Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2985/23.0GBABF.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: MEDIDA DA CONCENTRAÇÃO DE ÁLCOOL NO AR EXPIRADO
ALCOOLÍMETROS
APROVAÇÃO
VERIFICAÇÕES PERIÓDICAS
LEI NACIONAL
DIRETIVAS DA UE
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Alcoolímetros são os instrumentos destinados a medir a concentração mássica de álcool por unidade de volume na análise do ar alveolar expirado. Sendo uns medidores qualitativos e outros medidores quantitativos.
II. Os medidores qualitativos ou de despiste são usados principalmente por entidades policiais, industriais e hospitalares, não estando sujeitos a controlo metrológico, tendo o respetivo resultado valor meramente indicativo da presença e concentração de álcool no sangue.

III. Já os medidores quantitativos – únicos que relevam para prova do ilícito criminal ou contraordenacional - estão sujeitos a aprovação do respetivo modelo, bem como a uma primeira verificação, a verificações periódicas e a verificações extraordinárias, a realizar pelo Instituto Português de Qualidade.

IV. Do resultado obtido em medidor quantitativo pode requerer-se contraprova, que poderá realizar-se através de outro aparelho aprovado ou de análise de sangue, prevalecendo resultado desta sobre o do exame inicial.

V. A lei nacional (DL n.º 29/2022) está alinhada com as orientações constantes da Diretiva n.º 2009/34/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, acautelando devidamente as garantias de defesa dos condutores fiscalizados.

VI. A tais válvulas de segurança acresce a estrutura acusatória do processo (que dentre o mais distingue e separa a entidade que persegue e acusa, da que julga); a garantia jurisdicional; e um processo equitativo (que assegura o contraditório e a mais ampla defesa).

Decisão Texto Integral: – Relatório
a. No Juízo Local Criminal de … procedeu-se a julgamento em processo sumário de AA, nascido a …1985, com os demais sinais dos autos, a quem foi imputada a autoria, na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto nos artigos 292.º, § 1.º do Código Penal, com referência ao artigo 69.º, § 1.º al. a) do mesmo código.

Teve lugar a audiência e a final o tribunal proferiu sentença condenando o arguido como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto nos artigos 292.º, § 1.º e 69.º, § 1.º al. a) CP, na pena de 90 dias de multa à razão diária de 6€; e na pena acessória de 3 meses e 20 dias de proibição de conduzir.

b. Inconformado com a condenação o arguido apresenta-se a recorrer, sintetizando-se as conclusões da respetiva motivação, nos seguintes termos (1):

«9. O recorrente não pode concordar com a douta Sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, no que concerne aos factos provados, uma vez que, no seu modesto entender, considera que não podiam ser dados como provados os seguintes factos:

“d) Bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, pois devia e era capaz de saber que apos ter ingerido bebidas alcoólicas, poderia acusar uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l, bem sabendo que o seu estado não lhe permitia efetuar uma condução cuidada e prudente e que aquele estado lhe diminuía a capacidade de atenção, reação e destreza, contudo não representou tal resultado, nem se conformou com este.

e) O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”

13. Nesse seguimento, no Subdestacamento Territorial da GNR, em …, às 11h55m, o arguido foi submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, através do aparelho alcoolímetro DRAGER ALCOTEST, modelo 7110 MKIII P, com a Ref.ª ARNA-0037, aprovado pelo Despacho n.º 19684/2009, da ANSR, de 27 de agosto, o qual teve como resultado uma TAS registada, a qual, deduzido o erro máximo admissível, deu lugar à TAS de 1,31 g/l.

14. Inconformado com o resultado de tal exame, o arguido requereu a realização de contraprova, através de novo exame de pesquisa de álcool no ar expirado, o qual lhe foi efetuado, às 11h58m da mesma data, através do aparelho alcoolímetro DRAGER ALCOTEST, modelo 7110 MKIII P, com a Ref.ª AZRL-0190, também aprovado pelo Despacho n.º 19684/2009, da ANSR, de 27 de agosto, e que teve como resultado uma TAS de 1,35 g/l registada, a qual, deduzido o valor do erro máximo admissível, deu lugar à TAS de 1,283 g/l.

15. Ambos os alcoolímetros, embora não se tratem de aparelhos novos, foram ambos submetidos, não a “Verificação Periódica”, nos termos dos artigos 5.º, n.º 1, alínea c), e 9.º do DL n.º 29/2022, de 07 de abril, mas sim a “Primeira Verificação”, prevista nos artigos 5.º, n.º 1, alínea b), e 8.º do mesmo diploma legal, as quais tiveram lugar, respetivamente, em 18-09-2023 e em 14-06-2023.

16. O modelo de alcoolímetro de ambos os aparelhos utilizados nos exames realizados ao arguido – DRAGER ALCOTEST, 7110 MKIII P –, foi aprovado pelo IPQ, I.P., através do Despacho n.º 11037/2007, de 06 de junho, e pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (doravante, ANSR), através do Despacho n.º 19684/2009, de 27 de agosto.

17. Uma vez que o Despacho de aprovação de tal modelo de alcoolímetro, na data dos factos, se encontrava caducado há largo tempo, e uma vez que ambos os aparelhos foram submetidos, não a “Verificação Periódica”, mas sim, a “Primeira Verificação”,

24. A legislação relativa ao controlo metrológico dos instrumentos de medição tem inspiração europeia, tendo sido importada do Direito Europeu, com vista à sua harmonização nos diversos Estados-Membros da UE.

25. Nesta matéria assume particular relevância a Diretiva 2009/34/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, em vigor na presente data.

26. No âmbito de tal Diretiva comunitária/europeia, resulta claramente expresso que a “Primeira Verificação” constitui uma operação de controlo metrológico específica, a qual tem lugar antes de um determinado instrumento de medição ser colocado ao serviço.

27. Tal regime resulta claramente do seu Considerando n.º 7, mas igualmente da sua própria organização, em que surge claramente patente uma distinção entre controlo metrológico prévio à colocação dos aparelhos em serviço (através do Despacho de aprovação de modelo e da Primeira Verificação – Capítulos II e III e Anexos I e II), e entre controlo metrológico dos instrumentos já “em serviço” (capítulo IV).

28. No nosso ordenamento jurídico, o regime do controlo metrológico dos instrumentos de medição encontra-se previsto no DL n.º 29/2022, de 07 de abril.

29. Neste diploma legal assume particular relevância o artigo 8.º, relativo à “Primeira Verificação”, o qual dispõe que, “A primeira verificação compreende o conjunto de operações destinadas a constatar a conformidade da qualidade metrológica dos instrumentos de medição, novos ou reparados, com a dos respetivos modelos aprovados e com as disposições regulamentares aplicáveis, devendo ser requerida, para os instrumentos novos, pelo fabricante ou mandatário, e pelo utilizador, para os instrumentos reparados”.

30. Isto é, de tal disposição legal, resulta claramente que, conforme referido, a “Primeira Verificação” constitui uma operação de controlo metrológico específica, a qual tem lugar quando um determinado instrumento de medição é colocado ao serviço pela primeira vez, ou quando é recolocado ao serviço, após ter sido retirado por motivos técnicos.

31. Mais concretamente, trata-se de uma operação de controlo mais exigente, especificamente aplicável a aparelhos que não estão em utilização ou em serviço, porque ainda não foram colocados, ou porque foram retirados por motivos técnicos e se pretende a sua recolocação em serviço.

32. Acresce que, conforme resulta da Lei europeia e nacional, nomeadamente, das disposições legais acima identificadas, tal “Primeira Verificação” tem por objetivo aferir a conformidade metrológica do aparelho de medição em causa com a aprovação de modelo, pelo que, salvo melhor opinião, a mesma não pode ser dissociada do Despacho de Aprovação de Modelo.

33. Por conseguinte, por motivos de coerência do sistema europeu de controlo metrológico e de acordo o regime legal em vigor, não é admissível a colocação, ou recolocação, em serviço, de um aparelho, novo ou reparado, através da necessária “Primeira Verificação”, quando o Despacho de Aprovação de modelo se encontra caducado há largo tempo.

38. (…) a “Primeira Verificação” apenas se pode verificar em dois casos – no caso de aparelhos novos ou no caso de aparelhos reparados (cfr. o artigo 8.º, n.º 1, do DL n.º 29/2022, de 07 de abril).

39. Isto é, aparelhos que ainda não foram colocados ao serviço, ou aparelhos que foram necessariamente retirados de serviço, por motivos técnicos, e ainda não foram recolocados ao serviço, servindo tal meio de controlo específico justamente para esse efeito.

40. Conforme resulta da informação prestada pelo IPQ, I.P., os aparelhos alcoolímetros em causa nos presente autos foram submetidos, ambos, a “Primeira Verificação”, por quebra do sistema de selagem.

41. Com o devido respeito, é patente que um aparelho alcoolímetro com quebra na selagem não pode estar ao serviço, sendo legalmente imposta a sua retirada, para reparação.

42. Sendo que, pela natureza das coisas, uma quebra na selagem implica uma intervenção/reparação técnica no aparelho em causa – colocação de novo sistema de selagem no aparelho alcoolímetro.

45. (…) uma vez que os legisladores europeu e nacional estabeleceram uma clara destrinça entre instrumentos em serviço, e instrumentos antes de serem colocados ou recolocados em serviço, não se pode senão interpretar o art.º 7.º, n.º 7, do DL n.º 29/2022, de 07 de abril, no sentido de que a expressão “desde que satisfaçam as operações de verificação metrológica aplicáveis” exclui necessariamente a homologação de modelo e a “Primeira Verificação”, por se tratarem de operações de utilização/serviço, nos termos legais.

47. (…) a interpretação efetuada pelo douto Tribunal “a quo” ao disposto no artigo 7.º, n.os 6 e 7, do DL n.º 29/2022, de 07 de abril, no art.º 7.º, n.º 2, do DL n.º 291/90, de 20 de setembro, no art.º 5.º da Portaria n.º 1558/2007, de 10 de dezembro, no art.º 1.º, n.º 3, do DL 291/90, de 20 de setembro, o douto Tribunal “a quo” violou tais disposições legais, mas violou igualmente o artigo 8.º, n.º 1, do DL n.º 29/2022, de 07 de abril.

48. Pois que, de facto, a “Primeira Verificação” apenas se pode verificar a instrumentos que não estão em serviço, não apenas porque é essa a intenção do legislador europeu, mas também porque tal operação de controlo não poder ser dissociada da aprovação de modelo,

49. pelo que jamais poderá ser efetuada uma “Primeira Verificação” quando o Despacho de aprovação de modelo já caducou e não foi renovado.

50. Por outro lado, com tal construção, o douto Tribunal “a quo” violou igualmente a legislação europeia – com a qual a legislação nacional e a interpretação desta se devem conformar, por força dos princípios do Primado e do Efeito direto –, nomeadamente, o disposto nos artigos 3.º e seguintes e Anexo I, artigos 8.º e ss. e Anexo II, e artigo 15.º, todos da Diretiva 2009/34/CE, acima mencionada, pelos mesmos fundamentos.

53. Por outro lado, violou o douto Tribunal “a quo” o disposto no artigo 125.º do CPP, pois que deveria ter considerado a prova resultante dos exames realizados através dos alcoolímetros proibida e/ou nula, totalmente insuscetível de ser utilizada nos presentes autos, na medida em que tais alcoolímetros deveriam ter sido retirados de funcionamento, uma vez detetada tal falha técnica, e jamais, após reparados, sujeitos a “Primeira Verificação” e recolocados em serviço.

55. Assim, na medida em que a prova resultante dos exames realizados através dos alcoolímetros acima identificados não podia ser utilizada nos presentes autos por proibida e/ou nula,

56. Pelos fundamentos supra aduzidos, na ausência de qualquer outra prova cabal de onde resultasse a eventual e efetiva taxa de álcool no sangue com que se encontrava o arguido, na data dos supostos factos, deveria o mesmo ter sido absolvido pelo douto Tribunal “a quo”, em obediência ao princípio in dubio pro reo.

Nestes termos e nos demais de Direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser a douta Sentença recorrida revogada e substituída por outra que absolva o Recorrente do crime de condução de veículo em estado de embriaguez a que foi condenado, fazendo-se, assim, a tão costumada JUSTIÇA!

c. Admitido o recurso o Ministério Público respondeu pugnando pela sua improcedência, sintetizando-se a sua posição deste modo:

«Se atentarmos na prova produzida, relacionando-a entre si e ponderando também os critérios de normalidade e da experiência comum, não vislumbramos como pudesse o Tribunal chegar a qualquer outra conclusão, que não fosse a certeza da prática pelo arguido a título de negligência porquanto a seleção dos factos dos quais o elemento subjetivo se infere não merece reparo. Não há fundamento para alterar os factos provados d) e e).

Em sede de questão prévia o tribunal expôs exaustivamente e de forma clara as razões pelas quais a arguição de nulidade deve improceder. Considerando estar bem fundamentada a sua posição em termos de direito aplicável, damos por reproduzida tão completa fundamentação concluindo que não merece procedência o recurso também nesta parte.»

d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu parecer, secundando o que já consta da resposta ao recurso.

e. Cumprido o disposto no artigo 417.º, § 2 do CPP, o arguido não respondeu.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP). (2)

Neste contexto constatamos serem as seguintes as questões que cumpre apreciar e sobre as quais importa decidir: i) Nulidade das provas (aparelhos medidores da TAS fora das condições legais); ii) Erro de julgamento na decisão de facto; iii) In dubio pro reo.

B. Dos factos provados na sentença recorrida

Na 1.ª instância julgaram-se provados os seguintes factos, baseados nas seguintes provas:

«a) No dia 29.10.2023, pelas 11h30, no Caminho …, em …, o arguido AA conduzia o veículo com matrícula …, quando foi interveniente num acidente de viação.

b) Nessas circunstâncias, foi submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, com o aparelho DRAGER, modelo 7110 MKIII P, com o n.º ARNA 00011, verificou-se que apresentava uma TAS de 1,38 g/l, à qual deduzido o erro máximo admissível corresponde a uma TAS de 1,31.

c) Declarou pretender ser submetido a exame de contraprova, pelo que realizou teste com o aparelho DRAGER, modelo 7110 MKIII P, com o n.º ARZL 0190, verificou-se que apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,35g/l, a que corresponde, após dedução do erro máximo admissível, o valor de 1,283g/l.

d) Bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, pois devia e era capaz de saber que apos ter ingerido bebidas alcoólicas, poderia acusar uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l, bem sabendo que o seu estado não lhe permitia efetuar uma condução cuidada e prudente e que aquele estado lhe diminuía a capacidade de atenção, reação e destreza, contudo não representou tal resultado, nem se conformou com este.

e) O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

f) O arguido exerce atualmente funções de …, auferindo a quantia de €1.000.00 a titulo de renumeração mensal.

g) Reside com o filho, menor de idade, em habitação própria, procedendo ao pagamento de €370,00 de prestação bancaria.

h) Concluiu o 5.º ano de escolaridade.

i) O arguido foi condenado: Por sentença proferida no âmbito do processo n.º 14/22.0… do Juízo Local criminal de Santiago de …– Juiz …, transitada em julgado em 16.02.2022, pela prática de um crime de condução de sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de €5,50; pena extinta por cumprimento.

Fundamentação da Decisão Sobre a Matéria de Facto

A convicção do Tribunal em relação aos factos provados e não provados acima descritos fundou-se no conjunto da prova, apreciada criticamente, junta aos autos em especial nas declarações do arguido o qual admitiu ter ingerido bebidas alcoólicas em momento prévio à condução de veículo automóvel em via publica, alegou, contudo, que não tinha consciência da taxa de álcool que iria acusar, sobretudo negando que tivesse ciência que iria acusar uma TAS de 1,2g/l.

Com efeito, o arguido declarou ter ingerido dois copos de whisky e entre sete e oito cervejas e que, embora soubesse que, caso fosse sujeito a exame de pesquisa de álcool iria acusar uma TAS, alegou que não considerou que pudesse ser igual ou superior a 1,2 g/l., dado o hiato temporal decorrido entre a ingestão do álcool (cerca das 5h00) e o exercício da atividade de condução, razão pela qual solicitou a realização de contraprova.

Valorou igualmente o Tribunal o depoimento prestado pelo militar da GNR, BB, o qual prestou um depoimento isento e credível relativamente à factualidade constante na acusação, corroborando os factos descritos no Auto de notícia a fls. 5 a 6, a Participação de acidente de viação, de fls. 19, assim como os talões de alcoolímetro a fls. 7 e 9 dos presentes autos, não tendo dúvidas quer quanto à identificação do arguido como sendo o condutor, assim como que este foi sujeito a uma fiscalização rodoviária na sequencia de acidente de viação, tendo acusado uma TAS superior ao limite penalmente punível. Igualmente, depôs que o arguido manifestou surpresa perante o valor acusado.

Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugada as regras da experiencia comum, a taxa de alcoolemia acusada (próxima dos limites legais) e a natureza das bebidas alcoólicas, infere-se que tendo o arguido o dever e capacidade para saber que a quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas, poderia este acusar uma taxa superior à penalmente permitida, o mesmo não representou tal possibilidade, nem se conformou com tal.

Por fim, considerou o Tribunal as declarações do arguido quanto às suas condições socioeconómicas e o Certificado de Registo Criminal constante nos autos, no que se refere à ausência de antecedentes criminais.»

C. Apreciando

C.1 Da nulidade das provas

Alega o recorrente que a realização do teste de pesquisa de álcool no sangue não observou as prescrições legais, nomeadamente porque quer o teste qualitativo quer o quantitativo, foram realizados por aparelhos que não aptos a realizar tais medições, na medida em que não reuniam as condições para tanto exigidas pela lei.

Na sua resposta o Ministério Público refere que a sentença conheceu e resolveu bem esta questão, que já vinha suscitada na contestação.

Efetivamente, a sentença evidencia ter essa questão (já colocada em sede de contestação) sido enfrentada, em nota prévia ao julgamento da questão de facto, nos seguintes termos:

«Vem o arguido invocar a nulidade da prova pericial realizada e que determinou a taxa de alcoolémia que o arguido acusou, porquanto para a pesquisa de álcool no sangue pelo método do ar expirado, quer para a prova, quer para a contraprova, foi utilizado instrumentos para a medição de álcool que o arguido tinha na expiração alcoolímetro da marca DRAGER ALCOTEST 7110 MK IIIP e cuja utilização foi aprovada pelo despacho n.º 19684/2009 de 27 de Agosto (DR n.º 166/2009 Série II de 2009/08/27 páginas 34825-34825) sendo especificamente o modelo utilizado aprovado por despacho 11037/2007 de 06 de Junho (publicado no DR n.º 109/2007, série II de 06/06/2007) para um período de 10 anos, a contar da data da publicação no Diário da República, o qual ocorreu a 27.08.2019, sendo que ambos os instrumentos foram sujeitos a primeira verificação pelo IPQ, pelo que se trataram de aparelhos retirados e recolocados em utilização.

Retornando ao caso em apreço, resulta que o teste quantitativo para pesquisa de álcool no sangue foi realizado no analisador quantitativo Drager Alcotest 7110 MKIII P, ARNA N.º 0037, aprovado pelo IPQ através do Despacho n.º 11037/2007, de 24 de abril, aprovação de modelo n.º 211.06.07.3.06 (D.R. 2.ª Série, n.º 109, de 6 de junho), com validade de 10 anos a contar da data de publicação no Diário da República, aprovado para fiscalização pelo Despacho nº 19684/2009, da ANSR, de 25 de Junho.

O Aparelho em questão foi verificado pelo IPQ em 2023-09-18 - (Aprovação do modelo Primeira Verificação).

Por sua vez, a contraprova foi igualmente efetuada por pesquisa de álcool no sangue no analisador quantitativo Drager Alcotest 7110 MKIII P, ARZL N.º 00025, aprovado pelo IPQ através do Despacho n.º 11037/2007, de 24 de abril, aprovação de modelo n.º 211.06.07.3.06 (D.R. 2.ª Série, n.º 109, de 6 de junho), com validade de 10 anos a contar da data de publicação no Diário da República, aprovado para fiscalização pelo Despacho nº 19684/2009, da ANSR, de 25 de Junho.

O supra referido aparelho foi verificado pelo IPQ em 2023-06-14 - (Aprovação do modelo Primeira Verificação).

Preceitua o art. 153º, nº 1, do Código da Estrada que: “O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito”.

Por sua vez, dispõe o art. 158º, nº1 do Código de Estrada que:

“São fixados em Regulamento: a) O tipo de material a utilizar na fiscalização e nos exames laboratoriais para determinação dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas.”

Dispõe, o artigo 1º, nº 2, da Lei nº 18/2007, de 17 de maio, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, (que revogou o Decreto Regulamentar n.º 24/98, de 30 de Outubro que regulamentava os procedimentos para a fiscalização da condução sob a influência do álcool ou de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas): "A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efetuado em analisador quantitativo É o analisador ou aparelho a que se refere o artigo 153º, nº1, do Código da Estrada., ou por análise de sangue".

Esta mesma Lei nº 18/2007, dispõe no artigo 14º, nº1, que: "Nos testes quantitativos de álcool no ar expirado só podem ser utilizados analisadores que obedeçam às características fixadas em regulamentação e cuja utilização seja aprovada por despacho do presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária”.

Dispondo no nº 2: “A aprovação a que se refere o número anterior é precedida de homologação de modelo, a efetuar pelo Instituto Português da Qualidade, nos termos do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros".

O Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros consta da Portaria nº 1556/2007, de 10 de dezembro que logo no artigo 5º, preceitua:

“O controlo metrológico dos alcoolímetros é da competência do Instituto Português da Qualidade, I. P. - IPQ e compreende as seguintes operações:

a) Aprovação de modelo;

b) Primeira verificação;

c) Verificação periódica;

d) Verificação extraordinária.

Já o nº 3, do artigo 1º, do DL nº 291/90, de 20 de setembro, dispõe que:

3 - O controlo metrológico dos instrumentos de medição compreende uma ou mais das seguintes operações:

a) Aprovação de modelo;

b) Primeira verificação;

c) Verificação periódica;

d) Verificação extraordinária.

Sendo a aprovação do dito modelo, válida por 10 anos, salvo disposição em contrário – nº 3, do artigo 6º, da mesma Portaria.

Ora, infere-se do supra exposto que aprovação do modelo em discussão é válida por 10 anos e que o modelo de alcoolímetro usado na realização do teste ao arguido foi efetivamente aprovado há mais de 10 anos. Ou seja, à data da realização do teste já havia decorrido o prazo da referida aprovação. Todavia, tendo expirado o prazo de validade da aprovação do aparelho pelo IPQ, daí não se infere que a utilização aparelho nessas circunstâncias constitua um meio de prova proibido (art.º 125 do CPP), já que uma realidade é a aprovação do modelo outra é a capacidade de uso do aparelho em si, como veremos.

De facto, o n.º 7 do art.º 2 do DL 291/90, de 20.09, legislação em vigor à data da homologação, estabelecia que “os instrumentos de medição em aprovação cuja aprovação de modelo não seja renovada ou tenha sido revogada podem permanecer em utilização desde que satisfaçam as operações de verificação aplicáveis”, ou seja, o Regime Geral de Controlo Metrológico dos Alcoolímetros estabelece expressamente que, não obstante a caducidade do prazo de validade da aprovação de modelo, estes “podem permanecer em utilização desde que satisfaçam as operações de verificação aplicáveis”, regime que não é afastado pelo regime instituído no Decreto-Lei n.º 29/2022, de 7 de abril, que estabelece o regime geral do controlo metrológico legal dos métodos e dos instrumentos de medição (art.º 1.º), o qual entrou em vigor no dia 1 de julho de 2022, tendo revogado o anterior diploma legal, mas que manteve exatamente a mesma norma como se pode ler do disposto no 7.º, n.º 7: Os instrumentos de medição em utilização, cuja aprovação de modelo não seja renovada ou tenha sido revogada, podem permanecer em utilização desde que satisfaçam as operações de verificação metrológica aplicáveis.

Ora, como se pode ler do auto de notícia e dos certificados de verificação de IPQ juntos a fls. 8 e 10, ambos os Aparelhos usados na realização do teste de alcoolémia e na subsequente contraprova foram ambos verificados pelo IPQ, respetivamente em 2023-09-18 e 2023-06-14.

Prevendo a própria legislação que a aprovação de um modelo de aparelho por determinado período, no caso dez anos, pode ser renovada, significa que o que o legislador releva é, por um lado, a qualidade técnica do aparelho para proceder às medições pretendidas. Do mesmo modo que prevê a sua revogação, antes do fim do prazo de validade de aprovação, desde que apresente defeitos de medição cfr. nº 6, alínea b), do artigo 7º, do Decreto-Lei n.º 29/2022, de 7 de abril e, por outro lado, outras eventuais circunstâncias, como seja a eventual disponibilidade do modelo no mercado para renovação ou não da sua aprovação, que pode, simplesmente, ser substituído por outro modelo, pois é sabido a evolução e qualidade/quantidade de aparelhos, sendo ainda preocupação do legislador a harmonização desta aprovação com as normas de mercado da União Europeia – v. preâmbulo do DL nº 291/90.

O que significa que, atingido o prazo inicial de aprovação de 10 anos, o mesmo modelo pode ser renovado. Portanto, com o atingir do prazo, não significa que o modelo não esteja apto a continuar a proceder a medições técnicas de qualidade.

A interpretação que fazemos tem por base uma política legislativa de qualidade/eficiência/custos, pelo que não pode inutilizar-se, sem mais, um aparelho legalmente aprovado que, na data em que atinge o prazo de validade de aprovação, ainda mantém qualidade técnica para efetuar as pretendidas medições. Pressuposto é que essa qualidade técnica esteja reconhecida e válida segundo as verificações exigidas.

Dos preceitos citados, resulta clara a diferença entre prazo de validade de determinado modelo de aparelho e prazo perentório de não utilização desse aparelho. Que podem não coincidir. E no caso concreto não coincidem.

O modelo atingiu o prazo de validade por que foi aprovado. Significa que, a partir deste prazo, não podem ser introduzidos novos aparelhos, deste modelo, para uso, para medição. Questão diferente, salvaguardada em termos legislativos, é a dos aparelhos aprovados, ainda a funcionar, segundo as verificações exigidas, no momento em que expira o dito prazo de aprovação do modelo. O que expira (expirou), é a aprovação do modelo em si, nos termos supra expostos. Não expira (expirou) a qualidade técnica para um aparelho aprovado, embora não renovada essa aprovação, poder continuar a ser usado, nos condicionalismos legalmente previstos.

Por todos estes considerandos, entende-se que o exame de pesquisa por ar expirado de álcool no sangue feito ao arguido constitui prova legal e válida.

Acresce que e, diversamente do argumentado pela defesa, o facto da operação efetuada pelo IPQ de controlo do instrumento de alcoolímetro ter se tratado de uma primeira verificação, não pressupõe a retirada do aparelho para a realização da operação e a sua recolocação como se fosse um aparelho novo. Com efeito, e conforme resulta do disposto no art. 5.º do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros consta da Portaria nº 1556/2007, de 10 de dezembro e o nº 3, do artigo 1º, do DL nº 291/90, de 20 de setembro é da competência do Instituto Português da Qualidade, I. P. – IPQ o controlo metrológico dos alcoolímetros, sendo que compreende o referido controlo, diversas operações entre as quais a primeira verificação. Da leitura dos preceitos supra elencados, nada se infere que a operação de primeira verificação seja mais do que uma mera operação de controlo do aparelho, alias conforme decorre dos esclarecimentos solicitados junto do IPQ constante no ofício ref. eletrónica n.º ….

De igual modo, não se infere que tal interpretação da norma prevista no art. 7.º, n.º 7 do D.L. n.º 29/2022, de 7 de abril colida com as garantias de defesa constitucionais previstas no art. 32.º da CRP, ou as demais normas da CRP alegadas pelo arguido- art. 13.º, 18.º e 1.º. Sabendo-se que o aparelho utilizado no exame de pesquisa de álcool no sangue do arguido foi efetivamente sujeito a verificação periódica em tempo útil, tendo em conta que o arguido beneficiou da oportunidade de requerer a realização de contra prova, pôde suscitar a nulidade na ocasião e posteriormente no tribunal, teve a possibilidade de apresentar contestação e os meios de prova que entendesse adequados em audiência de julgamento sujeita ao princípio do contraditório, não se vislumbra fundamento algum para afirmar que a norma legal prevista no art. 7.º, n.º 7 do D.L. n.º 29/2022, constituiu uma violação dos “direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação” (na formulação de Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2007, p. 516) ou, em todo o caso, uma diminuição inadmissível das garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Improcede assim a arguição de nulidade invocada pelo arguido.»

Em primeiro lugar caberá referir que no direito processual penal português vigora o princípio da tipicidade ou da legalidade e da taxatividade das nulidades, a que alude o artigo 118.º CPP, norma essa que dispõe:

«1. A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei.»

Sustenta o recorrente que a obtenção da taxa de álcool no sangue (TAS) «não observou as prescrições legais, nomeadamente porque quer o teste qualitativo quer o quantitativo, foram realizados por aparelhos que não aptos a realizar tais medições», uma vez que não reuniam as condições para tanto exigidas pela lei.

Vejamos se lhe assiste razão. Conforme decorre do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros (3), entende-se por «alcoolímetros» os instrumentos destinados a medir a concentração mássica de álcool por unidade de volume na análise do ar alveolar expirado. (4) Certo sendo que os chamados «alcoolímetros qualitativos ou de despiste são usados principalmente por entidades policiais, industriais e hospitalares. Este tipo de alcoolímetro permite uma utilização prática e rápida e não está sujeito a controlo metrológico». (5) A utilização dos dois tipos de aparelhos tem a ver com razões operacionais, porquanto os aparelhos qualitativos têm uma grande portabilidade, sendo utilizados (apenas) para despiste ou rastreio sobre a presença de álcool no sangue. E verificada esta, transporta-se então o cidadão suspeito até ao local onde se encontra o aparelho de medição quantitativa (artigo 2.º, § 2.º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas), dispositivo este que por regra se encontra em local mais reservado, mais protegido e mais adequado à realização do exame. Só este exame (quantitativo) releva para efeito da prova do ilícito, porquanto a TAS registada no medidor qualitativo tem valor meramente indicativo (não servindo de prova para nenhuma imputação criminal ou contraordenacional). (6) E conforme decorre da lei (cf. artigo 153.º Cód. Estrada), só da TAS registada no exame quantitativo pode haver contraprova.

De acordo com a lei os aparelhos medidores estão sujeitos a controlo periódico pelo IPQ, sendo este integrado pelas seguintes operações (artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 29/2022, de 7 de abril):

a) Aprovação de modelo;

b) Primeira verificação;

c) Verificação periódica;

d) Verificação extraordinária.

Refere também este mesmo diploma legal, no § 7.º do seu artigo 7.º, que: «os instrumentos de medição em utilização, cuja aprovação de modelo não seja renovada ou tenha sido revogada, podem permanecer em utilização desde que satisfaçam as operações de verificação metrológica aplicáveis.» Ora, confrontando a documentação disponível no processo, designadamente o auto de notícia e os certificados de verificação do Instituto da Qualidade (IPQ), ambos os aparelhos usados na realização do teste de alcoolémia pelo recorrente (teste qualitativo e teste quantitativo) foram verificados pelo IPQ, respetivamente em 18set2023 e 14jun2023.

Mais se permitindo verificar que na realização dos testes de pesquisa de álcool no sangue do arguido/recorrente, foram estritamente observadas as regras vigentes em matéria de fiscalização da circulação rodoviária (artigos 152.º e 153.º do Código da Estrada e artigos 1.º a 4.º da Lei n.º 18/2007, de 17 de maio - Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas). Conforme bem refere a decisão recorrida e resulta do disposto no artigo 5.º do DL n.º 29/2022, a primeira verificação dos equipamentos, não é mais que uma mera operação de controlo dos medidores (talqualmente e muito bem consta dos esclarecimentos prestados pelo IPQ) (7).

Prescrutando as normas pertinentes e as operações de verificação realizadas, constatamos que a lei nacional não contraria as orientações constantes da Diretiva n.º 2009/34/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, nem vulnera, em nada, as garantias de defesa do arguido/recorrente.

No que concerne à conformidade normativa, refere o próprio preâmbulo do DL n.º 29/2022, que «a qualidade metrológica dos instrumentos de medição e o controlo metrológico legal a que aqueles estão sujeitos são estabelecidos na regulamentação da União Europeia que tem gradualmente sido objeto de revisão para adequação ao progresso técnico e tecnológico, nas recomendações da Organização Internacional de Metrologia Legal, bem como em outras normas e disposições técnicas aplicáveis.»

Adicionalmente deverá lembrar-se, no respeitante à força normativa das Diretivas da União Europeia, que estas produzem efeitos na ordem interna em conformidade com o previsto no artigo 8.º, § 4.º da Constituição. Isto é, têm como destinatários diretos os Estados membros, visando em primeira linha a respetiva transposição para o direito nacional.

E delas só podendo derivar um efeito direto vertical (dos cidadãos para com o respetivo Estado), se – como não é seguramente aqui o caso – aquelas não forem transpostas; se as suas disposições forem incondicionais e suficientemente precisas; e se mostrar esgotado o prazo de transposição. Daqui decorrendo que atentas as presentes circunstâncias, não estão verificadas as razões que permitam a aplicação direta da referida Diretiva.

O que sucede é que a interpretação das normas da lei ordinária interna, feita pelo recorrente, se mostra algo enviesada, seja por uma confusão de conceitos, seja ainda pelo juízo apriorístico de que a legislação nacional contraria a Diretiva da EU n.º 2009/34/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009!

Por outro lado, no balanceamento dos valores em presença, isto é, no equilíbrio entre as garantias de defesa dos condutores e a segurança da prova daquele modo obtida, a lei estabelece duas válvulas: uma é a contraprova (artigo 153.º § 3. Cód. Estrada); e a outra é o controlo periódico dos aparelhos medidores pelo IPQ.

E a estas válvulas de segurança, facilmente mobilizáveis pelos arguidos, acresce a estrutura acusatória do processo (que dentre o mais distingue e separa a entidade que persegue e acusa, da que julga), a garantia jurisdicional e um processo equitativo (na medida em que o arguido dispõe de um tribunal independente e imparcial, que lhe assegura o contraditório e a mais ampla defesa). Estes fatores equilibradores, arredam qualquer pretensão – subjetivamente interessada - de a legislação em vigor (as normas ordinárias referenciadas pelo arguido) vulnerarem as suas garantias de defesa.

Não se verifica, pois, a nulidade assacada ao modo de aquisição da TAS do arguido.

Termos em que improcede a alegada «nulidade das provas».

C.2 Erro de julgamento na questão de facto

O recorrente manifesta a sua discordância face ao juízo que o Tribunal recorrido efetuou sobre a sua atitude interna face à Taxa de Álcool no Sangue registada pelo aparelho medidor quantitativo.

Ora, as intenções, as vontades, os conhecimentos, as representações mentais, porque do foro psíquico do sujeito, não são realidades palpáveis, sensitivamente percetíveis, hipostasiáveis.

E por isso insuscetíveis de prova direta. Assim, com ressalva do caso das declarações provenientes do próprio «autor» relativas a tal facto psíquico, a única forma de os determinar consiste em utilizar técnicas de reconstrução indireta.

Conforme para evidente, com os habituais meios de prova o que se pode conhecer são apenas os factos materiais, a partir de cuja existência se pode seguramente inferir que um determinado sujeito tem uma determinada vontade, o conhecimento de algum facto, uma determinada atitude valorativa. (8)

A inerente perceção, nomeadamente para efeitos judiciais, só pode ser alcançada por via da ponderação dos comportamentos exteriorizados que, de um modo mais ou menos conclusivo, demonstrem esses estados psicológicos.

Neste exato sentido refere Germano Marques da Silva que «a maior parte das vezes os atos interiores não se provam diretamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores»). (9)

E foi justamente desse modo (conforme evidencia a motivação da decisão de facto) que se demonstrou a factualidade respeitante às intenções que estavam no foro interno do recorrente quando praticou os factos objetivos que (também) ficaram provados.

O segmento das declarações prestadas pelo arguido na audiência e extratadas no recurso, não só não impõem decisão diversa (artigo 412.º, § 3.º, al. b) CPP), como confirmam a justeza da convicção firmada pelo tribunal recorrido.

C.3 In dubio pro reo

Na sequência da impugnação da decisão de facto (como que a «talhe de foice) o recorrente, a dado passo do recurso, afirma que «deveria, assim, o arguido ter sido absolvido dos factos de que vinha acusado, em homenagem ao princípio in dubio pro reo, por inexistência de qualquer prova cabal nos presentes autos que possibilitasse aferir da suposta concreta eventual e efetiva taxa de álcool no sangue que tinha o arguido na data, hora e local dos supostos factos»! Pois bem.

Contrariamente ao que parece vir pressuposto pelo recorrente, o sentido e conteúdo do princípio in dubio pro reo - que é uma das dimensões do princípio da presunção de inocência (garantia fundamental plasmada no § 2.º do artigo 32.º da Constituição) (10) - não serve para esgrimir com base na convicção da próprio! Muito menos para «atirar» a esmo, apenas porque a decisão não foi a contento da sua argumentação.

O que o princípio in dubio pro reo encerra é uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando [o juiz] não alcançar certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Sendo, pois, coisa diversa do que o recorrente alega.

O in dubio pro reo constitui a forma de ultrapassar um impasse probatório em sede factual (um non liquet), na fase de apreciação probatória, por banda do Tribunal. Como é óbvio só este, na verdade, é tercero en discordia (11), isto é, só o juiz possui as características de independência e de imparcialidade - mas também a necessária preparação técnica - que o habilita e legitima a julgar.

Quer-se dizer, o princípio in dubio pro reo «não sai vulnerado quando, de acordo com a opinião do condenado, o juiz devia ter duvidado, mas somente quando o juiz condenou apesar da existência real de uma dúvida.(12)

O estado de dúvida gerado no espírito do julgador, só poderá, pois, ser afirmado quando, do texto da decisão recorrida, decorrer - de modo evidente - que o Tribunal teve dúvida sobre o acontecido e optou por decidir contra o arguido.

Mas sobre isto o recorrente diz… nada!

O facto de ter havido declarações do arguido num sentido diverso ao da decisão, isso, só por si, não suscita (nem – muito menos – determina) nenhuma dúvida inultrapassável, em termos de levar à absolvição do arguido!

Só perante uma dúvida racionalmente inultrapassável, que impeça a formação racional de uma convicção segura, se tem de seguir a solução favorável ao arguido.

Ora, não resulta da sentença recorrida que o Tribunal a quo se tivesse confrontado com qualquer dúvida sobre qualquer dos factos em referência.

Antes pelo contrário, a motivação inventaria as razões pelas quais o Tribunal valorou positivamente a prova relativa à TAS e ao conhecimento e vontade do arguido em praticar o facto ilícito, expondo com lógica os raciocínios empreendidos, não tirando nenhuma conclusão que possa ser contrariada pelas máximas da experiência comum.

Não é, pois, por acaso, que nas “dúvidas” suscitadas pelo recorrente, se não aponte qualquer questão probatória que o Tribunal não tivesse inventariado, valorado e racional e logicamente motivado (explicado).

Concluímos, assim, que nenhuma vulneração sofreu a garantia constitucional da presunção de inocência, nem as demais garantias processuais do arguido, pelo que nada há a alterar à factualidade julgada provada na 1.ª instância.

E, por assim ser, o recurso não se mostra merecedor de provimento.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a douta sentença recorrida.

b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s.

Évora, 21 de maio de 2024

J. F. Moreira das Neves (relator)

Anabela Simões Cardoso

Maria Filomena Soares

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1 E só estas. Embora a petição de recurso contenha um segmento denominado «conclusões», em boa verdade o que ali consta não são realmente conclusões; antes, no essencial, uma repetição das motivações! Ora as «conclusões», conforme a doutrina e a jurisprudência com proficiente clareza têm concretizado: «devem ser concisas, precisas e claras (…)» (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Do Procedimento - Marcha do Processo, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 335); são «um resumo das questões discutidas na motivação» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 1136, nota 14); não podem constituir uma «reprodução mais ou menos fiel do corpo motivador, mas sim constituírem uma síntese essencial dos fundamentos do recurso» (Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, revista Julgar n.º 10, 2010, pp. 23. Neste mesmo sentido tem a jurisprudência decidido: cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 1set2021, proc. 430/20.1GBSSB.E1, Desemb. Gomes de Sousa; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11jul2019, proc. 314/17.0GAPTL.G1, Desemb. Mário Silva; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5abr2019, proc. 349/17.3JDLSB.L1-9, Desemb. Filipa Costa Lourenço; e do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 9mar2023, proc. 135/18.3SMLSB.L2-9, Desemb. João Abrunhosa. Realizar um convite à correção para adotar o figurino legal - sob pena de rejeição do recurso (artigo 417.º, § 3.º ex vi artigo 412.º, § 1.º CPP) -, dificilmente alcançaria o desiderato (conforme a experiência destas coisas evidencia), por em geral estas «desconformidades» constituírem deveras, elas também, uma estratégia processual de defesa. Sendo que – em boa verdade – a simplicidade das questões que se colocam não justifica despender o hiato temporal que tal necessariamente implicaria.

2 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995. 3 Constante da Portaria n.º 1556/2007, de 10 de dezembro, ao abrigo do disposto no § 1.º do artigo 1.º e do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 291/90, de 20 de setembro (entretanto substituída pela Portaria 366/2023, de 15 de novembro).

4 Artigo 2.º do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros (Portaria n.º 1556/2007, de 10 de dezembro).

5 Cf. Instituto Português da Qualidade, entidade à qual a lei (artigo 14.º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas) defere a homologação e o controlo dos aparelhos de medição da taxa de álcool no sangue http://www1.ipq.pt/pt/metrologia/squantmateria/salcoolimetria/Paginas/LabAlcool00.aspx

6 Neste sentido cf. Ac. TRCoimbra, de 8/7/2015, proc. 171/13.6GTLRA.C1 (Des. Vasques Osório) – citado nas alegações de resposta do Ministério Público.

7 Cf. ofício na ref.ª eletrónica n.º ….

8 Michele Taruffo, Simplemente la Verdad – El juez y la constuccion de los hechos, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2010, p. 267.. Em sentido semelhante, e no específico âmbito criminal cf. o Acórdão da Relação de Évora de 8mai2012, no proc. 139/09.7GAABF.E1, relatado por António João Latas, disponível in www.dgsi.pt .

9 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1999, pp. 101

10 Em sentido algo diverso Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, 2019, Almedina, pp. 66 ss.

11 Título feliz de obra de Perfecto Andrés Ibañez (magistrado del Tribunal Supremo de España), Editorial Trotta, 2015, pp. 251 ss.

12 Claus Roxin e Bernd Schünemann, Derecho Procesal Penal, Buenos Aires, 1.ª ed., 2019, p. 573 (tradução da 29.ª edição da C. H. Beck, München), Ediciones Didot. pp. 573).