitos penais dolosos da mesma natureza, tudo nos termos do art. 203º do CPP.

Apreciemos.

Verificação dos pressupostos de aplicação das medidas de coacção em causa

O recorrente coloca em causa a existência de fortes indícios da prática do crime de violência doméstica imputado, aduzindo que, apenas a ofendida BB relatou ter sido por ele ameaçada, estando presente no decurso da discussão ocorrida entre ambos também a testemunha DD que a não mencionou quando inquirida foi e que empunhou o sabre para magoar o próprio e não para ameaçar BB.

Vejamos então.

Conforme se estabelece no artigo 202º, nº 1, do CPP, “Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando: “b) houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta”.

O crime de violência doméstica (p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a), do Código Penal) apresenta moldura penal máxima de 5 anos de prisão, sendo integrável na definição de “criminalidade violenta” exposta no artigo 1º, alínea j), do CPP, pelo que é admissível quanto a este tipo criminal a medida de coacção de prisão preventiva.

Inexiste, no texto legal, a definição do que se entende por “fortes indícios” e certo é que no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, se consagra o princípio da presunção de inocência (de onde emana o princípio in dubio pro reo) segundo o qual “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença da condenação” pelo que podemos afirmar existirem fortes indícios da prática de um crime quando os mesmos sejam concretos e contrariem de modo inexorável essa presunção de inocência.

De acordo com a lição de Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II vol., 3ª edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 262:

“A indiciação do crime necessária para aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial significa probatio levior, isto é, a convicção da existência dos pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais, mas em grau inferior à que é necessária para a condenação” não podendo exigir-se “uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção objectivável com os elementos recolhidos nos autos de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado crime”.

Refere ainda o mesmo autor que “nos casos em que a lei exige fortes indícios a exigência é naturalmente maior; embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que face aos elementos da prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição”.

Percorrendo o despacho recorrido e recolhendo o que a propósito dos fortes indícios nele se encontra explicitado, podemos ler que a convicção do tribunal se formou tendo em conta, essencialmente, as declarações prestadas pela vítima BB e pela filha (de ambos) DD, conjugadas com as “capturas de ecrã das mensagens enviadas pelo arguido”.

Analisando estas declarações, resulta o seguinte:

BB revelou nos autos aos 14/06/2023 e 15/07/2023, perante órgão de polícia criminal, os acontecimentos ocorridos com o arguido, que descreveu de forma clara e com abundância de pormenores, localizando no tempo e no espaço os concretos acontecimentos, em termos, no essencial, coincidentes com a factualidade dada como fortemente indiciada.

Quanto a DD, filha do arguido e da vítima, de 20 anos de idade, relatou, em 16/07/2023, que neste dia apercebeu-se de uma discussão entre os progenitores e, quando saiu do seu quarto para observar o que se estava a passar, constatou que a mãe e o irmão mais novo já tinham saído da residência, continuando o denunciado aos gritos.

Mais tarde, cerca das 13:00 horas, apercebeu-se de nova discussão entre os pais, no interior da residência e dirigiu-se para a divisão respectiva, tendo constatado que o arguido estava a empurrar sua mãe com as mãos e a dizer para esta: mulher minha não anda a mostrar as mamas na praia; és uma puta, andas com outros homens; bruxa.

Mais referiu que se interpôs entre ambos e que o arguido verbalizou para abandonarem a sala, sendo que, como mãe e filha não acataram a determinação, o arguido empunhou uma arma branca tipo sabre e disse para DD, vai-te embora.

Após, o arguido empurrou ambas para fora da sala e aqui ficou, fechando a porta.

Tudo visto, resulta que as declarações de BB e DD não são totalmente coincidentes.

Porém, é sabido que as descrições das ocorrências estão sujeitas necessariamente a um processo de selectividade e interpretação do percepcionado pelos sentidos, pois um relato descreve apenas algumas das várias facetas da realidade de uma coisa, evento ou fenómeno, quais sejam, aquelas a que o narrador prestou maior atenção ou considerou significativas.

Por outro lado, as pequenas disparidades encontradas na prova oral, as dissemelhanças pontuais sinalizadas entre depoimentos, não fragilizam necessariamente o valor probatório do testemunho; os testemunhos assim prestados serão mesmo tendencialmente mais verdadeiros, pois mostra a experiência que a concertação e treino de versões “falsas” dará mais facilmente lugar a descrições de factos modelarmente análogas e admiravelmente coincidentes, como se alumia no Ac. da Relação de Évora de 07/01/2014, Proc. nº 59/11.5GDPTG.E1, disponível em www.dgsi.pt.

Assim, podemos concluir que da conjugação dos referidos elementos probatórios se extrai mostrar-se fortemente indiciada a prática pelo recorrente dos factos que lhe são imputados na decisão sob censura.

Ou seja, resultam indícios que revelam uma probabilidade elevada de por aquele crime ao arguido vir a ser aplicada uma pena, porquanto, fazendo apelo a um juízo de prognose, com base em critérios de normalidade, mantendo-se em julgamento os elementos probatórios neste momento existentes, estes conduziriam à sua condenação.

E, estes factos integram, efectivamente (de forma indiciária, obviamente), ao contrário do que sustenta o arguido, o crime de violência doméstica.

Consagra-se no artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal, que “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (…) é punido (…)”.

O bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime plasmado no artigo 152º, do Código Penal, será a saúde (abrangendo a saúde física, psíquica, emocional e moral), enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, sendo que este bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela dessa dignidade, projectada numa relação de afectividade ou coabitação, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos – assim, Plácido Conde Fernandes, Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre de 2008, pág. 305 – ou, na perspectiva de André Lamas Leite, “o fundamento último das acções abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo” - A violência relacional íntima, revista Julgar, nº 12 (especial), pág. 49.

Este tipo de crime exige, como elemento objectivo a prática de maus-tratos físicos ou psíquicos cometidos dentro de determinadas relações familiares ou análogas, sendo que essa exigência não pressupõe a repetição de condutas ofensivas da integridade física ou moral, podendo ocorrer a subsunção legal com uma única conduta, desde que a gravidade da mesma permita o enquadramento na figura dos maus-tratos. Já que não são obviamente todas as ofensas ou agressões, quer físicas, quer psíquicas, que se enquadram na previsão legal, mas apenas as que degradem a dignidade humana da vítima, com a inflicção de sofrimento cruel, de acordo com os padrões sociais vigentes, bem como o aproveitamento simultâneo de uma determinada dimensão de fragilidade do outro (neste sentido, por todos, o Ac. da Relação de Lisboa de 12/10/2016, Proc. nº 413/15.3PFAMD.L1-3, disponível em www.dgsi.pt), mas não coincidente esta, necessariamente, com situações de domínio, sujeição ou dependência – considerando mesmo a desnecessidade de comprovação de uma relação de domínio ou dependência, por ausência de referência, na formulação legal, de semelhante requisito, perfila-se o Ac. da Relação de Coimbra de 22/09/2021, Proc. nº 158/19.5GABBR.C1, que pode ser lido no mesmo sítio.

Fortemente indiciado está que, no dia 30 de Maio de 2023, na residência de ambos, o arguido dirigiu a BB, sua ex-companheira, com quem viveu durante 24 anos e partilhava ainda o mesmo apartamento, as expressões: és uma puta do caralho, és uma cabra, andas com outros homens, isto não fica assim, vais ver.

Entre Maio de 2023 e 13/06/2023, através da aplicação “WhatsApp”, o arguido dirigiu várias mensagens de teor semelhante a BB.

E, no dia 16 de Julho de 2023, no decurso de uma discussão entre ambos iniciada no apartamento que é residência comum, impediu que BB e o menor EE (filho do arguido e da vítima) saíssem desse apartamento, fechando a porta de acesso ao exterior.

Perante a insistência de BB, o arguido abriu a porta e deixou-a sair com o menor, mas verbalizou para aquela: vais, mas não voltas, vais para a praia mostrar as mamas, não voltas, mulher minha não vai mostrar as mamas para a praia, não voltas.

Nesse mesmo dia, após o regresso de BB e do menor à residência, o arguido disse para a mesma que tinha outros homens, que era uma puta, que ia para a praia mostrar as mamas e que era uma bruxa.

Minutos depois, o arguido dirigiu a BB expressões do mesmo teor e empurrou-a com as mãos e de seguida saiu da divisão e voltou empunhando com as duas mãos um sabre com 68 cm de lâmina e 102 cm de comprimentos, cravou-o numa das paredes da cozinha e verbalizou para BB: corto-te ao meio a ti e aos teus amigos; bruxa o que estás a fazer aqui?

Indiciado está ainda que, ao assim proceder, o arguido agiu com o propósito de molestar física e psicologicamente BB, tendo actuado de forma livre e consciente, ciente da proibição da sua conduta.

Ora, os referidos comportamentos do arguido, que se desenvolveram por mais de uma ocasião, (ainda que não se exija, como elemento objectivo do tipo, para verificação do crime nele previsto, uma conduta plúrima e repetida, vero é que aqui está ela presente) integram a prática de actos de agressão física, psíquica e emocional de BB com uma intensidade e repercussão que se não podem deixar de considerar como incompatíveis, em termos valorativos, com a sua dignidade enquanto pessoa humana.

Destarte, suficientemente indiciada está a violação do bem jurídico protegido pela norma, a tal não obstando a eventual circunstância de algumas das expressões terem sido proferidas no decurso de desentendimentos conjugais, pelo que nesta parte, carece de razão o recorrente.

Conforme se extrai do artigo 204º, do CPP, medida de coacção alguma prevista no Código de Processo Penal é susceptível de aplicação (com excepção do termo de identidade e residência) se, em concreto, não se verificar, alternativamente, fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito, designadamente para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Vejamos então se estão preenchidos os requisitos gerais de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, por se verificarem em concreto, como entendeu o tribunal a quo, os perigos de perturbação do decurso do inquérito, perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas e continuação da actividade criminosa.

Relativamente ao perigo de perturbação do decurso do inquérito, mormente na modalidade de aquisição e manutenção de prova - alínea b), do artigo 204º - considerou o tribunal a quo estar presente uma vez que ainda não foram tomadas declarações para memória futura à vítima e atraves de atos semelhantes aos praticados, o arguido facilmente conseguirá inibir a mesma de prestar declarações em conformidade com a verdade.

Ora, o inquérito encontra-se ainda em fase em que se mostra essencial a realização de outras diligências probatórias com intervenção da ofendida – pelo menos com reporte à data em que foi lavrado o despacho recorrido, que é o que está em causa neste recurso - , pelo que existe a possibilidade real de o arguido intentar contactar aquela em ordem a influenciá-la para prestação de depoimento não coincidente com a verdade factual, configurando-se assim este perigo.

No que tange ao perigo de continuação da actividade criminosa – a que alude a alínea c), do referido artigo 204º - considerou-o verificado o tribunal recorrido tendo em atenção que a personalidade manifestada pelo arguido vinca o domínio que este pretende fazer valer sobre a vítima e a incapacidade de se abster de novos atos do mesmo género. De mais a mais, o arguido proferiu ameaças de morte, deixando no ar a possibilidade de mais tarde concretizar os seus intentos e prosseguir nos termos indiciados. De igual feita, o arguido afirma a sua perigosidade ao pegar num sabre e apontar à sua filha e dizer à vítima que “corto-te ao meio a ti e aos teus amigos” e demonstra em primeiro interrogatoìrio uma indiferença pelos seus comportamentos, ates desculpabilizando a sua conduta e desvalorizando a gravidade das suas atitudes.

Ponderando a factualidade que indiciariamente (e fortemente) apurada se encontra, que espelha não só a muito intensa agressividade, como a falta de controlo das respectivas emoções pelo arguido em relação à vítima, que foi sua companheira durante 24 anos, mas de que até já estava separado há cerca de um anos, ainda que residindo no mesmo apartamento, configura-se realmente o sério perigo de que persista no mesmo comportamento, tanto mais que não revela o mínimo de sentido crítico perante a sua conduta.

Verificado se considerou, ainda, no despacho recorrido, o perigo grave de perturbação da ordem e tranquilidade públicas - alínea c), do artigo 204º -, porquanto:

(…) revelam-se intensos os juízos de alarme e censura social, pois é sabida a repercussão que este tipo de criminalidade provoca na comunidade, sendo fonte de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, tendo a problemática da violência doméstica uma especial acutilância nos dias de hoje, constituindo um autêntico flagelo social, dado o número de vítimas que vêm sendo assassinadas no âmbito deste fenómeno (…) o Tribunal considera que decorre também o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas (…) porquanto se instala um sentimento de insegurança na vizinhança quanto à prática de factos mais gravosos.

Como refere Vítor Sequinho dos Santos, Medidas de Coacção, Revista do CEJ, 1º semestre de 2008, nº 9 Especial, pág. 131, “mesmo anteriormente à Lei nº 48/2007, o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devia ser entendido como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reacção que o mesmo pudesse gerar na comunidade. A nova redacção da al. c) do art. 204º veio afastar qualquer possível dúvida sobre este aspecto, apontando claramente no sentido que já antes era correcto.” Ou seja, exige-se que haja perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devido a um previsível comportamento futuro do arguido.

De onde, a não coincidência entre este perigo e o alarme e censura social, ao contrário do que parece ter sido o entendimento do tribunal a quo.

Como cabalmente se alumia no Ac. da Relação de Coimbra de 22/02/2023, Proc. nº 1142/22.7JACBR-B.C1, consultável em www.dgsi.pt, “o perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas deve ser reportado a previsível comportamento no futuro imediato do arguido, resultante da sua postura ou actividade, e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reacção que pode gerar na comunidade (António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo III, 2021, Almedina, pág. 390). Dito de outro modo, não é a gravidade do crime indiciado e o consequente alarme social gerado que aqui estão em causa, pois o que a lei exige é que exista perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas devido a um previsível comportamento futuro do arguido (cfr. ac. da R. de Lisboa de 12 de Fevereiro de 2019, processo nº 165/18.5PGSXL-A.L1-5 e Vítor Sequinho dos Santos, Medidas de Coacção, Revista do CEJ, 1º semestre 2008, Número 9, Especial, Jornadas sobre a revisão do Código de Processo Penal, Estudos, pág. 131).”

Perigo que se não confunde com o de continuação da actividade criminosa, porquanto este não tem como finalidade precaver a prática de qualquer outro futuro crime, mas acautelar, apenas e só, a continuação da actividade delituosa que nos autos é indiciariamente imputada ao arguido, como se pode ler no mesmo aresto.

Da prognose que volte a desenvolver outros comportamentos criminosos como o destes autos ou até de gravidade mais significativa, como ficou exposto, aliada à natureza do crime indiciariamente praticado, resulta o perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, no entendimento explicitado.

Destarte, verificados estão, efectivamente, os mencionados perigos, carecendo de razão o recorrente e, por conseguinte, improcede o recurso neste segmento.

Adequação e proporcionalidade das mesmas

O tribunal recorrido aplicou ao arguido, ora recorrente, a medida de coacção de prisão preventiva, sendo que determinou: após ser implementado o controlo eletrónico de vigilância à distância, ficaria sujeito à proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima BB, bem como à medida de não frequentar e não se aproximar da residência e local de trabalho a, pelo menos 400 metros de BB.

O recorrente discorda destas medidas, com fundamento em que foi erradamente aplicada a prisão preventiva e as demais, por não estar fortemente indiciada a prática de factos integradores do crime de violência doméstica imputado e não se verificar qualquer dos perigos encontrados.

Mas, já vimos que carece de razão neste seu entendimento.

Subsidiariamente, considera que se mostram suficientes, em aplicação cumulativa, as medidas de coacção de obrigação de apresentação periódica; não adquirir, não usar ou entregar, de forma imediata, armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a continuação da atividade criminosa e sujeição a frequência de programa para arguidos em crimes no contexto da violência doméstica.

Consagra-se no nº 1, do artigo 191º, do CPP, o princípio da legalidade das medidas de coacção, segundo o qual “a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei”.

Por seu lado, no artigo 193º, nº 1, do mesmo Código, afirmam-se os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade dessas medidas, em função das exigências cautelares e da gravidade do crime e das sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas no caso concreto.

A propósito, diz-se na decisão revidenda:

Finca-se a necessidade premente de garantir a segurança e estabilidade da vítima, face às referidas ameaças e agressividade levadas a cabo pelo arguido, que lhe criam um crescente sentimento de insegurança, restituindo-lhe uma vida livre e sossegada, enquanto eminência da sua dignidade humana.

Neste contexto, existindo, uma forte probabilidade de o arguido voltar a reincidir no cometimento de atos do mesmo género, entende-se que só com a imposição de medidas de coacção que o afastem da vítima se assegurará efetivamente a proteção desta.

Perante todo o quadro supra perquirido e a afirmação do arguido de que irá residir para casa da sua mãe, de considerar, por ora, suficiente a medida de coação de não contactar por qualquer meio e não se aproximar da ofendida BB, da residência e do seu local de trabalho, num raio de 400 (quatrocentos) metros - cf. arts. 200º n o 1, als. a) e d), do CPP, e 31º n º 1, al. d) da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, a qual deverá ser controlada por meios técnicos de controlo distância.

Entende-se que estas medidas de coação se afiguram suficientes, uma vez que vigiando o arguido, mormente através do equipamento eletrónico de controlo à distância, saber-se-á da segurança da vítima.

Sucede, porém, que não existe a possibilidade de ser instalado ainda no dia de hoje o aparelho eletrónico de vigilância à distância, o que é pressuposto essencial à permanência do arguido em liberdade, ou seja, será o meio de controlar o arguido e saber que o mesmo não procurará a vítima para cumprir as ameaças que deixou feitas e com uma arma perigosa na mão.

Nesta senda, entende-se que até se lograr ter o arguido completamente vigiado, de molde a que as autoridades possam intervir perante a violação do estatuto coativo, ou seja, da violação da zona de exclusão, impõe-se privar o arguido da liberdade.

Posto isto, entende-se que até se reunirem as condições necessárias à segurança da vítima com o arguido em liberdade, é de manter o mesmo sujeito à medida de coação mais gravosa, a de prisão preventiva - cf. art. 202.º, n.º 1, al. b), do CPP. Mensure-se que bastaria, assim, o arguido saber-se sem vigilância para procurar a retaliação em face deste processo crime para num ato de descompensação concretizar as ameaças proferidas.

Pois bem.

Analisada esta fundamentação, entendemos que não merece censura o entendimento explanado e as medidas encontradas, porquanto, tendo em atenção o comportamento significativamente violento do arguido, revelado quer verbal, quer fisicamente e os perigos concretos que estão presentes, a necessidade, adequação e proporcionalidade das medidas aplicadas é manifesta, como também se impõe a fiscalização do seu cumprimento por meios técnicos de controlo à distância, por se mostrar imprescindível para protecção de BB, conforme estabelecido no artigo 35º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16/09.

Termos em que, não ocorreu obliteração das normas ínsitas nos artigos 32º nº 2, 27º e 28º, da Constituição da República Pública, nem violação do estabelecido nos artigos 193º, 200º, 202º e 204º, do CPP, cumprindo negar provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso pelo arguido AA interposto e confirmar a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.

Évora, 21 de Novembro de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(Maria Clara Figueiredo)

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(Jorge Antunes)